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Introdução
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Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação e Formação Humana da
Universidade do Estado de Minas Gerais e orientanda do Prof. Dr. José Eustáquio de Brito. E-mail:
alessandra@medicina.ufmg.br
Assimilado como o templo sagrado, o corpo é denominado Ará. Em sua divisão
encontra-se Okan, o coração que se apresenta como sede de inteligência e de
pensamento. Sede de ações que proporcionam a formação do caráter, ou seja, a própria
alma (espírito, vida). Alma que antes de se nascer no mundo físico é conhecida como
Èmí, em uma forma generalizada, e que, após o nascimento, ao individualizar o ser, é
chamada de Okan, se mostrando então como símbolo dos sentimentos.
O corpo ainda contém em sua formação o Èémí, respiração ou sopro vital divino que
representa o “ser”, ou aquilo que se configura como ausente ao término da vida
corpórea.
O Ori, a cabeça, constitui o “Eu” visível e invisível, de ordem material e imaterial na
formação do ser humano. Cabeça que é escolhida, segundo os mitos, no Òrun (céu),
pelo próprio individuo, antes mesmo deste seguir para o Àiyé (terra). É através da
escolha do Orí que o individuo define também seu destino. Destino que pode ser
modificado pelo iwá, caráter, que ajusta as vontades, escolhas e ações do ser humano.
No corpo, o Orí tem grande importância porque ao adoecer ou desestabilizar, pode
fragilizar ou danificar as outras partes.
Por esta percepção tem-se uma visão do território misterioso do imaginário e do sagrado
contidos no corpo humano em um sistema de reconhecimento da riqueza simbólica e
espiritual vinculados ao espaço corporal.
Torna-se relevante pensar a construção da sensibilidade da corporeidade, entendendo
então, o corpo, como manifestação estética da cultura do candomblé, uma vez que
dentro do ritual, este se apresenta como referência e também elemento estruturante desta
religiosidade. O corpo, no candomblé é concebido como um espaço que pelo
cumprimento dos ritos e rituais é constantemente mantido em condições de se tornar
receptáculo da divindade.
Desta maneira, a experiência corporal pode ser o ponto de partida para analisar a
participação humana no mundo cultural, pois, a corporeidade e tudo imbricado a ela,
nesta religiosidade, se torna um valioso instrumento da memória simbólica. Um
elemento constituidor de visualidade capaz de agir como ato reflexivo ao direcionar
para a cultura como modus vivendi e não somente como conjunto de costumes. Desta
forma, no sistema do candomblé, o corpo é articulado com a identidade e a memória
estando além do princípio de especificidades biológicas ou funções fisiológicas.
Em um contexto de aproximação das relações de sentido e de significações, ao ser
interpretado em sua “materialidade simbólica” o corpo é situado em um “terreno social
e subjetivamente conflitivo” conforme afirma a Profa. Nilma Lino Gomes (2006, p.261)
no trabalho Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolo de identidade negra.
Frente ao exposto, ao considerar as impressões sociais, histórica, estéticas e culturais
dos corpos marcados pelas agruras e amarguras vivenciadas no período da diáspora
africana no Brasil – período também do surgimento do candomblé - articula-se com
debates relativos às Relações Etnico2-Raciais, visto o racismo religioso impetrado
contra esta religiosidade estar associado a sua gênese negra.
Assim, em um movimento de reflexão e análise da situação social subjacente à
contemporaneidade, tem-se reveladas concepções teóricas que pode constituir-se em
obstáculos, que associadas a significados ideológicos referendam atitudes de
preconceito, discriminação e racismo desencadeando um processo de violência física e
simbólica.
Neste contexto, o corpo humano, determinado pelas marcas dos valores sociais,
cumprindo então uma função ideológica imposta, funciona como garantia ou não da
integridade de um indivíduo que em virtude de sua aparência é considerado capaz ou
não, digno ou não, em uma posição antagônica ao conhecimento proporcionado pela
filosofia Yotubá propagada no ambiente da religiosidade do candomblé.
O corpo socialmente concebido se apresenta, portanto, como signo subordinado a
concepções relacionadas a padrões estéticos, às regras sociais e códigos de
comportamento moral estabelecidos por um sistema sociocultural dominante. Sendo
negro é retirado de sua condição humana, subalternizado e inferiorizado ocupando um
local de incômodo na sociedade brasileira.
A dignidade ligada ao corpo negro sempre esteve vinculada a uma construção
imaginária cujo processo de enfrentamento e conflitos de identidade são ocasionados
pelo racismo, inclusive religioso.
Desta mesma forma, também na literatura brasileira, o corpo negro foi tratado como
“coisa” e desprovido e qualquer subjetividade, aparecendo simplesmente como objeto a
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De acordo com Munanga (2003, p. 12), em um mesmo grupo (de raça branca, negra ou amarela) pode
haver várias etnias em sua composição, isto é, “uma etnia é um conjunto de indivíduos que, histórica ou
mitologicamente, têm um ancestral comum; têm uma língua em comum, uma mesma religião ou
cosmovisão; uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território”. Desta forma
utilizamos, neste trabalho, a expressão “relações étnico-raciais” quando nos referirmos às relações sociais
baseadas na condição de raça ou etnia, compreendendo, desta forma, as duas categorias.
ser descrito. Nas escapadelas do silenciamento proposital e imposto pela literatura
restrita aos grupos de poder, na escassa representação destes corpos negros, o
estereótipo apresentado, marca a reprodução de imagens depreciativas ligadas à
violência, a falta de dom de linguagem ou mesmo a ignorância que torna estes
indivíduos incapazes de aprendizagem.
Todavia, em um movimento de valorização e de combate a este silenciamento, surge
como instrumento de resistência e expressão, a literatura feita por negros, que apesar da
tentativa de imposição imposta pelo regime escravocrata, que evidencia uma linha
divisória entre os lugares ocupados por negros e branco, promove um diálogo simbólico
com a herança ancestral ao compor e recompor outras formas de representações
literárias.
Dessarte, no universo de contos elaborados pela literatura afro-brasileira, o indivíduo
negro que vive no cotidiano das comunidades humildes, marginalizado pela cidade, é
retratado e tem sua involução sofrida denunciada nas obras de autoria de Nei Lopes, Lia
Vieira e Conceição Evaristo e demais autores afro-brasileiros.
De forma poética e com muita propriedade, estes autores expõem a face oculta do modo
de produção escravista, que muitas vezes, se apresenta como responsável pelo processo
miscigenador característico da formação do povo brasileiro. Em seus textos, aparecem
universos epistemológicos diversos que dão vozes aos corpos negros e suas experiências
sociais, culturais, afetivas e religiosas.
Contando histórias até então nunca narradas, os autores afro-brasileiros potencializam a
força contida nos corpos negros que para além do caráter biológico, são afetados pela
classe, cultura, religião e outras intervenções sociais. Esta literatura cumpre assim, a
função ideológica de procura por valorização dos conjuntos de atributos que
caracterizam a imagem destes indivíduos e consequentemente de seus corpos
marginalizados. Buscam desvencilhar o corpo negro das marcas de racialização, e
sexualização que proporcionaram efeitos devastadores na trajetória social dos
afrodescendentes.
Desta forma, o corpo negro lido não mais pela ótica do discurso colonial e racial
brasileiro, apresenta-se como um corpo ativo, dotado de uma ação, que reage ao
processo de submissão e subalternação construído pelos textos literários elaborados até
então. Neste parâmetro ao fugir da condição imposta pela cultura dominante, de mero
objeto manipulável, estes corpos, nas vozes dos escritores afro-brasileiros se
estabelecem como malha social, política, cultural e religiosa em um entrelaçamento não
somente de raça, mas também de credo.
Conclusão
REFERÊNCIAS:
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. 2 ed. São Paulo: Pioneira, 1985.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolo de identidade
negra. Belo Horizonte. Autentica, 2006.
LOPES, Nei. 20 Contos e uns Trocados. 2006, editora Record, RJ.
MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e
etnia. Palestra proferida no 3º Seminário Nacional Relações Raciais e Educação-
PENESB-RJ, em 5 nov. 2003