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11/05/2020 Cabalá e Chassidut - Torá e Estudos

Cabalá e Chassidut
Por Rabino Yitzchak Ginsburgh, traduzido por Maurício Klajnberg

Introdução

No momento em que o povo de Israel estava aos pés do Monte Sinai, os céus se abriram e o espírito de D’us desceu das
alturas em meio a trovões e relâmpagos de fogo.

De acordo com a tradição da Cabalá, o objetivo da Criação foi o de prover D’us com um “local de moradia nos reinos
inferiores”, um objetivo que se completa através do direcionamento da luz Divina para “veículos” progressivamente mais
densos do pensamento, sentimento e ação humanos e, dali, para o resto do mundo material.

A tentativa da Cabalá de trazer os mistérios da Criação mais próximos da própria experiência humana se expressou talvez
mais radicalmente através do pensamento e da tradição chassídicos. A Chassidut avançou o foco da tradição mística para
além dos limites dos olamot (“mundos”, a realidade de espaço e tempo) até o mundo mais sublime das neshamot (“almas”).
Daí que, enquanto a Cabalá é referida no Zohar como “a alma da Torá”, a Chassidut tem sido descrita como a “alma da alma
da Torá”.

As Raízes da Tradição da Cabalá

As raízes da tradição cabalística podem ser traçadas até a antiga experiência profética de nossos patriarcas – Avraham,
Yitschak e Yaacov. A sabedoria e a visão originadas de sua intimidade com o Divino formaram a base do legado espiritual
passado adiante aos seus filhos, as doze tribos de Israel. A verificação final deste legado veio no momento em que Israel
estava aos pés do Monte Sinai, os céus se abriram e o espírito de D’us desceu em meio a trovões e relâmpagos de fogo. Ao
revelar a Si próprio a toda a comunidade de Israel, D’us, na verdade, expôs a essência oculta da verdade da Cabalá, a qual,
até aquele momento, era privilégio de alguns poucos. Naquele exato momento, como o versículo nos diz, Moshe subiu a
montanha e penetrou em uma densa escuridão onde D’us, de forma particular, revelou a ele o complexo de sabedoria e leis
Divinas que deveria preencher o vácuo que restou após Seu recuo para a esfera celestial.

A sabedoria que Moshe recebeu no Sinai e passou adiante, mais tarde, para seu povo, era composta de elementos esotéricos
e exotéricos. A tradição exotérica – ou niglá (aquilo que é “revelado”) – se tornou o foco identificado da vida Judaica, tanto no
estudo quanto na prática, ao longo das gerações. É esta tradição com a qual somos familiarizados através dos trabalhos
clássicos da erudição e das leis Judaicas – o principal sendo o Talmud. Por outro lado, a tradição esotérica — conhecida como
nistar (aquilo que é “oculto”) — foi transmitida a uns poucos de cada geração, adequados para iniciação em suas profundezas
misteriosas.

Esta tradição, que é a base da Cabalá, fez seu caminho como um fio oculto ao longo do curso da história Judaica. Em
momentos fortuitos ao longo daquela história, este fio iria periodicamente aparecer para embelezar a consciência espiritual em
evolução de nosso povo. Interpretada por homens de visão e inteligência incomuns, esta tradição lentamente encontrou seu
caminho para a forma escrita em trabalhos que expuseram seus aspectos teóricos e práticos.

A terminologia tradicional empregada na referência a estes dois aspectos distintos do questionamento cabalístico é o mesmo
da Cabalá iyunit (“Cabalá contemplativa”) e Cabalá maasit (“Cabalá prática”). Apesar de que veremos que esta distinção pode
ser, freqüentemente, bem arbitrária, ela nos ajudará a isolar várias tendências dentro do desenvolvimento da tradição
cabalística.

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A Tradição “Contemplativa”

Cabalá iyunit, a categoria à qual pertence a maioria dos textos cabalísticos atualmente em circulação, explica o processo onde
o mundo criado evoluiu a uma existência “autônoma” restrita através da vontade de um Criador infinito, elaborando também
sobre a natureza do “diálogo” entre Criação, à medida que ela procede para o cumprimento de seu destino, e a fonte Divina
da qual ela emerge. Em um nível ainda mais profundo, a Cabalá iyunit explora a natureza complexa da própria realidade
Divina – em particular, o paradoxo do D’us imutável e, mesmo assim, ativo e reativo em Sua relação com a Criação.

Um aspecto adicional desta tradição contemplativa, muitas vezes erroneamente identificado como “Cabalá prática”, é a
elaboração de várias técnicas meditativas usadas para ponderar o subtexto Divino da realidade. Estas incluem a
contemplação de Nomes Divinos, das permutações das letras hebraicas e das formas nas quais as sefirot (forças Divinas
sobrenaturais) se harmonizam e interagem. Algumas formas antigas de meditação cabalística realmente produzem uma
experiência visionária das “câmaras” celestiais onde a Glória D’us reside.

Mesmo se procuradas em consideração ao tikun hanefesh (“retificação da alma”) apenas, estas técnicas meditativas, sem a
reflexão teosófica apropriada, podem ainda ser consideradas legitimamente “contemplativas” pela virtude de sua influência
refinadora sobre a consciência.

A Tradição “Prática”

A verdadeira “prática” da Cabalá envolve técnicas direcionadas especificamente para a alteração de estados ou eventos
naturais – técnicas como a recitação ritual dos Nomes Divinos ou a inscrição de tais nomes (ou aqueles dos anjos) sobre
amuletos especialmente preparados. Apesar de comumente denominada uma tradição “oculta”, a Cabalá maasit se destina a
ser utilizada somente pelos mais puros e responsáveis indivíduos e para nenhum outro objetivo que não o benefício do
homem e da Criação.

Desde os antigos tempos do sagrado Ari (meados do século 16), existem indicações destas técnicas sendo mal usadas por
pessoas inadequadas. O sagrado Ari, ele próprio exortava seus discípulos a evitarem as artes práticas da Cabalá, pois julgava
que esta prática não era autorizada, uma vez que o estado de pureza espiritual necessário para o trabalho no Templo Sagrado
continua inatingível. A exortação do Ari, em efeito, adiava a prática dos rituais de Cabalá até o dia em que o Templo for
reconstruído e a pureza necessária para tais serviços for restaurada.

O serviço no Templo realmente provia a estrutura primária na qual o aspecto prático da Cabalá se desenvolveu. O rito
principal da tradição prática – a enunciação do Nome essencial de D’us – era uma peça central dos ritos do Templo
conduzidos pelo Sumo Sacerdote no Yom Kipur. Como outros aspectos da tradição prática, a fórmula exata da pronúncia do
Nome de quatro letras foi passado adiante, em segredo, de geração a geração do Sumo Sacerdote. Em certo momento, foi
determinado que esta fórmula não deveria ser mais transmitida, pois os indivíduos designados para o Sumo Sacerdócio se
mostraram cada vez mais corruptos e inadequados para a execução desta sensível e espiritualmente exigente prática. Pela
suspensão do pronunciamento cerimonial do Nome de D’us no Templo, os Rabis criaram um precedente para aqueles —
como o Ari — que, em gerações posteriores, argumentaram contra a prática da Cabalá ritual.

Realmente, o temor de Ari provou estar bem fundamentado já que, nos séculos seguintes, pudemos testemunhar a
emergência de movimentos pseudocabalísticos, motivados pelo oportunismo ou pela espiritualidade mal orientada, que
comprometeram a fé de Israel assim como a reputação dos objetivos legítimos da Cabalá. O estudo dos fundamentos
conceituais da Cabalá dentro do contexto de um compromisso inabalável às leis normativas da Torá forneceu a melhor
proteção contra estas formas corruptas de prática cabalística.

Como indicado acima, não existe uma demarcação clara separando os elementos contemplativos da Cabalá daqueles com
objetivos de influenciar e alterar a realidade. Assim como a Cabalá iyunit pode influenciar, através de seu sistema de kavanot
(meditações guiadas) — a configuração das forças Divinas que impingem sobre nossa realidade — assim também é a eficácia

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de “Cabalá prática” baseada no conhecimento da teoria e doutrina cabalísticas. Talvez o mais famoso caso de prática
cabalística – a confecção de um golem em Praga no século 16 – envolveu ninguém além do grande e santo estudioso Rabi
Yehuda Loew, um proeminente interpretador da tradição contemplativa.

A Vantagem da Sabedoria Sobre a Profecia

A tradição contemplativa, enquanto opera no âmbito do intelecto rotineiro, provê o meio ideal de se obter o esclarecimento
Divino. É explicado na Cabalá que a capacidade de reflexão interna deriva de um mundo celestial (o das “almas”)
hierarquicamente superior àquele do qual derivam as forças exóticas elicitadas pela prática da Cabalá (o dos “anjos”). A
elevação do pensamento ao ponto onde ele convida a sabedoria e entendimento Divinos constitui o auge da realização
espiritual.

De acordo com a tradição cabalística, o objetivo da Criação é prover D’us com um “local de moradia nos mundos inferiores”,
um objetivo que atinge sua realização pelo direcionamento da luz Divina aos “veículos” progressivamente mais densos do
pensamento, sentimento e ação humanos, e, daí, para o resto do mundo material, como já citado anteriormente. Trabalhando-
se no âmbito da consciência mundana, a tradição contemplativa nos torna sensíveis às infinitas nuances Divinas dentro da
Criação. Por esta razão, a profecia, que transcende a experiência mundana, não é capaz de prover o verdadeiro
esclarecimento.

A vantagem da chochmá (“sabedoria”) sobre a nevuá (“profecia”) como um caminho para o esclarecimento é evidente nos
ensinamentos de nossos Sábios de que “o homem sábio é maior que o profeta”. Através da profecia, pode-se chegar à
aproximação final com o pensamento Divino, mas sem necessariamente impactar o eu ou a Criação como um todo. É o
padrão mais alto de caráter e inteligência o qual é dito preponderar sobre a profecia, e não o contrário.

Sabedoria, pela virtude de sua conceitualização e abstração, serve para generalizar a experiência do mundo na terminologia
da consciência ordinária, assim fazendo-o comunicável aos outros. A experiência profética, apesar de extraordinariamente
vívida em suas imagens, está dissociada da realidade do “aqui-e-agora” e, assim, permanece essencialmente impenetrável
pelos outros. O único indivíduo para quem sabedoria e profecia se mesclaram em um único canal de entendimento foi Moshe,
que foi capaz de receber profecias enquanto ainda retinha suas faculdades rotineiras, portanto provendo o modelo mais
representativo de daat (“conhecimento”) purificado. Ele era não só o mais sábio dos homens como também o mais adaptado
às coisas Divinas; o único humano que podia, como o fez, encontrar D’us “na metade do caminho subindo a montanha”.

A tradição cabalística, apesar de baseada na experiência profética de nossos antepassados e sábios, veio mudando
constantemente ao longo do tempo na direção de uma maior e mais sutil articulação conceitual. Isto é mais do que apenas
uma conseqüência do fato do homem ter se distanciado mais e mais da experiência direta do Divino; é uma parte do plano
fortuito que vê o grande benefício para D’us e a Criação na cultivação de uma consciência espiritual firmemente baseada na
realidade mundana. Este plano é evidente em inúmeros versículos da Torá, tais como os que seguem, contidos no livro de
Yeshayahu (11:9 e 52:8): “A terra estará repleta do conhecimento Divino como as águas cobrem o mar... olho no olho, eles
verão o retorno do Senhor a Tzion...”

A Cabalá, como uma estrutura dentro da qual judeus historicamente desenvolveram seu entendimento original da realidade,
representa um legado tanto de profecia quanto de sabedoria. Isto pode ser avaliado através da guematria (numerologia
judaica) da própria palavra Cabalá (137), que é igual ao valor combinado das palavras chochmá (“sabedoria” = 73) e nevuá
(“profecia” = 64). Através da sabedoria da Cabalá, aprendemos a “ouvir” o que nossos ancestrais “visualizaram” no Sinai. Uma
vez que plenamente compreendamos o significado conceitual daquela visão, começaremos, novamente, a “ver” D’us, porém
com nossos sentidos comuns intactos e não somente por um momento, mas permanente, mesmo após o evento.

Chassidut: A Fronteira Final da Cabalá

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A tentativa da Cabalá de trazer os mistérios da Criação mais próximos à própria experiência humana se expressou, talvez de
forma mais radical, através do pensamento e da tradição chassídicos. Esta abordagem revolucionária à espiritualidade judaica
foi revelada através do grande sábio do século 18, Rabi Israel Baal Shem Tov. Inicialmente praticando maravilhas, curando
doenças humanas através de poderes tanto naturais quanto sobrenaturais, o Baal Shem Tov lentamente evoluiu à condição
de facilitador e professor que teve sucesso em revelar a capacidade única dentro de todo ser humano de diretamente
provocar a misericórdia e benção Divinas.

Seus ensinamentos enfatizam aqueles componentes da experiência interna humana que se correlacionam com as forças
sobrenaturais discutidas na Cabalá clássica. Daí, ele avançou a contemplação cabalística para além dos limites da abstração
filosófica e para dentro da esfera da dedução psicológica imediata. Foi pela delineação da interface entre as sefirot e a psique
humana que a Chassidut desejou trazer o pensamento e a prática cabalísticos à sua fronteira final.

O desejo do Baal Shem Tov de prosseguir para além da convenção cabalística e forjar um novo caminho para o serviço
encontra expressão na seguinte história:

Certa vez o Ba’al Shem Tov lançou mão do uso de um Nome Divino para conseguir atravessar um rio intransponível, e depois
se lamentou por ter feito uso desnecessário de um poder Divino sobrenatural. Depois de passar vários anos expiando por
aquele único ato, ele, novamente, se encontrou na borda de um violento córrego, mas o cruzou usando nada mais que a
simples fé. Foi este recurso da fé, acessível a todo Judeu, e não os poderes de difícil compreensão da Cabalá prática, que o
Baal Shem Tov procurou aplicar na vida diária. Neste processo, ele destilou o espírito essencial da Cabalá, realçando tanto
sua relevância quanto impacto. Daí que, enquanto a Cabalá é referida no Zohar como a “alma da Torá”, a Chassidut foi
cunhada como sendo a “alma da alma da Torá”.

Realmente, a tradição clássica da Cabalá pode ser considerada chitzoni (“superficial”) em relação àquela da Chassidut, a
qual, ao focar na experiência imediata, identifica aspectos da Divindade que o sistema altamente formal e abstrato da indução
cabalística deixa inexplorado.

O determinante de quão profundo uma determinada tradição penetra os mistérios do ser Divino é o grau de bitul, ou “auto-
anulação”, implícita na abordagem daquela tradição. A Chassidut, ao enfatizar a Divindade inata da alma judaica, inspira um
maior grau de bitul que a Cabalá clássica com seu foco sobre a “evolução” do ser criado. Outra forma de dizer isto, consoante
com a própria terminologia do Baal Shem Tov, é que Chassidut avança o foco da tradição mística para além dos limites dos
olamot (“mundos”, a realidade de espaço e tempo) até o mundo mais sublime das neshamot (“almas”).

Por Rabino Yitzchak Ginsburgh, traduzido por Maurício Klajnberg

Rabino Yitzchak Ginsburg é fundador e diretor do Instituto Gal Einai: Instituto de Estudo Interdisciplinário Avançado de Torá, Arte e Ciências.
Renomado explicador de Cabalá e Chassidut, Rabino Ginsburg escreveu mais de quarenta livros esclarecendo tópicos de Torá como psicologia,
medicina, política, matemática e relacionamentos.

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