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DOI: 10.1590/1413-81232017225.

33272016 1501

Políticas públicas de proteção à mulher: avaliação

ARTIGO ARTICLE
do atendimento em saúde de vítimas de violência sexual

Women’s protection public policies: evaluation


of health care for victims of sexual violence

Lucielma Salmito Soares Pinto 1


Ingrid Mayra Pereira de Oliveira 1
Eduardo Salmito Soares Pinto 2
Camila Botelho Campelo Leite 1
Auricélia do Nascimento Melo 2
Maria Castelo Branco Rocha de Deus 3

Abstract Violence against women has increased Resumo A violência contra mulheres tem cres-
over the years and is a serious violation of human cido, constituindo-se grave violação dos direitos
rights. This study aimed to evaluate public poli- humanos. Objetivou-se avaliar as políticas públi-
cies, women’s rights legislation and health care for cas, a legislação de proteção à mulher e os aten-
victims of sexual violence. This is an exploratory dimentos de saúde às vítimas de violência sexual.
and descriptive study, with interviews to profes- Realizou-se estudo exploratório e descritivo, com
sionals of the Care Center for Women Victims of entrevistas a profissionais do Serviço de Atendi-
Violence of Teresina-PI, and collection of medical mento à Mulher Vítima de Violência de Teresina
records data of victims. We analyzed data in the -PI, além de coleta de dados de prontuários das
light of legislation and guidelines recommended vítimas. Os dados foram analisados à luz da legis-
by the Ministry of Health, according to the es- lação e das diretrizes preconizadas pelo Ministé-
tablished public policies. We noted an improve- rio da Saúde, consoante com as políticas públicas
ment of the Brazilian legislation and increasing instituídas. Observou-se evolução da legislação
intervention of government in order to control brasileira e crescente intervenção do poder público
the violence. The evaluated service calls for the no intuito de controlar a violência. O serviço ava-
humanization of care, the principles of dignity, liado preconiza a humanização do atendimento,
non-discrimination, confidentiality and privacy, os princípios da dignidade, não discriminação, do
avoiding exposure and distress of victims. Physi- sigilo e da privacidade, evitando a exposição e o
cal and gynecological examination are conduct- desgaste das vítimas. São realizados exames físico
ed, besides laboratory tests such as serological e ginecológico, outros complementares como testes
tests and collecting traces aiming at identifying sorológicos e coleta de vestígios em busca da iden-
1
Faculdade de Ciências the offender, as well as pharmaceutical care and tificação do agressor, além de assistência farma-
Médicas, Universidade multi-professional support. We can conclude that cêutica e acompanhamento multiprofissional. Po-
Estadual do Piauí. R. Olavo
the current legislation and the guidelines and pro- de-se concluir que a legislação vigente, bem como
Bilac 2335, Centro. 64000-
000 Teresina PI Brasil. cedures recommended by public policies to protect as diretrizes e os procedimentos preconizados pelas
lucielma@yahoo.com.br women are effective in the referral service studied. políticas públicas de proteção à mulher são efica-
2
Centro Universitário
Key words Public policies, Sexual violence, zes no serviço de referência estudado.
UNINOVAFAPI. Teresina
PI Brasil. Violence against women Palavras-chave Políticas públicas, Violência
3 Serviço de Atendimento à sexual, Violência contra a mulher
Mulher Vítima de Violência
(SAMVVIS). Teresina PI
Brasil.
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Pinto LSS et al.

Introdução Nas últimas décadas, em resposta a pressões


de movimentos feministas e da própria socieda-
A violência contra as mulheres, cuja compreen- de, os governos têm implementado políticas pú-
são remonta a uma trama de raízes profundas, blicas e ações de prevenção de violência contra a
produz consequências traumáticas e indelé- mulher. Uma das estratégias principais tem sido
veis para quem a sofre. Por atravessar períodos criar e aprimorar normas, bem como expandir
históricos, nações e fronteiras territoriais, bem serviços com o objetivo de assistir as vítimas2.
como permear as mais diversas culturas, inde- Tratando-se das normas, de uma forma ge-
pendente de classe social, raça, etnia ou religião, ral, sabe-se que a eficácia das leis pode abranger
guarda proporções pandêmicas e características o âmbito jurídico e social. Jurídico, quando está
universais1. apta a produzir efeitos, considerando-se sua vi-
Por mais de três décadas, a violência contra gência, e social, quando efetivamente produz
mulheres tem crescido, constituindo-se uma im- efeitos, sendo aplicada a casos concretos.
portante violação dos direitos humanos2. Apesar No Brasil, a legislação que visa assegurar os
das estatísticas serem frágeis e as exatas incidên- direitos constitucionais à mulher tem se estabele-
cia e prevalência da violência sexual serem desco- cido e aprimorado ao longo dos anos, ressalte-se
nhecidas devido ao problema de subnotificação, nesse processo a clara tentativa de garantir-se a
estima-se que a violência sexual afete cerca de 12 assistência à vitima de violência, em especial, no
milhões de pessoas a cada ano no mundo. Pes- tocante ao atendimento de saúde. Há, entretanto,
quisas e relatórios de organizações internacionais uma lacuna com relação à avaliação da eficácia
apontam que uma em cada quatro mulheres no dos referidos dispositivos legais. Deste modo, o
mundo é vítima de violência de gênero e perde presente estudo visa revisar historicamente o de-
um ano de vida potencialmente saudável a cada senvolvimento da legislação brasileira de prote-
cinco1. Com relação a homicídios, considerando- ção aos direitos da mulher, bem como avaliar a
se 66 países, em mais de um terço dos casos, o eficácia social dessas normas, de modo a verificar
assassino é um parceiro íntimo da mulher3. o respeito às diretrizes de atendimento e proce-
Em todo o mundo, uma em cada cinco mu- dimentos preconizados pela Política Nacional de
lheres será vítima de estupro ou tentativa de es- Enfrentamento à Violência contra as Mulheres,
tupro, calcula a Organização das Nações Unidas no tocante ao atendimento de saúde.
(ONU). A violência sexual contra as mulheres
é vista como uma questão de saúde pública no
mundo, demandando o estabelecimento de po- Metodologia
líticas públicas eficazes. Mulheres com idades
entre 15 e 44 anos correm mais risco de serem Realizou-se estudo exploratório e descritivo. Uti-
estupradas e espancadas do que de sofrer de cân- lizou-se artigos obtidos na base de dados Bireme,
cer ou acidentes de carro. Calcula-se que apenas com os descritores “Políticas Públicas”, “Violên-
16% dos estupros são comunicados às autorida- cia Sexual” e “Violência contra a Mulher”, bem
des competentes nos EUA. Em casos de incesto, como a legislação brasileira pertinente ao tema.
estes percentuais não atingem os 5%4. Entrevistas com seis profissionais responsáveis
Acredita-se que a maior parte das mulheres pelo acolhimento, e análise de prontuários de
não registre queixa, em especial as com melhor vítimas de violência sexual atendidas no período
condição econômica5. Seja por constrangimento 2013 a 2015 foram realizados no Serviço de Aten-
e humilhação, ou por medo da reação de parcei- dimento à Mulher Vítima de Violência (SAMV-
ros, de serem discriminadas ou responsabilizadas VIS), na Av. Higino Cunha, 1552, em Teresina-PI.
por familiares, amigos, vizinhos e autoridades. O presente estudo foi submetido e aprovado pelo
Também é comum que o agressor ameace a mu- Comitê de Ética em Pesquisa.
lher, caso revele-se o ocorrido. Ainda, a mulher Foram incluídos no estudo os seis profissio-
teme ser desacreditada, o que pode ser confirma- nais responsáveis pela acolhida do referido ser-
do pelos inúmeros relatos de discriminação, pre- viço. No período de 01 de janeiro de 2013 a 31
conceito, humilhação e abuso de poder4. O medo de dezembro de 2015, foram atendidas 1.335 ví-
de ser responsabilizada e a falta de apoio de famí- timas de violência sexual, efetuou-se a análise de
lia, amigos e serviços públicos leva a um número 135 desses prontuários obtidos mediante sorteio,
menor de denúncias. Além disso, sabe-se que a 45 prontuários de cada ano. A entrevista consis-
forma mais comum de violência contra a mulher tiu na aplicação de um questionário estruturado
é perpetrada por um parceiro íntimo1-3,5,6. composto por oito questões elaboradas a partir
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do Decreto 7.958/137, Art. 2o, que estabelece di- Adicionalmente, instituiu-se a notificação
retrizes para o atendimento às vítimas de vio- compulsória de violências contra crianças e ado-
lência sexual pelos profissionais da rede de aten- lescentes, sendo que uma cópia da ficha de notifi-
dimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e da cação deve ser encaminhada ao Conselho Tutelar
Lei 12.845/138, que dispõe sobre o atendimento da Criança e do Adolescente.
obrigatório e integral de pessoas em situação de Ainda na década de 1990, importantes acor-
violência sexual no âmbito do SUS. Os prontuá- dos internacionais, como Conferência de Cairo
rios das vítimas de violência sexual foram exami- (1994), Convenção de Belém do Pará (1994) e
nados a fim de observar a realização dos procedi- Conferência de Beijing (1995), ratificaram a po-
mentos definidos pelo Art. 4o do referido Decreto sição do Brasil em relação à violência sexual, en-
7.958/137 e Art. 3o da Lei 12.845/138. Após a cole- tendendo-a como violação aos direitos humanos
ta dos dados, procedeu-se a inserção em base de e como questão de saúde pública.
dados e posterior análise. Em 1999, o Ministério da Saúde publicou a
1a edição da Norma Técnica Prevenção e Trata-
Análise das políticas públicas de proteção mento dos Agravos Resultantes da Violência Se-
aos direitos da mulher xual contra Mulheres e Adolescentes, contendo
recomendações gerais de atendimento e apoio
No Brasil, até meados do século XX, o ho- psicossocial e protocolos de procedimentos pro-
micídios cometidos por parceiros, normalmente filáticos. As segunda e terceira edições da referida
tendo como vítimas as mulheres, eram justifica- Norma Técnica vieram a ser publicadas em 2005
dos como sendo em legítima defesa da honra. O e 2012, respectivamente1.
progresso no tema foi incipientemente delineado Em 2003, criou-se a Secretaria de Políticas
em 1984, quando o país ratificou o Tratado In- para as Mulheres, fortalecendo-se as políticas
ternacional da Convenção sobre a Eliminação de públicas de enfrentamento à violência contra as
Todas as Formas de Discriminação contra a Mu- mulheres por meio da elaboração de conceitos,
lher, porém sua aprovação nacional foi promul- diretrizes, normas e da definição de ações e es-
gada apenas em 2002. Em sequência, em 1988, a tratégias de gestão e monitoramento relativas ao
Carta Magna9 declarou formalmente a igualdade tema. A partir de então, estimulou-se a criação
de gêneros, no seu artigo 5o, I: de normas e padrões de atendimento, aperfeiço-
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem dis- amento da legislação, incentivo à constituição de
tinção de qualquer natureza, garantindo-se aos redes de serviços, o apoio a projetos educativos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a e culturais de prevenção à violência e ampliação
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à do acesso das mulheres à justiça e aos serviços de
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos segurança pública1.
seguintes: A Lei 10.77811, de 2003, estabeleceu a notifi-
I - homens e mulheres são iguais em direitos e cação compulsória, no território nacional, dos
obrigações, nos termos desta Constituição. casos de violência contra a mulher, atendidos
Em 1990, a Lei 8.06910 (Estatuto da Crian- em serviços de saúde públicos ou privados. Ten-
ça e do Adolescente) tratando das situações de do sido definida por esta Lei a violência contra a
violências contra adolescentes e crianças, dispôs mulher como qualquer ação ou conduta, baseada
que a política de atendimento dos seus direitos no gênero, que cause morte, dano ou sofrimen-
será feita através de um conjunto articulado de to físico, sexual ou psicológico, tanto no âmbito
ações governamentais e não governamentais, da público como no privado. Essa lei foi regulamen-
União, dos estados, do Distrito Federal e dos mu- tada pelo Decreto-Lei 5.099/2004 e normati-
nicípios, garantindo-se serviços especiais de pre- zada pela Secretaria de Vigilância em Saúde do
venção e atendimento médico e psicossocial às Ministério da Saúde através da Portaria MS/GM
vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, 2.406/2004, que implantou a notificação com-
abuso, crueldade e opressão. O artigo 87, III da pulsória de violência contra a mulher no âmbito
referida Lei10 versa: do SUS, por meio do uso da Ficha de Notifica-
Art. 87. São linhas de ação da política de aten- ção/Investigação de Violência Doméstica, Sexual
dimento: e/ou outras Violências.
III - serviços especiais de prevenção e atendi- Já em 2006, foi decretada a Lei 11.34012 (Lei
mento médico e psicossocial às vítimas de negli- Maria da Penha) criando mecanismos para coi-
gência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade bir a violência doméstica e familiar contra a mu-
e opressão. lher13. No seu bojo foi incluído dispositivo que
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assegura a assistência à mulher em situação de cada etapa do atendimento e a importância das


violência doméstica e familiar a ser prestada de condutas médicas, multiprofissionais e policiais,
forma articulada inclusive pelo SUS12: respeitada sua decisão sobre a realização de qual-
Art. 9. A assistência à mulher em situação de quer procedimento;
violência doméstica e familiar será prestada de for- V - identificação e orientação às vítimas sobre
ma articulada e conforme os princípios e as diretri- a existência de serviços de referência para atendi-
zes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, mento às vítimas de violência e de unidades do sis-
no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de tema de garantia de direitos;
Segurança Pública, entre outras normas e políticas VI - divulgação de informações sobre a existên-
públicas de proteção, e emergencialmente quando cia de serviços de referência para atendimento de
for o caso. vítimas de violência sexual;
§ 3o A assistência à mulher em situação de VII - disponibilização de transporte à vítima de
violência doméstica e familiar compreenderá o violência sexual até os serviços de referência; e
acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvi- VIII - promoção de capacitação de profissionais
mento científico e tecnológico, incluindo os serviços de segurança pública e da rede de atendimento do
de contracepção de emergência, a profilaxia das SUS para atender vítimas de violência sexual de
Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da forma humanizada, garantindo a idoneidade e o
Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) rastreamento dos vestígios coletados.
e outros procedimentos médicos necessários e cabí- Além das diretrizes de atendimento, o re-
veis nos casos de violência sexual. ferido Decreto7 prevê, no seu Art. 4o, os proce-
Também em 2006, o Ministério da Saúde, por dimentos a serem prestados pelos profissionais
meio da Coordenação Geral de Doenças e Agra- de saúde, quais sejam acolhimento, anamnese e
vos Não Transmissíveis, implantou o Sistema de realização de exames clínicos e laboratoriais; pre-
Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), ob- enchimento completo de prontuário, exame físi-
jetivando coletar dados a respeito dessas violên- co completo, inclusive o ginecológico, se neces-
cias de modo a permitir a análise e o manejo da sário; descrição minuciosa das lesões e vestígios
situação1,14. encontrados, identificação dos profissionais que
Em 2011, definiu-se a Política Nacional de atenderam a vítima, preenchimento dos Termos
Enfrentamento à Violência contra as Mulheres de Relato Circunstanciado e Consentimento In-
cuja finalidade é estabelecer conceitos, princí- formado, coleta de vestígios; assistência farma-
pios, diretrizes e ações de prevenção e combate cêutica e de outros insumos e acompanhamento
à violência contra as mulheres, assim como de multiprofissional, de acordo com a necessidade;
assistência e garantia de direitos àquelas em si- além de orientação à vítima ou ao seu responsá-
tuação de violência, conforme normas e instru- vel a respeito de seus direitos e sobre a existência
mentos internacionais de direitos humanos e de serviços de referência para atendimento às ví-
legislação nacional14. timas de violência sexual. O Decreto ainda dispõe
Decretos são atos da competência do chefe sobre as competências do Ministério da Justiça e
do poder executivo e, mais recentemente, em 13 do Ministério da Saúde para sua implementação.
de março de 2013, foi publicado o Decreto 7.9587 Publicada em 01 de agosto de 2013, a Lei
que estabelece diretrizes para o atendimento às ví- 12.8458 dispôs sobre o atendimento obrigatório
timas de violência sexual pelos profissionais de se- e integral de pessoas em situação de violência se-
gurança pública e da rede de atendimento do SUS: xual, de forma que todos os hospitais integrantes
Art. 2. O atendimento às vítimas de violência da rede do SUS devem oferecer às vítimas de vio-
sexual pelos profissionais de segurança pública e da lência sexual atendimento emergencial, integral e
rede de atendimento do SUS observará as seguintes multidisciplinar, visando ao controle e ao trata-
diretrizes: mento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes
I - acolhimento em serviços de referência; de violência sexual, e encaminhamento, se for o
II - atendimento humanizado, observados os caso, aos serviços de assistência social (Art 1o ).
princípios do respeito da dignidade da pessoa, da Com relação ao atendimento a ser prestado:
não discriminação, do sigilo e da privacidade; Art. 3. O atendimento imediato, obrigatório
III - disponibilização de espaço de escuta qua- em todos os hospitais integrantes da rede do SUS,
lificado e privacidade durante o atendimento, para compreende os seguintes serviços:
propiciar ambiente de confiança e respeito à vítima; I - diagnóstico e tratamento das lesões físicas no
IV - informação prévia à vítima, assegurada aparelho genital e nas demais áreas afetadas;
sua compreensão sobre o que será realizado em II - amparo médico, psicológico e social imediatos;
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III - facilitação do registro da ocorrência e Análise das políticas públicas
encaminhamento ao órgão de medicina legal e às de atendimento de saúde às vítimas
delegacias especializadas com informações que pos- de violência sexual em um serviço
sam ser úteis à identificação do agressor e à com- de referência
provação da violência sexual;
IV - profilaxia da gravidez; Sob pressão de movimentos feministas e da
V - profilaxia das Doenças Sexualmente Trans- sociedade em geral, os governos dos países em
missíveis - DST; desenvolvimento, inclusive o Brasil, como apre-
VI - coleta de material para realização do exa- sentado anteriormente, têm implementado polí-
me de HIV para posterior acompanhamento e te- ticas públicas e ações de prevenção e assistência
rapia; à mulher vítima de violência, especialmente no
VII - fornecimento de informações às vítimas tangente à criação e aprimoramento de normas e
sobre os direitos legais e sobre todos os serviços sa- de serviços de atendimento às vítimas2.
nitários disponíveis. O Decreto 7.9587, no seu Art. 1o, visa estabe-
§ 1 Os serviços de que trata esta Lei são presta- lecer diretrizes para o atendimento de vítimas de
dos de forma gratuita aos que deles necessitarem. violência sexual pelos profissionais da área de se-
§ 2 No tratamento das lesões, caberá ao médi- gurança pública e rede de atendimento do SUS e
co preservar materiais que possam ser coletados no atribui as competências do Ministério da Justiça e
exame médico legal. do Ministério da Saúde para sua implementação.
§ 3 Cabe ao órgão de medicina legal o exame de Desde 2004, quando foi criado, até o ano de
DNA para identificação do agressor. 2015, o SAMVVIS de Teresina já atendeu 3.856
Diversas críticas, entretanto, têm pautado as vítimas, com incidência crescente a cada ano.
discussões acerca da referida Lei. A primeira trata Sendo observado, portanto, o cumprimento do
do conceito adotado para violência sexual, como Art.2o, I, do Decreto 7.9587, qual seja o acolhi-
sendo “qualquer forma de atividade sexual não mento das vítimas de violência sexual em serviços
consentida”, porém, sabe-se que devem ser ob- de referência. Foram entrevistados seis profissio-
servados os crimes sexuais mesmo que haja con- nais responsáveis pelo acolhimento das vítimas
sentimento da vítima, como é o caso dos crimes no serviço. Todos os profissionais são mulheres,
de estupro de vulnerável e os que trazem vício no com idade média de 47 anos e trabalhando no
seu consentimento. Ainda, observa-se que diver- serviço há pelo menos 1 ano. Quando pergunta-
sas formas de violência definidas pela Lei Maria das a respeito das vítimas que procuram o serviço,
da Penha12 não foram incluídas na Lei 12.8458. informaram tratarem-se de mulheres e crianças
Indubitavelmente, a evolução histórica apre- do gênero feminino, provenientes da Capital ou
sentada evidencia uma crescente preocupação mesmo do interior do estado. A faixa etária mais
do poder público em diminuir a frequência e os prevalente é de 10 a 19 anos, apesar de casos vistos
danos causados pela violência. Apesar disso, a desde crianças com idade inferior a um ano até
legislação nem sempre consegue atingir o efei- idosas, de acordo com o descrito na literatura15.
to esperado, prova disso são inúmeras leis que Considerando-se o Art. 2o, II, do Decreto
não obtêm na prática esse resultado, sendo ditas 7.9587, todas as entrevistadas revelaram prezar
como leis ineficazes. A eficácia jurídica de uma pela humanização do atendimento e o respeito
norma significa que ela está apta a produzir efei- aos princípios da dignidade da pessoa, da não
tos na ocorrência de relações concretas, pois já discriminação, do sigilo e da privacidade, evitan-
produz efeitos jurídicos a partir da sua vigência. do a exposição e o desgaste das vítimas. O serviço
Já a eficácia social se verifica na hipótese de a atende também o disposto no inciso III do refe-
norma vigente, isto é, como potencialidade para rido artigo, pois há disponibilidade de espaço de
regular determinadas relações, ser efetivamente escuta qualificado e privacidade durante o aten-
aplicada a casos concretos. Até o momento, não dimento, propiciando ambiente de confiança e
se observam estudos que avaliem a eficácia dos respeito à vítima. Apesar de funcionar no interior
referidos dispositivos legais no tocante ao enfren- de uma maternidade pública, a estrutura física do
tamento da violência contra a mulher, conforme serviço atende perfeitamente às condições de pri-
as políticas públicas instituídas, o que justifica a vacidade e sigilo, dispondo de porta de acesso ex-
realização do presente estudo. clusiva e ambiente reservado para o atendimento.
Conforme observado no serviço, as vítimas
têm asseguradas as diretrizes prescritas no Art.2o,
IV e V, ou seja, lhes é possibilitada a compreen-
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são sobre o que será realizado em cada etapa do I - acolhimento, anamnese e realização de exa-
atendimento e a importância das condutas médi- mes clínicos e laboratoriais;
cas, multiprofissionais e policiais, respeitada sua II - preenchimento de prontuário com as se-
decisão sobre a realização de qualquer procedi- guintes informações:
mento, além de identificação e orientação sobre a) data e hora do atendimento;
os serviços e a garantia dos seus direitos. b) história clínica detalhada, com dados sobre
Os incisos VI e VII versam, respectivamente, a violência sofrida;
sobre a divulgação de informações sobre a exis- c) exame físico completo, inclusive o exame gi-
tência de serviços de referência para atendimento necológico, se for necessário;
de vítimas de violência sexual, e a disponibiliza- d) descrição minuciosa das lesões, com indica-
ção de transporte delas até os serviços de refe- ção da temporalidade e localização específica;
rência. Estes quesitos, segundo as entrevistadas, e) descrição minuciosa de vestígios e de outros
ainda carecem de aprimoramento, haja vista que, achados no exame; e
em alguns casos, por desconhecimento ou de- f) identificação dos profissionais que atende-
sinformação das vítimas e/ou de operadores dos ram a vítima;
setores de segurança e saúde, as vítimas são erro- III - preenchimento do Termo de Relato Cir-
neamente encaminhadas, deixando de coletar em cunstanciado e Termo de Consentimento Informa-
tempo hábil os vestígios da violência. Adicional- do, assinado pela vítima ou responsável legal;
mente, embora na maioria das vezes as vítimas IV - coleta de vestígios para, assegurada a ca-
venham acompanhadas do conselho tutelar, de deia de custódia, encaminhamento à perícia oficial,
profissionais da segurança pública ou saúde, por com a cópia do Termo de Consentimento Informa-
meio de viaturas ou ambulâncias, há também do;
com frequência, casos de vítimas desamparadas V - assistência farmacêutica e de outros insu-
ou acompanhadas apenas de familiares, que pro- mos e acompanhamento multiprofissional, de acor-
curam por conta própria o serviço, muitas vezes do com a necessidade;
necessitando de auxílio da equipe de serviço so- VI - preenchimento da Ficha de Notificação
cial do SAMVVIS para retornarem para suas ca- Compulsória de violência doméstica, sexual e ou-
sas após o atendimento. tras violências; e
Todas as entrevistadas referiram ter recebido VII - orientação à vítima ou ao seu responsável
ao longo do período em que prestam serviço no a respeito de seus direitos e sobre a existência de
SAMVVIS capacitações para atendimento dessas serviços de referência para atendimento às vítimas
vítimas de violência sexual, o que atesta a eficá- de violência sexual.
cia do inciso VIII, Art.2o do Decreto 7.9587, pelo A partir da análise dos prontuários das víti-
menos no que tange aos profissionais da rede de mas de violência sexual, referentes aos atendi-
atendimento do SUS. mentos realizados nos anos de 2013, 2014 e 2015,
O Art. 3o define que considera-se serviço é possível reportar que todos os procedimen-
de referência aquele qualificado para oferecer tos descritos acima são efetuados pelo referido
atendimento às vítimas de violência sexual, ob- SAMVVIS, sempre que necessário, respeitando-
servados os níveis de assistência e os diferentes se a sequência de atendimento de acolhimento,
profissionais que atuarão em cada unidade de anamnese e realização de exames clínicos e labo-
atendimento, segundo as normas técnicas e os ratoriais. Durante o acolhimento e a anamnese
protocolos adotados pelo Ministério da Saúde. O são registrados todos os dados necessários ao
SAMVVIS pesquisado realiza assistência integral preenchimento completo do prontuário e dos
à vítima, possui sistemas de informação interli- termos prescritos, sendo realizados pela equipe
gados ao Instituto Médico Legal (IML) e conta de recepção, assistentes sociais, enfermagem ou
com equipe multidisciplinar, formada por recep- psicologia, de acordo com a necessidade.
cionistas, técnicos de enfermagem, enfermeiros, Em seguida, realizam-se exame físico e gi-
assistentes sociais, psicólogos e médicos, com necológico, oportunidade em que são registra-
atendimento em regime de plantão 24 horas por das as lesões, sempre que houver, não somente
dia, inclusive nos fins de semana, portanto, con- em descrições clínicas escritas mas também por
forme preconiza o referido dispositivo legal. meio de fotografias. Além disso, procedem-se
O Art. 4o prevê em seus incisos os procedi- exames complementares, como testes para de-
mentos que devem ser realizados pelos profis- tecção de Doenças Sexualmente Transmissíveis
sionais da rede do SUS às vítimas de violência (DST) e coleta de vestígios, em busca de sêmen
sexual: ou qualquer material que sirva à identificação do
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agressor por meio de exame de DNA. De acor- V - profilaxia das Doenças Sexualmente Trans-
do com as circunstâncias do caso em questão, missíveis - DST;
também é prestada a assistência farmacêutica e VI - coleta de material para realização do exame
de outros insumos, como uso de medicamentos de HIV para posterior acompanhamento e terapia;
analgésicos, anti-inflamatórios, antibióticos, an- VII - fornecimento de informações às vítimas
tirretrovirais, contraceptivos entre outros, além sobre os direitos legais e sobre todos os serviços sa-
de acompanhamento multiprofissional. Prevê-se nitários disponíveis.
ainda a realização do aborto, respeitando-se os Percebe-se que tais procedimentos, conforme
preceitos legais, caso seja esta a opção da vítima. abordado previamente, são integralmente reali-
Com relação à Lei 12.8458, observa-se que zados pelo SAMVVIS, porém a Lei tem por esco-
esta também dispõe sobre o atendimento obri- po abranger tais atribuições não somente para os
gatório e integral de pessoas em situação de vio- serviços de referência mas também a todo hospi-
lência sexual, conforme estabelece em seu Art. tal integrante da rede SUS. Deste modo, entende-
1o, que os hospitais devem oferecer às vítimas de se pela eficácia do referido dispositivo legal com
violência sexual atendimento emergencial, inte- relação ao serviço estudado, porém para que se
gral e multidisciplinar, visando ao controle e ao conclua pelo seu cumprimento pelos hospitais da
tratamento dos agravos físicos e psíquicos decor- rede SUS, há a necessidade da realização de novos
rentes de violência sexual, e encaminhamento, se estudos com este objetivo específico.
for o caso, aos serviços de assistência social. En-
tretanto, o Art. 3o define o rol de procedimentos
que deverão ser prestados de forma imediata e Conclusão
obrigatória por todos os hospitais integrantes da
rede do SUS, como segue: Políticas públicas de proteção aos direitos da
Art. 3o O atendimento imediato, obrigatório mulher vêm sendo desenvolvidas ao longo dos
em todos os hospitais integrantes da rede do SUS, anos, em especial com o aprimoramento da le-
compreende os seguintes serviços: gislação pertinente e de normas e princípios para
I - diagnóstico e tratamento das lesões físicas no o enfrentamento da violência contra a mulher.
aparelho genital e nas demais áreas afetadas; No tangente às atribuições dos serviço de saúde
II - amparo médico, psicológico e social ime- avaliado, conclui-se que as diretrizes analisadas
diatos; têm tido eficácia, sendo necessário, entretanto, a
III - facilitação do registro da ocorrência e realização de estudos com maior abrangência nos
encaminhamento ao órgão de medicina legal e às serviços não só de referência, mas de toda a rede
delegacias especializadas com informações que pos- de atendimento integrante do SUS, em prol da
sam ser úteis à identificação do agressor e à com- melhor notificação dos casos, minimização dos
provação da violência sexual; danos às vítimas, possibilitando-se assim a puni-
IV - profilaxia da gravidez; ção dos culpados.

Colaboradores

LSS Pinto trabalhou na concepção da pesquisa


e na redação final, IMP Oliveira participou da
coleta e análise de dados, ESS Pinto atuou na
análise dos dados e na redação final, CBC Leite
participou da coleta e análise de dados, AN Melo
trabalhou na concepção e na análise dos dados e
MCBR de Deus participou da concepção e me-
todologia da pesquisa. A versão final do trabalho
foi lida e aprovada por todos os autores, e tor-
namos pública nossa responsabilidade pelo seu
conteúdo.
1508
Pinto LSS et al.

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