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Relações A etnoastronomia dos

africanos trazidos como


escravos para o Brasil se

AFRO-
misturou com a dos nativos
do nosso país constituindo
novas formas de saber

INDÍGENAS Por Germano Afonso

72 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL ESPECIAL ETNOASTRONOMIA


D esde os tempos mais antigos, os ha-
bitantes da África e os indígenas que
habitavam o Brasil olhavam para o céu e
sobre a ordem e a unidade do Cosmos,
fornecendo uma bela visão do mundo,
suficiente para a sobrevivência em gru-
exemplo, nos quilombos situados nas
margens do rio Gurupi, na fronteira do Pará
com o Maranhão.
ficavam maravilhados. Os africanos e os pos. Tentando explicar suas observações, Cabem, então, duas questões. Na épo-
indígenas perceberam que os fenômenos criaram diversos mitos cosmogônicos. ca da escravidão, o nível de conhecimento
celestes estavam relacionados com os da Os conhecimentos de astronomia dos astronômico dos africanos e dos indígenas
terra, em uma harmoniosa sincronicida- nativos dos dois continentes e suas apli- era muito diferente? A troca de saberes
de. Esse conhecimento tradicional do cações no cotidiano se misturaram com a entre esses povos sobre a leitura do céu foi
Cosmos envolvia as observações dos mo- chegada dos povos escravizados no Brasil. muito importante?
vimentos dos corpos celestes, a seqüência Essa integração teve espaço para ocorrer Para responder a essas perguntas, deve-
das estações do ano e o comportamento nos quilombos, locais de difícil acesso, mos lembrar que o continente africano e o
das plantas e dos animais. A visibilidade para onde iam os africanos que fugiam do Brasil são compostos de centenas de etnias
de certas estrelas e constelações marca- cativeiro. Os primeiros refúgios só surgiram culturalmente diferentes, podendo-se falar
va épocas significativas do ano. Até a graças à associação que o africano efetuou dessas regiões apenas de uma maneira
conduta correta da vida humana estava com o indígena na resistência à escravidão. geral, sem especificar a etnia. A cultura
ligada ao contexto sazonal dos fenôme- Mesmo atualmente, há muito intercâmbio dos afro-brasileiros tem suas raízes, princi-
nos naturais. Juntas, estrelas e espécies entre as comunidades quilombolas e os palmente, em dois grandes grupos étnicos
animal e vegetal, informavam ao homem indígenas, como temos observado, por africanos: os bantos e os sudaneses. Em-

A ETNOASTRONOMIA afro-indígena-brasileira é uma junção dos conhecimentos dos povos que aqui já
viviam com os daqueles que vieram escravizados. Ilustração sobre o quadro Dança tapuia, de Albert
Eckout, e foto de George Ermakoff, no livro O Negro na fotografia brasileira do século XIX

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bora a maioria dos negros trazidos ao Brasil IMAGEM DA LUA crescente
fosse formada pelos primeiros, as tradições VÊNUS e de Vênus. Pela
mitologia de algumas
culturais de alguns grupos sudaneses, como etnias africanas e tribos
os nagôs (ou iorubas), são importantes nas indígenas brasileiras, a
Lua era um homem com
heranças africanas da cultura brasileira, duas mulheres. Uma
principalmente na Bahia. o alimentava demais,
Os bantos são predominantes na África a outra não lhe dava
comida, o que explicava
Equatorial e Tropical, na região do Golfo a passagem das fases de
da Guiné, Angola, Congo e Moçambi- cheia a minguante
LUA MINGUANTE
que, planaltos da África Oriental, costa
sul-oriental e toda a região sul da África.
Os sudaneses são habitantes da África
ocidental, da costa setentrional do Golfo
da Guiné, de Benin, Nigéria e do Sudão

IMAGENS DE: J. R. ALMEIDA


(fronteira com o sul do Egito). Mesmo na
África, essas e outras culturas influencia-
vam-se reciprocamente.
No Brasil, sudaneses e bantos entre- Horizonte Leste
laçaram-se em consideráveis proporções,
resultando em novas composições bioló- mente indígenas e afro-brasileiras. Além cípio do mundo havia dois sóis irmãos:
gicas, culturais e religiosas. Além disso, do Egito, somente os dogons, da região de Kamé ou Rã (Sol) e Kanyerú ou Kysã (Lua).
misturaram-se, também, às culturas dos Mali, África Ocidental, têm a astronomia Devido ao forte calor provocado pelos dois
indígenas que já habitavam o país. Essa extensivamente estudada e registrada. Os irmãos, os rios estavam secando, as florestas
adaptação de culturas é tão evidente que bantos e os iorubas têm o conhecimento e as pessoas, ficando fracas. O Sol brigou
já não dizemos culturas “africanas” e sim astronômico muito pouco pesquisado, com a Lua, dando um soco no olho dela. Ela
“afro-brasileiras”, quando nos referimos mesmo na África. então se enfraqueceu e se tornou a Lua atual.
aos afro-descendentes. Atualmente, a influência cultural dos Ficou então criada a noite sob domínio da
No final do século XX, a investigação indígenas e dos africanos é dominante em Lua, para dar frescor à Terra. O Sol perma-
do conhecimento astronômico dos povos todo o Brasil. Em geral, as comunidades neceu com o domínio do dia, dando o seu
antigos despertou o interesse de especia- que habitam longe das grandes cidades têm calor à Terra. A alternância entre esses dois
listas de várias áreas do conhecimento, seus referenciais do céu herdados desses pares opostos e complementares, Kamé e
surgindo grande quantidade de publica- povos. Comparamos de uma maneira geral, Kanyerú, é que possibilita a vida na Terra.
ções principalmente entre os antropólogos. neste artigo, parte dos conhecimentos de A complementaridade dos opostos é
Baseados em vestígios arqueológicos, etnias africanas que habitavam ao sul do vista como perfeição e portadora de vida,
documentos históricos, relatos de tradições Trópico de Câncer com indígenas que enquanto a união de iguais é considerada
orais e registros etnográficos, eles deram habitavam o Brasil. Apresentamos a seguir estéril. Os mitos kaingang enfatizam a ne-
consistência a uma disciplina, denominada as principais semelhanças astronômicas cessidade de estabelecer a diferença, como
etnoastronomia, que podemos chamar de entre esses povos que, apesar de morarem está explicito nesse mito do Sol e da Lua.
astronomia antropológica. Esta procura em continentes diferentes, observavam, De acordo com um mito bosquímano
entender as concepções sobre o Universo praticamente, a mesma região do céu. bastante conhecido no sul da África, anti-
de diversos grupos étnicos e culturais. O gamente o Sol era um homem que fazia o
fato de os mesmos fenômenos astronômi- O Nascimento do Sol e da Lua dia quando levantava seus braços, através
cos terem sido contemplados por diversos Para a maioria das etnias africanas de uma forte luz que brilhava de suas axilas.
grupos humanos nos permite, ao comparar e dos indígenas que habitavam o atual No entanto, ao passo que ele envelhecia,
essas diferentes visões, aprender muito território brasileiro, o Sol e a Lua eram passou a dormir demais, deixando o povo
sobre as sociedades que as originaram, as consideradas do sexo masculino. O início com frio. As crianças então o pegaram
diferentes culturas e o mundo em que vive- do mês era marcado pelo primeiro filete da e o jogaram no céu, onde ele se tornou
mos. No Brasil, a etnoastronomia tem um Lua crescente que aparece do lado oeste, ao redondo, quente e brilhante para sempre.
grande potencial, em virtude da amplitude pôr-do-sol, depois do dia da lua nova. Alguns acreditavam que após o pôr-do-sol,
e diversidade étnicas nacionais, principal- Segundo os índios kaingang, no prin- no lado oeste, o Sol retornava ao lado leste

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O NASCER DE SÍRIUS, a estrela mais que o esposo Lua, por cerca de 132 noites,
brilhante do céu, marcava o início da que corresponde à metade do período em
cheia do Nilo para os antigos egípcios e o
PLÊIADES começo do novo ano que o planeta Vênus é visível, como estrela
vespertina ou como estrela matutina. De-
vemos lembrar que, dependendo da altura
ALDEBARAN em que Vênus se encontrar no céu, como
estrela matutina ou vespertina, entre a lua
cheia e a minguante, a Lua pode ser vista
TRÊS MARIAS por Vênus, desaparecendo no horizonte
oeste, mesmo antes da meia-noite e que
entre o quarto crescente e a lua cheia, a Lua
pode ser vista por Vênus, surgindo no hori-
SIRIUS zonte leste, também após a meia-noite.
Um mito semelhante é contado por
diversas etnias indígenas do Brasil. O etnó-
logo alemão Theodor Koch-Grünberg, por
Horizonte Leste exemplo, no início do século XX, recolheu
com os taurepangs, de Roraima, também
conhecidos como taulipangs e pemons,
passando por trás do firmamento, e que as Muitos africanos e indígenas brasileiros o seguinte relato sobre a Lua e suas duas
estrelas eram pequenos furos no céu que contavam que a Lua tinha duas esposas: mulheres: “Kapei, a Lua, tem duas mu-
deixavam a luz solar passar. a estrela vespertina e a matutina. Eles não lheres, ambas chamadas Kaiuanog, uma
Eles contam, também, que a Lua era percebiam que as duas eram, na realidade, no leste, a outra no oeste. Sempre está
um homem que irritou o Sol. Devido à o planeta Vênus, que era chamado de com uma delas. Primeiro ele vai com uma,
raiva, o Sol pegou uma faca e foi cortando “Mulher da Lua”. que lhe dá muita comida, de forma que se
a Lua em pedaços. Quando ele percebeu Os bantos da República de Malaui, torna cada vez mais gordo. Então a deixa e
que a havia destruído totalmente, sobrando país do sudeste da África, por exemplo, vai com a outra, que lhe dá pouca comida
apenas um filete, ficou com remorso. A dão nomes para as duas esposas da Lua: a e ele emagrece cada vez mais. Depois se
Lua implorou para levar o filete para suas estrela matutina é Puikani e localiza-se no encontra novamente com a outra, que o
crianças e o Sol permitiu. Quando a Lua lado leste, na direção em que o Sol nascerá. faz engordar, e assim por diante. A mulher
se viu fora do ataque do Sol, pegou os pe- Durante cerca de uma quinzena, entre as do leste briga com o marido por ciúme.
daços que havia perdido e, à medida que luas cheia e nova, quando a Lua é visível por Ela lhe diz: ‘Vá para junto da outra. Então
os juntava, voltava a crescer até se tornar Puikani somente após a meia-noite, o casal ficas outra vez gordo. Comigo não podes
novamente lua cheia. Depois, mais uma vez fica junto, mas essa esposa não alimenta seu engordar’. E ele vai para junto da outra. Por
irritava o Sol e tudo recomeçava. Esse ciclo marido deixando-o cada vez mais magro até isso as duas mulheres são inimigas e ficam
tem acontecido, uma vez por mês, desde o desaparecer, isto é, passa de lua cheia para sempre separadas uma da outra”.
início dos tempos. lua nova. A estrela vespertina é chamada
As posições do nascer e do pôr-do-sol, de Chekechani e localiza-se no lado oeste, A Constelação da Arapuca
nos dias do início do verão e do inverno onde o Sol desaparece. Durante cerca de A maioria dos povos antigos mar-
(solstícios) eram chamadas, respectivamen- uma quinzena, entre as luas nova e cheia, cava o início do ano no dia em que uma
te, “casa do verão” e “casa do inverno” do quando a Lua é visível por Chekechani determinada estrela ou constelação era
Sol. Essas posições eram os pontos de retor- somente antes da meia-noite, ela cuida de visível novamente, no lado leste, antes do
no do astro para a direção do ponto cardeal seu esposo até que ele engorde, tornando-se nascer-do-sol (nascer helíaco), depois de
Leste (equinócios) e eram importantes para totalmente redondo e partindo novamente, um período sem ser observada. Sua prin-
fornecer o calendário solar, como ocorria para se encontrar com Puikani. cipal utilidade consistia em desenvolver
em muitas outras partes do mundo, inclu- A Lua está sempre com uma de suas sistemas de visualização para o controle
sive com os indígenas do Brasil. Muitos esposas e nunca com as duas juntas. Quan- da estação agrícola.
dos africanos que habitam o campo ainda do uma delas é visível no céu, a outra não Os antigos egípcios, por exemplo,
confiam mais nas observações tradicionais é, independente das fases da Lua. Cada desde cerca de 5 mil anos atrás, utilizavam
do Sol do que nos calendários impressos. mulher é visível no céu, ao mesmo tempo o dia do nascer helíaco de Sírius, a estrela

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mais brilhante do céu, que coincidia com
o início da cheia do rio Nilo (inundação)
MARKAB
para começar seu ano. Possivelmente os
ALGENIB
astrônomos-sacerdotes egípcios deter-
minavam o dia e o local do nascimento
dessa estrela utilizando a reta imaginária
que passa pelas Plêiades, por Aldebaran e SCHEAT DELTA ANDRÔMEDA
ALPHERATZ
por Sírius, respectivamente. Em geral, nas RASALMOTHALLAH
noites de verão, usamos esse alinhamento 41 ÁRIES
de estrelas brilhantes para encontrar as Plê-
iades. Devemos salientar, no entanto, que PLÊIADES
essas estrelas nascem após o aparecimento
da constelação.
Na maioria das outras regiões da África,
são as Plêiades que marcam o calendário
agrícola. Os bantos, por exemplo, vêm as
Plêiades na forma de um arado e as cha-
mam de Kilimia que vem do verbo kulima A CONSTELAÇÃO DA ARAPUCA era usada pelos guaranis para determinar a posição e a data do nascer helíaco das
e significa “cultivar a terra”. O ano-novo Plêiades. Ela se situa perto do Grande Quadrado de Pégaso (formado pelas estrelas Markab, Scheat, Algenib e
começa quando as Plêiades aparecem pela Alpheratz), imaginado como a caixa onde o passarinho fica preso. Seguindo a reta de estrelas que formam a corda
da arapuca encontramos as Plêiades
primeira vez de madrugada antes do nascer
helíaco. Quando as Plêiades surgem no
horizonte logo após o pôr-do-sol (nascer a data e a direção do nascimento dessas de volta para casa um caçador que estava
anti-helíaco) começa o tempo de cultivar a três estrelas alinhadas, podemos prever a perdido. Depois, a menina criou as estrelas
terra e plantar. Tendo em vista que a região data e a direção do nascimento helíaco das brilhantes lançando raízes no céu, sendo
do céu acima das Plêiades não apresenta es- Plêiades, que surgem aproximadamente no que as estrelas brancas estão prontas para
trelas muito brilhantes, como os indígenas mesmo lugar que o Grande Quadrado de serem comidas, mas as vermelhas são raízes
brasileiros podem determinar a época e o Pégaso. A partir do dia do desaparecimento velhas, não comestíveis.
lugar do nascer helíaco das Plêiades? das Plêiades ao escurecer, o Grande Qua- Na América do Sul, a Via Láctea era
Os índios guaranis nos mostraram a drado de Pégaso já é bem visível, antes de vista como um guia, no céu, do Caminho
constelação da Arapuca (Monde Py, em amanhecer. E tudo recomeça... do Peabiru, um trajeto indígena pré-co-
guarani), que é utilizada por eles para lombiano e transcontinental que, suposta-
determinar a posição e a data do nascer Caminho das Estrelas mente, ligava o oceano Atlântico ao oceano
helíaco das Plêiades. Ela se situa na re- A Via Láctea, esse campo de estrelas Pacífico, passando pelo Brasil, Paraguai,
gião do céu entre o Grande Quadrado de visíveis no cinturão de nossa Galáxia, ocu- Bolívia e Peru. No entanto, não sabemos
Pégaso (formado pelas estrelas Markab, pou uma importante posição na mitologia que povos marcaram esses percursos. Os
Scheat, Algenib e Alpheratz) e as Plêia- dos povos antigos que a viam como um colonizadores espanhóis e portugueses
des. O grande quadrado forma a caixa lugar privilegiado para a morada de seus utilizaram o Caminho do Peabiru desde o
onde o passarinho fica preso. A corda da deuses. Ela representou o Nilo Celeste para século XVI. Por exemplo, o espanhol Alvar
arapuca é constituída pelas estrelas delta os egípcios e o Caminho da Anta para os Nuñes Cabeza de Vaca, escolhido como o
da constelação de Andrômeda, por Rasal- tupis-guaranis (ver artigo na pág. 46). novo governador do Paraguai, partiu de
mothallah e pela estrela 41 da constelação Muitas etnias africanas a chamam de Florianópolis, Brasil , em 18 de outubro de
de Áries. Seguindo a reta imaginária que “Caminho de Estrelas”, e dizem que ela 1541 e chegou em Assunção, Paraguai, em
une as três, encontramos as Plêiades. organiza o céu e faz com que o Sol retorne 11 de março de 1542, guiado por indígenas
O nascer helíaco de cada uma dessas ao lado leste ao amanhecer. De acordo com guaranis e seguindo esse caminho.
estrelas que formam a corda precede o nas- um dos mais famosos mitos africanos, a Via No sentido religioso, os guaranis no-
cer helíaco das Plêiades, aproximadamente, Láctea foi criada por uma menina da “raça meiam a Via Láctea “A Morada dos
nos seguintes intervalos de tempo: delta antiga” que, há muitos e muitos anos, jogou Deuses”. Para eles, tudo o que existe na
de Andrômeda – 45 dias; Rasalmothallah as cinzas de sua fogueira para cima, fazendo Terra é apenas uma imagem imperfeita do
–30 dias; 41 de Áries – 15. Registrando uma estrada na escuridão do céu, para guiar que existe no Céu. Assim, o Caminho do

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do nascer e do pôr-do-sol nos dias de
ILUSTRAÇÃO MOSTRA como era feita a orientação espacial pela Via Láctea
solstícios e de equinócios. Mas como
visualizar, o ano inteiro, essas direções
durante o dia e à noite?
Sabemos que a Via Láctea se desloca
do lado leste para o oeste, em uma noite,
devido a rotação da Terra. Além disso, em
Pôr-do-sol no
inverno (ocaso
Nascer-do-sol no um mesmo horário, em noites diferentes,
inverno (nascer
de Aldebaran) de Aldebaran) ela não se encontra no mesmo lugar, por
causa da translação da Terra. Tendo em
vista que um referencial em movimento,
como a Via Láctea, não pode servir para
orientação, os indígenas do Brasil, os
peregrinos europeus da Idade Média e
Pôr-do-sol na Nascer- os africanos se guiavam, na verdade, pelas
primavera do-sol na estrelas da Via Láctea, pois cada uma delas
e no outono primavera
(ocaso e no outono
sempre faz a mesma trajetória no céu. Ou
das Três (nascer seja, eles seguiam as estrelas da Via Láctea
Marias) das Três e não a Via Láctea.
Marias)
Pôr-do-sol Nascer- Durante a noite, a maioria dos povos
no verão do-sol
(ocaso de no verão que habita ao sul do Trópico de Câncer,
Antares) (nascer de como os indígenas do Brasil e muitos gru-
Antares)
pos africanos, determinam o ponto cardeal
sul observando o Cruzeiro do Sul, que se
situa em plena Via Láctea. Outras estrelas
serviam de orientação quando as direções
do nascer e ocaso delas coincidiam com as
direções do nascer e ocaso do Sol nos dias
Peabiru representa uma imagem, na terra, na maioria dos países de língua espanhola a de solstícios e de equinócios. Como exem-
a Morada dos Deuses, a Via Láctea. Eles Via Láctea é chamada de Caminho de San- plo de um conjunto dessas estrelas, utili-
trilhavam o Caminho do Peabiru, que cha- tiago, o que ocorre até mesmo em algumas zadas pelos guaranis, temos: Antares (de
mam de Tape Aviru, em suas peregrinações cidades do interior do Brasil. Escorpião), Aldebaran (de Touro) e as Três
para atingir Yvy Marãe’_, a Terra sem Males, A relação dos antigos caminhos terres- Marias (ou Cinturão de Órion). As duas
sua própria versão mítica do Paraíso. tres com a Via Láctea é ainda mais interes- primeiras, que são estrelas vermelhas, ficam
Quando se referem a essa região, sante, pois podemos utilizar suas estrelas de lados opostos no céu e são conhecidas
antropólogos e historiadores a localizam para orientação espacial básica, para datar pelos guaranis como “A Cabeça da Onça”,
na direção do oceano Atlântico, a leste. eventos, para mostrar suas constelações e enquanto a Três Marias são conhecidas,
Em suas peregrinações, os guaranis se contar os seus mitos. Em geral, nos textos religiosamente, como “O Caminho dos
deslocavam nas direções do nascer-do-sol sobre astronomia dos povos antigos consta Mortos”. Muitas etnias indígenas enterram
nos solstícios e nos equinócios. Assim, os como eles aproveitavam as marcações no seus mortos com as cabeças orientadas para
guaranis viajavam, literalmente, pela Via céu para a elaboração do calendário, e pou- o ponto cardeal leste e os pés para o ponto
Láctea terrestre, o Tape Aviru, seguindo co consta como eles o usavam, na prática, cardeal oeste, ou o inverso, representando
as direções do nascer e do pôr-do-sol nos para suas grandes viagens. o ciclo da vida e da morte.
solstícios e nos equinócios, mostradas pela Durante o dia, os indígenas do Brasil e Devemos lembrar que as estrelas come-
Via Láctea celeste. os africanos determinavam, diretamente, çam a aparecer ou desaparecer um pouco
Na Espanha, o Caminho de Santiago o ponto cardeal Norte ou Sul, através acima da linha do horizonte, diferentemente
de Compostela foi marcado por peregrinos da sombra mínima diária de uma haste do Sol e da Lua, que aparecem e desapare-
da Idade Média, que também seguiam a vertical cravada em um terreno horizontal cem exatamente sobre a linha do horizonte,
orientação da Via Láctea. A origem da pala- (gnômon), projetada pelo Sol, ao meio- devido aos seus brilhos consideravelmente
vra compostela significa campo de estrelas e dia. Além disso, utilizavam as direções mais intensos que os das estrelas.

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Aldebaran desaparece acima do ponto COR CAROLI

do pôr-do-sol no solstício de inverno. Cerca


de uma hora depois, Antares aparece acima
do ponto do nascer-do-sol no solstício
de verão. Aproximadamente 45 minutos
depois, as Três Marias desaparecem acima
do ponto cardeal oeste, onde ocorre o pôr- PHECDA ALKAID
do-sol nos equinócios. A situação inversa é
a seguinte: Antares acima do ponto do pôr
-do-sol no solstício de verão. Aldebaran
MEGREZ ALIOTH MIZAR
surge uma hora e meia depois, acima do
ponto do nascer-do-sol no inverno. Alguns
minutos depois, começam a aparecer as CONSTELAÇÕES DO BARCO E DA CANOA, imaginadas
Três Marias, acima do ponto do nascer- respectivamente pelos índios tupinambás e pelos tembés,
que lhes indicava a posição do ponto cardeal norte. A
do-sol nos equinócios. primeira é apenas uma complementação da segunda, onde
os pescadores acrescentaram o mastro e a vela
Aplicação no Cotidiano
Um dos primeiros e principais objetivos
práticos da astronomia foi sua utilização na qüentemente, como girafas. Nas noites de ambiente particular. Hoje em dia ainda
agricultura, em virtude da necessidade de outubro, por exemplo, as girafas deslizam encontramos muito dos saberes referentes
ter um calendário lunissolar para determinar acima das árvores, lembrando o povo que às astronomias indígena e africana no Brasil
as épocas de plantio e de colheita, e a relação é hora de terminar de plantar. Canopus (da entre agricultores, caçadores e pescadores,
das estações do ano e das fases da Lua com constelação da Carina), a segunda estrela que os utilizam no seu cotidiano.
a biodiversidade local, para a melhoria da mais brilhante do céu, era conhecida por Em 1996, estávamos proferindo uma
produção e o controle natural das pragas. algumas tribos como a “estrela dos ovos palestra em Central, Bahia, sobre o céu da
Foi o vasto conhecimento dos africanos das formigas”, por ser visível no céu durante região. De repente, fomos interrompidos
com o cultivo de grãos que aumentou o a estação em que esses ovos eram abun- por um senhor que caçava para sobreviver.
interesse dos comerciantes europeus por dantes. Se no mês de maio Canopus fosse Ele disse que estava gostando da palestra,
escravos. Eles rapidamente perceberam visto com um brilho muito intenso, eles já mas que os nomes que utilizávamos não
o valor de trabalhadores já equipados de deduziam que a geada seria forte. A Pe- correspondiam aos que ele conhecia.
habilidades agrárias, que seriam indispen- quena Nuvem de Magalhães era conhecida Pedimos desculpas e dissemos que de fato
sáveis nas plantações do Brasil. como “abundância e fome”. Se o ar seco e não estávamos usando a linguagem mais
Os africanos e os indígenas analisa- empoeirado fizesse com que ela aparecesse adequada. Depois de alguns minutos,
vam a passagem do tempo em termos fosca, esperava-se uma safra ruim. chegamos à conclusão de que deveríamos
dos movimentos de corpos celestes, da No sul do Brasil, por exemplo, o apare- substituir o planeta Vênus por estrela do
maturação de plantas benéficas e do cimento da estrela Deneb (da constelação amanhecer ou estrela do anoitecer, as Plê-
padrão de acasalamento de animais. Em do Cisne) no horizonte, ao anoitecer, indica iades por Sete-Estrelo e a Via Láctea por
cada caso, a visibilidade de uma estrela que o plantio do milho deve ser iniciado, e Caminho de Santiago.
ou constelação estava sincronizada com quando a estrela Capella (da constelação da Logo a seguir, solicitamos que ele nos
o comportamento de uma determinada Auriga) aparece no horizonte, ao anoitecer, explicasse como utilizava o conhecimento
espécie vegetal ou animal. indica o começo da colheita do milho. do céu para caçar. Entre suas explicações,
Na África, o Cruzeiro do Sul anunciava Essas duas estrelas brilhantes pertencem à disse que se orientava pelo Caminho de
o tempo de preparar o solo, plantar e colher, Via- Láctea e esses dois eventos ocorrem, Santiago e que, para caçar o tatu, por
assim como para os indígenas do Brasil. respectivamente, no início dos meses de exemplo, deveria esperar que ele viesse
De acordo com diversas etnias africanas, a setembro e de janeiro. na direção em que se encontrava a Lua,
constelação do Cruzeiro do Sul é a “Árvore O conhecimento dos agricultores é tendo em vista que o tatu é tão arisco que se
da Vida”, “a constelação mais sagrada”. Ela necessariamente local, uma vez que deriva assusta com sua própria sombra. Graças ao
e as duas estrelas brilhantes consideradas da experiência direta dos processos de tra- caçador, a palestra foi um sucesso.Alguns
as “guardiãs do cruzeiro” (Alfa Centauro balho, os quais são formados e delimitados anos depois, em 1999, juntamente com
e Beta Centauro) são conhecidas, fre- pelas diferentes características de um meio uma equipe do Planetário do Pará (Uepa),

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Etnoastronomia na Escola
A história do intercâmbio dos co-
nhecimentos astronômicos dos povos
indígenas e africanos no Brasil pode
servir de mote para despertar o interesse
PHECDA ALKAID das crianças pelo assunto, uma vez que
está ligada ao passado de muitas delas.
A etnoastronomia pode contribuir para
aperfeiçoar o ensino-aprendizagem no en-
MEGREZ ALIOTH MIZAR
sino fundamental, pois envolve conteúdos
das áreas de ciências e geografia. Através
da observação do céu, o aluno encontra
respostas para os fenômenos naturais.
Em uma noite estrelada, ele identificará,
facilmente, as principais constelações, os
pontos cardeais e a estação do ano. A etno-
astronomia ajudará, também, na capacida-
pesquisamos sobre a astronomia dos pes- ou seja, aproximadamente para o ponto de de abstração, no senso de integração
cadores do município de Vigia, um dos cardeal norte, nas regiões perto da linha com a Natureza, no desenvolvimento da
mais antigos daquele estado. Os primeiros do equador. Além disso, os pescadores verbalização, na capacidade narrativa e na
moradores foram os índios tupinambás, se orientam através do prolongamento do articulação de enredos.
que ergueram no local a aldeia Uruitá. Vigia braço maior da constelação do Cruzeiro Devemos ressaltar o valor peda-
se limita ao norte com o oceano Atlântico do Sul para encontrar o ponto cardeal sul gógico do ensino de etnoastronomia,
e é um importante centro pesqueiro. De e voltar para Vigia. Na pesca da gurijuba principalmente a dos indígenas e a dos
acordo com o período de chuva ou de seca (Arius parkeri), o peixe mais tradicional afro-brasileiros, para os alunos do ensino
(estações do ano), dos ventos e das fases da da região, os pescadores utilizam um fundamental de todo o Brasil, por se
Lua, os pescadores sabem a espécie que calendário lunissolar. Eles pescam essa tratar de uma astronomia baseada em
eles têm maior possibilidade de pescar. espécie principalmente entre as fases de elementos sensoriais (como as Plêiades
Além disso, usam algumas constelações lua minguante para a nova, nos meses de e Via Láctea), e não em elementos
para se orientar no mar. Por exemplo, eles outubro e novembro. A cidade encanta os geométricos e abstratos, e também por
nos mostraram a constelação do Barco turistas com o “festival da gurijuba”, que fazer alusão a elementos da nossa Natu-
que lhes indica a posição do ponto cardeal ocorre em novembro. reza (sobretudo fauna e flora) e história,
Norte. É interessante notar que os indí- Esses exemplos mostram a importân- promovendo auto-estima e valorização
genas tembés, da fronteira do Pará com o cia da pesquisa do conhecimento empírico dos saberes antigos, salientando que as
Maranhão, nos mostraram uma conste- de diversas comunidades brasileiras, que diferentes interpretações da mesma re-
lação chamada Canoa, constituída pelas pode contribuir para o conhecimento gião do céu, feitas por diversas culturas,
seguintes estrelas da constelação ocidental formal, auxiliando no desenvolvimento auxiliam na compreensão das diversida-
da Ursa Maior: Phecda, Megrez, Alioth, sustentável e na redução da pobreza. des culturais.
Mizar e Alkaid. Quando a constelação da
Canoa é visível paralelamente à linha do
horizonte, os tembés sabem que a estrela Germano Afonso é coordenador do projeto Planetário-Observatório Indígena Itinerante
Phecda se encontra sobre o ponto cardeal da Universidade Federal do Paraná. Doutor em astronomia pela Universidade de Paris VI, fez
norte. A constelação do Barco é apenas pesquisas de forças não-gravitacionais em asteróides e satélites artificiais. Ganhou, em 1991, o
uma complementação da Canoa, onde prêmio Paranaense de Ciência e Tecnologia e, em 2000, o prêmio Jabuti, na categoria “Melhor livro
didático”, com a equipe do Planetário do Pará - Uepa, com o livro O céu dos índios tembé.
os pescadores acrescentaram o mastro e a
vela. O mastro da constelação do Barco é
formado pela reta que une as estrelas Cor PARA CONHECER MAIS
Caroli (da constelação Canes Venatici) e Etnoastronomia dal Brasile. Germano Afonso. Le Stelle, no 19, págs. 84 a 86, 2004.
Alioth. Ele aponta para o pólo celeste norte, Stars and seasons in Southern Africa. Keith Snedegar. Vistas in Astronomy, no 39, págs. 529 a 538, 1995.

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