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Medicina integrativa

Medicina integrativa é uma abordagem orientada para um sentido mais amplo de cura, que visa tratar a pessoa em seu todo: corpo,
mente e espírito. Enfatiza as relações entre o paciente e o médico, e combina tratamentos convencionais e terapias complementares
cuja segurança e eficácia tenham sido cientificamente provadas. Esta seção visa informar e atualizar o leitor nessa abordagem.

Marcelo Saad
Paulo de Tarso Lima
Editores da seção

Medicina alternativa, complementar terminado modelo de cuidado e cura assumiu a impor-


tância de oficial e a hegemonia, de forma que qualquer
e integrativa: problema, dilema e prática não relacionada entre aquelas previstas pelo
desafio para o campo da saúde modelo biomédico ou da medicina ocidental passou a
ser considerada alternativa.
Nelson Filice de Barros1, Márcia Aparecida Padovan Todavia, é preciso que se compreenda que essa de-
Otani2, Paulo de Tarso Lima3 nominação foi criada em um contexto social de contra-
1
Coordenador do Laboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas em Saúde –
LAPACIS – do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas
cultura, mais especificamente nas décadas de 1960 e
da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas (SP), Brasil. 1970, período em que vários grupos buscaram construir
2
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências
Médicas da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas (SP), Brasil; Professora da uma sociedade alternativa, com comunidades baseadas
Faculdade de Medicina de Marília, Marília (SP), Brasil. em: economia alternativa; educação alternativa; formas
3
Mestre; Membro do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP),
Brasil; Membro do Programa de Medicina Integrativa da Universidade do Arizona, Tucson (AZ), de organização social e política alternativa; comporta-
Estados Unidos da América.
mento alternativo; e medicina alternativa, por fim.
Destaca-se, ainda, que aquele foi o período de
Introdução Guerra Fria e polarização dos valores, crenças e prá-
Existem cinco lógicas ou modos de produção da não-exis- ticas sociais entre blocos econômicos e políticos. Tra-
tência de um conhecimento entre aqueles considerados tou-se de uma polarização tão acentuada que construiu
importantes. Dentre essas, a da monocultura do saber e uma perspectiva mediada pela conjunção “ou... ou” e o
do rigor do saber(1) faz com que tudo que não seja dire- verbo “ser”, de forma que um profissional apenas pode-
tamente associado à ciência moderna e à cultura erudi- ria “ser isso ou aquilo”.
ta ocidental seja considerado menor ou, quando muito, No campo da saúde, especificamente, aconteceu
alternativo. Esse processo de secundarização de práticas
em 1978 a Conferência da Atenção Primária em Saúde,
de cuidado e cura no campo da saúde constitui um bom
de Alma-Ata, cujo mote foi “Saúde para todos no ano
exemplo de ausências que precisam ser reveladas. Por isso,
2000” e um dos objetivos, a incorporação de práticas
o objetivo deste artigo foi apresentar elementos do proces-
so histórico das medicinas alternativas, complementares e de cuidado e cura da chamada medicina tradicional ou
integrativas, trazendo-as à existência e dimensionando o popular nos diferentes sistemas nacionais. Essa incor-
desafio que representam para o campo da saúde. poração ocorreu de maneira diferente conforme países
e regiões, mas um efeito foi comum, na medida em que
houve uma reestruturação das disputas no interior do
Medicina alternativa campo da saúde. Assim, aconteceu a substituição das
A noção de alternativo no campo da saúde teve maior disputas entre os curadores populares sem qualificação
desenvolvimento a partir do momento em que um de- formal com os médicos, pelo tencionamento entre mé-

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dicos com opção por práticas alternativas e complemen- Quadro 1. Desafios da medicina complementar
tares e médicos com opção por práticas biomédicas. Política nacional e quadro dos trabalhos no legislativo
- falta de reconhecimento oficial das práticas e dos provedores
- não estão integradas aos sistemas nacionais de saúde
- falta de mecanismos legislativos e legais
Medicina complementar - distribuição equitativa dos benefícios do conhecimento e dos produtos da MC
O conceito de complementaridade foi desenvolvido na - inadequada distribuição dos recursos para o desenvolvimento e capacitação da MC
física, quando se identificou a possibilidade simultânea Segurança, eficácia e qualidade
de as partículas subatômicas serem matéria e energia. - falta de metodologia de investigação
Essa dimensão inclusiva serviu às necessidades do con- - inadequadas bases de evidências para as terapias e produtos de MC
- falta de pautas internacionais e nacionais de segurança, eficácia e controle de
texto social de globalização, dos anos de 1980, quando o qualidade das terapias e produtos da MC
mundo se deu conta da rápida troca de bens materiais, - falta de normas e registros adequados dos provedores de MC
serviços e crenças de diferentes sociedades entre si. - apoio inadequado para a investigação

Dessa forma, em meados da década de 1980, viveu-se Acesso


o desmonte da polarização dos blocos políticos e econômi- - falta de dados que meçam os níveis de acesso e exequibilidade
cos e assumiu-se uma perspectiva mais inclusiva mediada - necessidade de identificar terapias e produtos seguros e eficazes
- falta de reconhecimento oficial do papel dos provedores das MC
pelas conjunções “e... e” e o verbo “ter”, de forma que um - falta de cooperação entre os administradores da MC eos profissionais alopatas
profissional pôde, então, “ter essa competência e aquela”. - uso não-sustetável dos recursos e plantas medicinais
No campo da saúde, o efeito da criação desse concei- Uso racional
to gerou, entre outras coisas, a presença de um tipo de - falta de formação dos provedores das MC e sobre as MC para os profissionais
profissional híbrido, convivendo com os especialistas da alopatas
- faltade comunicação entre as MC e os profissionais alopatas e entre os
biomedicina e convertidos a outros sistemas médicos(2-3). profissionais e os consumidores
Além da presença desse novo tipo profissional, - falta de informação ao público sobre o uso racional das MC
aconteceu o desenvolvimento de várias ações impor- Fonte: World Health Organization. Traditional Medicine Strategy 2002-2005. Genebra, 2002(5).
tantes locais e globais. Nos Estados Unidos, aconte- MC=Medicina complementar

ceu a criação do National Center of Complementary


and Alternative Medicine(4), com a dimensão dos gran- foram identificadas como anomalias científicas e, para
des centros nacionais do National Institute of Health. avançar na inclusão, foi proposta a desafiadora noção
Globalmente, o Programa de Medicina Tradicional, de integratividade. Esta ideia trouxe para os domínios
da Organização Mundial de Saúde (OMS), ganhou re- da ciência normal biomédica a proposta da construção
levância publicando vários documentos, dentre eles a de um novo paradigma, ou seja, um novo conjunto de
estratégia de implantação das medicinas alternativas saberes e práticas que guiam os profissionais no âmbito
e complementares para os seus países membros. Esse do ensino (permitindo reprodução), pesquisa (viabili-
documento destacou quatro principais aspectos a se- zando a criação de investigações específicas sobre novos
rem desenvolvidos para a implantação/implementação temas) e assistência (inserindo novas práticas nos pro-
da medicina complementar no campo da saúde, como tocolos convencionais de cuidado).
se observa no Quadro 1. A construção de um paradigma integrativo per-
mite aos profissionais da saúde, em princípio, ter
consciência prévia das imperfeições do modelo bio-
Medicina integrativa médico, e então identificar a emergência gradual e
No início da década de 2000, ganhou destaque o de- simultânea de mudança das categorias e procedimen-
bate sobre a necessidade de se criar um ambiente in- tos paradigmáticos(7). Porém, nessa “revolução cien-
clusivo no campo da saúde, baseado no conceito de tífica”, a proposta não é substitutiva do novo para-
pluralismo terapêutico e orientado para responder à digma pelo anterior, pois se pretende que o modelo
agenda construída pela OMS. Com isso, aconteceram integrativo valorize os avanços da medicina conven-
encontros entre grupos de profissionais norte-ameri- cional e, ao mesmo tempo, reconheça a longa história
canos e ingleses, que resultaram na proposta da Medi- de outras práticas de cuidado e cura(8).
cina Integrativa. O alcance da integratividade para o campo da saúde
Ela pode ser muito bem compreendida a partir do ainda não é completamente identificado, mas o poten-
debate conduzido por Kuhn(6), pois é possível identificar cial é amplo na medida em que se propõe: unir o que há
as dificuldades da ciência normal biomédica em operar de melhor em diferentes tradições; acolher a pessoa in-
com práticas fundadas em outros modelos de cuidado e cluindo corpo, mente, espírito e cultura; fornecer cuida-
cura (alternativo, complementar e integrativo). Assim, do e cura, destacando a participação ativa de diferentes
dadas as incompatibilidades, as práticas não-alopáticas profissionais e do paciente; qualificar os desejos e ne-

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cessidades das pessoas em tratamento como evidências o conjunto dos elementos centrais da cultura ociden-
fundamentais do processo de tomada de decisão. tal que informam as dimensões econômicas, políticas e
Várias ações têm sido realizadas na direção da cons- simbólicas do campo da saúde. Por isso, consideramos
trução da medicina integrativa no âmbito dos serviços, fundamental o resgate histórico, desde a medicina al-
pesquisas e ensino. Para ilustrar, apresentamos o Consor- ternativa até a medicina integrativa, para que se com-
tium of Academic Health Centers for Integrative Medicine preenda que a introdução de novas práticas de cuida-
(CAHCIM)(9), formado atualmente por 44 destacadas do e cura entre diferentes profissionais e tratamentos
instituições norte-americanas (40) e canadenses (4). é não apenas possível, como por muitos desejada.
A missão do Consortium é fazer avançar os prin- Nosso propósito, com este texto, foi apresentar al-
cípios e práticas do paradigma integrativo nas insti- guns elementos do processo histórico da introdução de
tuições acadêmicas de ensino, pesquisa e serviço, e práticas não-convencionais no campo da saúde nas últi-
desde a sua criação em 1999 até o momento, tem pro- mas décadas. Além disso, destacamos que existem, nes-
duzido muita informação e obtido a adesão de novas se período, elementos suficientes para abrir o debate,
instituições e patrocinadores. Uma de suas propos- pois o que se observa atualmente é um grande interesse
tas fundamentais é garantir suporte social e cultu- de diferentes categorias profissionais e pacientes em co-
ral, dividindo informações, ideias, desafios, valores nhecer mais e adotar essas práticas. Por isso, estamos
e representatividade às instituições que querem de- frente a um enorme desafio!
senvolver a medicina integrativa, ou seja, referências
fundamentais para que a missão de cuidar “integrati-
vamente” expanda-se e influencie mudanças necessá- REFERÊNCIAS
rias no cuidado em saúde. 1. Santos BS. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das
Assim, seus membros compreendem que a medi- emergências. Rev Crít Cien Soc. 2002;63:237-80.
cina integrativa pode ser definida como “a prática da 2. Barros NF. Medicina complementar - uma reflexão sobre o outro lado da
prática médica. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2000.
medicina que reafirma a importância da relação entre
3. Barros NF. A construção da medicina integrativa: um desafio para o campo da
paciente e profissional de saúde, com foco na pessoa e
saúde. São Paulo: HUCITEC, 2008.
na sua integralidade, sendo informada por evidências
4. National Center for Complementary and Alternative Medicine- NCCAM. What
científicas e utilizando todas as abordagens terapêuti- is CAM? [Internet]. Bethsda (MD): National Center for Complementary and
cas, profissionais de saúde e disciplinas, para obter as Alternative Medicine; 2009 [cited 2009 Jan 23]. Available from: http://nccam.
mais apropriadas condições de cuidado e cura”*. nih.gov/health/whatiscam/
Em outras palavras, adotar a medicina integrativa 5. World Health Organization. Traditional Medicine Strategy 2002-2005. Ginebra;
tem o efeito, para os profissionais, de trabalhar com base WHO, 2002.
em conhecimento que privilegia a qualidade de vida 6. Kuhn, T. A estrutura das revoluções cientificas. Tradução: Beatriz Vianna
Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1987.
dos pacientes, a partir das evidências que comprovam
7. Otani MAP, Barros NF. A medicina integrativa e a construção de um novo
o efeito do gerenciamento do estresse e do equilíbrio
modelo na saúde. Rev Cienc Saúde Coletiva [Internet]. 2008 [citado 2010
sobre os tratamentos e a cura de diferentes problemas, Fev  16]. Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/
permitindo, inclusive, ações de prevenção de doenças e artigo_int.php?id_artigo=2192
promoção de saúde. 8. Lima PT. Medicina integrativa: a cura pelo equilíbrio. São Paulo: MG Editores.
2009.
9. Kligler B, Benn R, Alexander G, editors. Curriculum in integrative medicine:
Considerações finais a guide for medical educators. [Internet]. [S.I.]: Consortium of Academic
Health Centers for Integrative Medicine (CAHCIM); 2004. [cited 2009 Jan.
Do nosso ponto de vista, a ciência e o conhecimento 30]. Available from: http://www.imconsortium.org/img/assets/20825/
são socialmente construídos, de forma que compõem CURRICULUM_final.pdf

*Tradução livre do original disponível na página eletrônica do Consortium. http://www.ahc.umn.edu/cahcim/

einstein: Educ Contin Saúde. 2010;8(3 Pt 2): 148-50

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