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Dois Autores em Busca de um Passado:

Richard Morse e Sergio Buarque na Construção da Especificidade Paulista

RESUMO

O presente trabalho tem a intenção de ler a Biografia de São Paulo de Richard Morse (1954) à luz
dos textos de Sergio Buarque de Holanda, sobretudo aqueles publicados após sua visita aos
Estados Unidos em 1941. Desta forma, aproxima os autores e seus trabalhos, primeiramente na
compreensão de um raciocínio comum que os orienta, a especificidade paulista, e depois, na sua
forma de fazê-lo, a partir de uma precisa e sutil reconstrução do passado por meio dos pequenos
indícios que dele restaram. Trata-se aqui de uma discussão historiográfica que busca trabalhar a
história da cidade no âmbito da história cultural, recuperando termos de um debate, filiações e
interlocuções. Sergio, consciente do papel de São Paulo na modernização brasileira, buscava
retraçar as especificidades do estabelecimento colonial na capitania de Martim Afonso. O norte-
americano, impressionado com a metrópole que surgia na metade do século 20, pretendia tecer o
fio que ligava a vila sem maior importância na empresa colonial portuguesa à potência dos anos
de metropolização.

1
Dois Autores em Busca de um Passado:
Richard Morse e Sergio Buarque na Construção da Especificidade Paulista

[...] E, se como norte-americano prático e puritano, não sabia a princípio


o que Sergio Buarque de Holanda queria dizer ao referir-se ao
“homem cordial” brasileiro, logo descobri ao conhecer o autor.
Richard Morse, abril de 1953

Pode não ser novidade dizer que Richard Morse (1922-1992) seja devedor dos trabalhos de
Sergio Buarque de Holanda (1902-1982). Nos anos 1960 Morse dedicou a Sergio Buarque um
volume que organizou sobre os bandeirantes, quando estabelece um diálogo mais próximo com o
brasileiro, convidando-o a uma temporada em Yale1. Entre os comentadores, essa leitura aparece
sobretudo em relação ao seu mais famoso livro, O espelho de Próspero (1988), no qual o norte-
americano invertia uma visão corrente ao positivar a herança ibérica em contraposição à cultura
anglo-saxônica2. A relação entre ambos, entretanto, pode ser flagrada anteriormente.

Tendo sido um dos “anfitriões” do então doutorando Richard Morse em São Paulo no fim dos anos
1940, Sergio Buarque já era um intelectual reconhecido – publicara em 1936 Raízes do Brasil, que
estava em sua 3ª edição – e naqueles anos refletia sobre a especificidade paulista na “formação”
do Brasil, lançando em 1945 o livro Monções. Em 1948 e 49 saíam os artigos “Os primórdios da
expansão paulista no fim do século XVI e começo do século XVII” e “Índios e mamelucos na
expansão paulista” que, juntamente com outros textos, viriam a compor Caminhos e Fronteiras,
publicado em 1957 por sugestão de Antonio Candido e iniciativa de José Olympio (1902-1990)3.
Antes disso, Sergio Buarque havia passado algum tempo nos Estados Unidos, a convite da
Divisão de Cultura do Departamento de Estado americano e, após se tornar diretor do Museu
Paulista em 1946, assumia em 1948 uma cadeira de História na Escola Livre de Sociologia e

1
Cf. MORSE, 1965 e cartas trocadas entre os historiadores, constantes do arquivo de SBH na Unicamp/ SIARQ (cf.
14jul1966/ Cp277P10; 29jul1966/ Cp278P10).
2
Para Pedro Monteiro, “parece razoável supor que o livro de Richard Morse [O espelho de Próspero] seja uma espécie de
reescritura de Raízes do Brasil, capaz de radicalizar a promessa ibero-americana que brilha, também, no horizonte de
Sérgio Buarque de Holanda” (MONTEIRO, 2009a). Em seu último livro, A volta da Mcluhanaíma (1990), Morse parodia
Sergio Buarque e RB no ensaio-ficção que dá título ao livro (MONTEIRO, 2009b). Em entrevista à Helena Bomeny,
espécie de balanço da trajetória, a primeira pergunta retoma a ligação entre os historiadores (BOMENY, 1989). Também
Dain Borges, em uma homenagem a Morse na Luso-Brazilian Review, aponta de saída a influência de Sergio Buarque,
entre outros brasileiros, no norte-americano (BORGES, 1995).
3
“A Antonio Candido pertence, mais do que a mim mesmo, a primeira lembrança de uma possível coordenação dos
estudos já parcialmente impressos que viriam a constituir o presente volume. Sem essa sua lembrança [...] e sem a
intimação que me veio afinal de José Olympio para por em prática essa idéia, estou certo que esse livro não chegaria a
publicar-se. Ao menos não seria publicado na forma atual”, diz Sergio no Prefácio do livro (HOLANDA, 1957).
2
Política. Se Morse, que vinha a São Paulo pesquisar material para sua tese de doutorado sobre a
evolução urbana da cidade, buscava recuperar a dinâmica daquele processo, é natural que se
apoiasse também nos estudos desse historiador que compartilhava um mesmo campo de
interesses, se não temporal, ao menos espacialmente4.

Richard Morse chega a São Paulo em setembro de 1947 e passa um ano pesquisando. Logo se
dá conta que a empreitada de escrever uma história da fundação até o presente daquela cidade
lhe era impossível, tamanha a quantidade de documentos e textos existentes. Vale lembrar que o
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), fundado em 1895, vinha publicando
compilações sobre o período colonial “paulista”, conduzindo São Paulo ao posto de protagonista
de um processo histórico pelo reconhecimento das ações dos homens que teriam alargado as
fronteiras nacionais. Washington Luís (1869-1957), prefeito (1914-19) e governador (1920-24) de
São Paulo e membro do IHGSP, também patrocinara naqueles anos a publicação de documentos
coloniais contribuindo para essa valorização5. Em vista do volume do material encontrado, Morse
decide se limitar à história da cidade a partir do momento em que ela notoriamente se
transformava no sentido de deixar para trás a pacata vida dos tempos da colônia para se projetar
como aquela que viria ser a principal cidade latino-americana. Essa perspectiva vinha sendo
esboçada pelos memorialistas (BREFE, 1993), que notavam uma inexorável marcha para o
progresso a partir do advento das ferrovias em decorrência da expansão das fronteiras agrícolas.
Relatos de viajantes que passaram pela cidade ou mesmo as fotografias de Militão Augusto de
Azevedo (1837-1905) também reforçavam a idéia de um antes e um depois. Além disso, num
âmbito mais propriamente científico, o estudo de Simões de Paula havia consagrado a gestão de
João Teodoro (1872-75) como uma “segunda fundação” de São Paulo, tão impactantes as
transformações operadas naqueles anos6. Morse partiria de uma compreensão até certo ponto
consagrada pela historiografia – e pelo senso comum –, ainda que com uma perspectiva própria.

Mas é o trabalho de Sergio Buarque de Holanda a partir dos anos 1940 que me parece que pode
ser lido como uma espécie de introdução ao texto de Morse e, como pretendemos mostrar aqui,
como importante chave de leitura para se entender uma especificidade paulista proposta por

4
Deve-se notar que outro pólo de interlocução fundamental para o norte-americano naquele momento foi Antonio
Candido, jovem assistente da cadeira de Sociologia II da USP, às voltas com a sua Formação da Literatura Brasileira
(1959) e com sua tese na Sociologia, Os Parceiros do Rio Bonito, defendida em 1954 (1964).
5
Sobre a revalorização bandeirante nas “instâncias consagratórias”, para usar o termo de Bourdieu, ver SCHWARCZ,
1993 e FERREIRA, 2002.
6
Cf. Eurípedes Simões Paula, Contribuição monográfica para o estudo da segunda fundação de São Paulo (PAULA,
1936). E não custa lembra que o próprio Morse reconhecia que o material “científico” sobre essa cidade “moderna” ainda
era escasso, o que de certo modo, “facilitava” seu trabalho. Cf. MORSE, 1954, p.14. É principalmente no âmbito da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e da Escola Livre de Sociologia e Política, criadas na década de 1930,
que surgem os primeiros estudos acadêmicos sobre o tema.
3
ambos. Consciente do papel de São Paulo na modernização brasileira, Sergio buscava retraçar as
particularidades do estabelecimento colonial na capitania de Martim Afonso. O norte-americano,
impressionado com a metrópole que surgia na metade do século 20, pretendia tecer o fio que
ligasse a vila sem importância da empresa colonial portuguesa à potência dos anos de
metropolização. Era essa metropolização – traduzida em verticalização, expansão periférica e
industrialização, atraindo cada vez mais gente em busca de melhores condições de vida – que
também atraía seu olhar para a história da cidade. A oportunidade que surgia nos Estados Unidos
àqueles que queriam estudar a América Latina – no contexto da Política de Boa Vizinhança que
levara Sergio Buarque àquele país – vinha de encontro ao jovem que, não sendo um norte-
americano propriamente atípico, mostrava-se ao menos sensível e interessado às diferenças7.

Este trabalho tem a intenção de ler a biografia de São Paulo de Richard Morse8 à luz dos textos
de Sergio Buarque, sobretudo aqueles publicados após sua vista aos Estados Unidos em 1941.
Deste modo se organiza em mais duas partes que buscam aproximar os autores e seus trabalhos,
primeiramente na percepção de um raciocínio comum que os orienta, a especificidade paulista, e
depois, na sua forma de fazê-lo, a partir de uma precisa e sutil reconstrução do passado por meio
dos pequenos indícios que dele restaram.

1. Entre os caminhos e as fronteiras da colonização paulista

É a diferença entre as culturas que torna um encontro fecundo


Claude Lévi-Strauss, 1988

Ao ler Caminhos e Fronteiras (HOLANDA, 1957)9, que trata dos primórdios da colonização
paulista a partir de sua condição periférica no sistema colonial – exceção à regra das cidades da
América Portuguesa, fundadas no litoral e voltadas à metrópole –, tem-se a sensação que Sergio
Buarque buscava construir a personalidade paulista. Morse diria o ethos paulista. Mas se isso a
princípio parece se somar às histórias que vinham sendo escritas de modo mais ou menos
sistemático desde a fundação do IHGSP, ressaltando o caráter aventureiro e dinâmico desse

7
Richard Morse nasce em Summit, New Jersey, em julho de 1922, filho único de uma família de classe média. O avô
negociava chá no Oriente para os EUA. Morse evoca a experiência de viagem do pai, ainda jovem, para substituir o avô
em Taiwan, como responsável por lhe proporcionar uma educação menos restrita que a “tipicamente americana”, tornando
a sua família meio à margem do resto da comunidade em que viviam. Cf. MEHY, 1990, pp.139ess.
8
Trata-se do livro, resultante da sua tese em Columbia (1952), publicado em português como De comunidade a metrópole.
A biografia de São Paulo (MORSE, 1954) e em inglês quatro anos depois (MORSE, 1958). Em 1970 conhece nova edição
brasileira, com acréscimos e novo título (Cf. MORSE, 1970).
9
Se o livro é lançado posteriormente a Monções (HOLANDA, 1945), cronologicamente trata das primeiras entradas e
bandeiras, ainda nos séculos 16 e 17, que possibilitariam as futuras monções de povoados do século 18. Desta forma,
optei por tratar sobretudo deste livro neste artigo.
4
paulista por meio da figura do bandeirante, passando por trabalhos de um Capistrano de Abreu
(1853-1927) ou de um Paulo Prado (1869-1943)10, logo notamos que o interesse de Sergio era o
de fazer ver a importância do elemento nativo na personalidade e na cultura do homem de São
Paulo. Não se tratava de um ensaio de psicologia, nem de uma tentativa de “desmascaramento”
histórico, mas de, ao trabalhar com os documentos da época, relatos, ofícios, cartas, testamentos
e inventários, além de resquícios lingüísticos, materiais e de comportamento, reconstruir um
cotidiano de penetração no interior que por si só revelasse a importância da presença e da cultura
indígenas nestas paragens. E, portanto, na própria formação do paulista e de São Paulo.

É Robert Wegner quem alerta para um “segundo” Sergio Buarque que surgia, diferente do de
Raízes do Brasil11, comumente identificado como o autor que insiste na necessidade da
superação da herança ibérica para que se possa estabelecer no Novo Mundo uma sociedade
moderna (WEGNER, 2000, p.28). O sociólogo carioca mostra que se num primeiro momento
Sergio recusa qualquer positividade àquele mundo ibérico, a partir da sua primeira viagem aos
Estados Unidos ele começa a relativizar essa posição e a matizar sua compreensão da
“civilização americana”, ao menos no que diz respeito a uma estrita oposição entre as duas
Américas, outro dos argumentos fortes de RB12.

A nova perspectiva já é visível em “Considerações sobre o Americanismo”, artigo publicado logo


após voltar de viagem13. Depois de reconhecer a crescente influência que aquele país passava a
exercer no continente (não apenas econômica, mas agora também cultural), o historiador afirmava
que a idéia de se tomar o Brasil em oposição aos Estados Unidos precisava ser deixada de lado,

10
O cearense é visto como um dos primeiros historiadores brasileiros a ressaltar a importância de pesquisar o sertão e as
bandeiras, como uma história de formação da nação. Não por acaso, Capistrano torna-se “mestre” de Prado, que insiste na
proeminência paulista a partir do papel do “bravo bandeirante”. Ver CALIL, 2009, pp.132-43. Wegner frisa a “importância de
primeira hora” de Capistrano para SBH (cf. WEGNER, 2000, p.91 e n.61p. 238), notada também por Laura de Mello e
Souza (cf. SOUZA, 2001, pp.26-8).
11
Daqui em diante, dito RB.
12
Para Wegner, há dois eixos básicos em RB: um deles, o “nosso tradicionalismo”, leia-se iberismo, contra o qual seria
necessário lutar para que se estabelecesse uma sociedade moderna. O segundo, a chamada “nossa revolução”, era o
processo que lentamente e sem alarde vinha possibilitando a urbanização do Brasil desde meados do século 19,
apontando para a constituição de um estado burocrático no país (cf. WEGNER, 2000, pp.29-30). Tal “revolução” anunciava
um novo Brasil, americano, que previa “o aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura para a inauguração de um
estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente de americano, porque os seus traços se acentuam com maior rapidez em
nosso hemisfério” (HOLANDA apud WEGNER, 2000, p.41) O sociólogo insiste como em RB o autor deixava claro que “do
iberismo não pode surgira algo compatível com o americanismo” e o desencontro resultaria “da impossibilidade de
cruzamento dos dois eixos” (p.51). No entanto, a partir da segunda edição de RB, em 1948, ainda acompanhando Wegner,
vemos que Sergio atenua a idéia de que entre as nações ibéricas predominava a concepção que o ócio importava mais
que o negócio – e esse ponto parece ter a ver com a sua passagem pelos EUA, onde toma contato com a historiografia
americana, sobretudo com a obra de F. J. Turner (1861-1932); e a posterior escritura de Monções em 1945 (pp.62-4).
13
Publicado no Jornal do Comércio em 28 de setembro de1941.
5
buscando analisar características compartilhadas por ambos, refutando a hipótese de que o Brasil
fosse “fruto tão-somente das tradições e instituições lusitanas, das quais seria herdeiro e guardião”
(HOLANDA apud WEGNER, 2000, p.89). Insistia que, “apesar de tudo o quanto nos distingue dos
anglo-saxões da América, ainda restam zonas de coincidência nascidas já nas primeiras épocas da
colonização e que o tempo não apagou” (IDEM, p.90).

Sergio parecia disposto a ver no território americano alguma positividade, resultando, numa
passagem um tanto brusca, na perspectiva de análise das obras sobre São Paulo. As similaridades
ou “zonas de coincidência” entre as duas colonizações – o avanço no oeste americano e as
bandeiras paulistas – não cabiam na argumentação de RB, na qual as formas de colonização – de
povoamento e de exploração – eram apresentadas em oposição, justificando o desenvolvimento
distinto de cada uma das regiões14. A perspectiva que se abre a partir da conhecida frase do livro de
1936 – “somos ainda uns desterrados em nossa terra” – seria posta em dúvida a partir de São
Paulo, onde surgira uma “raça híbrida” fundamentalmente adaptada ao meio15. Para a nossa
discussão, depois de notar a mudança de eixo que se afirmava num Sergio recém chegado da
“América”, vale se aproximar das suas obras posteriores, a fim de identificarmos um “raciocínio” que
parece informar também a obra de Morse.

Sergio Buarque inicia Caminhos e Fronteiras16 retomando palavras de Monções para apontar a
particularidade da região de Piratininga, em relação às outras áreas da América portuguesa, onde
não existiu

“a coesão interna, o equilíbrio aparente, embora muitas vezes fictícios dos núcleos
formados no litoral nordestino, nas terras do massapé gordo, onde a riqueza agrária pode
exprimir-se na sólida habitação do engenho. A sociedade constituída no planalto da
capitania de Martim Afonso mantém-se, por longo tempo ainda, numa situação de
instabilidade ou imaturidade, que deixa margem ao maior intercurso dos adventícios com a
população nativa. Sua vocação estaria no caminho, que convida ao movimento, não na
grande propriedade rural, que forma indivíduos sedentários.” (HOLANDA, 1957, pp.10-1,
grifo meu).

14
No capítulo “Trabalho & Aventura” Sergio faz as devidas comparações a mostra as diferenças entre os tipos de
colonização (HOLANDA, [1936] 1997, pp.41-65).
15
È fato, como destaca Wegner, que já em RB as bandeiras são anunciadas como fenômeno deslocado da empresa
colonial portuguesa: “A obra grandiosa das bandeiras paulistas não pode ser bem compreendida em toda sua extensão, se
não a destacarmos um pouco do esforço português [...]. No planalto de Piratininga nasce em verdade um momento novo
de nossa história nacional” (HOLANDA apud WEGNER, 2000, p. 238/n.61).
16
Doravante referido como CeF.
6
O autor incorporava a formulação anterior como prefácio, revelando de saída o ponto fundamental
de CeF: mostrar que a margem ao maior intercurso propiciara o nascimento de uma população
híbrida, com características próprias. Sergio “construía” o paulista dos primeiros tempos como
aquele que não teve chance para se fixar, como ocorrera em outros pontos da colônia. E se a
implantação dos costumes, técnicas e tradições adventícios tomou mais tempo do que onde
houvera uma feliz (e mais fácil) transplantação da sociedade européia, pois que “com mais
liberdade e abandono de que em outras capitanias, a ação colonizadora realiz[ou]-se, aqui, por
uma contínua adaptação a condições específicas do meio americano” (IDEM, p.11, grifo meu),
disso resultavam as distintas conseqüências que o historiador assinala.

Nota-se em Morse uma reflexão que parece ir no mesmo sentido, ao reconhecer no isolamento de
São Paulo a possibilidade do surgimento de uma comunidade no estabelecimento jesuítico na colina
entre dois pequenos rios, que logo acolheria também João Ramalho e os mamelucos sob sua
liderança, instalados anteriormente a dois passos dali. Esses paulistas, em pouco tempo “tinham
adquirido senso de orgulho e confiança em si” e, ainda que a povoação atravessasse os séculos
sem maiores transformações, em 1711 seria elevada à categoria de cidade, “orgulhosa de sua
quase autonomia” (MORSE, 1954, pp.16-7). Mas a autonomia em relação à metrópole não
implicara na manutenção de uma “raça pura”, de um português que se mantivera “europeu”.
Sergio trata de mostrar justamente “a nativização do português no interior do continente
americano” (WEGNER, 2000, p.147), reconhecendo “a marca do chamado selvagem” no
conquistador. Afirmava que “ela não representava uma herança desprezível e que deva ser
dissipada ou oculta, não [era] um traço negativo e que cumpre recuperar; constitui[a], ao contrário,
elemento fecundo e positivo, capaz de estabelecer poderosos vínculos entre o invasor e a nova
terra.” (HOLANDA, 1957, p.18, grifo meu).

Diferentemente do que se escrevera e se propusera até então, não se tratava de desprezar,


idealizar ou superar uma herança nativa, mas de compreendê-la na sua real importância para a
formação daquela personalidade. Reconstruía-se um processo de adaptação que não subjugara
nem prescindira do indígena, antes, dele dependera. O mesmo Sergio, a propósito dos negros17,
lembrava como “o prestígio singular da raça branca, à qual devemos nossos os padrões ideais de
cultura, [era] imperialista e absorvente” (HOLANDA, 1978, p.12) e seria por esse motivo que, no
Brasil,

“em vez de [se] admitir que o caldeamento de raças realizado em uma escala sem
exemplo po[ssa] significar enriquecimento de potencialidades, manancial de onde
nascerá, talvez, uma nova cultura, procuramos enganarmos com a opinião fácil de que o

17
Cf. artigo “Negros e Brancos”, publicado no Diário de Notícias provavelmente em 1941.
7
tempo apagará bem cedo e sem deixar vestígios toda a influência africana na formação
nacional” (IDEM, p.13),

demonstrando atenção à forma com que essas culturas outras eram absorvidas, retrabalhadas e
potencialmente portadoras de algo novo. Mas o “talvez” é importante. Se em RB ele alertava que
o fim da cordialidade não implicava automaticamente na civilidade, aqui valia o mesmo raciocínio:
a mescla não implicava necessariamente o novo. De volta a São Paulo, via-se esse algo novo no
contato entre as duas civilizações, mas, sobretudo na possibilidade do gentio se manifestar no
adventício. Nos campos de Piratininga e nas empreitadas paulistas, apenas porque aquele
português soube, ou pode, ou teve que absorver a cultura da terra é que ele pode, ou soube e
finalmente conseguiu se estabelecer com sucesso. Disso resultava a especificidade paulista – não
da afirmação de uma pretensa “pureza de raça” que o isolamento poderia fazer supor – mas no
intenso e cotidiano intercurso entre o nativo e o adventício, narrado com maestria nas suas obras
dos anos 1940 e 1950.

A particularidade que caracterizava aquele habitante se manifestava nas próprias formas que o
paulista encontrou para sobreviver, mesmo quando a caça ao índio já não fazia mais sentido. Vale
voltar ao texto. Analisando a íntima relação entre coragem, violência, crime e punição para estes
homens, diz o historiador:

“A verdade é que se essas paragens criaram uma raça em muitos pontos mais próxima do
bugre do que do europeu, é talvez porque o tipo do bugre lhes correspondesse melhor. Na
luta diuturna contra a floresta, onde todos os inimigos são traiçoeiros, não há lugar para se
formarem as imaginações intrépidas e generosas em que o civilizado se distrai da
monotonia de um mundo sem constantes e mortais perigos. A ousadia, aqui, há de ser
cautelosa, previdente e acomodada a quaisquer surpresas.” (HOLANDA, 1957, p.145).

Essa constatação leva Sergio a traçar a genealogia paulista: homem que, adaptado ao meio,
acostumado às andanças, em alguns séculos se especializaria em tropeiro – como se sabe,
origem das primeiras fortunas locais – para, em seguida, tornar-se o grande fazendeiro. O mais
emblemático desses homens talvez tenha sido Antonio da Silva Prado (1778-1875). A observação
da trajetória do futuro Barão de Iguape “num meio ainda mofino como o de São Paulo pelo ano de
1816” permitia que se “desmonta[sse] o mito obstinado da avassaladora preeminência agrária na
formação brasileira”, opondo São Paulo a outros pontos de colonização ibérica – matizando mais
uma vez suas afirmações em RB – já que teria sido “à custa de um esforço continuado, de um
raciocínio sempre alerta, da intuição certeira” que Prado, através do exercício de atividades se
não totalmente urbanas, nada sedentárias, pôde se estabelecer com sucesso, tornando-se “filho
do próprio trabalho” (HOLANDA, 1976).

8
Esse ponto me parece fundamental, pois mostra como Sergio Buarque traça o caminho que leva
ao paulista do século 20 da São Paulo potência. As características exaltadas são, sem exceção,
herdadas da sobrevivência no “meio hostil”, ou não foi por obra do esforço continuado, do
raciocínio sempre alerta e da intuição certeira que o europeu se estabeleceu – a duras penas –
naquelas terras do Novo Mundo? Noutra oportunidade o historiador já esboçara a ligação entre o
“bandeirismo do ouro” e o que ele chamou de “bandeirismo do café”, assinalando que a distância
entre ambos não era tão grande quanto parecia ser. Ambos pertenceriam “a uma mesma família”
(HOLANDA, 1941). Mas é no reconhecimento de Silva Prado como “filho do próprio trabalho” que
podemos avançar na sua compreensão da contribuição paulista na formação da nação: ali,
finalmente, o ócio dava lugar ao negócio18 (WEGNER, 2000, p.172). Ao tratar da famosa feira de
Sorocaba, Sergio notava a lenta passagem entre o “aventureiro” bandeirante e o “retalhista” que
começa a viajar ao sertão não mais atrás dos índios, mas como comerciante. Foi

“uma significativa etapa na evolução e também na sociedade paulista. Os grossos


cabedais que nelas se apuram, tendem a suscitar uma nova mentalidade na população. O
tropeiro é o sucessor direto do sertanista e o precursor, em muitos pontos, do grande
fazendeiro. A transição faz-se assim sem violência. O espírito de aventura [louvado nesses
paulistas seiscentistas], que admite e quase exige a agressividade ou mesmo a fraude,
encaminha-se, aos poucos, para uma ação mais disciplinadora. [...] O amor da pecúnia
sucede o gosto da rapina. [...] Em um empreendimento muitas vezes aleatório, faz-se
necessária certa dose de previdência, virtude eminentemente burguesa e popular”
(HOLANDA, 1957, p.158, grifos meus).

Ao reconhecer a nova característica que nascia, ligando-a ao tropeiro e ao novo fazendeiro,


Sergio se permite fazer um “parêntese” e perguntar se não haveria ali “uma das explicações
possíveis para o fato de justamente São Paulo ter se adaptado, antes de outras regiões
brasileiras, a certos padrões do moderno capitalismo” (IDEM, p.158). Também Morse se deixara
levar pelo fato de São Paulo ter se adaptado, antes de outras regiões brasileiras, a certos padrões
do moderno capitalismo para construir sua história da cidade, e creio que o raciocínio de Sergio
na construção desse paulista está de algum modo na forma como Morse constrói sua própria
abordagem da cidade. Vejamos como.

18
Outro dos pares de opostos que percorrem RB. Wegner mostra como o tema é tratado na primeira edição e abrandado
na posterior, resultando seus livros sobre entradas e bandeiras como a possibilidade de se pensar uma outra explicação do
Brasil, cf. WEGNER, 2000, pp.58ess.
9
2. Indícios, fragmentos e narrativas constroem uma história cultural de São Paulo

Se é certo que o traço grosso serve freqüentemente para desvendar a realidade,


melhor do que muitas páginas de atenta e minuciosa descrição, cumpre ter em vista
que a realidade também é feita de cambiantes e meias-tintas.
Sergio Buarque de Holanda, Considerações sobre o Americanismo, 1941

Sergio Buarque inciara CeF lembrando como São Paulo foi, desde os primeiros tempos, o
entroncamento de caminhos, inicialmente dos nativos, que cruzavam o continente, e logo dos
conquistadores, que puderam a partir dali trilhar para o sertão. Além da importância para o
desenvolvimento daquela região, a situação era vista como a representar simbolicamente os
destinos paulistas (HOLANDA, 1957, p.16). Morse também buscava construir sua história a partir
da perspectiva, digamos, espacial: reconhecia o sítio estrategicamente localizado, “de modo a
dominar as rotas terrestres e fluviais de um vasto platô que declina para o oeste até atingir o
sistema do rio Paraná”, configurando um “destino para o interior”. As primitivas vias de entrada, a
partir dos velhos caminhos, se tornariam os principais eixos viários da cidade, onde se deram os
primeiros desenvolvimentos urbanos para além do núcleo original. A elas aderiram também as
estradas de ferro, adequando-se à configuração de caminhos existentes, convergindo para um
centro. “A cidade era portanto freqüentemente o único ponto de ligação possível entre duas
artérias e tornou-se ponto obrigatório para a maioria dos viajantes que passavam pelo planalto”,
como atestam os testemunhos invocados para reconstruir a situação da vila de São Paulo e seus
arredores por volta de 1800 (MORSE, 1954, pp.19-21)19.

Como Sergio Buarque, Morse insistia na importância do fato da Serra do Mar ter sido uma barreira
quase intransponível, ajudando a manter os interesses daqueles homens voltados para dentro do
continente até pelo menos fins do século 18. Mais que dificultar um pretenso acesso do litoral, a
serra garantiu autonomia para a região. Governada por seus próprios homens, de certa forma
mais livres do mando e da influência metropolitanos, São Paulo se manteve afastada das causas
que atingiam e transformavam as outras cidades pelo menos até a Independência. Para Morse, é
a perda dessa relativa autonomia, juntamente à implantação da Academia de Direito e ao
estabelecimento da imprensa, que catalisa a “explosão” posterior, pois os três fatos preparam
terreno para o paulista sair daquele seu mundo, apontando para o cosmopolitismo que
caracterizará a cidade mais adiante (IDEM, pp.44-58).

Ao recompor os caminhos da colonização paulista, Sergio Buarque, “busca[ra] compreender, em


toda a sua complexidade, o mecanismo das trocas, sínteses e soluções culturais” (SOUZA, 2001,

19
Entre eles: Mawe (1764-1829), Kidder (1815-1891), Spix (1781-1826) e Martius (1794-1869), Saint-Hilaire (1779-
1853.
10
p.26), para isso, descia às minúcias de cada particularidade da vida no sertão. Retomava a
indumentária e as formas de vestir, a dieta, a coleta e as artes da caça e da pesca, os meios de
transporte e as formas de caminhar, as maneiras de dormir e de curar doenças, para mostrar, em
cada particular, como os primeiros brancos “tiveram de imitar seus hábitos [dos índios] para
resistir à hostilidade do meio” (HOLANDA, 1957, p.27). Desse modo “ambos – vida material e
cotidiano – entrecruzam-se constantemente, formando um todo único, percorrendo múltiplos
caminhos, chegando a inúmeras fronteiras, constituindo, enfim, a cultura na sua acepção mais
ampla, a cultura enquanto totalidade”, como sintetiza Ilana Blaj (BLAJ, 1998, p.30). Ou, nas
palavras de Laura de Mello e Souza, “não se trata[va] de constatar a difusão de traços, mas de
perceber que a forma assumida por tais traços foi definida pela situação histórica.” (MELLO E
SOUZA, 2001, p.26).

Richard Morse partia do mesmo: vida material e cotidiano, concebendo a cidade como entidade
cultural. Jornais, relatos, diários, canções, cartas e pregões se combinavam com estudos
científicos e estatísticas, literatura, arquitetura, urbanismo e sociologia. Desta forma, o estudo que
propõe sobre São Paulo pode ser visto sob a perspectiva de uma história cultural, compreendendo
a cidade por distintos materiais e com apoio das diversas disciplinas20. Buscando indícios dessa
história “além dos limites físicos mais imediatos”, nas raízes históricas que englobavam uma
região maior, Morse afirmava num dos artigos que publica antes de terminar a tese que a

“cidade não [era] um fenômeno isolado como uma pedra numa praia arenosa. Seus
fundamentos, a natureza e o grau de seu desenvolvimento, e suas funções, conduzem-nos
a estudar a região global em que ela se assenta, [e, sabendo que] por 400 anos sua vida
[havia sido] condicionada por sua posição de centro das rotas de comércio que ela drenava
e distribuía para uma vasta região econômica” (MORSE, 1949, p.41),

não tendo dúvidas que para dominá-la era necessário compreender a história de toda a sua
região. O “histórico crítico e interpretativo” que fazia daquela cidade partia de um “ponto de vista”
construído nas conversas informais com seus amigos brasileiros (IDEM, s.p.) – entre os quais
Sergio Buarque – conjugando-o com o que aprendera na universidade, a certa sensibilidade
interessada e ao vasto material disperso sobre a cidade. Isso concorre para a visão que
compreende na materialidade a própria forma da situação histórica.

20
Almandoz é um dos comentadores que localiza os estudos de Morse no campo da história cultural urbana, cf.
ALMANDOZ, 2002. A respeito dos rendimentos da história cultural para se pensar as cidades, ver especialmente Adrián
Gorelik: “A história cultural urbana abre-se a todas as disciplinas que tenham algo a dizer sobre a cidade, e com isso
redefine todas as questões que giram em torno dela: a literatura, a política, a sociologia, a arquitetura, que também acabam
reformuladas ao passarem pelo filtro da cidade. [...] Trata-se de pensar relações entre cidade e sociedade, entre cultura
material e história da cultura, o que também significa pensá-la entre os diferentes tempos que a atravessam (Cf. CASTRO
e MELLO, 2009).
11
Também Sergio, ao retomar o dia-a-dia daqueles homens ao longo de séculos na sua tarefa de
adaptação, flagrando justamente uma mentalidade em formação, partia da materialidade para
traçar esse ethos paulista. Vale transcrever algumas dessas especulações para mostrar seu
alcance. Em relação à caça e à pesca, por exemplo, fundamentais para a sobrevivência desses
sujeitos quase nômades, Sergio mostrava como o “adventício tinha de ficar quase inteiramente a
mercê dos expedientes inventados pelo selvagem, pois o equipamento técnico trazido do Velho
Mundo era muitas vezes inútil em terras que não estivessem preparadas para recebê-lo.”
(HOLANDA, 1957, p.68).

Nesse convívio diuturno, “a mistura étnica e também a aculturação [...] deram ao indígena um
papel que será impossível disfarçar”, concluindo: “de onde naturalmente a espécie de
solidariedade cultural que logo se estabeleceu aqui entre o invasor e a raça subjugada” (IDEM,
p.69, grifo meu). Recorrendo a Blaj, vemos que Sergio “não se aproxima dos múltiplos elementos
da vida e da cultura material como mera ilustração, o que implicaria no reducionismo”, nem com
proposições a priori que transformassem “as produções e reproduções da vida concreta em
simples corroboração” (BLAJ, 1998, p.30).

Tal análise cabe, creio, para a obra de Morse sobre São Paulo. O norte-americano não buscava
corroborar uma “tese” sobre o desenvolvimento urbano, não fazia “esforço sistemático para
confirmar ou refutar hipóteses sociológicas” (MORSE, 1954, p.14), ao contrário, como completa
Blaj sobre o trabalho de Sergio Buarque, “deixa que os elementos da cultura material falem por si,
e desta forma, revelem as múltiplas dimensões da vida real, as dimensões do social, do mental e
do cotidiano” (BLAJ, 1998, p.30). O importante para Morse era tirar seu objeto de estudo “do
contexto amorfo da História”, dando-lhe “coerência, drama e finalidade”. Morse, como ele mesmo
diz, buscava escrever “uma história da cidade” e não compilar “um almanaque de coisas isoladas
da cidade” (MORSE, 1949, pp.41-3).

CeF, num certo sentido, contribuiu para a afirmação de São Paulo como pólo modernizador da
nação. Se Sergio Buarque construía a personalidade paulista na mescla de índio e português,
resultando um novo homem, mais bugre que outra coisa, mas cuja personalidade, trabalhada nas
adversidades da selva, pode se diferenciar daquele português que se sedentarizou na grande
propriedade rural e que se acomodou na cordialidade, Morse quer definir a personalidade do
paulista moderno no momento em que aquela comunidade agrária – quase nômade – se
transforma em cidade e possibilita aos seus lideres e cidadãos enunciarem suas esperanças e
seus problemas em termos abstratos e intelectuais (MORSE, 1954, p.16). Com isso se inicia a
história da cidade: quando elementos que permitirão a transformação posterior estão
completamente esboçados no temperamento de seus habitantes, surgindo os “chamados signos
de uma cultura urbana intelectual e auto-consciente” (IDEM, p.17). Para tanto, se valeu de uma

12
descrição material minuciosa, embora pouco sistemática, deixando sua “intuição” compor o todo.
Reunindo uma miríade de documentos, Morse reconstruiu o dia-a-dia daquela cidade em vias de
se metropolizar com uma vivacidade que até hoje pode nos surpreender, acompanhando o
percurso nem sempre linear21 que São Paulo trilhou ao longo de mais de um século.

Ao final de seu estudo, o norte-americano insistia que as atitudes mentais e as formas de


estrutura social da modernização não podiam ser impostas de fora para dentro (IBIDEM, pp.239-
41), a questão era antes de transformação de mentalidade que de imposição da ordem – e essa
mentalidade vinha sendo formada ao longo dos séculos, se retomarmos o trabalho de Sergio
Buarque. Morse imputava a não implantação do capitalismo nos moldes dos países centrais à
conservação de “certas atitudes de natureza católico-agrária” e via que esse “ethos residual
esta[va] em desacordo com muitos modos de organização importados de fora”. Aqui nota-se o
germe de uma visão que Morse desenvolve em trabalhos posteriores (1988, 1990): para ele, na
medida em que aquela comunidade paulistana ainda possuía – “de forma casual e desarticulada”
– as qualidades humanas que desapareceram das sociedades dos países centrais, justamente
pela modernização capitalista, e que agora (nos anos 1950) eram “tão diligentemente procuradas”,
havia a possibilidade que “o ‘êxito’ e a ‘eficiência’ da indústria paulistana do futuro serem
determinados não por índices abstratos de produção mas pela medida em que essa mesma
indústria desse lugar a uma configuração fiel às tradições regionais e sócio-culturais” ibéricas,
fazendo de São Paulo “um exemplo para o mundo” (MORSE, 1954, pp.249-51). Sergio Buarque
nunca foi tão longe, mas ao se apropriar das teorias de Weber para pensar a implantação do
capitalismo no novo mundo, também fizera especulações que passavam pela especificidade
cultural local.

Assim, mais que buscar temas afins que tenham sido retomados e retrabalhados – o que não
creio ocorrer –, o interesse maior é notar um raciocínio se não comum ao menos pertencente a
uma mesma constelação, que orienta uma forma de pensar a história. É nesse trabalho de
reconstrução histórica através da narrativa que podemos talvez apontar o que Morse compartilha
com Sergio Buarque. Uma história cultural avant la lettre, feita de documentos oficiais e indícios
materiais, de erudição e pesquisa, mas também de intuição e talento para a escrita, que
caminhava para entender as particularidades da modernização em São Paulo, de alguma forma
semeada nos tempos da colônia mas finalmente afirmada nos anos do café. Morse, na sua
biografia da cidade, construiu um caminho que partia da idéia esboçada por Sergio ainda nos
anos 1940 e retrabalhada nas obras posteriores, para chegar ao dinamismo metropolitano dos
anos 1950. Dinamismo que de algum modo alimentava as próprias reflexões do historiador

21
Basta lembrar que depois dos efeitos catalisadores da Academia, imprensa e independência, há para Morse um refluxo
nas transformações da cidade, mostrando que o autor não construía uma história de evolução progressiva, como a
montagem cronológica proposta possa fazer supor (cf. Morse, 1954).
13
brasileiro, numa espécie de via dupla na qual cada historiador, ao deslocar sua perspectiva, pode
propor um ponto de vista que lhe garantiu um ângulo novo para velhos problemas.

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