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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS

Letícia Vitoria de Oliveira

Maquiavel e o Realismo Político

Belo Horizonte
2019
Letícia Vitoria de Oliveira

Maquiavel e o Realismo Político

Trabalho final desenvolvido como atividade ava-


liativa para a disciplina de História das Relações
Internacionais, ministrada pelo professor Pedro
Barbosa, para o curso de Relações Econômicas
Internacionais.

Belo Horizonte
2019
O gênero literário “espelho de príncipe” foi consolidado como tal no século IX, sendo
composto por reflexões de orientação moral e política, as quais no século XIII passaram a ter um
forte caráter político-pedagógico. O livro “O Príncipe”, de Maquiavel, enquadra-se nesse gênero,
todavia, reformula os preceitos de moral, virtude e prudência da Idade Média, criando um novo
rol de virtudes e vícios que são em parte contrários ao da igreja medieval. Para Maquiavel, não
se devia seguir cegamente as qualidades ditadas pela tradição cristã e constituídas como virtude
por outros espelhos de príncipe, porque essas poderiam trazer a ruína do Estado, o qual deve ser
mantido a qualquer custo, mesmo sendo sua queda, em algum momento, inevitável.
Espelho como “De Regno”, de São Tomás de Aquino era um clássico a ser seguido
como exemplo antes de Maquiavel, o qual trabalhava com a noção de que os homens tendiam
a uma vida harmoniosa por natureza, e o governante deveria apenas ajudar a natureza nesse
aspecto. Já Maquiavel pensava diferente, através de suas observações da vida pública, para ele
fica claro que o homem tem o desejo natural de conquistar e a partir daí se cria a noção do seu
“príncipe novo”. Ele rompe com os medievalistas que buscavam ver a natureza boa do homem, e
que seus atos tendiam à manutenção da paz, propondo outra forma de governar os homens que,
para ele, não tinham uma natureza tão nobre.
A figura de Maquiavel é controversa; uns vêem-no como conselheiro do povo, Rousseau
chega a comentar: “Maquiavel, fingindo dar lições aos Príncipes, deu grandes lições ao povo”
(Do Contrato Social, livro 3, cap. IV), e, para outros, ele é a fonte de inspiração dos tiranos,
sendo o termo “maquiavélico”, caracterizador de “encarnação do mal”, relacionado a ele. Assim,
mesmo havendo controvérsias quanto à natureza das atitudes de Maquiavel, ele é, sem dúvidas,
uma figura importante no que tange ao estudo das ciências políticas, pois traz novas perspectivas
sobre a manutenção do poder e um realismo político empírico que busca no passado os exemplos
que devem servir para orientar as ações políticas, bem como os a serem evitados e, ainda, da
realidade presente, pautando-se pela racionalização das relações de poder. Portanto, Maquiavel
busca sempre ver e examinar a realidade tal como ela é, não como se gostaria que ela fosse.
A ordem é encarada como um produto imprescindível da política, devendo ser desenvol-
vida pelos homens para evitar o caos e a ignorância, sendo assim proveniente das ações concretas
desses homens em sociedade, ainda que nem sempre sejam de imediato reconhecíveis e racionais.
O espaço da política é, então, formado e regido por mecanismos diferentes dos que guiam a vida
privada.
Maquiavel, por meio de seus estudos sobre história, observou a presença de característi-
cas imutáveis nos homens, tais como a ingratidão, volatilidade, covardia, ganância e simulação.
Esses atributos são considerados negativos, porém fazem parte da natureza humana e conclui-se
que o conflito e a anarquia são desdobramentos desses adjetivos. A história provou-se uma
importante fonte de ensinamentos, tendo em vista que seu objeto de estudo é a situação concreta,
sem a interferência de considerações abstratas e idealistas.
Para o escritor italiano, o caminho para uma sociedade na qual há liberdade, virtude
e ordem era claro. Quando uma nação se encontrasse ameaçada de sucumbir, seria necessário
que um governo forte tomasse o controle, resultando na eliminação das forças que o estariam
ameaçando e, assim, o príncipe assumiria um importante papel nesse cenário, porém não como
um ditador, mas sim um agente da transição desse período de desequilíbrio. Dessa forma, quando
a sociedade encontrasse maneiras de equilibrar-se, o poder político iria ter cumprido sua função
e ela estaria preparada para a República, o regime ideal. Tal caminho era o que ele esperava que
a Itália de sua época seguisse para sua unificação e regeneração e, para isso, era necessário o
surgimento de um homem virtuoso, um príncipe, capaz de fundar um Estado.
E, a fim de manter uma república o povo teria que ser armado o que levaria na facilidade
de combater ameaças internas e externas, sendo o principal defensor da liberdade, onde seria
necessário que este tivesse acesso à todos os cargos públicos em um governo republicano,
fazendo alusão a república de Roma. Disso se percebe que a igualdade era fundamental na teoria
de Maquiavel, pois, para ele, o acesso aos cargos deveria se dar por virtù, pouco importando a
classe ou idade. Só assim é possível preservar o bem comum, portanto só onde há espaço para
todas as diferentes classes discutirem os rumos da cidade, o bem comum será priorizado em
comparação com os de minorias.
A república só duraria se o povo se comprometesse a fazer constantes modificações nas
instituições, nas organizações e nas leis para estar sempre preservando e expandindo a liberdade.
É necessário que se tenha essa mudança, devido ao fato de que o tempo muda constantemente e é
apenas com a renovação da política que se conseguirá fazer com que continue existindo vias para
que os diversos seguimentos sociais possam livremente protestar, fazer acusações e reivindicar
direitos. Todavia, mesmo tendo uma dedicação à causa republicana, Maquiavel acredita que nem
sempre essa forma de governo livre é a mais viável, tendo alguns momentos tão desfavoráveis
que uma república poderia soar utópica.
Maquiavel trabalha com os conceitos de virtú e de fortuna no livro “O Príncipe”,
expondo a concepção dos antigos e a transformada após o triunfo do cristianismo. Tal concepção
de Fortuna, na antiguidade, era a de uma deusa boa a qual possuía em sua cornucópia honra,
riqueza, glória e poder, em que apenas o homem que possuísse virtù no mais alto grau seria
beneficiado. Contudo, foi substituída por uma força indomável que distribui seus bens de
forma indiscriminada e sua simbologia muda, passando agora a ser a roda do tempo, que
gira indefinidamente. Então, o escritor argumenta a possibilidade da virtù conquistar a nova
fortuna, levando em consideração que o livre-arbítrio do homem é capaz de apaziguar a suposta
indomabilidade dessa, recusando as teorias transcendentais sobre o tempo, como a de que o
tempo e a ordem das coisas humanas eram todas ordenadas e determinadas por Deus.
A virtú, portanto perde o seu caráter cristão e passa a ter outro sentido, assim homem
de virtù pode conseguir o poder, a honra e a glória e por eles luta. Dessa forma, o poder que
surge da natureza humana e encontra seu alicerce na força é redefinido, não se tratando mais
apenas da força bruta, da violência, mas da sabedoria e virtuosidade ao usá-la. O governante
não seria o homem mais forte, mas sim o que demonstra possuir virtù, usando sua força para
manter o domínio e se não for querido pelos dominados, ao menos deve ser respeitado, temido.
O príncipe precisaria ter controle das armas, pois sendo os homens inconstantes, poderiam se
rebelar a qualquer momento, sendo assim necessário conter estes movimentos.
Assim, Maquiavel implica na noção de que o poder se baseia na força, mas para se
manter no poder é imprescindível que se tenha virtù, principalmente quando é sobre um domínio
recém-adquirido, os hereditários, apesar de não serem garantidos, por estarem acostumados com
o príncipe e sua família seriam mais seguros. Portanto, se um governante não procurar criar
mecanismos para a manutenção da conquista, como boas leis, geradoras de boas instituições, e
boas armas, um poder rival poderá vindicar seus domínios, sejam eles hereditários ou recém-
adquiridos. Só o príncipe de virtù terá sucesso em conquistar um principado novo e mantê-lo,
por ser capaz de visualizar as mudanças acarretadas pelas ações humanas e assim conseguirá se
manter aquele que souber agir de acordo com essas mudanças, ou seja, somente aquele que tiver
virtù conseguirá resistir aos “assédios” da fortuna.
O homem de virtù consegue atrair os favores da cornucópia da Fortuna, os quais
são a honra, a glória e a fama, para si e a segurança para seus domínios. É desta perspectiva
que se discute quais seriam as qualidades ideais para o príncipe, que, de acordo com os mais
tradicionais espelhos de princípe, seriam a bondade, honestidade, e outras provindas da tradição
cristã dominante na idade média, porém não para Maquiavel, consoante ele há vícios que são
virtudes.
Ou seja, o governante deve ser capaz de separar a moralidade do indivíduo da moralidade
política, guiando-se pela necessidade da situação e fazendo o possível para salvar o Estado e
se manter no poder, concluindo que a moralidade convencional e cristã pode levar a sua ruína,
isto é, ele deve saber ser mal, se demovendo dessa moralidade, todavia isto não implica que
ele deva, mas sim compreender fazer uso ou não desse saber nas mais diversas situações,
assim a qualidade exigida do príncipe seria sobretudo a sabedoria. Sendo a moralidade política,
proposta por Maquiavel, desviada do tradicional moralismo piedoso o que evoca uma resistência
à aceitação de suas ideias e que dá origem ao termo “maquiavélico”.
Contudo, é necessário aparentar possuir as qualidades valorizadas pelo povo, uma
distinção entre a aparência e a essência a qual supera a tradição e normas de conduta ditadas
pela igreja. Se tornando o agir virtuoso a combinação da natureza humana e animal, em que
Maquiavel coloca como ideal a combinação entre o agir do leão, pela sua força e demonstração
dela, e o da raposa, pela sua astúcia e sabedoria em como usar as situações a seu favor, sendo a
união desses comportamentos um exemplo de virtù para o governante, e portanto, essencial para
a manutenção do Estado.
O conflito constante entre a virtù e a fortuna na república, é compreendida como
o esforço do povo para manter em si o poder de construir seus próprios destinos sem ficar
dependendo do acaso e da sorte. Se ligando assim, com a luta entre o poder constituinte e o
poder constituído, sendo o papel do poder constituinte fazer com que o regime de liberdade seja
constantemente renovado para que se tenha uma expansão dessa, fazendo retomar o sentimento
de adoração a liberdade e o sentimento cívico. Porque só assim é possível manter a democracia,
bloqueando o poder constituido.
Maquiavel não aceita o mito em sua natureza ditada pela tradição, sempre buscando
desmistificar questões e concepções antes adormecidas e acomodadas, instaurando um pensar
na política moderna. Porém, questionar o custou caro em vida, sendo torturado e exilado da
sociedade, e após sua morte, acabou por se transformar num mito. O pensamento político,
moderno e crítico, desenhado por ele, é necessário para decifrar o enigma proposto em sua obra,
precisando resgatá-lo sem preconceitos e observando através da realidade como ela é e não como
gostaria que esta fosse.
Atualmente, existe uma crise ligada as utopias e um descrédito para com as ideologias,
intensificando cada vez mais o surgimento de um enfoque no realismo político para a análise
dos problemas contemporâneos. Nesse aspecto percebe-se a atualidade de algumas idéias de
Maquiavel, exploradas ao longo de seu livro “O Príncipe”, mesmo que os períodos históricos
sejam diferentes os ensinamentos perduram e ajudam na compreensão das dinâmicas das relações
políticas internamente e internacionalmente hoje. Buscando o entendimento dos jogos de poder
entre os países, os governantes e o povo através da realidade concreta a qual está presente no
que move as ações dos mesmos, sendo uma fonte de ensinamento importante principalmente ao
povo, consoante Rousseau.
Referências

SKINNER, Quentin. “Introdução” “O Diplomata”. In: Maquiavel. Porto Alegre: L&PM,


2010.
BIGNOTTO, Newton. “Introdução” “O secretário florentino”. In: Maquiavel. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
SADEK, Maria Tereza. “Nicolau Maquiavel: o cidadão sem Fortuna, o intelectual com
virtù”. In: WEFFORT, Francisco C. (Org.). Os Clássicos da Política: Maquiavel Hobbes, Locke,
Montesquieu, Rousseau, “O Federalista”. São Paulo: Editora Ática, 2000.
LIMA, M. P. S., O Poder Constituinte em Maquiavel. 2011. Dissertação (Teoria do
Estado e Direito Constitucional) – PUC-Rio - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
HAHN, F. A., Reflexos da Perfeição: Alguns Elementos do Gênero Espelhos de Prínci-
pes na Idade Moderna. Revista Varia Scientia, v. 06, n. 12, p. 151-157, Dezembro 2006.
BRAZ, L. D. S., Maquiavel Republicano. In: ANPUH Brasil (org.). XXVII Simpósio
Nacional de História. Natal - RN, 2013.

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