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Ferramentas Convivenciais para a Gestão do Turismo de Base


Comunitária em Reservas Extrativistas na Amazônia1

Edilaine Albertino de Moraes2


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo: O desenvolvimento de alternativas inovadoras de um tipo de turismo, que


internalize a variável local, envolvida como elemento central de planejamento, vem
sendo discutida como uma possibilidade de uso múltiplo da floresta pelos moradores de
Reservas Extrativistas na Amazônia. Neste cenário, é proposto o turismo de base
comunitária (TBC), por partir do pressuposto que, a interpretação do olhar de quem vive
no local, reconhecido e valorizado como protagonista das mudanças ocorridas no lugar
que lhe “pertence”, é essencial para obtenção de êxito. Para tal, propõe-se pensar em
ferramentas convivenciais para legitimar o diálogo entre a população local no processo
de discussão e tomada de decisão no desenvolvimento do turismo de base comunitária.
Com este intuito, este trabalho objetiva discutir as ferramentas de gestão do turismo de
base comunitária, a partir do estudo de caso da Reserva Extrativista do Cazumbá-
Iracema (Acre-Brasil), sob caráter exploratório e abordagem qualitativa. Os principais
resultados obtidos revelaram que os moradores locais entendem o TBC como
potencialidade para o desenvolvimento local, em longo prazo. Mas para tal, é ainda
necessário um maior investimento na mobilização e organização, para que esta prática
seja implementada e legitimada, a partir da decisão coletiva e controle das ações
empreendidas, com o compromisso de sustentabilidade.
Palavras-chave: Ferramenta Convivencial, Sítio Simbólico do Pertencimento; Turismo
de Base Comunitária; Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema; Amazônia.

1. Contextualizando o tema

                                                            
1
Trabalho apresentado ao GT- 10 - Gestão e Estudo dos Impactos do Turismo do VI Seminário de Pesquisa em
Turismo do MERCOSUL – Caxias do Sul, 9 e 10 de julho de 2010.
2
Graduada em Turismo (UFJF), Mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (Programa
EICOS/IP/UFRJ), e Doutoranda em Engenharia de Produção (COPPE/UFRJ). Atualmente é Pesquisadora do Grupo
de Pesquisa "Biodiversidade, Áreas Protegidas e Inclusão Social" (GAPIS/EICOS/UFRJ) e do Instituto Virtual de
Turismo (IVT/LTDS/UFRJ). E-mail: edilainerumos@yahoo.com.br.


 
 

A busca por modelos de desenvolvimento para a Amazônia brasileira, que


conciliem crescimento econômico, equidade social e conservação da biodiversidade
constitui um importante desafio, no plano nacional e também global, diante de um
modelo de desenvolvimento, baseado na economia capitalista e globalizada, e de
interesses e ações conflituosas, em diferentes escalas geográficas. Neste sentido, a busca
pelo modelo de desenvolvimento da Amazônia brasileira se constitui em uma prioridade
política, havendo consenso entre os socioambientalistas de que novos modelos, ciências
e tecnologias, que considerem a importância do patrimônio natural e cultural da região,
sejam os melhores caminhos para o seu desenvolvimento (BECKER, 2005).
Com este objetivo, importantes iniciativas estão em curso, na busca de
alternativas para a superação dos problemas identificados na região, que incluem a
baixa escolaridade, limitadas oportunidades para o desenvolvimento econômico,
limitações de acesso às novas tecnologias de produção, dificuldade de escoamento de
produtos locais, carência de infra-estrutura básica, conflitos de terra e ausência de
políticas públicas direcionadas às demandas de desenvolvimento local.
Neste sentido, as populações tradicionais da Amazônia se tornam protagonistas no
processo, uma vez que tem seu modo de vida, baseado em um modelo de ocupação do
espaço e uso dos recursos naturais voltados, principalmente, para sua subsistência e uso
de tecnologias de baixo impacto, geradas e transmitidas pela tradição local (ARRUDA,
1999). Dentre os grupos reconhecidos como populações tradicionais, os seringueiros, na
busca pela superação destas dificuldades, em especial o conflito pela posse da terra, se
mobilizaram para a criação de Reservas Extrativistas (RESEXs), na década de 1980,
sendo essas categorizadas como Unidades de Conservação (UCs) de Uso Sustentável
(BRASIL, 2000), baseadas na economia extrativista, que orienta o uso múltiplo dos
recursos florestais.
A proposta de Reserva Extrativista se originou no Movimento Seringueiro e foi
concebida sob a lógica de integração sociedade e natureza. Este modelo de ocupação do
território busca o uso racional dos recursos naturais renováveis e a proteção dos modos
de vida e da cultura das populações tradicionais, sendo esse defendido por vários
segmentos da sociedade civil organizada, como uma das alternativas para o
desenvolvimento social, econômico, cultural e ecológico da Amazônia.
Mas embora no contexto atual, a importância de populações tradicionais para a
conservação da biodiversidade e para a manutenção de serviços ambientais tenha
reconhecimento global, a consolidação do modelo RESEX exige ainda a superação de


 
 

inúmeros desafios. A consolidação dessa categoria de manejo de UC está diretamente


relacionada à sua viabilidade econômica e à capacidade do extrativismo em garantir
qualidade de vida às populações locais. Para tal, a implementação efetiva das RESEXs
requer novas alternativas econômicas e tecnologias conjugadas a estudos de mercado,
que agreguem valor às suas práticas tradicionais e conservem o patrimônio natural
regional. Porém, são ainda limitados os financiamentos que apóiem as cadeias
produtivas extrativistas e, além disso, o processo de implementação de uma RESEX é
lento e dependente de organização social e política, e para o seu êxito, esse deve estar
também associado a garantias de implantação de serviços essenciais, que ainda são
precários na maioria das RESEXs, como saúde e educação básica (ALLEGRETTI,
1994).
Neste sentido, desde o surgimento das RESEXs, várias tentativas de
implementação de alternativas econômicas têm sido fomentadas para o seu
desenvolvimento, em alguns casos com êxito. Mas, para o êxito de iniciativas dessa
natureza, Murrieta e Rueda (1995) esclarecem que o uso múltiplo da floresta, por meio
do aproveitamento de toda potencialidade de sua biodiversidade constitui o ponto-chave
para a integridade desta categoria de manejo de UC. Com este intuito, uma
possibilidade de uso múltiplo da floresta que vem sendo discutida é o desenvolvimento
de alternativas inovadoras de um tipo de turismo, que internalize a variável local e
cultural, envolvida como elemento central de planejamento desta prática (MORAES &
IRVING, 2007).
Mas é fundamental esclarecer que, no presente trabalho, turismo é entendido não
apenas em seu viés mercadológico, mas, sobretudo como fenômeno social complexo da
sociedade contemporânea. Neste contexto, surge, no caso brasileiro, o turismo de base
comunitária (TBC), que é considerado por Irving (2009, p.111) como uma alternativa
inovadora de construção de novas realidades e transformação social, uma vez que tende
a ser um tipo de turismo que, em tese, “favorece a coesão e o laço social e o sentido
coletivo de vida em sociedade”, buscando promover a qualidade de vida, a valorização
da cultura local e o sentimento de pertencimento.
Assim, este tipo de turismo busca se contrapor as contradições do sistema
econômico vigente, que os padrões convencionais de turismo (parte da lógica do
capital), vêm aguçando, ao longo dos anos, quando se apropria dos espaços e seus
recursos naturais e culturais. Para tanto, de acordo com Bartholo (2009), é fundamental
a preponderância dos padrões relacionais interpessoais em todo o processo de


 
 

planejamento e gestão do turismo de base comunitária. Isto implica na necessidade de


garantir, localmente, a pluralidade possível de idéias e controvérsias, e aceitar que estes
são elementos constitutivos do princípio dialógico, que envolve incerteza e risco
(SAVIOLO, DELAMARO & BARTHOLO, 2005).
Portanto, é importante se pensar em ferramentas eficientes para legitimar o
diálogo entre a população local no processo de discussão e tomada de decisão sobre o
desenvolvimento do turismo de base comunitária. O termo ferramenta é considerado na
perspectiva de Illich (1973, p.38), em um sentido amplo e complexo, “como
instrumento ou como meio para ser posto ao serviço de uma intencionalidade”, sendo
assim, inerente à relação social.
Para se discutir ferramentas para a gestão do TBC é importante então, dialogar
com a proposição de “ferramenta convivencial”, adotada por Illich (1973), por essa
permitir maior latitude e poder para a comunidade transformar a sua realidade, de
acordo com os seus anseios. A ferramenta é considerada convivencial, na medida em
que cada indivíduo a utilize sem dificuldade, o quanto a deseje e para os fins que ele
próprio determine, considerando que, “o uso que cada qual fizer dela não invada a
liberdade do outro para fazer o mesmo” (ILLICH, 1973, p. 39). Isto porque, as
necessidades das populações humanas não são homogêneas, o que implica no resgate da
proximidade relacional. Mas este processo requer o comprometimento ativo dos atores
locais, em um processo de intensa construção comunitária, no “poder interior de
despertar e conduzir os homens uns aos outros, face a face”, dando forma à coletividade
em processo de transformação contínua. E isso não significa destruir costumes
tradicionais, mas agregar e/ou criar novos valores e práticas (SAVIOLO, DELAMARO
& BARTHOLO, 2005).
Neste sentido, Zaoual (2006) propõe repensar o lugar ou os “lugares” em sua
especificidade, considerando os sistemas de representação dos atores, ou seja, o homem
concreto em seu espaço vivido, em seu “espaço pensado”, dentro e a partir do que ele
acredita pertencer, o que constitui o seu sítio simbólico. “Os sítios são entidades
imateriais fornecedoras de balizamento para os indivíduos e suas organizações sociais”
(ZAOUAL, 2006, p.34). Esta perspectiva tem profundas implicações no turismo de base
comunitária, sendo esse caracterizado fundamentalmente pela “dialogicidade situada”, o
que tende a ser facilitadora da abertura de canais de interlocução com o patrimônio
relacional do sítio simbólico do pertencimento (BARTHOLO, 2009, p.51). Isto
corrobora a proposição de Zaoual (2006, p. 32), de que o sítio é feito, conjuntamente, de


 
 

uma “caixa preta” (que contém o legado cultural consciente ou inconsciente do grupo),
uma “caixa conceitual” (que inclui o saber acumulado em sua trajetória de
conhecimentos empíricos e/ou teóricos), e uma “caixa de ferramentas” (que abrangem o
saber-fazer, técnicas e modelos de ação apropriados ao seu contexto).
Esta discussão inspira alguns questionamentos norteadores do presente trabalho:
Como viabilizar o engajamento efetivo das populações locais no desenvolvimento do
turismo de base comunitária? Que tipo de turismo desejam? Que passos deverão ser
dados com este objetivo? Que concessões estarão dispostas a fazer? Quais os elementos
inegociáveis de sua postura relacional?
Com o intuito de contribuir para esta discussão, esta pesquisa parte do
pressuposto que a interpretação do olhar de quem vive no local, reconhecido e
valorizado como protagonista das mudanças ocorridas no lugar que lhe “pertence”, é
essencial para o êxito de qualquer iniciativa de TBC.
É neste sentido, que este trabalho tem como objetivo central apresentar e discutir
as ferramentas de gestão do turismo de base comunitária em Reservas Extrativistas na
Amazônia, a partir do estudo de caso da Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema, que
se localiza nos municípios de Sena Madureira e Manuel Urbano, no Estado do Acre, e é
considerada importante Unidade de Conservação de Uso Sustentável da região, que
abriga uma amostra expressiva do bioma amazônico, com suas riquezas naturais e
culturais.
O presente trabalho se fundamenta em uma abordagem interdisciplinar, tendo o
olhar psicossocial como seu fio condutor, a partir de análise qualitativa, baseada em
pesquisa bibliográfica, documental, observação simples e participativa, e realização de
entrevistas semi-estruturadas com interlocutores locais selecionados.

2. Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema: aspectos gerais

A Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema (RESEX CI) é habitada por famílias


extrativistas, em sua maioria, migrantes nordestinos e seus descendentes, que vieram
para o Acre, incentivados pelo governo federal, durante os anos de valorização da
borracha. Sua área (750 mil ha) é dividida em cinco macroregiões, entre as quais a
Cazumbá é a que possui o maior número de famílias, algumas no Núcleo do Cazumbá
(AMARAL, GOMES FILHO & MAIA, 2006).


 
 

O Núcleo do Cazumbá, através da Associação dos Seringueiros do Seringal


Cazumbá (ASSC), foi o principal propulsor para a criação da RESEX CI, em 2002. No
Núcleo estão situadas algumas moradias e também a infraestrutura básica da RESEX
(escola, igreja, posto de saúde e alojamento do ICMBio). Este é também o local onde
algumas atividades tradicionais são realizadas coletivamente, com participação de
homens e mulheres. A maioria dos moradores do Núcleo está no local desde o seu
nascimento, vivendo quase que exclusivamente de atividades extrativistas,
agropecuária, caça e pesca. Nesse sentido, a ASSC vem buscando alternativas para a
melhoria da qualidade de vida dos moradores locais. Em 2002, foi implantada no
Núcleo, a primeira pousada, sob sua administração. Desde então, o Núcleo do Cazumbá
busca desenvolver turismo de base comunitária, de forma ainda embrionária, como uma
possível alternativa econômica para o desenvolvimento local, sendo a única localidade
da RESEX onde ocorre visitação.

3. Como é o turismo de base comunitária na RESEX do Cazumbá-Iracema?

O Núcleo do Cazumbá é alvo das primeiras iniciativas de turismo da RESEX. Em


uma perspectiva presente, o turismo é reconhecido pelos moradores do Núcleo como
alternativa importante para a promoção do desenvolvimento local, pelo seu potencial de
viabilizar economicamente a melhoria das condições de vida das populações receptoras
e ao mesmo tempo, para incentivar a proteção e valorização do patrimônio natural e
cultural, e demanda por uma prática de mínimo impacto. Desta forma, o turismo é
interpretado não apenas como mais uma alternativa econômica capaz de gerar renda e
de conservar a natureza, mas também como prática social, que poderá influenciar de
maneira diversa as relações estabelecidas entre os visitantes e os visitados e a
localidade. Nesta relação, os moradores destacam a possibilidade de troca de
experiências e a disseminação dos problemas socioambientais da região para outros
canais de informação, por meio dos turistas.
Neste sentido, os moradores do Núcleo do Cazumbá reconhecem que as principais
potencialidades locais para o turismo estão associadas, essencialmente, ao modo de vida
tradicional extrativista, caracterizado pelos costumes tradicionais de manejo sustentável
dos recursos naturais renováveis e modo de organização comunitária. As
potencialidades identificadas para o desenvolvimento do turismo no Núcleo do


 
 

Cazumbá, a partir do reconhecimento dos atrativos pela própria população local, estão
descritas a seguir: Horta comunitária de plantas medicinais, Agricultura Familiar
(sobretudo a produção da farinha), Castanhal (castanha - do – Brasil), Criadouros de
animais silvestres (queixada e jabuti), Unidade de Produção do Artesanato de borracha,
Pousadas Comunitárias, Rio Caeté, Açudes, Estrada de seringa e trilhas ecológicas.
Com essa perspectiva, o potencial de atratividade para o turismo na RESEX tende a se
vincular, de forma integrada, aos valores culturais e naturais, o que implica,
evidentemente, na importância de fortalecimento da cultura tradicional, do
empoderamento dessas populações e do uso sustentável dos recursos naturais
renováveis, tal como preconiza a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais (BRASIL, 2007).
No entanto, o turismo observado no contexto atual do Núcleo do Cazumbá leva à
reflexão dos moradores de que essa prática pode acarretar também impactos
indesejáveis, como a contribuição para a geração de diversos problemas e conflitos, a
interrupção da dinâmica social no Núcleo, colocando em risco o modo de vida
tradicional, o surgimento do sentimento de “ganância” na população local, e a
competição pelos mesmos recursos e investimentos, o que tende a afetar diretamente os
laços sociais e o sentimento de comunidade.
Dessa forma, os atores locais definem estratégias que precisam ser adotadas para
contribuir para que sejam minimizados os efeitos negativos no Núcleo do Cazumbá.
Segundo Irving (2008, p. 04), o planejamento turístico deve pressupor compromisso
ético, respeito e engajamento de “quem está” e de “quem vem” ao local, uma vez que
sem essa interação harmoniosa, a troca de valores não se efetiva e o “espaço da
interação” ganha expressões apenas circunstanciais. Para um intercâmbio real, Zaoual
(2008) salienta que os turistas devem ser atores responsáveis e solidários em seus
intercâmbios com outros mundos. E, os moradores do Núcleo reconhecem a
importância, para o turista, em conhecer uma realidade diferente do seu cotidiano, lidar
com o estranhamento do “exótico” e contribuir para o desenvolvimento do destino
visitado. Outro aspecto com este objetivo é a limitação de visitação no local que poderá
contribuir também para que sejam minimizadas as alterações no ambiente natural
visitado.
Sob essa perspectiva, os moradores locais determinam ser importante o
reconhecimento das normas estabelecidas no Plano de Utilização da RESEX no
planejamento e implementação do turismo no local, sendo fundamental o repasse das


 
 

regras locais aos turistas, para que a troca de experiência entre turistas e anfitriões não
influencie, negativamente, o modo de vida da população local.
Então, diante das transformações que podem acontecer com o desenvolvimento da
prática turística na RESEX, alguns obstáculos emergem como reais entraves ao
processo, no que tange à organização política ainda insuficiente (apesar dessa ter sido
determinante no processo de criação da RESEX), e à carência de infraestrutura básica e
turística adequada.
Como proposta para a implementação efetiva do TBC será ainda necessário um
elevado investimento em recursos financeiros e humanos, para uma melhor preparação e
organização da população local para lidar com o processo.
Na pesquisa de Moraes (2009) foram levantadas diversas demandas locais
emergentes para o desenvolvimento do turismo na RESEX e essas são relacionadas
principalmente, à formação e à capacitação técnica continuada dos moradores locais
para que esses possam discutir e definir ações coletivas com este objetivo. Além disso,
foi reconhecida, sob a ótica local, a necessidade de fortalecimento organizacional e
implementação de infraestrutura adequada. Estas demandas podem ser viabilizadas por
meio de estabelecimento de parcerias estratégicas.
Neste sentido, é importante enfatizar que o processo de capacitação dos
moradores do Núcleo do Cazumbá em turismo tende a envolver a participação de
agentes externos. Mas Weignand Júnior (2002) salienta, como importante estratégia
com este objetivo, a integração da população local com a equipe técnica, em um
processo conjunto de fortalecimento da capacidade participativa de planejamento e
implementação de projetos.
Nesse processo, é importante também que a formação e capacitação em
planejamento e gestão do TBC sejam aprimoradas e monitoradas permanentemente,
com base na valorização do diálogo e cooperação, respeitando os diferentes tempos de
resposta local. Dessa forma, o processo tem maiores chances de continuar sendo
controlado pela própria população local, que assim, assume o protagonismo na
iniciativa, sendo possível, talvez, assegurar a repartição dos benefícios a todos os
envolvidos.
Assim, o que parece claro é que a participação efetiva da população local no
planejamento e gestão do TBC na RESEX seja requisito para o seu êxito, em
consonância com os princípios de funcionamento dessa categoria de manejo de UC, e o
momento atual do contexto de políticas públicas, destacando-se a Política Nacional de


 
 

Turismo (2008), o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (2000), o


Plano Nacional Estratégico de Áreas Protegidas (2006) e a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (2007).
Uma das principais estratégias para a viabilização do engajamento efetivo destas
populações no processo poderá ser o estabelecimento de um comitê específico em TBC
na RESEX, para que todos os envolvidos possam expor suas idéias e interesses e,
construir, em conjunto, os objetivos que irão nortear o projeto coletivo. Isto implica
compartilhamento do poder, respeito ao outro e garantia de equidade no processo de
tomada de decisão, tal como compreende Illich (1973), em sua idéia de ferramenta
convivencial, que é considerada, neste trabalho, elemento relevante no desenvolvimento
do TBC. Assim, é importante ressaltar que, a definição clara dos diferentes papéis de
cada membro do comitê, o que implica também, engajamento e comprometimento das
mesmas, de forma integrada, no cumprimento de suas responsabilidades, é primordial
para a concretização das decisões coletivas para o desenvolvimento do TBC na RESEX.
Com este intuito, Moraes (2009) aponta algumas inserções desejadas pelos atores
locais (vinte e três moradores locais), no processo de desenvolvimento do turismo, tais
como: Participação em organização de Oficinas de Capacitação em TBC; Interlocução
entre empresariado e RESEX; Gestão dos processos da farinha e seus produtos
variados; Organização da culinária local; Guia de turismo nos atrativos castanhal,
seringal e rio Caeté; Atividades da horta de plantas medicinais e alimentos de consumo;
Gerenciamento de atividades operacionais em geral; Produção de Artesanato;
Gerenciamento de criadouros de animais silvestres; Transporte dos turistas no interior
da RESEX; Manutenção da infraestrutura das pousadas.
É interessante mencionar que algumas destas ações já ocorrem durante as ocasiões
de visita de turistas ao Núcleo. Mas os moradores reconhecem a necessidade de
fortalecimento da sua participação na organização no processo, para que essas funções
possam ocorrer com eficiência e legitimidade, não se limitando ao envolvimento de
poucos moradores.
No entanto, segundo Inoue (2007), para que uma participação efetiva da
população local possa ocorrer no processo é necessário que a mesma esteja motivada a
participar e possa acreditar em suas próprias aspirações e a lutar pelas suas realizações.
Esse argumento parece então, estar em consonância com a percepção da maioria dos
moradores do Núcleo do Cazumbá, que ressaltam também a importância de definição de


 
 

um líder local, para capitanear o processo, de acordo com os objetivos comuns do


grupo.
Estes argumentos parecem estar de acordo com a percepção de Saviolo, Delamaro
& Bartholo (2005), que salientam a necessidade de discussão, no âmbito do próprio
grupo social, sobre prioridades e passos a serem dados no processo. Mas como
estimular os moradores do Núcleo para a ação coletiva e para que esses percebam a
importância da interdependência das ações individuais? Essa resposta não parece ser
simples, uma vez que, de modo geral, diferentes interesses e estruturas de poder atuam
nessa dinâmica. Contudo, o que parece ser fundamental na definição e execução de
estratégias com esse objetivo, é que a população local esteja e se sinta politicamente
engajada no processo, como protagonista de sua história, em uma construção coletiva
para a transformação de sua realidade.
Mas para fortalecer as bases de planejamento para o turismo parece ser necessário
o desenvolvimento e aperfeiçoamento de competências interpessoais no processo, como
atitudes e posturas cooperativas e capacidade de gerenciamento de conflitos e
problemas comuns. É importante ainda a formação e capacitação em turismo, a
promoção de estratégias de participação e empoderamento dessas populações, o
fortalecimento das iniciativas de educação ambiental e a avaliação constante da
efetividade de sua representação nas instâncias formais de discussão e tomada de
decisão da RESEX.
Esta negociação poderá ocorrer com base nas institucionalidades já associadas à
RESEX, como a Associação dos Seringueiros do Seringal Cazumbá, e as futuras
instâncias organizacionais, que poderão ser criadas em função das demandas de
desenvolvimento da RESEX. Neste caso, já está em andamento a proposta de criação da
Cooperativa dos Extrativistas da RESEX CI, que poderá ser dinamizada pelos
moradores da UC como uma arena inicial para a discussão coletiva sobre TBC. Além
disso, essa medida permitirá a integração das iniciativas de TBC com outras ações
desenvolvidas na RESEX. Outra medida importante com este objetivo poderá ser a
criação de uma Câmara Técnica de Turismo, no âmbito do Conselho Deliberativo da
RESEX. Pois assim, essa prática tenderá a ser internalizada na gestão da UC. Esta
medida fortalecerá também o envolvimento no processo, de outras populações da
RESEX e instituições implicadas em sua gestão.

4. Considerações finais

10 
 
 

O turismo na Amazônia tem sido desenvolvido dissociado de estratégias de


planejamento centradas em uma discussão ética sobre sustentabilidade, colocando em
risco, freqüentemente, a proteção do patrimônio cultural e natural da região e causando
importantes impactos de exclusão social das populações locais. Assim, o turismo surge
nesta região como uma “projeção distante na economia local, como uma possibilidade
remota no mundo globalizado”, mas se configura como questão central para a reflexão
acadêmica e para a possibilidade de distribuição de benefícios pelo uso dos recursos
naturais renováveis (MORAES & IRVING, 2007). Isto demonstra que pesquisas sobre
turismo de base comunitária, como alternativa para o desenvolvimento local associadas
às áreas protegidas, sobretudo aquelas que envolvem populações tradicionais, são
essenciais no contexto atual de políticas públicas para a Amazônia, nas quais são
discutidas alternativas sustentáveis para a subsistência das populações na região.
Com o intuito de contribuir para este debate, esta pesquisa buscou discutir a
importância do fortalecimento do turismo de base comunitária associado ao sentimento
de pertencimento da comunidade na Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema, com
base nas ferramentas utilizadas para legitimar a participação da população local nas
iniciativas turísticas de base comunitária, a fim de conhecer os meios de realização e
gerenciamento do próprio destino em questão. Estes meios podem ser chamados de
“caixa de ferramentas” (ZAOUAL, 2006), o que é considerado um dos grandes desafios
do turismo de base comunitária, conforme Irving (2009). Outro desdobramento
importante e possível deste trabalho, conforme também a perspectiva de Zaoual (2006),
é a sua relação com a “caixa preta e caixa conceitual” do grupo em questão, envolvendo
a análise dos padrões relacionais interpessoais, formação das relações de poder, formas
de divergências, pactos e jogos.
A relevância deste trabalho também se relaciona ao fato de que, a maioria das
pesquisas acadêmicas dedicadas ao turismo tem o enfoque mercadológico e operacional.
O campo de reflexão e questionamentos que contribuam para uma compreensão do
turismo, para além do viés técnico e administrativo, e, sobretudo para uma concepção de
turismo como alternativa possível de desenvolvimento local, associada à análise de
relações socioambientais geradas e reinventadas entre pessoas e localidades (que é de
difícil apreensão pelas estatísticas oficiais), é ainda limitado.

11 
 
 

É fundamental destacar também que a presente pesquisa privilegia as populações


que vivenciam o destino turístico, que são consideradas por Irving (2009) como atores e
autores da sua realidade, mas que, geralmente, são negligenciadas em sua própria
estória, embora ávidas pela melhoria da qualidade de vida.
Assim, a experiência de TBC na RESEX do Cazumbá-Iracema inova como
forma de resistência, tensão e questionamento dos padrões capitalistas e as políticas
vigentes, a partir do amadurecimento de interesses e estratégias voltadas,
prioritariamente, para a geração de resultados mais sociabilizados no âmbito local.
Desta forma, a RESEX em questão poderá ser interpretada como um importante
laboratório de experiência em TBC e pólo disseminador em lições aprendidas, para a
reflexão sobre diretrizes para boas práticas turísticas de base comunitária em outras
Reservas Extrativistas na Amazônia, como alternativa às formas convencionais de
turismo, que, na maioria dos casos, buscam resultados imediatos sem o compromisso
socioambiental e que, portanto, tendem a se tornar insustentáveis no decorrer do tempo,
ocasionando desagregação da cultura local e impactos indesejáveis ao patrimônio
natural.
A categoria de manejo de Unidade de Conservação Reserva Extrativista é
interessante também para essa discussão, por ser considerada Unidade de Conservação
genuinamente brasileira e por ter importante rebatimento pelo contexto atual de
políticas públicas de proteção da natureza, que privilegiam a expansão do modelo
RESEX. Nesse sentido, os resultados da pesquisa reafirmam serem as Unidades de
Conservação associadas ao modo de vida tradicional, destinos singulares para uma
prática alternativa às formas convencionais de turismo, que, na maioria dos casos,
buscam resultados imediatos sem o compromisso socioambiental e que, portanto,
tendem a se tornar insustentáveis no decorrer do tempo, ocasionando desagregação da
cultura local e impactos indesejáveis ao patrimônio natural. Logo, é importante
verificar, empiricamente, até que ponto a gestão do turismo vem sendo comunitária.
Com os resultados obtidos nesta pesquisa é possível também fortalecer a
discussão sobre a possível geração de benefícios, a partir do TBC, para as populações
tradicionais da Amazônia, sendo essa uma questão central para a consolidação da atual
Política Nacional de Turismo, do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, do
Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas, da Política Nacional dos Povos e
Comunidades Tradicionais, e também do Plano Amazônia Sustentável. Além disso, o
desenvolvimento da pesquisa proporciona a oportunidade de sistematização de

12 
 
 

informações sobre o tema, que poderão apoiar, futuramente, o delineamento e


implementação de programas governamentais voltados para o TBC na região (Carteira
de Projetos de Turismo de Base Comunitária dos Ministérios do Meio Ambiente e do
Turismo).
É importante lembrar também que, iniciativas de turismo em Reservas
Extrativistas são ainda recentes, e, portanto, as informações sobre o início e a
continuidade do processo são limitadas, uma vez que, historicamente, as principais
demandas de lazer e turismo são direcionadas às UCs de Proteção Integral, como os
parques. Isto é ilustrado pelo primeiro edital de chamada pública de projetos de TBC,
lançado pelo MTur/Nº001/2008, que em 50 projetos selecionados, apenas dois foram
direcionados as populações moradoras de UCs de Uso Sustentável (RESEX do Rio
Unini e RDS da Barra do Una). Além disso, em geral, as políticas de turismo são
verticalizadas, atendendo, sobretudo aos grandes empresários e deixando os pequenos
empreendedores na periferia do processo.
Mas vale mencionar que, mesmo em busca pelo desenvolvimento local, os
moradores locais não desconhecem a presença do Estado e a globalização do capital,
uma vez que vivem os conflitos das implicações desse sistema em sua realidade.
Portanto, questionando os padrões capitalistas e as políticas públicas vigentes, no caso
dos moradores do Núcleo do Cazumbá, eles vêm amadurecendo e priorizando interesses
e estratégias voltadas para a geração de resultados socializáveis no âmbito local, através
do TBC.
Mas, a partir desta experiência, algumas questões permanecem ainda como
desafios para o TBC em RESEXs: Quanto elas estão empoderadas e politicamente
engajadas para isso? Com a crescente visitação em UCs, como superar o desafio de
implementar o TBC como prática consistente com as demandas locais em uma Reserva
Extrativista? De que maneira a chegada do turismo tensiona a vida do morador local?
Como se formam as relações de poder vinculadas à prática de iniciativas turísticas de
base comunitária?
Evidentemente que, as respostas a estas questões estão ainda em construção.
Mas o estudo da experiência de TBC na RESEX do Cazumbá-Iracema permitiu
reafirmar que “o turismo de base comunitária implica não apenas a interpretação
simplista e estereotipada de um grupo social desfavorecido que recebe curiosos e ávidos
pelo exotismo em seu convívio cotidiano”, para o aumento de sua renda e melhoria da
qualidade de vida (IRVING, 2009, p. 111), mas, antes de tudo, significa ter uma postura

13 
 
 

relacional de respeito, solidariedade e cidadania na convivencialidade entre os próprios


anfitriões e o visitante.

5. Referências Bibliográficas

ALEGRETTI, M. H. Reservas Extrativistas: Parâmetros para uma política de


desenvolvimento sustentável na Amazônia. In: ANDERSON, A. et al. O destino da
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