O REQUISITO ESSENCIAL DA IMPARCIALIDADE PARA A DECISÃO
CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA DE UM CASO CONCRETO NO
PARADIGMA CONSTITUCIONAL DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Consulta
A Profª. Doutora Misabel de Abreu Machado Derzi, na
condição de Procuradora Geral do Estado de Minas Gerais, tendo em vista a importância dos temas, a gravidade da hora presente e a situação financeira de insolvência do Estado, solicita a emissão de uma breve "nota técnica" sobre as graves questões de hermenêutica constitucional envoltas na pretensão de tutela jurisdicional por parte do Estado de Minas Gerais junto ao Supremo Tribunal Federal contra a União Federal, ao solicitar concessão de liminar, em sede de Medida Cautelar lnominada, enquanto procedimento preparatório da propositura de ação principal visando a declaração, de nulidade e a revisão de cláusulas do Contrato nº 004/98/STN/COAFI que, à luz dos princípios constitucionais assecuratórios do pacto federativo e da autonomia dos entes federados, violariam a Constituição, em face dos fundamentos do despacho monocrático denegatório da referida pretensão, da lavra do Ministro Moreira Alves, bem como das razões do agravo regimental interposto contra este último.
Nota Técnica
Ao nos restringirmos, por hora, às questões relativas ao
requisito de uma tutela jurisdicional constitucionalmente adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito, acreditamos que, no caso em tela de exame, a análise das mesmas possibilitará o delineamento de um horizonte decisório bastante delimitado e preciso. É esse, aliás, o suposto inicial de Ronald Dworkin uma vez que, para ele, a unicidade e a irrepetibilidade que caracterizam todos os eventos históricos, ou seja, também qualquer caso concreto sobre o qual se pretenda tutela jurisdicional, exigem do juiz hercúleo esforço no sentido de encontrar no ordenamento considerado em sua inteireza a única decisão correta para este caso específico, irrepetível por definição. Em outros termos, todo e qualquer caso deve ser tratado pelo julgador como um caso dificil, como um hard case (DWORKIN, R. Taking Rights serioitsly. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1978, p. 81 a 130. A Matter of Principle. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1985, p. 119 a 145). Mas, comecemos do começo. Afinal de contas o que é um paradigma? E ainda mais precisamente, o que é e quais são os paradigmas constitucionais? Em que eles afetam a questão da interpretação em geral e da interpretação constitucional em particular?
De início, portanto, cabe-nos introduzir a noção de
paradigma e o seu emprego na Teoria Geral do Direito e no Direito Constitucional. O conceito de paradigma, como já tivemos ocasião de afirmar, vem da filosofia da ciência de Thomas Kuhn ( KUHN, T. S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo, Editora Perspectiva, 1994, sobretudo da p. 218 à 232.). Tal noção apresenta um duplo aspecto. Por um lado, possibilita explicar o desenvolvimento científico como um processo que se verifica mediante rupturas, através da tematização e explicitação de aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré- compreensões e visões-de-mundo, consubstanciados no pano- de-fundo naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais, que a um só tempo tornam possível a linguagem, a comunicação, e limitam ou condicionam o nosso agir e a nossa percepção de nós mesmos e do mundo. Por outro, também padece de óbvias simplificações, que só são válidas na medida em que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemônicas em determinadas sociedades por certos períodos de tempo e em contextos determinados. É claro que a história como tal é irrecuperável e incomensuravelmente mais rica do que os esquemas que aqui serão apresentados, bem como se reconhece as infinitas possibilidades de reconstrução e releitura dos eventos históricos. Assim, o nível de detalhamento e preciosismo na reconstrução desses paradigmas vincula-se diretamente aos objetivos da pesquisa que se pretende empreender. Aqui, no sentido de introduzirmos rapidamente a aplicação do conceito no Direito Constitucional, sobretudo com vistas aos supostos da hermenêutica constitucional, reconstruiremos um único grande paradigma de Direito e de organização política para toda a antigüidade e idade média, como contraponto à modernidade que, por sua vez, será apresentada em três grandes paradigmas (o do Estado de Direito, o do Estado de Bem-Estar Social e o do Estado Democrático de Direito) que tendencialmente se sucedem, em um processo de superação e subsunção (aufheben), muito embora aspectos relevantes dos paradigmas anteriores, inclusive o da antigüidade, ainda possam encontrar, no nível fático, curso dentre nós, a condicionar leituras inadequadas dos textos constitucionais e legais. Daí mesmo a razão e a necessidade de também apresentarmos os paradigmas anteriores pois, mediante essa contraposição, melhor poderemos compreender o novo paradigma positivado e suposto pela Constituição da República de 1988.
Examinemos, primeiramente, o primeiro paradigma
constitucional em contraponto com o pré-moderno.
O Direito e a organização política pré-modernos encontravam
fundamento, em última análise, em um amálgama normativo indiferenciado de religião, direito, moral, tradição e costumes transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam. O Direito é visto como a coisa devida a alguém, em razão de seu local de nascimento na hierarquia social tida como absoluta e divinizada nas sociedades de castas, e a justiça se realiza sobretudo pela sabedoria e sensibilidade do aplicador em "bem observar" o princípio da eqüidade tomado como a harmonia requerida pelo tratamento desigual que deveria reconhecer e reproduzir as diferenças, as desigualdades, absolutizadas da tessitura social (a phronesis aristotélica, a servir de modelo para a postura do hermenêuta). O Direito, portanto, se apresentava como ordenamentos sucessivos, consagradores dos privilégios de cada casta e facção de casta, reciprocamente excludentes, de normas oriundas da barafunda legislativa imemorial, das tradições, dos usos e costumes locais, aplicadas casuisticamente como normas concretas e individuais, e não como um único ordenamento jurídico integrado por normas gerais e abstratas válidas para todos.
Verifica-se a dissolução desse paradigma ao longo de pelo
menos três séculos, por um sem número de fatores que vão desde a ação dissolvente do capital, a diluir os laços e entraves feudais e a fazer com que cada vez mais indivíduos livres e possessivos participem do crescente mercado como proprietários, no mínimo, do próprio corpo, ou seja, da força de trabalho que lhes possibilita o comparecimento cotidiano ao mercado enquanto proprietários de uma mercadoria a ser vendida (Marx); passando pelo desenvolvimento das práticas de investigação policial (Foucault, Umberto Eco); pela destruição da cosmologia feudal fechada e hierarquizada, substituída pela isonômica estrutura matemática de átomos que constitui o universo infinito da física de Galileu (Koyré); pelas lutas por liberdade de confissão religiosa e pela conseqüente distinção e separação das esferas normativas da religião, da moral, da ética social e do Direito (Weber), etc. Seja como for, o relevante é que todos esses processos de mudança se integram em uma profunda alteração de paradigma. As intuições da moral individual racionalista, vistas como verdades matemáticas inquestionáveis, colocam em xeque a tradição, agora reduzida a meros usos e costumes sociais, que, para os homens da época, só podem ser explicados como o resultado da corrupção histórica e que, assim, deviam ser alterados pela imposição de normas racionalmente elaboradas pelos homens enquanto sujeitos de sua história, inaugurando ou remodelando um tipo recente organização política, os Estados nacionais, espaços laicos de definição e imposição dessas regras racionais que deveriam reger impositivamente a organização e a reprodução social, a normatividade propriamente jurídica. O Direito, enquanto essa normatividade específica, diferenciada e decorrente de idéias abstratas consideradas verdadeiras por evidência, como analisa Marcuse, só poderia ser compreendido agora como um ordenamento de leis racionalmente elaboradas e impostas à observação de todos por um aparato de organização política laicizado. O que se produz mediante um processo de redução, em que o direito deixa de ser a coisa devida transcendentalmente assentada na rígida e imutável hierarquia social da sociedade de castas, para se transformar no Direito, ou seja, em um ordenamento constitucional e legal que impõe, à toda uma afluente sociedade de classes, a observância daquelas idéias abstratas tomadas como Direito Natural pelo jusracionalismo. Idéias abstratas tais como a da liberdade individual de se "fazer tudo aquilo que as leis não proíbam" (Locke/Montesquieu) ou da "liberdade de ter" dos modernos em oposição à "liberdade de ser" dos antigos (Hegel, Benjamin Constant); tais como a da igualdade de todos que, conquanto muito diferentes em outros aspectos, são iguais diante da lei. Ou, como explica Pashukanis, são iguais no sentido de todos se apresentarem agora como proprietários, no mínimo, de si próprios, e, assim, formalmente, todos devem ser iguais perante a lei, porque proprietários, sujeitos de direito, devendo-se pôr fim aos odiosos privilégios de nascimento. Pela primeira vez na história pós-tribal, todos os membros da sociedade são, ou devem ser, proprietários, homens livres e, assim, igualmente sujeitos de direitos, capazes, até mesmo o mais humilde trabalhador braçal, de realizar atos jurídicos contratuais como o da compra e venda da força de trabalho. Com o movimento constitucionalista implantam-se Estados de Direito que resultam da conformação da organização política à necessidade de se impor e dar curso a essas idéias, tidas como direito natural de cunho racional, verdades matemáticas absolutas e inquestionáveis que deveriam caracterizar o indivíduo - essa outra invenção da modernidade. O Direito é visto, assim, como um sistema normativo de regras gerais e abstratas, válidas universalmente para todos os membros da sociedade. O Direito Público, no entanto, deveria assegurar, ainda que de distintos modos, o não retorno ao absolutismo, precisamente para que aquelas idéias abstratas pudessem ter livre curso na sociedade, mediante a limitação do Estado à lei e a adoção do princípio da separação dos poderes que, ainda que lido de distintos modos, sempre deveria requerer, no mínimo, também a aprovação da representação censitária da "melhor sociedade" no processo de elaboração dessas mesmas leis. E, assim, às leis deveria ser reservado o tratamento de toda a matéria relativa à vida, à liberdade e à propriedade dos súditos. Contudo, em face do Direito Privado, reino por excelência daquelas verdades evidentes, o Direito Público, ao variar, em seus detalhes, de país para país, é visto como mera convenção, pois da "sociedade política" deveria participar apenas a "melhor sociedade", convencionalmente estabelecida pelo requisito de renda mínima para o exercício do voto, bem assim pelos critérios mínimos crescentes de renda censitariamente escalonados para que alguém pudesse se candidatar a cargos públicos nacionais, regionais e locais. O Direito Privado, por sua vez, corresponderia àquelas verdades matemáticas inerentes a todo e qualquer indivíduo: os direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade privada. Assim, sociedade política e sociedade civil são separadas por um profundo fosso. Na primeira, os interesses gerais deveriam prevalecer mediante a atribuição de sua identificação e guarda aos membros dessa "sociedade política", dessa "melhor sociedade", àqueles cultural e economicamente bem aquinhoados. E a "razão prática" apontava para o estabelecimento do mínimo de leis gerais e abstratas, pois já que liberdade é fazer tudo aquilo que as leis não proíbam, quanto menos leis, mais livres seriam as pessoas para desenvolver as suas propriedades (aqui o termo é empregado na acepção da época, como também abrangente dos dotes físicos e mentais de uma pessoa). A segunda, a sociedade civil, é o espaço naturalizado em que as propriedades devem ser desenvolvidas o mais livremente possível mediante a garantia da igualdade formal de todos perante a lei, não importando quão desiguais possam ser em termos materiais. O Direito, enquanto ordenamento, ao estabelecer limites universais preponderantemente negativos (não furtar, não matar, etc., como traduzido, por exemplo, por Fichte) é, então, visto como o conjunto de regras que delimitam os espaços de liberdade dos indivíduos - as linhas demarcatórias da fronteira em que termina a liberdade de um indivíduo e em que se inicia a liberdade de outro. Assim, o paradigma do Estado de Direito ao limitar o Estado à legalidade, ou seja, ao requerer que a lei discutida e aprovada pelos representantes da "melhor sociedade" autorize a atuação de um Estado mínimo, restrito ao policiamento para assegurar a manutenção do respeito àquelas fronteiras anteriormente referidas e, assim, garantir o livre jogo da vontade dos atores sociais individualizados, vedada a organização corporativo- coletiva, configura, aos olhos dos homens de então, um ordenamento jurídico de regras gerais e abstratas, essencialmente negativas, que consagram os direitos individuais ou de 1ª geração, uma ordem jurídica liberal clássica. É claro que sob este primeiro paradigma constitucional, o do Estado de Direito, a questão da atividade hermenêutica do juiz só poderia ser vista como uma atividade mecânica, resultado de uma leitura direta dos textos que deveriam ser claros e distintos, e a interpretação algo a ser evitado até mesmo pela consulta ao legislador na hipótese de dúvidas do juiz diante de textos obscuros e intrincados. Ao juiz é reservado o papel de mera "boca da lei". A vivência daquelas idéias abstratas que conformavam o paradigma inicial do constitucionalismo logo conduz à negação prática dos mesmas na história. A liberdade e igualdade abstratas, bem como a propriedade privada terminam por fundamentar as práticas sociais do período de maior exploração do homem pelo homem de que se tem notícia na história, possibilitando um acúmulo de capital jamais visto e as revoluções industriais. Idéias socialistas, comunistas e anarquistas começam a colocar agora em xeque a ordem liberal e a um só tempo animam os movimentos coletivos de massa cada vez mais significativos e neles se reforçam com a luta pelos direitos coletivos e sociais, como o de greve e de livre organização sindical e partidária, como a pretensão a um salário mínimo, a uma jornada máxima de trabalho, à seguridade e previdência sociais, ao acesso à saúde, à educação e ao lazer. Mudanças profundas também de toda ordem conformam a nova sociedade de massas que surge após a 1ª Guerra Mundial e, com ela o novo paradigma constitucional do Estado Social. No que toca diretamente ao nosso tema, desde o socialismo implantado na União Soviética em 1918, passando pelas sociais democracias como as da Alemanha de 1919 e da Áustria de 1920, até o nazismo e o fascismo em ascensão, todas as formas de organização política configuraram um novo paradigma, o do Estado Social, que, por sua vez, pressupõe a materialização dos direitos anteriormente formais. Não se trata apenas do acréscimo dos chamados direitos de segunda geração (os direitos coletivos e sociais), mas inclusive da redefinição dos de 1ª (os individuais); a liberdade não mais pode ser considerada como o direito de se fazer tudo o que não seja proibido por um mínimo de leis, mas agora pressupõe precisamente toda uma plêiade de leis sociais e coletivas que possibilitem, no mínimo, o reconhecimento das diferenças materiais e o tratamento privilegiado do lado social ou economicamente mais fraco da relação, ou seja, a internalização na legislação de uma igualdade não mais apenas formal, mas tendencialmente material. Não mais se acredita na verdade absoluta de cunho matemático dos direitos individuais. O direito privado, assim como o público, apresentam-se agora como meras convenções e a distinção entre eles é meramente didática e não mais ontológica. A propriedade privada, quando admitida, o é como um mecanismo de incentivo à produtividade e operosidade sociais, não mais em termos absolutos, mas condicionada ao seu uso, à sua função social. Assim, todo o Direito é público, imposição de um Estado colocado acima da sociedade, uma sociedade amorfa, carente de acesso à saúde ou à educação, massa pronta a ser moldada pelo Leviatã onisciente sobre o qual recai essa imensa tarefa. O Estado subsume toda a dimensão do público e tem que prover os serviços inerentes aos direitos de 2ª geração à sociedade, como saúde, educação, previdência, mediante os quais alicia clientelas.
Com essa crescente complexificação da estrutura da
sociedade, verificado após a Primeira Guerra Mundial, no século XX tem curso, portanto, uma remodelação do Estado e do Direito, aqui designada "passagem do paradigma do Estado de Direito para o do Estado Social ou de Bem-Estar Social", em que o Direito é materializado e, precisamente em razão dessas exigências de materialização do Direito, não somente o Estado tem a sua seara de atuação extraordinariamente ampliada para abranger tarefas vinculadas a essas novas finalidades econômicas e sociais que, agora, lhe são atribuídas, como o próprio ordenamento ganha um novo grau de complexidade. O juiz agora não pode ter a sua atividade reduzida a uma mera tarefa mecânica de aplicação silogística da lei tomada como a premissa maior sob a qual se subssume automaticamente o fato. A hermenêutica jurídica reclama métodos mais sofisticados como as análises teleológica, sistêmica e histórica capazes de emancipar o sentido da lei da vontade subjetiva do legislador na direção da vontade objetiva da própria lei, profundamente inserida nas diretrizes de materialização do Direito que a mesma prefigura, mergulhada na dinâmica das necessidades dos programas e tarefas sociais. Aqui o trabalho do juiz já tem que ser visto como algo mais complexo a garantir as dinâmicas e amplas finalidades sociais que recaem sobre os ombros do Estado. Explica-se assim, por exemplo, tanto a tentativa de Hans Kelsen de limitar a interpretação da lei através de uma ciência do Direito encarregada de delinear o quadro das leituras possíveis para a escolha discricionária da autoridade aplicadora, quanto o decisionismo em que o mesmo recai quando da segunda edição de sua Teoria Pura do Direito.
Com o final da 2ª Guerra Mundial, o modelo do Estado Social
já começa a ser questionado, conjuntamente com os abusos perpetrados nos campos de concentração e com a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaqui, bem como pelo movimento hippie na década de sessenta. No entanto, é no início da década de setenta que a crise do paradigma do Estado Social manifesta-se em toda a sua dimensão. A própria crise econômica no bojo da qual ainda nos encontramos coloca em xeque a racionalidade objetivista dos tecnocratas e do planejamento econômico, bem como a oposição antitética entre a técnica e a política. O Estado interventor transforma-se em empresa acima de outras empresas. As sociedades hipercomplexas da era da informação ou pós-industrial comportam relações extremamente intrincadas e fluidas. Tem lugar aqui o advento dos direitos da 3ª geração, os chamados interesses ou direitos difusos, que compreendem os direitos ambientais, do consumidor e da criança, dentre outros. São direitos cujos titulares, na hipótese de dano, não podem ser clara e nitidamente determinados. O Estado, quando não diretamente responsável pelo dano verificado foi, no mínimo, negligente no seu dever de fiscalização ou de atuação criando uma situação difusa de risco para a sociedade. A relação entre o público e o privado é novamente colocada em xeque. Associações da sociedade civil passam a representar o interesse público contra o Estado privatizado ou omisso. Os direitos de 1ª e 2ª geração ganham novo significado. Os de 1ª são retomados como direitos (agora revestidos de uma conotação sobretudo processual) de participação no debate público que informa e conforma a soberania democrática de um novo paradigma, o paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito e seu Direito participativo, pluralista e aberto.
Ora, é claro que uma concepção distinta e respectivamente
adequada acerca da atividade hermenêutica ou interpretativa do juiz integra cada um desses paradigmas, a configurar distintos entendimentos, por exemplo, do princípio da separação dos poderes, o que nos permite detectar, também aqui, uma grande e significativa transformação na visão dessa atividade, bem como um incremento correspondente de exigências quanto à postura do juiz não somente em face dos textos jurídicos dos quais este hauriria a norma, mas inclusive diante do caso concreto, dos elementos fáticos que são igualmente interpretados e que, na realidade, integram necessariamente o processo de densificação normativa ou de aplicação do Direito, tal como ressaltado na atual doutrina constitucional e na teoria geral do Direito por seus teóricos centrais como Konrad Hesse, Robert Alexy, Friedrich Müller, Klaus Günther, Laurence Tribe, Ronald Dworkin, Gomes Canotilho, Paulo Bonavides e Oliveira Baracho dentre tantos outros.
Assim, a partir deste rápido escorço, podemos ver como se
verificou um incremento das exigências relativas à postura do aplicador da lei e do responsável pela tutela jurisdicional que se assenta em uma crescente capacidade de sofisticação da doutrina e da jurisprudência para fazer face aos desafios decorrentes do processo de contínuo aumento da complexidade da sociedade moderna.
Podemos verificar a profundidade das exigências
pressupostas sob o paradigma do Estado Democrático de Direito se tomarmos, com Habermas, "a teoria do Direito de Dworkin como nosso fio condutor, pois, lidamos inicialmente com o problema da racionalidade, tal como posto por uma prestação jurisdicional (Rechtsprechung) cujas decisões devem cumprir simultaneamente os critérios da certeza jurídica e da aceitabilidade racional." (HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung. Beiträge Zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt sobre o Reno, Suhrkmnp, 1994, p. 292.)
Desse modo, no paradigma do Estado Democrático de Direito,
é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, quanto no sentimento de justiça realizada que deflue da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto.
Para tanto, é fundamental que o decisor saiba que a própria
composição estrutural do ordenamento jurídico é mais complexa que a de um mero conjunto hierarquizado de regras, em que acreditava o positivismo jurídico: ordenamento de regras, ou seja, de normas aplicáveis à maneira do tudo ou nada, porque capazes de regular a suas próprias condições de aplicação na medida em que portadoras daquela estrutura descrita por Kelsen como a estrutura mesma da norma jurídica: "Se é A, deve ser B." Ora, os princípios são também normas jurídicas, muito embora não apresentem essa estrutura. Operam ativamente no ordenamento ao condicionarem a leitura das regras, suas contextualizações e interrelações, e ao possibilitarem a integração construtiva da decisão adequada de um "hard case." Os princípios, ao contrário das regras, como demonstra Dworkin, podem ser contrários sem ser contraditórios, sem se eliminarem reciprocamente. E, assim, subsistem no ordenamento princípios contrários que estão sempre em concorrência entre si para reger uma determinada situação. A sensibilidade do juiz para as especificidades do caso concreto que tem diante de si é fundamental, portanto, para que possa encontrar a norma adequada a produzir justiça naquela situação específica. É precisamente a diferença entre os discursos legislativos de justificação, regidos pelas exigências de universalidade e abstração, e os discursos judiciais e executivos de aplicação, regidos pelas exigências de respeito às especif'icidades e à concretude de cada caso, ao densificarem as normas gerais e abstratas na produção das normas individuais e concretas, que fornece o substrato do que Klaus Günther denomina senso de adequabilidade, que, no Estado Democrático de Direito, é de se exigir do concretizador do ordenamento ao tomar suas decisões (GÜNTHER, KLAUS. The sense of appropriateness. Trad. John Farrel. New York: State University of New York Press, 1993). É desse modo que Dworkin, também critico literário e profundo conhecedor da teoria da linguagem, pode afirmar que há uma única decisão correta para um caso concreto. obviamente, Dworkin sabe tão bem quanto Kelsen que qualquer texto possibilita várias leituras, o problema da decisão judicial, no entanto, é que a mesma se dá como solução de um litígio concreto, envolve igualmente a interpretação de fatos que configuram uma situação de aplicação única e irrepetível. Por isso mesmo, aqui, no domínio dos discursos de aplicação normativa, faz-se justiça na medida em que o julgador for capaz de fundamentar sua decisão na escolha da única norma adequada à complexidade da situação de aplicação que se apresenta. A imparcialidade aqui, ressalta Günther, se traduz na capacidade de o juiz levar em conta a reconstrução fática de todos os afetados pelo provimento e, assim, fazer com que o ordenamento como um todo, enquanto pluralidade de normas que concorrem entre si para regerem situações, se faça presente, buscando então qual a norma que mais se adequa à situação, qual a norma que promove justiça para as partes, sem resíduo de injustiças decorrentes da cegueira à situação de aplicação. Ao criticar o modo de aplicação normativa prevalente na modernidade, Günther toma um dos exemplos de Kant, autor paradigmático do período do Estado liberal, mas que nesse aspecto, o da insensibilidade para com a situação de aplicação, continua a sê-lo também para o Estado social. Em drástica síntese das duas críticas entrais de Kante, podemos dizer que se no domínio da razão pura, devemos agir de modo a nos subtermos aos dados da experiência, no domínio da razão prática, por outro lado, não podemos nos deixar guiar pelas conseqüências práticas de nossos atos, mas apenas pelo imperativo categórico da generalidade: devemos agir de tal modo que a máxima de nossa ação sempre possa ser tomada como uma lei universal. É neste contexto, que Kant prolata o seguinte exemplo. Um dia, estava ele a lecionar em Koenningsberg, quando um aluno entra esbaforido e diz estar sendo perseguido pela polícia política do Kaiser, solicitando a Kant que lhe permitisse esconder-se em sua sala de aula. O professor lhe indica a sua mesa para que ele sob ela se oculte. Chegando a polícia política revista em vão a sala e, ao sair, um de seus membros resolve indagar a Kant se este vira o aluno que estavam perseguindo. Kant sabe muito bem que essa polícia política tortura e mata os que apreende. No entanto, Kant também reconhece a bondade universal do princípio moral "não mentir". Este exemplo dado por Kant ilustra muito bem a crítica que Günther, seguindo Dworkin, pretende fazer ao modo de aplicação do Direito ínsito aos paradigmas constitucionais anteriores. A crença na bondade da universalidade regra fazia com que os homens cometessem tremendas injustiças por se fazerem cegos às distintas situações de aplicação. E essas injustiças, decorriam do fato de eles serem, efetivamente, incapazes de verem que os princípios, distintamente das regras requerem aplicação concorrente, balizada por outros, sobretudo os de sentido contrário. No caso em exame, se outra fosse a postura de Kant, para ele teria se tornado claro que o princípio moralmente adequado para reger aquela situação específica não seria de modo algum o do "não mentir", mas sim princípio de igual validade universal, mas de sentido contrário, do "não delatar." O princípio mais adequado à situação de aplicação afasta, naquele caso, a aplicação do impróprio porque produziria injustiça, sem afetar-lhe a validade universal. Aliás, suposto da validade universal de um princípio é precisamente uma reserva de aplicação segundo as especificidades das distintas situações. Ora, o Direito, tal como a moral, é também integrado por princípios, sobretudo no domínio constitucional, o que requer uma aplicação das normas sensível às distintas situações de aplicação
As propostas de Dworkin para uma interpretação construtiva
teoricamente dirigida do Direito vigente podem, assim, ser defendidas nos termos de uma leitura procedimentalista que altera as exigências idealizadas da construção de uma teoria sobre o conteúdo idealista dos pressupostos pragmáticos necessários ao discurso jurídico, a operar no interior dos limites requeridos pelo princípio da separação de poderes, sem que o judiciário invada as competências legislativas e subverta os estritos limites legais da Administração (Gesetzesbindung der Verwaltung). É claro que aqui o princípio da separação de poderes ganha o conteúdo da distinção entre o domínio das atividades legislativa ou discursos de justificação, ou seja, daqueles discursos que têm por critério de imparcialidade a universalidade, e o domínio da atividade de aplicação de normas, ou seja, dos discursos que, por sua vez, têm por critério de imparcialidade a sensibilidade para com as especificidades de cada situação de aplicação consoante a ótica de todos os afetados.
Apenas assim a concepção do Juiz Hércules, de Dworkin, pode
ganhar solidez, buscando-se compreender a prestação jurisidicional em seu aspecto funcional específico referente à implantação, consolidação, desenvolvimento e reprodução do sentimento de Constituição e de Justiça. Único sentimento capaz de adequadamente assegurar solidez à ordem jurídica de um Estado Democrático de Direito.
Assim, podemos concluir que, sob as exigências da
hermenêutica constitucional ínsita ao paradigma do Estado Democrático de Direito, impõe-se a concessão da liminar requerida, sob as características específicas da situação de aplicação em questão, tão bem comprovadas e mais uma vez expostas nas razões do agravo em juízo, sob pena de se consagrar uma insensibilidade, uma cegueira já não mais compatível com a Constituição que temos e com a doutrina e jurisprudência constitucionais que a história nos incumbe hoje de produzir.