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ENSINAR CIÊNCIA HOJE EXIGE FILOSOFIA

Ediovani Antônio Gaboardi 1

RESUMO
O presente artigo busca mostrar a importância da presença da Filosofia na escola em vista da compreen-
são do pensamento científico desenvolvida contemporaneamente. Assume-se como hipóteses que o méto-
do característico da Filosofia é a reflexão e que a educação formal é pensada, a partir da modernidade,
sob a influência determinante do conceito de Ciência. Tenta-se demonstrar que a excessiva ênfase no
sentido instrumental do saber, na concepção baconiana de Ciência, traz problemas à própria Ciência e
também, derivadamente, às posturas pedagógicas que, consciente ou inconscientemente, comungam dessa
concepção. Sugere-se aqui que o modo instrumental de tomar o saber é o que está por trás da assimilação
superficial, fragmentária, acrítica e eticamente irresponsável dos conteúdos que pode ocorrer na escola. A
partir disso, toma-se alguns aspectos da visão de Ciência elaborada por Kuhn como a reafirmação da
necessidade da reflexão em Ciência. A reflexão filosófica aqui passa a ser considerada importante não
meramente como um complemento à Ciência, mas para o próprio desenvolvimento de suas pretensões.
Assim, procura-se mostrar que as conseqüências pedagógicas dessa concepção de saber equivalem, de
alguma forma, à defesa da necessidade de reintroduzir a Filosofia na escola.
Palavras-chave: saber instrumental, reflexão, Ciência, Filosofia.

OBSERVAÇÃO INTRODUTÓRIA

O presente trabalho liga-se a um objetivo mais amplo, não tematizado direta-


mente por ele, que é o de investigar o papel da Filosofia na escola e as tarefas preparató-
rias que são necessárias para a sua inserção. Em vista disso, assume injustificadamente
que o método próprio da Filosofia é a reflexão e supõe que haja um vínculo, a partir da
modernidade, entre o conceito de ciência e a educação escolar. Em especial, relaciona a
concepção baconiana de ciência ao um certo modo de educação que expulsou os proces-
sos reflexivos da escola. Em seguida, mostrando que a ciência hoje é concebida de uma
outra maneira, tenta sustentar a idéia de que é necessário agora reintroduzir a atividade
reflexiva na educação formal devido às próprias necessidades desencadeadas pelo ensi-
no das ciências.

1 O CONCEITO DE CIÊNCIA E O PAPEL DA ESCOLA

A escola, esse espaço privilegiado da educação formal, tem sentido na medida


em que possibilita aos indivíduos naturais tornarem-se também cidadãos, ocupando seu
espaço nesse mundo artificial que é a cultura humana. Na sociedade contemporânea,
isso significa especialmente que a escola precisa preparar o aluno para lidar com o
mundo da ciência e da técnica modernas, já que são justamente esses os elementos que

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Professor do curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo/RS. E-mail: gaboardi@upf.br.
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cada dia mais modulam as relações entre o homem e a natureza, principalmente na for-
ma de relações de produção, e, até mesmo, as relações entre os próprios seres humanos.
O fato é que a ciência e a técnica modernas estão na vanguarda dos aconteci-
mentos que construíram a cultura das sociedades contemporâneas. Assim, é evidente
que a escola, ao inserir o educando nessa sociedade, toma o seu ensino como objeto
principal de suas preocupações. Como conseqüência, é de se esperar que alguns aspec-
tos próprios do saber científico moderno façam-se presentes no cotidiano escolar, reve-
lando o modelo de saber que, sem a todo momento mostrar-se, inspira a escola na sua
tarefa de conduzir esse processo, a princípio tão incontrolável, que é a educação, para
aquilo que, do seu ponto de vista, mais se parece com o seu destino.
A ciência moderna surge mediante a suspeita a respeito da validade do saber cul-
tivado pela tradição medieval do ocidente. Francis Bacon, o grande propagandista da
ciência emergente, considerava as explicações da tradição de seu tempo (séc. XVI-
XVII) meras antecipações da natureza (BACON, 1984, p.18, af. XXVI ss), ou ainda
como ídolos e noções falsas (Id., p. 20, af. XXXVIII ss). Em contraposição a essas for-
mas inadequadas de conhecimento, Bacon propõe aquilo que chama de interpretação da
natureza (Id., p. 18, af. XXVIII).
A tese básica de Bacon é que o ser humano tem acesso à natureza na medida em
que a observa. No caso das antecipações, parte-se também da observação, mas ela é
feita de forma tão rápida e descuidada que nem a teoria do silogismo aristotélica pode
evitar o erro, que então ganha a aparência de verdade por ser uma conseqüência lógica
necessária das noções que são aceitas inicialmente. Além disso, a própria realidade ob-
servada é mascarada e distorcida pelo trabalho da imaginação e da especulação huma-
nas. Assim, as antecipações constituem-se em preconceitos criados pela mente, a partir
de observações descuidadas e de operações meramente imaginativas, que passam a as-
sumir o status de realidade, bloqueando a visão imediata da natureza.
Para Bacon, essa situação só pode ser superada na medida em que se apreender
que “a verdadeira causa e raiz de todos os males que afetam as ciências é uma única:
enquanto admiramos e exaltamos de modo falso os poderes da mente humana, não lhes
buscamos auxílios adequados” (Id., p. 14, af. IX). E, afirma ainda, “todos os feitos se
cumprem com instrumentos e recursos auxiliares, de que dependem, em igual medida,
tanto o intelecto quanto as mãos. Assim como os instrumentos mecânicos regulam e
ampliam o movimento das mãos, os da mente aguçam o intelecto e o precavêm.” (Id., p.
14, af. II). Assim, para Bacon as antecipações da natureza só podem ser substituídas
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pela verdadeira interpretação da natureza interpondo, entre o pesquisador e a realidade,


um conjunto de métodos auxiliares que vão desde dispositivos que facilitam a observa-
ção pelos sentidos, até referenciais lógico-teóricos que orientam o raciocínio. A questão
chave aqui é permitir que o pesquisador só traga para o reino da ciência aquilo que é
fruto direto, ou derivado lógico, da observação minuciosa da natureza, impedindo a
formação de preconceitos que, além de não condizerem com a realidade, ainda impedem
que ela possa, em algum tempo, ser contemplada.
É evidente que o ponto de vista de Bacon foi importante para o desenvolvimento
da ciência moderna e mesmo para o sucesso que ela alcançou. Além disso, é preciso
lembrar que há muitos aspectos interessantes ainda hoje na sua noção de método cientí-
fico, que não poderá ser abordada detalhadamente aqui. O que se quer é apenas abordar
alguns desdobramentos dessa noção genérica de ciência, apresentada sumariamente a-
cima, verificando o tipo de formação que, como conseqüência, passará a ser exigida do
educando que a escola deverá inserir na sociedade cientificamente construída.
A pergunta que se põe agora é a seguinte: que tipo de formação um estudante
deverá conseguir na escola para inserir-se nessa sociedade da ciência? A resposta parece
evidente. Se, para fazer ciência, e não qualquer especulação inútil e desvinculada da
realidade, é preciso buscar “os auxílios adequados”, então caberá à escola fornecê-los.
Em especial, será tarefa da escola possibilitar que o aluno “domine” as ferramentas bá-
sicas do conhecer, como os instrumentos lógicos da matemática, as teorias da física e da
química, os referenciais da história, a habilidade de comunicação escrita, etc. Em todos
esses casos, os conteúdos e as atividades desenvolvidas nas diferentes áreas são pensa-
das enquanto instrumentos que vão permitir ao aluno um acesso privilegiado à natureza
e, da mesma forma, à realidade social. A idéia aqui é que a criança, no seu estado natu-
ral, não tem condições de se inserir na sociedade, tanto do ponto de vista teórico (ela
não sabe como fazer isso), quanto do ponto de vista prático (ela não sabe que critérios
ou valores devem nortear suas ações). Assim, caberá à escola fornecer à criança os ins-
trumentos que ela porá entre si e a realidade para possibilitar verdadeiramente o acesso
a esta.
Esse modo puramente instrumental de compreender o saber revela-se na escola
de modo bastante evidente. De fato, espera-se que o aluno saia da escola possuindo uma
série de conhecimentos que serão importantes para que ele possa passar no vestibular,
conseguir um bom emprego, ser um cidadão “consciente” e, até mesmo, ser um sujeito
eticamente responsável.
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Nesse momento, o leitor deve estar-se perguntando sobre o caminho que tomará
a argumentação que vem a seguir. A final de contas, parece que esses ideais serão ques-
tionados aqui, e isso deixa no ar ao menos a impressão de que se escolhe assim um ca-
minho em que o bom senso está ausente. E essa mesma impressão deve surgir quando se
critica o projeto de Bacon, na forma como foi exposto acima, já que parece muito corre-
to afirmar que o uso de instrumentos adequados maximiza a capacidade de apreender a
realidade e minimiza a possibilidade do erro. É evidente que aquele que se prende a
preconceitos e faz generalizações e deduções de forma apressada, a partir de observa-
ções rápidas e descuidadas, tem pouquíssimas chances de compreender o real. Além
disso, ninguém imagina ser possível reabilitar a velha tese de que há um conhecimento
que possa vir de outro lugar que não da experiência, independentemente do modo como
se compreende o processo designado por essa palavra. Assim, parece que questionar a
importância dos instrumentos, tanto para a formação do educando, quanto para o desen-
volvimento da ciência, é algo fora de questão e mesmo um absurdo completo.
De fato, a importância dos instrumentos para a ciência vem se mostrado de ma-
neira cabal desde a modernidade até hoje. Basta lembrar o papel decisivo que o telescó-
pio teve para a Astronomia ou então que o microscópio teve para a Biologia. Mais do
que isso, todas as ciências dependem, além de instrumentos empíricos os mais diversos,
de referenciais teóricos que servem de meios através dos quais a experiência com a rea-
lidade pode ser realizada. Esses referenciais tratam basicamente do objeto e do método
de pesquisa e são encontrados, por exemplo, na forma de axiomas.
Essa idéia, segundo a qual a ciência depende de certos referenciais teóricos para
constituir-se, pode ser aproximada daquilo que Tomas Kuhn quer levar em conta quan-
do pensa aquilo que chama de “paradigma.” Nas suas palavras, “considero „paradigma‟
as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, for-
necem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma
ciência.” (KUHN, 1997, p.13). Assim, como Bacon, Kuhn sabe que o acesso à realidade
só é possível mediatamente. É fundamental, assim, que haja um paradigma em relação
ao qual haja certo consenso por parte dos cientistas para que o trabalho de pesquisa pos-
sa desenvolver-se de forma produtiva. Em especial, esse paradigma deve identificar o
objeto a ser investigado (os problemas) e os métodos a serem utilizados para isso (as
soluções modelares).
Entretanto, o ponto de vista de Kuhn é muito diferente daquele de Bacon. En-
quanto este concebe os instrumentos (empíricos e mentais) como meios para se alcançar
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o real, aquele os torna quase pressupostos a partir dos quais a realidade é propriamente
construída. A teoria científica não mais simplesmente descreve um fato que é observado
de maneira independente. Como afirma Kuhn, “teoria e fatos científicos não são catego-
ricamente separáveis, exceto talvez no interior de uma única tradição da prática científi-
ca normal.” (Id., p.26). Ou seja, a ciência desenvolve-se somente a partir de um acordo
prévio sobre certas questões fundamentais, cuja resolução é condição para demarcar
minimamente o objeto e o método de pesquisa que serão considerados normalmente
como científicos.
A partir dessa observação de Kuhn, o trabalho de Bacon pode ser concebido
simplesmente como uma tentativa importante de solidificar certa visão a respeito da
natureza, do papel da ciência e dos métodos que ela deveria utilizar para atingir seus
propósitos. Assim, a partir da teoria de Kuhn, poder-se-ia compreender Bacon como a
tentativa de consolidação de um paradigma para a ciência moderna.
É evidente, contudo, que essa forma de ver a contribuição de Bacon à ciência re-
introduz, ironicamente, aquela mesma desconfiança que antes movera o próprio Bacon
na sua crítica à ciência tradicional. Então, o mesmo Bacon que buscou eliminar as ante-
cipações da natureza, concebidas com ídolos da mente humana que impediam a verda-
deira interpretação da natureza, seria o filósofo responsável pela elaboração de um con-
junto de noções prévias, guiadas pelas quais a ciência se desenvolveria? Como se pode
ver, a partir daquilo que sugerem teóricos como Tomas Kuhn, a resposta a essa pergunta
é afirmativa.
Chegando até esse ponto, pode-se perceber então que o que está envolvido na ci-
ência é muito mais do que aquilo que Bacon percebia, ou seja, a aplicação pura e sim-
ples de instrumentos mentais e empíricos em vista da apreensão mais pura possível da
realidade. Está envolvido também o trabalho de pessoas como o próprio Bacon, que não
foi cientista, mas “antecipou”, de modo produtivo, seu campo de atuação, delimitando-
o, estabelecendo suas condições e prevendo o futuro que se podia esperar dele. Enfim, à
visão baconiana, exposta aqui, faltou apenas a consciência de seu caráter de antecipação
da natureza e, mais ainda, da importância e mesmo inescapabilidade desta tarefa para o
desenvolvimento da ciência.
Essa nova forma de ver a ciência e, o que dá no mesmo, de ver as teorias sobre a
ciência, reivindica também uma nova maneira de conceber o efeito que o desenvolvi-
mento científico tem sobre a sociedade e, mais ainda, uma nova formação por parte do
cidadão que vive aí. Essa nova formação, por incrível que pareça, deverá equivaler à
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renovação daquela capacidade baconiana de pôr sob suspeita o modo normal de se con-
ceber o conhecimento científico em todos os seus aspectos, desde as suas motivações,
até seus métodos e seus efeitos. Enfim, agora deverá fazer parte da ciência também o
questionamento sobre as antecipações que são inerentes e indispensáveis ao seu desen-
volvimento.
A conseqüência pedagógica dessa mudança, entretanto, precisa ser observada
com atenção. A princípio, poderia parecer que o que se deve propor à escola é que ela
faça do aluno alguém capaz de criticar o saber vigente, reconstruindo a cada instante
novos paradigmas à ciência. Mas isso é, evidentemente, impraticável, especialmente
numa época como a atual, em que a ciência mostra-se ao indivíduo antes de tudo como
um edifício cujas bases e extensão total deverá permanecer desconhecida.
Na verdade, a principal conseqüência pedagógica da nova forma de ver a ciência
é a retomada da importância do trabalho reflexivo, que não é garantido pelo fato de ser a
aplicação de certos instrumentos mentais ou empíricos. Quer dizer, a escola deve possi-
bilitar que o aluno passe pela experiência da aplicação dos diversos instrumentos que a
ciência moderna, em seus vários desdobramentos, construiu. Essa experiência pode sig-
nificar simplesmente a tentativa de pensar a realidade a partir desses instrumentos. Mas,
por outro lado, na escola deve-se também fazer a experiência de tentar pôr em suspenso
esses instrumentos, tentando ver a realidade por outros meios. E isso não necessaria-
mente na tentativa de relativizar os pressupostos paradigmáticos que se tem, mas sim-
plesmente para compreendê-los melhor. A idéia aqui é que cada disciplina científica se
constrói sobre certo “acordo” em relação a aspectos que serão decisivos para a determi-
nação do objeto a ser perseguido e dos métodos a serem adotados. Assim, a reflexão
sobre esses aspectos será importante para caracterizar não só as outras formas de conhe-
cimento que foram excluídas, mas também para compreender melhor a natureza, os li-
mites, as condições e os efeitos do saber que foi desenvolvido.
Esse trabalho de reflexão, em que se busca o esclarecimento sobre os pressupos-
tos de que se parte, justifica-se na própria obra de Bacon, afinal de contas foi ele quem
propôs que só pela aplicação de um novo instrumento cognitivo (o Novum organum),
em substituição ao antigo (aristotélico), seria possível levar a ciência adiante, distin-
guindo-a das formas enganadoras de relacionar-se com a realidade (os ídolos). O pro-
blema é que Bacon precisa pôr a sua proposta tão acima das demais, para angariar para
ela validade absoluta, que é obrigado a descaracterizá-la enquanto antecipação da natu-
reza e fazê-la equivaler a uma simples abertura à pura interpretação. E, no que se refere
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à educação, esse caráter puro e, por isso mesmo, meramente instrumental do conheci-
mento foi repassado diretamente aos conteúdos a serem ensinados em sala de aula e,
pior ainda, aos métodos de fazê-lo. Na medida em que a reflexão que antecipa a nature-
za foi considerada perniciosa por Bacon à ciência, o trabalho reflexivo do educando que
ainda não se habilitou para a tarefa de aplicar os conteúdos científicos no desenvolvi-
mento de sua percepção do mundo, é tomado como inútil no que se refere á educação
formal. O aluno vai à escola, assim, para apreender aquilo que depois o fará pensar di-
reito. Isso ocorre não só em relação aos conteúdos científicos, mas também na formação
moral ou ética, no desenvolvimento afetivo, na socialização, na formação para a cidada-
nia, etc. Pensa-se a escola como o lugar em que o saber capaz de corrigir toda visão
incorreta da realidade pode ser alcançado, para então depois ser aplicado na formação
de indivíduos mais eficientes tecnicamente, mais inseridos na sociedade e mesmo mais
corretos do ponto de vista moral. Assim, algo importante a analisar é a relação que há
entre alguns aspectos da realidade escolar e a visão tecnicista e neutra do conhecimento
científico, como foi apresentada aqui, e como esses problemas podem ser tematizados
de outra forma por uma visão que toma também a ciência como resultado de um proces-
so reflexivo. É isso que se faz a seguir.

2 O CONCEITO DE CIÊNCIA E OS PROBLEMAS DA ESCOLA

A sociedade contemporânea espera muito da escola. Espera que ela não sim-
plesmente reproduza a situação atual, mas principalmente a conserte. O papel de inserir
o indivíduo na sociedade do conhecimento, delegado à escola, portanto, é verdadeiro
apenas no que se refere ao inserir (e mesmo aqui infelizmente, em muitos casos apenas
do ponto de vista formal), mas não em relação à sociedade na qual se quer que isso o-
corra; pois se pensa a forma desse inserir ao mesmo tempo como uma maneira de a so-
ciedade deixar de ser o que “é” e ser algo melhor. Então, o indivíduo é formado agora
para ser inserido numa outra sociedade, que surgirá, paradoxalmente, de sua própria
inserção. Isso, na verdade, tem a ver com a própria situação ambígua da educação for-
mal: por um lado, ela é fruto da sociedade existente; mas, por outro, representa a tenta-
tiva de conscientemente projetar uma sociedade melhor.
É importante trazer à tona esse aspecto neste momento, pois ele introduz uma
idéia importante, que será reapresentada, de maneiras diferentes, no que vem a seguir: o
processo educativo não pode ser pensado (e é quando é pensado que se torna educação
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formal) enquanto simplesmente formação de indivíduos para este ou para aquele fim
determinados. Não que isso não ocorra ou não deva ocorrer. Na verdade, é condição
para que a pedagogia possa ser ciência que ela seja capaz de se esclarecer sobre seu ob-
jeto e seus métodos. Entretanto, ao mesmo tempo, num processo análogo ao que deve
ocorrer em toda ciência, é indispensável que ela tenha consciência de que não apenas
visa inserir o indivíduo na sociedade, mas trabalha em vista de certo modelo de socie-
dade pressuposto, e inclua no rol de suas tarefas a reflexão sobre esse pressuposto. En-
tão, o que não se pode é assumir certa finalidade de modo cego, negligenciando a neces-
sidade de refletir sobre ela constantemente.
Como se disse antes num outro contexto, isso não deve ter como conseqüência a
suspensão ou a relativização de todo paradigma pedagógico, mas o desenvolvimento de
uma compreensão mais profunda e consciente do significado completo desse pressupos-
to. Assim, como Bacon achava importante que os pesquisadores tivessem consciência
de seu Novum organum para evitar os ídolos, também é importante que os envolvidos
nos processos educacionais formalizados tenham consciência de seus pressupostos, pois
eles são a condição não só para o sucesso, mas antes de tudo para a própria avaliação
das atividades que desenvolvem, pois são justamente eles que fornecem os critérios des-
sa avaliação.
Em termos práticos, isso significa que a operacionalização inconsciente do pro-
fessor, através da assimilação de conteúdos e de estratégias didáticas, torna o processo
educativo que ele vai coordenar muito pouco eficiente sob o ponto de vista dos próprios
propósitos estabelecidos pelo paradigma que lhe forneceu aqueles instrumentais. A falta
de clareza sobre o projeto que se quer realizar evidentemente impede que se verifique,
em cada passo, a direção a seguir e, mais ainda, em que momento o caminho escolhido
mostra levar a um beco sem saída.
Mas a existência desses pressupostos no processo educativo não deve fazer-se
consciente apenas na mente do educador que elabora o projeto pedagógico das escolas
ou daquele que prepara as aulas nas suas disciplinas. É preciso também que o aluno po-
sa pensar sobre os pressupostos que orientam as atividades que desenvolve, principal-
mente para que elas adquiram sentido para ele.
A realização dessa tarefa, entretanto, é extremamente difícil, e essa dificuldade
nem precisa ser apresentada a partir do cotidiano escolar, mas simplesmente a partir do
próprio conceito de educação formal. Ora, na educação formal, tem-se um certo objeti-
vo que precisa ser alcançado pelo educando. Entretanto, esse objetivo só pode ser com-
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preendido, desdobrado nos métodos que o realizam e justificado por quem já alcançou
as condições para pensá-lo. E, essas condições são justamente parte daquilo que está
para ser apreendido.
Isso se mostra de maneira clara quando um professor de Matemática ou de Filo-
sofia é questionado sobre a utilidade do conteúdo de sua disciplina. Na tentativa de res-
ponder, usará argumentos que se ligam a referenciais inerentes aos próprios conteúdos
que ensina. Assim, dificilmente poderá fornecer a eles uma resposta compreensível,
convincente e capaz de motivá-los em relação ao desenvolvimento das atividades da
disciplina.
A falta, por parte do educando, das condições para uma reflexão que seja capaz
de lhe propiciar a decisão autônoma a respeito das atividades que precisa desenvolver
no aprendizado é a característica de e, ao mesmo tempo, a justificação para a sua situa-
ção; mas, além dela, também a consciência, por parte do educador, da provisoriedade
dessa situação e da conseqüente necessidade de superá-la. Assim, de ambos os lados,
tanto do educando quanto do educador, o alvo é o mesmo: adquirir a habilidade de pen-
sar por si mesmo, valendo-se daquilo que de melhor a cultura humana produziu. É evi-
dente que a determinação desse melhor é altamente problemática, e aqueles encarrega-
dos de pensar a educação estarão, ao pensar sobre esse ponto, imersos nos condiciona-
mentos do passado e nas projeções para o futuro que de todo lado surgem na vida social.
Mas o fato é que a capacidade de pensar por si próprio, de refletir, não depende sim-
plesmente dos conteúdos disponibilizados ao simples pensar. Depende também da for-
ma como o sujeito compreende as tarefas que são abertas a partir desses conteúdos. As-
sim, essa consciência de que dispõe o educador da inescapável dificuldade que o edu-
cando tem de compreender o sentido do que está apreendendo deve ser acompanhada
pela necessidade imposta, desde o próprio processo educacional, de que isso seja busca-
do constantemente. Isso se dá, assim, não como um conteúdo a ser assimilado, mas co-
mo uma tarefa.
Como já se salientou, numa visão instrumentalista do saber, relacionada aqui
justa ou injustamente com a de Bacon, ele é considerado uma espécie de instrumento
mental cuja posse e aplicação, na percepção da realidade, seriam garantias para a verda-
de. Assim, no caso da escola, caberia a ela fornecer esse instrumento para o reto pensar.
As conseqüências dessa maneira de compreender o papel dos conteúdos escola-
res para a construção do conhecimento por parte do educando são drásticas. Os conteú-
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dos assumem uma prioridade tão grande que parecem dispositivos que precisam ser
tomados na sua imediatez, como coisas dadas aí e principalmente operacionalizados.
O irônico disso é que essas tarefas que são abertas pelo conteúdo posto na sala
de aula dificilmente são cumpridas. Isso porque é impossível compreender o que é ob-
servado imediatamente se não se tem a idéia do processo do qual isso é resultado. É
muito difícil, não só para a criança, compreender o significado de “V=S/t” pela simples
observação da fórmula e pela explicação do significado dos símbolos. Da mesma forma,
é impossível aplicar esse conhecimento na resolução de um problema real, não daqueles
exemplos postos em aula, se esse problema aparece numa situação para a qual o aluno
não foi “treinado”. Vê-se, assim, que tanto a apreensão do instrumento cognitivo em sua
imediatez, quanto sua aplicação completa dependem da tentativa de reconstrução do
processo reflexivo que gerou esse saber. Em palavras simples, é preciso saber “de onde
veio” o que se está apreendendo. Mas aqui não se trata simplesmente de sua origem
histórica. Trata-se de imaginar quais problemas aquele saber tentou resolver, quais su-
posições aceitou, quais alternativas a ele há, por que é a melhor alternativa, etc.
É evidente que a ciência, tendo em vista a objetividade, que está no fundo asso-
ciada ao acordo intersubjetivo, visa tornar dispensável a preocupação com esses pressu-
postos, permitindo aos indivíduos um acesso imediato, ou seja, não reflexivo, aos seus
conteúdos, elevando-os ao status da pureza ou da neutralidade. Entretanto, essa neutra-
lidade, ao ligar-se ao conteúdo, constitui um processo de aprendizagem que contamina
aquele de tal forma que só resta a ele aparecer aí como uma abstração, uma ausência de
sentido. Assim, apenas a compreensão desses elementos pressupostos e de outros, num
processo reflexivo, permite não só uma possível crítica ao saber em questão, mas mes-
mo sua compreensão adequada e também sua operacionalização efetiva.
Com se pode ver, o que se quer afirmar aqui é que se a escola considerar o saber
que cultiva como um instrumento a ser assimilado para, num momento seguinte, pensar
a realidade, ele acaba tornando-se tão abstrato e vazio que perde o sentido, tanto para o
educador, quanto para o educando. Alguns temas importantes relacionados com a edu-
cação escolar podem ser pensados a partir desse referencial. Uma concepção puramente
instrumental do saber escolar é o que pode estar por trás, por exemplo, do descaso em
relação à necessidade de justificação dos conteúdos das disciplinas, da fragmentação do
conhecimento, da assimilação superficial e vazia (que objetiva apenas a prova), da des-
conexão entre o que é estudado e a realidade, da deficiência na formação ética e moral,
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dentre outras. E esse processo não atinge apenas o educando, mas antes de tudo o pró-
prio educador.
Como já se sugeriu, é só por um processo reflexivo que se pode justificar um
conhecimento. Conceber o conhecimento de forma instrumental, no sentido mencionado
acima, impede que tanto professor quanto aluno saibam por que estão se dedicando a
ele. Em especial, a tendência de tomar a sua operacionalização imediata como a única
tarefa aberta pelo saber impede que se criem as próprias condições para uma busca por
justificativas. Talvez seja a falha nessa tarefa o que faz com que tantos educandos não
encontrem valor no saber que são obrigados a assimilar.
A fragmentação do conhecimento também pode ser encarada como um resultado
direto da falta de reflexão. É preciso dizer que não se trata de defender simplesmente o
fim das divisas entre as disciplinas. Na verdade, a organização e a sistematização são
necessárias. A fragmentação tem a ver antes com o fato de que cada disciplina ignora o
lugar que ocupa na totalidade do saber. É certo que essa totalidade é dinâmica e tremen-
damente ampla para ser compreendida imediatamente. Mas o esforço para recompreen-
der o lugar de cada saber precisa ser sempre mantido. E isso só é possível por via refle-
xiva.
A assimilação superficial e vazia, por sua vez, é certamente um efeito inesperado
e mesmo paradoxal da instrumentalização do saber. Ora, o instrumento existe para ser
eficiente. Entretanto, quem não o compreende profundamente, e isso implica em ir para
além da sua imediatez, não pode saber para que circunstâncias serve, como aplicá-lo
adequadamente e, muito menos, como aperfeiçoá-lo.
A realidade sempre é um desafio para o saber constituído. Assim, é só pela re-
flexão que a relação entre este e a realidade pode refazer-se. Por ela, consegue-se com-
preender os problemas, as hipóteses, as suposições, os condicionamentos e os limites de
um saber. Só isso é o que permite interpretá-lo de forma adequada diante da realidade.
Por fim, somente pela reflexão há ética, tomando esta como o próprio processo
reflexivo que se debruça sobre a moralidade vigente. É por ela que o educando pode
ver-se tocado por questões como a liberdade, a responsabilidade, a lei, os direitos, os
deveres, etc.
A atividade de reflexão é própria da Filosofia. Isso não significa que só nesta
disciplina isso seja feito. Muito pelo contrário, a inserção da Filosofia na escola deve ser
pensada, ao menos esta é a proposta deste trabalho, enquanto tentativa de expandir o
trabalho reflexivo para todas as dimensões do processo educacional. Isso significa que a
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Filosofia tem uma tarefa importante a cumprir na escola: não simplesmente inserir um
conteúdo novo, retirado da história da Filosofia ou de outro lugar, esperando com ele
fornecer “instrumentos” com esta ou aquela finalidade salvífica, mas possibilitar um
espaço de reflexão, que atinja professores e alunos, sobre a enorme quantidade de ins-
trumentais que já estão disponíveis no contexto escolar. E é em vista desse objetivo que
se torna necessário construir propostas efetivas de trabalho.

REFERÊNCIAS

BACON, Francis. Novum organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da


natureza; Nova Atlântida. Trad. De José Aluysio Reis de Andrade. 3.ed. São Paulo: A-
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GABOARDI, Ediovani A. O que é filosofia: uma abordagem comparativa. Revista de


Ciências Humanas, v.5, p.214-236, 2004.

HABERMAS, Jürgen. Ciência e Técnica como Ideologia. Lisboa: Edições 70, 1986.

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 5.ed. São Paulo: Perspectiva,
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OLIVA, Aberto (org.). Epistemologia: a cientificidade em questão. Campinas: Papirus,


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