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O CORPO NEGRO COMO SIMBOLO DE RELIGIOSIDADE DO

CANDOMBLÉ E SIGNO DE RESISTENCIA NA LITERATURA AFRO-


BRASILEIRA

Alessandra Maria da Silva Gomes1

As reflexões desenvolvidas a partir da Disciplina de Tópicos em linguagem e etnicidade


do programa de Formação Transversal em Relações Raciais da Faculdade de Educação,
sob a Coordenação do Prof. Marcos Antônio Alexandre, da Faculdade de Letras da
UFMG, cujo tema foi “Corpo e Espaço na Literatura Afro-brasileira: contos de Nei
Lopes, Lia Vieira e Conceição Evaristo” possibilitaram, como requisito parcial para
conclusão da disciplina, a elaboração desta Resenha Crítica. Pensando o corpo como
espaço e território e correlacionando os papeis sociais do negro na contemporaneidade,
procura-se traçar um paralelo entre a filosofia Yorubá presente na religiosidade do
Candomblé e a produção literária afro-brasileira, a partir do movimento de análise do
corpo como instrumento de (re) significação que reforça a importância desta Literatura
como espaço de denúncia e resistência.

Palavra chave: literatura afro-brasileira. Corpo. Candomblé. Preconceito. Racismo.

Introdução

Ao considerar o corpo como espaço ou território privilegiado de interconexão entre a


natureza e a cultura, vislumbra-se sua pertença ao mundo natural e social, biológico,
fisiológico e simbólico. Esta perspectiva leva a conceber o corpo como uma construção
ocorrida no tempo e no espaço não podendo, portanto, serem ignoradas as percepções
tangentes a suas dimensões pessoal, social e cultural. Desta forma, correlacionando o
corpo, o espaço e a religião do candomblé, faz-se necessário, a compreensão das
relações construídas a partir do entendimento religioso do corpo como espaço sagrado
dentro da cultura Yorubá. Assim, na busca pelo entendimento da mensagem e da
linguagem corporal, o simbolismo do corpo pode se apresentar como instrumento para
compreensão da comunicação do homem com o divino.

O corpo na filosofia Yorubá


Na filosofia Yorubá, contida na religiosidade do candomblé, o corpo (ara) se apresenta
como elemento de ligação entre o humano e o sagrado ao se constituir como espaço de
transmissão do princípio vital responsável pelo equilíbrio, o asé, sendo necessário
discorrer sobre sua constituição física.

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação e Formação Humana da
Universidade do Estado de Minas Gerais e orientanda do Prof. Dr. José Eustáquio de Brito. E-mail:
alessandra@medicina.ufmg.br
Assimilado como o templo sagrado, o corpo é denominado Ará. Em sua divisão
encontra-se Okan, o coração que se apresenta como sede de inteligência e de
pensamento. Sede de ações que proporcionam a formação do caráter, ou seja, a própria
alma (espírito, vida). Alma que antes de se nascer no mundo físico é conhecida como
Èmí, em uma forma generalizada, e que, após o nascimento, ao individualizar o ser, é
chamada de Okan, se mostrando então como símbolo dos sentimentos.
O corpo ainda contém em sua formação o Èémí, respiração ou sopro vital divino que
representa o “ser”, ou aquilo que se configura como ausente ao término da vida
corpórea.
O Ori, a cabeça, constitui o “Eu” visível e invisível, de ordem material e imaterial na
formação do ser humano. Cabeça que é escolhida, segundo os mitos, no Òrun (céu),
pelo próprio individuo, antes mesmo deste seguir para o Àiyé (terra). É através da
escolha do Orí que o individuo define também seu destino. Destino que pode ser
modificado pelo iwá, caráter, que ajusta as vontades, escolhas e ações do ser humano.
No corpo, o Orí tem grande importância porque ao adoecer ou desestabilizar, pode
fragilizar ou danificar as outras partes.
Por esta percepção tem-se uma visão do território misterioso do imaginário e do sagrado
contidos no corpo humano em um sistema de reconhecimento da riqueza simbólica e
espiritual vinculados ao espaço corporal.
Torna-se relevante pensar a construção da sensibilidade da corporeidade, entendendo
então, o corpo, como manifestação estética da cultura do candomblé, uma vez que
dentro do ritual, este se apresenta como referência e também elemento estruturante desta
religiosidade. O corpo, no candomblé é concebido como um espaço que pelo
cumprimento dos ritos e rituais é constantemente mantido em condições de se tornar
receptáculo da divindade.
Desta maneira, a experiência corporal pode ser o ponto de partida para analisar a
participação humana no mundo cultural, pois, a corporeidade e tudo imbricado a ela,
nesta religiosidade, se torna um valioso instrumento da memória simbólica. Um
elemento constituidor de visualidade capaz de agir como ato reflexivo ao direcionar
para a cultura como modus vivendi e não somente como conjunto de costumes. Desta
forma, no sistema do candomblé, o corpo é articulado com a identidade e a memória
estando além do princípio de especificidades biológicas ou funções fisiológicas.
Em um contexto de aproximação das relações de sentido e de significações, ao ser
interpretado em sua “materialidade simbólica” o corpo é situado em um “terreno social
e subjetivamente conflitivo” conforme afirma a Profa. Nilma Lino Gomes (2006, p.261)
no trabalho Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolo de identidade negra.
Frente ao exposto, ao considerar as impressões sociais, histórica, estéticas e culturais
dos corpos marcados pelas agruras e amarguras vivenciadas no período da diáspora
africana no Brasil – período também do surgimento do candomblé - articula-se com
debates relativos às Relações Etnico2-Raciais, visto o racismo religioso impetrado
contra esta religiosidade estar associado a sua gênese negra.
Assim, em um movimento de reflexão e análise da situação social subjacente à
contemporaneidade, tem-se reveladas concepções teóricas que pode constituir-se em
obstáculos, que associadas a significados ideológicos referendam atitudes de
preconceito, discriminação e racismo desencadeando um processo de violência física e
simbólica.
Neste contexto, o corpo humano, determinado pelas marcas dos valores sociais,
cumprindo então uma função ideológica imposta, funciona como garantia ou não da
integridade de um indivíduo que em virtude de sua aparência é considerado capaz ou
não, digno ou não, em uma posição antagônica ao conhecimento proporcionado pela
filosofia Yotubá propagada no ambiente da religiosidade do candomblé.
O corpo socialmente concebido se apresenta, portanto, como signo subordinado a
concepções relacionadas a padrões estéticos, às regras sociais e códigos de
comportamento moral estabelecidos por um sistema sociocultural dominante. Sendo
negro é retirado de sua condição humana, subalternizado e inferiorizado ocupando um
local de incômodo na sociedade brasileira.
A dignidade ligada ao corpo negro sempre esteve vinculada a uma construção
imaginária cujo processo de enfrentamento e conflitos de identidade são ocasionados
pelo racismo, inclusive religioso.

A literatura Afro-brasileira em defesa do corpo negro

Desta mesma forma, também na literatura brasileira, o corpo negro foi tratado como
“coisa” e desprovido e qualquer subjetividade, aparecendo simplesmente como objeto a

2
De acordo com Munanga (2003, p. 12), em um mesmo grupo (de raça branca, negra ou amarela) pode
haver várias etnias em sua composição, isto é, “uma etnia é um conjunto de indivíduos que, histórica ou
mitologicamente, têm um ancestral comum; têm uma língua em comum, uma mesma religião ou
cosmovisão; uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território”. Desta forma
utilizamos, neste trabalho, a expressão “relações étnico-raciais” quando nos referirmos às relações sociais
baseadas na condição de raça ou etnia, compreendendo, desta forma, as duas categorias.
ser descrito. Nas escapadelas do silenciamento proposital e imposto pela literatura
restrita aos grupos de poder, na escassa representação destes corpos negros, o
estereótipo apresentado, marca a reprodução de imagens depreciativas ligadas à
violência, a falta de dom de linguagem ou mesmo a ignorância que torna estes
indivíduos incapazes de aprendizagem.
Todavia, em um movimento de valorização e de combate a este silenciamento, surge
como instrumento de resistência e expressão, a literatura feita por negros, que apesar da
tentativa de imposição imposta pelo regime escravocrata, que evidencia uma linha
divisória entre os lugares ocupados por negros e branco, promove um diálogo simbólico
com a herança ancestral ao compor e recompor outras formas de representações
literárias.
Dessarte, no universo de contos elaborados pela literatura afro-brasileira, o indivíduo
negro que vive no cotidiano das comunidades humildes, marginalizado pela cidade, é
retratado e tem sua involução sofrida denunciada nas obras de autoria de Nei Lopes, Lia
Vieira e Conceição Evaristo e demais autores afro-brasileiros.
De forma poética e com muita propriedade, estes autores expõem a face oculta do modo
de produção escravista, que muitas vezes, se apresenta como responsável pelo processo
miscigenador característico da formação do povo brasileiro. Em seus textos, aparecem
universos epistemológicos diversos que dão vozes aos corpos negros e suas experiências
sociais, culturais, afetivas e religiosas.
Contando histórias até então nunca narradas, os autores afro-brasileiros potencializam a
força contida nos corpos negros que para além do caráter biológico, são afetados pela
classe, cultura, religião e outras intervenções sociais. Esta literatura cumpre assim, a
função ideológica de procura por valorização dos conjuntos de atributos que
caracterizam a imagem destes indivíduos e consequentemente de seus corpos
marginalizados. Buscam desvencilhar o corpo negro das marcas de racialização, e
sexualização que proporcionaram efeitos devastadores na trajetória social dos
afrodescendentes.
Desta forma, o corpo negro lido não mais pela ótica do discurso colonial e racial
brasileiro, apresenta-se como um corpo ativo, dotado de uma ação, que reage ao
processo de submissão e subalternação construído pelos textos literários elaborados até
então. Neste parâmetro ao fugir da condição imposta pela cultura dominante, de mero
objeto manipulável, estes corpos, nas vozes dos escritores afro-brasileiros se
estabelecem como malha social, política, cultural e religiosa em um entrelaçamento não
somente de raça, mas também de credo.

Conclusão

No processo de exclusão e violência, a literatura afro-brasileira ainda procura intervir na


formação das imagens sedimentadas a respeito dos diversos corpos. A partir das
experiências coletivas de ressignificação cultural, social e porque não, religiosa, a
consciência negra contida nestes textos proporciona a busca pelo resgate de valores
próprios que somente se faz possível pelo reconhecimento da existência de uma
memória que está imbricada a formação do sujeito e as informações armazenadas por
seus corpos, tanto individual, quanto coletivo.

Ao serem reconhecidos e integrados a seus grupos, os indivíduos como portadores de


símbolos, conseguem identificar seus papeis sociais. Embora, as consequências da
diáspora negra, aparecerem também na escrita, vê-se na literatura afro-brasileira não
apenas a representação de corpos negros, ou de postulados sobre a vida, mas, sobretudo,
a permanência e ressignificação de um conjunto de saberes e fazeres, que reverberam na
construção das identidades destes, em conformidade com as atitudes e valores também
encontrados na religiosidade do candomblé que entendem o corpo como um espelho
cujo divino é personificado. Pode-se afirmar, portanto, em uma analise da literatura
afro-brasileira associada à filosofia Yorubá contida na religiosidade do candomblé, que
na obra dos autores acima citados encontra-se o fio condutor do Asé e o respeito aos
seus princípios vindo atender uma necessidade impressa em uma dinâmica funcional de
continuidade do fluxo de energia vital. Energia que precisa ser mantida, alimentada e
expandida para proporcionar o equilíbrio necessário entre os diversos corpos para que
exista um equilíbrio universal. Todavia, o Asé contido nesta literatura não deve ser
acumulado ou restringido e sim deve circular, ser mantido e distribuído para todos os
indivíduos em um fenômeno de reconhecimento destas obras e de sua importância para
a valorização e dignificação do corpo negro.

REFERÊNCIAS:

BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. 2 ed. São Paulo: Pioneira, 1985.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolo de identidade
negra. Belo Horizonte. Autentica, 2006.
LOPES, Nei. 20 Contos e uns Trocados. 2006, editora Record, RJ.
MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e
etnia. Palestra proferida no 3º Seminário Nacional Relações Raciais e Educação-
PENESB-RJ, em 5 nov. 2003

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