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Parecer Fibio Ulhoa Coetho Professor Titular de Direito Comercial da Pontificia Universidade Catélica de Sao Paulo Construtora OAS S.A. — em recuperagio judicial, por seu ilustre advogado Prof. Dr. Eduardo Secchi Munhoz, formula consulta referente a questo de direito recuperacional, acerca da classificagao do crédito titulado por bancos emitentes de garantias primeira demanda como sujeito ou nfo aos efeitos da recuperagio judicial he ‘A consulente informa encontrar-se em recuperagiio judicial, requetida em 31-03-2015 © cm tramitago perante a i. 1" Vara de Faléncias e Recuperagoes Judiciais de Sao Paulo. Seu plano de recuperago foi aprovado pela assembleia geral de credores em 17-12-2015 e homologado em 26-01-2016. 2. No contexto de praticas empresariais largamente difundidas, em todo ‘0 mando, no segmento de construgiio em que atua, a consulente celebrou contratos de prestago de garantia, com diferentes instituigdes financeiras, em que estas assumem a obrigagdo de desembolsar determina quantia em beneficio do terceiro contratante da obra, em contrapartida a0 recebimento de remuneragtio ¢ ao dever de reembolso. Fabio Uthoa Coetho 2 ‘Titular de Direito Comercial da PUC-SP_ 3. As garantias, enfatiza, podem ter como objeto assegurar 0 reembalso 40 contratante garantido de adiantamentos feitos para viabilizarem caixa para as obras (“garantia de adiantamentos”), a qualidade dos servigos prestados ¢ das obras entregues (“garantia de retengdo”) ou outros aspectos da relago contratual, em especial a pontualidade e observincia das condigdes técnicas (“garantia de performance ou cumprimento”). 4 Destaea que parte considerdvel destas garantias sujcite-sc cituswla de primeira demanda (on demand). Acresce que, em alguns casos, foram emitidas notas promissérias pela consulente, para assegurar as obrigagdes assumidas perante as instituigdes financeiras. 5. A titulo de exemplo, a consulente narra ter celebrado contrato de empreitada junto & National Infrasiructure Development Company Limited (‘NIDCO”), empresa estatal de Trinidad e Tobago, para construgo da rodovia Sir Salomon Hochoy, naquele pais. A este contrato associaram-se garantias de adiantamento, retengao e de performance, com a cliusula “ primeira solicitag#o” e instrumentalizadas por Cartas de ia brasileires. Em algumas destas operagdes, ademais, a consulente emitiu notas promissorias Crédito emitidas por diferentes instituigées financeiras, na mai 6. A consulente acentua que estas garantias encontram-se sujeitas aos efeitos da recuperagiio judicial, porque, tendo sido contratadas antes de 31-03-2015, cram existentes na data do pedido (Lei n. 11.101/05 ~ LF, art. 49, caput). r Historia que o administrador judicial, contudo, na fase administrativa da habilitagao de créditos, adotou o entendimento de que as obrigagses da consulente, em relacio a tais garantias, somente se constituiriam com a requisigfio de pagamento, por parte do contratante garantido. A impugnagiio da consulente relativamente a este entendimento do administrador judicial nao foi ainda julgada. 8. Fabio Ulhoa Coetho ‘Titular de Direito Comercial da PUC-SP Exibindo-me documentagdo que comprova os fatos narrados, a consulente propde os seguintes quesitos: J. Quais so as caracteristicas que definem 0 conceito de ‘eréditos constante do art. 49 da LRF, para fins de sua sujeigfio ao procedimento de recuperacao judicial? Neste mesmo dispositive, ao inserir a expresso ‘sinda que no vencidos’, o legislador amplion ou restringiu o Ambito de incidéncia da norma? 2. Nas hipéteses em que os contratos de prestago de garantia sao celebrados previamente ao pedido de recuperagéo judicial, mas a chamada desta pelo terceiro beneficiirio ocorre depois deste, indaga-se: (a)a obtigacao da consulente existe desde 0 momento da contratagio, embora a época do pagamento fique sujeita ao efetivo desembolso de recursos em favor do beneficiério? (b) a obrigagio da consulente é crédito existente constituido em favor das instituigées financeiras, porém da niio vencido’, nos termos do art, 49 da LRF? 3..Nas hipéteses em que a consulente emitiu notes promissérias em decorréncia dos contratos de prestagio de garantia celebrados, indaga-se: (@) a consulente contraiu obrigagdes junto as instituigdes financeires no momento da emissaio das notas promissérias? (b) para os fins do art, 49 da LRP, as notas promissérias emitidas pela consulente dio lasiro a créditos sujeitos aos efeitos da recuperagao judicial, posto que existentes na data do pedido desta e passiveis de execugio desde a emissao? 4. Especificamente em relago garantia concedida para a NIDCO, incluindo as lastreadas em notas promissdrias, 0 crédito das instituigéies financeiras esti sujeito aos efeitos da recuperagiio judicial? Parecer est dividido em duas segdcs, além desta introdugio, Na primeira, so examinadas as premissas de ordem te6rica pertinentes ao exame do caso, A segunda abriga as respostas aos quesitos propostos pela consulente. & Fabio Uthoa Coelho 4 ‘Titular de Direito Comercial da PUC-SP Secdo I~ As ias a ‘fo judicial 10. As disposigdes legais ¢ contratuais de direito comercial, atinentes as obrigagées entre empresétrios, podem ser todas entendidas como meios de alocagiio de riscos. Elas distribuem, entre os empresirios, os riscos da atividade empresarial. Ha efetividade, no direito comercial, quando 0 risco & suportado por aquele que 0 havia assumido (em razo da lei ou do contrato). Quando uma decisio judicial poupa quem assumira certo risco de o suportar, ela inevitavelmente faz com que 0 risco seja suportado por quem nao o havia assumido. i. As garantias d primeira demanda representam um. instrumento negocial que conduz a uma especifica alocaglio de riscos, nem sempre bem compreendida desde logo. 12, Este importante instrumento financeiro disseminou-se no comércio intemacional, no contexto da crise do petréleo de 1973, e, jd hd tempos, tém sido largamente aproveitadas nas demais relagSes interempresariais internas. Trata-se de declaragio, feita normalmente por instituiglo financeira ou seguradora (garante), de que pagaré, como principal deveder, dentro de determinado limite, quantia devida por um empresario (garantido) a outro (beneficiério), Considera-se autdnoma esta garantia Porque, a0 contririo da fianga, nio € negécio juridico acessério: 0 garante nfo pode ecusar 0 pagamento ao beneficiério, alegando excegdes eventualmente titularizadas pelo garantido “, De acordo com a definigdo de MONICA JARDIM: “A garantia autGnoma, igualmente conhecida por Deste modo, sendo 0 crédito decorrente de declaragdes intencionais expressas por sujeitos de direito em conformidade com normas juridicas que lhe atribuem, em abstrato, os mesmos efeitos pretendidos pelos declarantes, ele é um. negécio juridico existente. Sua eficdcia (exigibilidade das prestagdes) é questio diversa, 52, Ademais, quando o dispositive menciona a sujeigao aos efeitos da Tecuperacdo judicial do crédito existente, “ainda que nao vencido”, faz. 0 legislador que se poderia chamar de um mero (embora, salutar) esclarecimento, destinado apenas a evitar dividas de interpretagao. A frase nflo é apta a veicular a incluso ou exclusiio de um ou outro crédito no Ambito do dispositivo. Percebe-se isto porque qualquer crédito 36 pode estar ou vencido ou ndo-vencido, inexistindo outra hipdtese (prineipio légico do terceiro excluido).. 2. Nas hipéteses em que os contratos de prestagiio de garantia sio celebrados previamente ao pedido de recuperagio judicial, mas a chamada desta pelo terceiro beneficiério ocorre depois deste, indaga-se: (a) a obrigagio da consulente existe desde 0 momento da contratagio, embora a época do pagamento fique sujeita ao efetivo desembolso de recursos em favor do beneficiério? (6) a obrigagio da consulente é crédito existente constituido em favor das instituigdes financeiras, porém ‘ainda nao vencido’, nos termos do art. 49 da LRF? 53. A resposta aos dois desdobramentos do quesito ¢ afirmativa. 54, Na garantia objeto de Parecer, com a cléusula “a primeira demanda” (‘solicitagdio” ou “requisiga0”), a obrigagdo se constitui com a celebragio dos contratos kK : Fabio Uthoa Coelho ” Titular de Direito Comercial da PUC-SP correspondentes. Desde a emissfo da Carta de Crédito, pela instituigéo financeira garantidora, ela assume a obrigag2o de pagar, até o limite estabelecido sem consulta prévia 20 devedor garantido, 0 valor que o benefividrio vier a requisitar; desde a contratayao desta garantia pelo devedor, ele ja assumiu a obrigagao de reembolsar a instituigio financeira garantidora, to logo esia tenha atendido a requisigao do beneficiério, 55, Celebrados os respectivos contratos, a existéncia destas obrigagies (do baneo garantidor de atender as requisigdes e do devedor garantido de reembolsé-lo) nao depende de mais nada. 56. Tratase, no entanto, de uma obrigagdo condicional, isto é, cuja eficécia esté sujeita ao implemento de uma condigdo suspensiva, que é exatamente a requisigio de pagamento pelo beneficiério. 37. Expedida a requisigio, verifica-se 0 vencimento da obrigagao da instituigio financeira de pagar e da obrigagio do devedor garantido de reembolsar (CC, art. 322), 38. Em nada altera a esséncia da resposta aqui apresentada, convém ressalvar, a eventual circunstancia de a Carta de Crédito ou 0 contrato conceder certo prazo (geralmente, pequeno) para o cumprimento da obrigagio. Se previsto, por exemplo, que 0 banco teré 48 horas aps a requisigio de pagamento, para providencié-lo, ¢ claro que o vencimento da obrigago nfo se verificaré exatamente na emissao da requisi¢ao de pagamento, mas, sim, neste prazo assinalado. 59. Deste modo, tendo se obrigado a conceder a tereeiros credores garantia a primeira demanda, a consulente & devedora da obrigago de reembolsar as instituigSes financeiras que atenderem as requisigbes dos beneficiéirios, desde o momento da contratagdo da garantia, Esta obrigagdo existe e ja impacta a administragado x Fabio Uthoa Coetho 18 ‘Titular de Direito Comercial da PUC-SP financeira do devedor, que, para cumprir 0 dever legal de diligéncia (Lei n. 6.404/76, art. 153), nao pode ignoré-la, 60. A tinica nota (de resto, encontrada também nas obrigagdes a termo em que 0 prazo de vencimento ainda nao decorreu no dia do requerimento da recuperacao judicial) € a inexigibilidade momentanea da obrigac%o. Quer dizer, uma circunsténcia afeta ao plano da eficacia do negécio juridico gerador do erédito. 61. Se © quando emitida a requisigao de pagamento pelo beneficiario, se ¢ quando atendida esta requisi¢ao pela instituigdo financeira garantidora, implementa-se a condigao que torna eficaz. a obrigagdo e, consequentemente, exigivel seu adimplemento, 62. A garantia primeira demanda celebrada antes do requerimento da recuperacaio judicial comresponde crédito sujeito aos efeitos desta, ainda que a requisigao de pagamento (que implementa a condigdo ¢ toma vencida a obrigagaio) venha a ser expedida pelo beneficidrio em data posterior. Esta hipdtese, como se vé, é exatamente a descrita no art, 49 da LRF, quando menciona a sujeig&o dos créditos existentes na data do requerimento, ainda que ndo vencidos. J. Nas hipéteses em que a consulente emi fu notas promissérias em decorréncia dos contratos de prestagio de garantia celebrados, indaga-se: (a) a consulente contraiu obrigagdes junto as instituigdes financeiras no momento da emissio das notas promissérias? (6) para os fins do art. 49 da LRF, as notas promissérias emitidas pela consulente dio lastro a créditos sujeitos aos efeitos da recuperacio judicial, posto que existentes na data do pedido desta e passiveis de execugiio desde a emissiio? 63. Quando a obrigagaio da consulente, constituida na assinatura do contrato com a instituigao financeira garantidora, ¢ documentada também num titulo de « Fabio Uthoa Coelho 9 Titular de Direito Comercial da PUC-SP crédito (nota promisséria), fica ainda mais evidente que ela se submete aos efeitos da recuperagdio judicial, por forga do art. 49, caput, da LRP. 64. Nao € cabivel argumentar-se que certa obrigag&io documentada em nota promisséria ainda estaria por se constituir. 65. Os titulos de crédito, em raziio do regime juridico-cambial, incorporam direitos autGnomos, abstratos. Justifica-se a cmissfio de notes promissérias para documentar obrigagaio jé documentada em outro instrumento juridico (como o contrato de concessdo da garantia), para que o credor (no caso, a instituigao financeira garantidora) tenha em mios titulo passfvel de circulagaio cambial (segundo as regras cambidrias como a inoponibilidade de excegdes aos terceiros de boa-fé, cartularidade, literalidade etc), 66. Mesmo que o titulo contenha mengio de “vinculagio” ao contrato de garantia, isto nfo Ihe subirai a natureza cambial, nem obsta a cireulagiio do crédito correspondente de acordo com o direito cambidrio. Quer dizer, esta cléusula de vinculagdo produz efeitos entre subscritor e credor originario da nota promisséria, mas, em razio da natureza cambial deste documento representative de crédito, seria inoponivel a eventual terceiro de boa-fé, endossatario do titulo, caso posto em cireulagio. 67. Emitida, ademais, a note promisséria a vista, no restam duividas de ser prontamente exigivel do subscritor, desde a emissio, Isto, certamente, reforca o quanto se afirmou ao longo do Parecer, no sentido de que a consulente esti obrigada perante a in: fo financeira, desde a assinatura do contrato de constituigao da garantia, e a requisigdio de pagamento, se e quando expedida pelo beneficiério, apenas definiré o vencimento desta obrigagio, & Fabio Uthoa Coelho 0 Titular de Direito Comercial da PUC-SP_ 68, Afinal, a consulente nfo poderia ser executada por uma nota promisséria a vista, a qualquer momento desde a sua emissfio, se nfo fosse jé devedora da obrigagaio. 4. Especificamente em relacio A garantia concedida para a NIDCO, incluindo as lastreadas em notas promissérias, 0 crédito das instituigdes financeiras esti sujeito aos efeitos da recuperagio judicial? 69. A resposta ¢ afirmativa, Desde que a consulente celebrou os Contratos de Presiagdo de Garantia Bancdria e outras avencas com 0 BNP Paribas, assinou os Instrumentos Particulares de Reconhecimento de Obrigagdes € outras avengas com 0 Citibank S.A., ¢ firmou os Contratos de Prestagéio de Garantia com 0 Banco Santander S.A, ela ja se tomou devedora da obrigagao de reembolsar estas instituigdes financeiras, ico de pagamento emanada da NIDCO. Tendo se vetificado esta até mesmo antes de 31-03-2015, 0 cré se e quando elas atenderem a req das instituigdes financeiras estiio sujeitos aos efeitos da recuperagiio judicial da consulente. 10. Como dito na segao primeira do Parecer, a garantia a primeira demanda corresponde a um instrumento negocial de alocagiio de riscos. O devedor garantido, por exemplo, assume o risco de “pagar primeiro, discutir depois”. mh. Pois bem. Ao concordarem em emitir a Carta de Fianga (ou instrumento equivalente) lastreada em contrato de outorge de gerantia & primeira demanda, as instituigdes financeiras assumiram também sua parcela de risco. n. E foi para assumirem sua parcela de risco que receberam, da consulente, 0 pagamento do prego para a emissio da Carta de Fianga, Haveria cnriquecimento indevido da instituigao financeira que recebesse a remuneragao pela < Fabio Ulhoa Coelho 21 Titular de Direito Comercial da PUC-SP outorga da garantia, sem a correspondente assungiio do risco envolvido no negocio juridico, B. Um dos riscos assumidos pelas instituigdes financeiras, na concessio da garantia 4 primeira demanda, ¢ exatamente 0 associado 4 recuperagdo judicial do devedor garantido. Se o plano de recuperagao novar as obrigagées do devedor garantido, elas nfo tém outra alternativa senfio a de se submeterem & novagdio, 74. Nio poderdo alegar qualquer prejuizo (pagaram o valor previsto na Caria de Crédito, mas s0 terdo direito ao reembolso nas condigdes da novaciio recuperacional) porque assumiram este risco, no exercicio da atividade financeira de que silo especialistas, i Poder Judiciario nao pode poupar estas instituigSes financeiras do risco que assumiram, porque isto implicard, inexoravelmente, em transferir 0 mesmo risco a quem no o havia assumido. A alocagao de riscos estabelecida por contrato deve ser efetivada pelo juizo recuperacional, para que nfo ocorra de outros agentes econdmicos suportarem risco alheio. E é isso que inevitavelmente aconteceria, caso sobrevenha a convolagio da recuperagdo judicial da consulente em faléncia, em raztio nao do inadimplemento do plano de recuperagdio, mas por simples negativa de efeitos judiciais a novagdio recuperacional nele contida, ‘Sao Paulo, 14 de novembro de 2016 Fabio Uthoa Coetho

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