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Resenha da aula 14 da disciplina do GT Identidade, Alteridade e Resistência

Thais de Bakker

Abdias do Nascimento descreve o Quilombismo da seguinte maneira:

Quilombo does not mean escaped slave, as the conventional definitions say. It
means fraternal and free reunion, or encounter; solidarity, living together,
existential communion. Quilombist society represents an advanced stage in
sociopolitical and human progress in terms of economic egalitarianism. Known
historical precedents confirm this position. As an economic system, Quilombismo
has meant the adaptation of African traditions of communitarinism and/or Ujamaa
to the Brazilian environment. In such a system, relations of production differ
basically from those that prevail in the capitalist economy, based on the
exploitation and social degradation of work, founded on the concept of profit at
any human cost, particularly the cost of the lives of enslaved Africans (do
Nascimento, p.161).

Na concepção do autor, o Quilombismo se trata de uma resistência nuclear a estruturas


profundas e míticas de dominação branca no cenário pós-colonial do Brasil. Essa dominação,
entranhada às estruturas precarizantes do capitalismo, resulta em um cenário de profunda
segregação espacial e econômica das negras e negros no país. O mito da superioridade da raça
branca, que imigrantes europeus pobres rapidamente compraram como ideologia própria, foi
eventualmente substituído pelo mito da democracia racial, este responsável por negar os fatos do
racismo segregacionista na sociedade brasileira e, então, fazer predominar o pressuposto de que
todos somos iguais, um recalcamento fundamental da realidade observável para os oprimidos: a
de que história e cultura inserem diferenças em corpos e coletivos, e que a política traduz essa
diferença como a submissão inevitável de uns em relação a outros. Mas não há, de maneira alguma,
uma condição de vitimização permanente nos povos negros e indígenas das Américas – o
Quilombismo é a demonstração de que herança e memória frequentemente entram em conjunção
para produzir novos modos de vida coexistindo visível ou invisivelmente dentro do berço da
hegemonia, fruto da mais pura necessidade de preservação da vida e da dignidade dela.

A definição de Quilombismo fornecida por Abdias do Nascimento permite que


visualizemos o Brasil como um cenário onde forças assimétricas estão em constante disputa: se
uma hegemonia cultural, política, econômica e ideológica tenta se forçar sobre todas as partes
integrantes do território brasileiro (e talvez mesmo latinoamericano como um todo, apesar de este
não ser o escopo do estudo de Nascimento), pequenas bolhas de alteridade coletiva formam-se
internamente a ele, criando mundos paralelos que tentam florescer como vida viável ao mesmo
tempo em que devem proteger-se das constantes tentativas aniquilação física e subjetiva. O
Quilombismo faz nascer uma solidariedade baseada em história, cultura e necessidade
compartilhadas, além de levar à frente uma concepção de trabalho que, ao contrário da degradação
descrita por Marx, é beneficial e necessária para o bem-estar de dada comunidade que enfrenta
grandes dificuldades; o sistema econômico que observa-se nos quilombos é fundamentalmente
diferente do predatório capitalismo, e o individualismo que este prega dissolve-se frente aos laços
sociais sem os quais nenhum Quilombo poderia existir, tendo em vista sua condição de
marginalidade.

O Quilombo não se trata de um romântico mundo ideal, pelo contrário: é o fruto de uma
condição de precarização extrema e de adversidade constante, mas, ao mesmo tempo, por criar
modos de vida divergentes, é também a chave para um horizonte futuro de democracia radical
baseada no resgate daquilo que já existiu e na criatividade necessária para gerar novas formas de
lidar com o que se apresenta como dificuldade presente. Nesse sentido o Quilombismo articula-se,
também, com o movimento panafricanista que Muryatan Santana Barbosa descreve, este também
surgido a partir de um cenário de profunda opressão, visando um futuro de emancipação em relação
a essas condições. A partir do panafricanismo, não apenas surgiram vertentes teóricas que quebram
com o vazio do universalismo eurocêntrico, mas também emergiram movimentos culturais que
deram origem a núcleos de resgate de memória e de compartilhamento por meio de música, dança
e outras formas de arte. Desse modo, ambos o Quilombismo e o panafricanismo apresentam-se
como movimentos globais, porque atravessam a limitação das fronteiras estatais e nacionais para
pensar uma condição que é compartilhada através de espaços e tempos diferentes. Eles permitem
uma visualização do mundo não como um conjunto de unidades independentes (Estados-nação)
que conectam-se através de economia e instituições, mas sim como fluxos hegemônicos que
partem do Ocidente, incorporando muitos outros territórios e que acabam criando pequenos
núcleos de resistência interna a Estados-nação, bem como tentativas de emancipação em larga
escala.
Ngcoya, por outro lado, apresenta a filosofia Ubuntu como forma de atualizar e
democratizar o cosmpolitismo kantiano, comum na área das Relações Internacionais. A definição
de Ubuntu que ele mobiliza é a seguinte:

The major concern in ubuntu thought is what it means to be a human being.


The definition of a human being is captured in this simple philosophical
expression: Umuntu umuntu ngabantu (a person is a person because of/by/
through other people). Ubuntu stresses the importance of community,
altruism, solidarity, sharing and caring. This worldview advocates a
profound sense of interdependence and emphasizes that our true human
potential can only be realized in partnership with others. It censures the
obscenity of greed and materialism and the insanity of the idea of a rugged,
sovereign individual. Instead, ubuntu advocates respect, reciprocity,
hospitality, and connectedness as providing the ethical foundations of a just
society (p.253).

Segundo o autor, a filosofia Ubuntu pode ser útil para que a ideia do cosmopolitismo
também pare de se amparar em uma individualidade radical e em uma universalidade vazia que
apaga o peso do local e das raízes que este evoca. Assim, escreve que:

Cosmopolitan thought needs to similarly give a brick-by-brick account of


the origins of its building blocks. It is difficult to see how the cosmopolitan
construction of global justice, equality, and perpetual peace can possibly
take place without “clearing up the encumbrances of the past” (Mignolo
2000:736). To deal with these encumbrances of the past requires dealing
with alternative conceptions of the world. The problem, however, is that
conventional cosmopolitan conceptions of IR have trouble engaging with
worldviews and conceptions coming from indigenous peoples. This is
understandable given the conceptual history of cosmopolitanism.

Enquanto a definição de Ubuntu que o autor fornece é muito parecida com os princípios
predominantes no Quilombismo de Nascimento, o movimento dialético de Ngcoya para com a
filosofia Ocidental me parece pretensamente menos radical do que o Quilombismo – Abdias do
Nascimento é explícito em afirmar a necessidade de saberes teóricos partindo exclusivamente dos
povos negros e indígenas para que o conhecimento humano possa dar conta da particularidade
dessas experiências, bem como afirma que atualizações do capitalismo neoliberal e de sua filosofia
jamais poderão de fato levar à emancipação de grupos subalternos, no máximo procrastinando esse
feito. Ambos esses movimentos, no entanto, parecem dialogar com vertentes diferenciadas do
panafricanismo, e todos compartilham de um mesmo diagnóstico: não é possível mais ignorar as
particularidades de uma série de experiências de opressão no fazer político global, porque esse ato
de invisibilização da base apenas serve ao fim de perpetuar formas históricas e profundas de
opressão e segregação.

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