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A VISÃO DO ALTO

Vincent Cheung
Copyright @ 2009, de Vincent Cheung
Publicado originalmente em inglês sob o título
The View from Above

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


Editora Monergismo 
 SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato 

Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2020

Tradução: Marcelo Herberts


Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto

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Todas as citações bíblicas foram extraídas


da Nova Versão Internacional (NVI) salvo indicação em contrário.
Sumário
Prefácio
1. A visão do alto
2. Jesus e a Trindade
3. Jesus e a razão
4. Jesus e a revelação
5. Luz e trevas
6. Um homem enviado por Deus
7. Testemunha e testemunho
8. Quando a religião fica sem vinho
9. Você deve nascer de novo
10. Já condenado
11. Um mundo de metáforas
Prefácio

Minha intenção, a princípio, era que este livro fosse uma série de
reflexões concisas baseadas em passagens que abrangem todo
o Evangelho de João. Mas já no início ele começou a explodir em
algo que se tornaria bem mais longo. Como tenho outros projetos
dignos exigindo minha atenção, continuar o livro nos mesmos
moldes demandaria um tempo e esforço de que não posso dispor
no momento. Assim, decidi liberar os artigos finalizados, que
abrangem os quatro primeiros capítulos desse Evangelho. Em
sua forma atual, o livro fica muito aquém da amplitude do meu
plano original, mas compensa isso pelas exposições mais
detalhadas dos pontos que são abordados.
Ao apresentar episódios e discursos selecionados da vida de
Cristo, o Evangelho de João oferece uma filosofia celestial que é
superior a qualquer filosofia terrena e que se coloca em forte
contraste com esta. Minha intenção era demonstrar e fazer uma
exposição sobre isso ao ensinar sobre todo o Evangelho. Embora
este trabalho cubra agora somente quatro capítulos do Evangelho
de João, fico satisfeito por ele chamar atenção suficiente para
alguns dos princípios fundacionais dessa filosofia celestial que
chamamos de fé cristã e porque, como resultado disso, os
leitores devem poder ler o resto do Evangelho a partir dessa
perspectiva.
Embora este livro seja agora lançado como trabalho finalizado,
ainda é possível eu retomar meu plano original para ele em um
momento mais conveniente no futuro. Todavia, o mais provável é
então eu começar outro projeto para abordar algumas das demais
passagens do Evangelho de João.
Entrementes, meu desejo para este livro é que ele ajude os
leitores a apreciar a sabedoria e poder celestiais que nos foram
trazidos no Senhor Jesus para que não mais pensemos e
vivamos como pessoas “de baixo”. Antes, porque nascemos “do
alto” por meio de Jesus Cristo, embora permaneçamos neste
mundo não somos mais do mundo. Como cristãos pensamos,
falamos e agimos num plano superior — um nível completamente
superior de competência e inteligência.
Se os cristãos por fim entenderem e aplicarem esse princípio, ele
revolucionará todas as coisas. Derrubará suas muitas doutrinas e
políticas deficientes, tão emaranhadas em tradições humanas e
falsa humildade. E também colocará um fim na sua
contemporização com o mundo da incredulidade. Isto é, eles
saberão que em Cristo somos uma raça superior, e todas as
estratégias de apaziguamento parecerão então tolas e
desnecessárias.
Este livro leva o título do primeiro artigo, que também funciona
como uma introdução para o resto da coleção.
1. A visão do alto

Aquele que vem do alto está acima de todos; aquele que é da terra
pertence à terra e fala como quem é da terra. Aquele que vem dos
céus está acima de todos. Ele testifica o que tem visto e ouvido, mas
ninguém aceita o seu testemunho. Aquele que o aceita confirma que
Deus é verdadeiro. (Jo 3.31-33)

A verdade é una por definição. É singular — só há uma verdade e


não muitas verdades. É autoconsistente — não há
autocontradição na verdade. É exclusiva — qualquer coisa que
contradiga a verdade deve ser falsa. Existem, todavia, muitas
filosofias que afirmam ser a verdade. Aqui, refiro-me à filosofia no
sentido geral de um princípio, de um modo de pensar e
principalmente de um sistema de pensamento. A religião está
inclusa nesse significado da palavra, mas se você suspeita da
palavra em uma discussão sobre a fé cristã, pode substitui-la por
crença, pensamento ou talvez doutrina.
Embora pareçam existir muitas filosofias, cada qual com seus
próprios métodos, premissas e conclusões, só existem na
verdade duas filosofias principais. Existe uma filosofia do alto, a
filosofia celestial. Existe uma filosofia de baixo, a filosofia terrena.
Uma consiste de revelação. A outra consiste de especulação.
Uma é uma mensagem do céu. A outra é opinião do homem.
Uma vem de um Deus todo-poderoso e onisciente. A outra é
produto de ilusões, invenções e preferências humanas. É
resultado das ilusões do homem porque ele ilude a si mesmo ao
acreditar que seus métodos podem descobrir a verdade. É
resultado das invenções do homem porque muitas vezes ele
simplesmente inventa coisas. E é resultado de suas preferências
porque seus métodos, suas ilusões e invenções foram escolhidos
para agradar suas disposições pecaminosas e eximi-lo das
exigências de Deus.
A filosofia de baixo é uma tentativa de escapar da filosofia do alto
ou de substitui-la. Assim, embora haja uma aparência de
variedade, todas as filosofias não cristãs se reduzem a uma, pois
são todas de fato filosofias terrenas. Elas nunca se elevam acima
dos princípios subjetivos e irracionais de meros homens. Esta é a
simples linha divisória: revelação divina ou especulação humana.
Um teólogo escreveu: “Todo ensino da Escritura é aparentemente
contraditório”. Essa declaração, obviamente, é uma blasfêmia.
Ele nunca foi capaz de oferecer uma explicação aceitável ou
demonstrar que as doutrinas da Escritura são todas
aparentemente contraditórias; e seus seguidores foram
totalmente malsucedidos em justificar essa e outras declarações
semelhantes feitas por ele. Contudo, ele era professor de
apologética e foi e ainda é aclamado como um dos maiores
defensores da fé no século passado.
Meu interesse não é discutir seu pecado de blasfêmia, mas
explicar esse pecado nos termos da nossa presente discussão.
Por que o teólogo blasfemou? Ele estava convicto de sua posição
sobre a incompreensibilidade de Deus, o que o levou a insistir
que nosso conhecimento de Deus não passa de um
conhecimento analógico. Essa visão de Deus não era derivada da
Escritura, mas imposta à Escritura, de modo que ele não
considerava apenas Deus incompreensível, mas também a
Escritura. Assim, ele disse que a “Escritura é aparentemente
contraditória” — ela toda.
Mostrei em outra publicação que a Bíblia na verdade não ensina
que Deus é incompreensível. Deus não é em si mesmo
incompreensível, pois do contrário não poderia conhecer a si
mesmo plenamente e isso contradiria sua onisciência. Ele só nos
é incompreensível no sentido de que é infinito, de modo que há
sempre mais a saber sobre ele do que já sabemos. Mas o que
nós sabemos, sabemos univocamente e não analogicamente — a
menos que não o saibamos de fato.
Portanto, o atributo divino relevante é a sua infinitude e não sua
incompreensibilidade, que não é realmente um atributo divino.
Mas agora reflita um pouco. O que levaria uma pessoa a pensar
que a incompreensibilidade é um atributo divino, quando a Bíblia
não ensina tal coisa e quando ela não se encaixa em outros
atributos divinos claramente definidos? A resposta é que a
doutrina é uma projeção de um atributo humano, que o homem é
finito. Quer compreendamos Deus plenamente, quer não, ele é
plenamente compreensível em si mesmo, uma vez que
compreende plenamente a si mesmo. Quando afirmamos ou
sugerimos que ele não é plenamente compreensível em si
mesmo — que esta característica é um atributo divino —,
impusemos a implicação de um atributo humano sobre nossa
compreensão de Deus. Quando fazemos isso, não estamos
falando sobre Deus como ele se nos revela, mas como homens
terrenos que falam sobre coisas terrenas. Como Deus não é uma
coisa terrena, quando prosseguimos em nossa maneira terrena
de falar ao nos referir a ele, o resultado é confusão, heresia e até
mesmo o grande pecado da blasfêmia.
Esse teólogo gostava de dizer que devemos “pensar os
pensamentos de Deus após ele”, mas isso era algo que ele não
fazia. Porque se apegava à filosofia de baixo, não falava sobre
Deus da maneira que a própria Escritura fala sobre Deus — da
maneira que Deus fala sobre si mesmo. A menos que Deus
confesse que seus próprios pensamentos sobre si mesmo
envolvem aparentes contradições, ou a menos que Deus
confesse que sua própria revelação sobre si mesmo envolve
aparentes contradições, não cabe a esse teólogo determinar isso.
Uma pessoa que pensasse os pensamentos de Deus depois dele
afirmaria que sua revelação verbal é obviamente não contraditória
e inegavelmente autoconsistente. Ela rejeitaria todo esse lixo
sobre como é impossível entender um Deus infinito de maneira
imediatamente coerente — o Deus onisciente e onipotente nos
criou e sabia como falar conosco, mesmo em nossa condição
caída.
Se Deus é autoconsistente, sabe que é autoconsistente e se
revela como autoconsistente, uma pessoa só pode perceber
aparentes contradições nas palavras de Deus sobre si mesmo
por causa de algo no homem — por causa da maneira que o
homem compreende e percebe as coisas. Mas isso é o contrário
de pensar os pensamentos de Deus após ele. Antes, é insistir no
uso de nossa própria perspectiva ou nossos próprios
pensamentos ao examinar e interpretar os pensamentos de Deus.
É pensar os pensamentos do homem sobre Deus, inclusive à
parte da e em antagonismo com a revelação de Deus sobre si
mesmo. Esse modo de pensar se recusa a aprender com Deus
como devemos pensar sobre Deus.
Assim, a filosofia do alto acabou invadindo os pensamentos dele
e colidindo com seus pensamentos em vez de convertê-los. E as
contradições que ele percebeu não eram contradições que
apareciam na revelação, mas contradições entre a filosofia do
alto que estava na Escritura e a filosofia de baixo que estava na
mente dele e que ele se recusava a abandonar.
Isso era evidente em seu método de apologética, no qual
aprovava os métodos de descoberta criados pelo homem,
incluindo a confiabilidade da sensação e o método científico. Ele
alegava que pressuposições bíblicas os justificavam. Mas mostrei
em meus outros trabalhos que esses métodos são em si mesmos
falsos e irracionais. É impossível que levem a conclusões
verdadeiras sobre o que quer que seja. Dizer que pressuposições
bíblicas os justificam é dizer que essas pressuposições bíblicas
também são falsas e irracionais.
Ele fez muito barulho sobre forçar a antítese entre o pensamento
cristão e o não cristão, mas até no próprio fundamento de seu
sistema de pensamento ele tentava fazer a filosofia divina
endossar a filosofia humana, fazer a filosofia da autoridade
apaziguar e aprovar a filosofia da rebelião. Deste modo, defendia
na teoria a revelação divina, mas retinha na prática todos os
males e falácias da especulação humana.
Apesar de sua pretensão, ele não podia deixar de lado seu
pensamento centrado no homem, e por essa mesma razão é que
muitas pessoas continuam a segui-lo. Essa filosofia oferece uma
máscara de submissão à revelação, mas é no âmago uma
subversão da revelação, e os métodos e julgamentos do homem
são zelosamente guardados até mesmo como precondições para
se entrar no conhecimento da revelação. Esse teólogo estava tão
obcecado em justificar dentro de si essa tensão e tão possuído
pelo impulso de fazer a filosofia celestial se curvar à sua filosofia
terrena que chegou mesmo a se juntar a outros para perseguir
aqueles que afirmavam que a revelação de Deus é clara e
coerente de modo que todas as aparentes contradições podem
ser facilmente resolvidas.
Em todo caso, pela sua própria natureza, as aparentes
contradições dizem algo sobre a pessoa que as percebe e não
sobre o assunto que supostamente contém as contradições. Se
você vê uma contradição onde nenhuma existe — sendo isso o
que significa ver uma aparente contradição —, tudo o que isso
nos diz é que há algo errado com você. Você é de alguma forma
defeituoso. E se vê uma contradição na doutrina clara e coerente
de Deus, tudo o que isso nos diz é que há algo errado com você.
Para resolver isso, precisaríamos não apenas explicar a Bíblia a
você; teríamos de ajustar sua perspectiva e sua atitude.
No entanto, é possível compartilhar a visão do alto? É possível
apreender e adotar os pensamentos de Deus, o modo de pensar
de Deus? Essa é uma questão das mais importantes. Embora
afirmasse que isso é possível, esse teólogo não acreditava
realmente nisso; e perseguiu aqueles que sabiam melhor do que
ele — e pensava estar prestando um serviço a Deus. Mas ele não
foi o único. Enquanto a filosofia terrena sobreviver, perseguirá a
filosofia celestial. Pela luz do céu, os pensamentos do homem
são expostos como inferiores e irracionais, mas em sua rebelião o
homem se recusa a renunciar a eles.
Devemos tomar isso como uma advertência, pois é comum se
apelar à incompreensibilidade de Deus para justificar a recusa do
homem em aceitar a revelação. Como essa desculpa atrai a
atenção para a grandeza de Deus, ela parece honrá-lo, mas o
efeito é negar o que ele nos revelou — a clareza e simplicidade
disso — no intuito de proteger as crenças e opiniões humanas ou
justificar a recusa em adotar essa filosofia superior e verdadeira.
A admissão de incompetência dá uma aparência de humildade e
ao mesmo tempo serve de pretexto para a recusa em mudar. A
admissão de finitude, quando feita por esse motivo, é oferecida
apenas para preservar o conforto da pessoa. É uma falsa
humildade. Deus não se deixa ludibriar por ela.
Permita-me dar outra ilustração, a fim de que você não pense que
estou mirando apenas uma pessoa para criticar. Num sermão
sobre o salmo 73, em que o salmista tropeça na prosperidade dos
ímpios, Lloyd-Jones diz: “estamos lidando com os caminhos do
Onipotente Deus, e com bastante frequência Ele nos falou em
Seu Livro: ‘Os meus pensamentos não são os vossos
pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos’.
Metade do problema surge do fato de que não percebemos que
esta é a posição básica da qual sempre devemos partir”.[1] Essa
declaração é então usada para justificar a afirmação de que a
perplexidade sobre os caminhos de Deus, como a experimentada
pelo salmista, não é “surpreendente” nem “pecaminosa”.[2]
O versículo que ele cita vem de Isaías 55. Leremos os versículos
8 e 9 (NAA): “‘Porque os meus pensamentos não são os
pensamentos de vocês, e os caminhos de vocês não são os
meus caminhos’, diz o S . ‘Porque, assim como os céus
são mais altos do que a terra, assim os meus caminhos são mais
altos do que os seus caminhos, e os meus pensamentos são
mais altos do que os pensamentos de vocês’”. O versículo 9 torna
essa passagem especialmente relevante para nós, pois afirma
que os pensamentos de Deus são mais altos do que os
pensamentos do homem assim como os céus são mais altos do
que a terra. Isso coincide com nossa consideração sobre a
filosofia do alto e a filosofia de baixo.
A questão é se é possível que meros homens compreendam e
adotem a filosofia do alto. E essa questão é respondida por Paulo
em 1 Coríntios 2:
Todavia, como está escrito: Olho nenhum viu, ouvido nenhum
ouviu, mente nenhuma imaginou o que Deus preparou para
aqueles que o amam; mas Deus o revelou a nós por meio do
Espírito. O Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as
coisas mais profundas de Deus. Pois quem conhece os
pensamentos do homem, a não ser o espírito do homem que
nele está? Da mesma forma, ninguém conhece os
pensamentos de Deus, a não ser o Espírito de Deus. Nós,
porém, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito
procedente de Deus, para que entendamos as coisas que
Deus nos tem dado gratuitamente. Delas também falamos,
não com palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas
com palavras ensinadas pelo Espírito, interpretando
verdades espirituais para os que são espirituais. Quem não
tem o Espírito não aceita as coisas que vêm do Espírito de
Deus, pois lhe são loucura; e não é capaz de entendê-las,
porque elas são discernidas espiritualmente. Mas quem é
espiritual discerne todas as coisas, e ele mesmo por ninguém
é discernido; pois quem conheceu a mente do Senhor para
que possa instruí-lo? Nós, porém, temos a mente de Cristo.
(1Co 2.9-16)

O versículo 9 diz que o homem não imagina a filosofia celestial,


mas então o versículo 10 diz que Deus a revelou a nós. O
versículo 11 diz que somente o Espírito conhece os pensamentos
de Deus, mas então o versículo 12 diz que Deus nos dá seu
Espírito para que possamos conhecer esses pensamentos. E o
versículo 13 diz que a revelação desses pensamentos toca até
mesmo as palavras usadas para comunicá-los a nós. Essas não
são apenas palavras ditas a nós que podemos entender ou não.
Paulo diz que o Espírito lhe ensinou as palavras, e depois ele
usou essas palavras para ensinar os outros. A passagem é uma
garantia de que o cristão pode compreender e até ensinar a
filosofia celestial.
Que tipo de pessoa acharia as palavras de Deus aparentemente
contraditórias? “Quem não tem o Espírito não aceita as coisas
que vêm do Espírito de Deus, pois lhe são loucura; e não é capaz
de entendê-las, porque elas são discernidas espiritualmente.”
Como pode ser isso, se Deus é tão elevado e incompreensível, e
somos tão finitos em nossa mente e pensamentos? Mas quem
disse que você deve se apegar à sua própria mente e seus
próprios pensamentos? Paulo responde: “temos a mente de
Cristo”.
Portanto, Lloyd-Jones faz um apelo ilegítimo à declaração “os
meus pensamentos não são os vossos pensamentos”. Usar essa
declaração para justificar a perplexidade com os caminhos de
Deus ou até com a bondade de Deus é algo enganoso e
irresponsável. Os pensamentos de Deus são mais altos do que
os nossos pensamentos, mas quem disse que estamos presos
aos nossos pensamentos? Ele revelou seus pensamentos na
Escritura. O autor diz que a perplexidade com Deus não é
pecaminosa. Mas se estamos perplexos com os caminhos de
Deus porque deixamos de ler a Escritura, é claro que isso é
pecaminoso. E se lemos a Escritura mas permanecemos
perplexos com a prosperidade dos ímpios, como isso não é
pecaminoso? Sua declaração equivale a dizer “Não é pecado
nunca ter lido a Escritura e não é pecado ter lido a Escritura e agir
como se nunca a tivesse lido”. Que insulto isso é para Deus e a
Escritura.
Ele diz que devemos partir de uma perplexidade com os
caminhos e pensamentos de Deus: “Metade do problema surge
do fato de que não percebemos que esta é a posição básica da
qual sempre devemos partir”. Essa declaração desculpa o pecado
e encoraja uma rebelião no povo de Deus. Nosso problema está
exatamente do lado oposto disso. Está em insistir que essa é a
posição da qual sempre devemos partir. Por causa da
incredulidade e rebelião, insistimos que devemos partir das
suposições do homem; e, como os caminhos de Deus diferem
das nossas expectativas, sucede que devemos partir da
perplexidade com a sabedoria e bondade de Deus. Ouça! Somos
cristãos ou não? Se somos, podemos partir dos pensamentos de
Deus — e partir de uma posição de confiança, entendimento e
obediência. Qualquer coisa menos que isso é pecado. De fato,
alguns de nós podem ser fracos às vezes, e Deus nos perdoará
quando tropeçarmos; mas não zombemos de Deus dizendo que
devemos partir do pecado.
Tudo isso é relevante porque ilustra um tema amplo presente no
Evangelho de João. Jesus era do alto e falava como alguém do
alto. Os homens que o ouviram eram de baixo e falavam como
alguém de baixo. Quando Jesus veio e deu testemunho das
coisas do céu, entrou em choque com aqueles que afirmavam
uma filosofia de baixo. Aqueles que não converteram seu modo
de pensar se tornaram hostis e o perseguiram. Mas aqueles que
creram nele foram mudados e iluminados, de modo a Jesus dizer
que, embora ainda estivessem no mundo, eles não eram mais do
mundo. É o que ele chamou de nascer de novo ou nascer do alto.
E disse que, a menos que um homem nasça de novo ou nasça do
alto, não pode nem mesmo ver o reino de Deus. Com isso, Jesus
não se referia à visão física, mas a uma percepção espiritual ou
compreensão intelectual das coisas de Deus.
Ao descrever episódios selecionados da vida e ensino de Jesus
Cristo, o Evangelho de João apresenta uma filosofia celestial —
isto é, a visão do alto. Há uma constante tensão entre essa
filosofia celestial e a filosofia terrena. E ao longo desse Evangelho
você verá como os homens de baixo interpretaram mal,
deturparam e entraram em conflito com essa filosofia do alto.
Como as duas filosofias eram afirmadas por pessoas, elas são
naturalmente personificadas em Cristo e seus discípulos e nos
judeus, fariseus, gregos, romanos e assim por diante. E o conflito
entre esses dois modos distintos e opostos de pensar era
encenado pelos envolvidos na história de Jesus Cristo.
A fé cristã é uma palavra, uma revelação, uma filosofia de outro
mundo, mesmo do alto. Ao estudarmos o Evangelho de João,
minha oração é que a doutrina do alto não apenas invada sua
mente, de modo a perturbá-la, mas subjugue sua mente e a
converta, para que crendo no Senhor Jesus você também tenha
vida através dele.
2. Jesus e a Trindade

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era


Deus. (Jo 1.1, NAA)

João explica o propósito de seu Evangelho da seguinte forma:


“Mas estes foram escritos para que vocês creiam que Jesus é o
Cristo, o Filho de Deus e, crendo, tenham vida em seu nome” (Jo
20.31). Ele não diz isso até chegar ao final de seu Evangelho,
embora a doutrina seja repetidamente afirmada e ilustrada no
texto. Pode ser que ele quisesse nos guiar a essa conclusão ou
nos guiar para chegarmos a essa conclusão com ele à medida
que apresentasse episódios da vida e dos ensinamentos de
Jesus Cristo.
Em todo caso, a proposição central que João defende por esse
Evangelho é “Jesus é o Cristo, o Filho de Deus”. E João defende
a proposição porque é crendo nela que os homens “[terão] vida
em seu nome”. Assim, sabemos que esse Evangelho é sobre
Jesus Cristo, e Jesus Cristo era a encarnação do Filho de Deus.
Ou seja, Deus assumiu uma natureza humana e viveu na terra
por um tempo. Ele era o Deus-homem.
Todavia, João começa seu Evangelho sem mencionar o Deus-
homem. Ele não torna a encarnação explícita até 1.14. Alguém
poderia argumentar que ela é sugerida nos versículos anteriores,
mas eles apenas indicam que “o Verbo” estava no mundo e não
que ele se fez carne. A ideia de que os versículos anteriores
poderiam se referir à encarnação deve ser projetada sobre eles
depois que os versículos posteriores foram entendidos. E João
não chama o Filho encarnado de Deus de Jesus Cristo até 1.17.
Ao contrário, ele começa com várias declarações definidas e
precisas sobre “o Verbo” sem qualquer consideração da
encarnação ou do nome de Jesus.
João não introduz seu assunto imediatamente como Jesus Cristo,
porque traça a história dessa pessoa a uma época anterior à
encarnação, afirmando que ele já existia. E, na verdade, traça a
história dessa pessoa a um ponto anterior à própria criação,
afirmando que ele já existia mesmo naquele ponto, que ele não
era uma criatura, mas aquele que fez todas as coisas. O que ele
chama de “o Verbo” não assumiu uma natureza humana até
chegar o tempo designado por Deus. Como escreve Paulo: “Mas,
quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho,
nascido de mulher, nascido debaixo da Lei” (Gl 4.4). Embora
tivesse nascido como uma pessoa humana naquele tempo, ele já
existia como o Verbo antes mesmo do tempo.
Isso não mina a encarnação; na verdade, realça e explica a
doutrina. Essa abordagem realça a doutrina porque a encarnação
perderia todo o significado se fosse tomada como o nascimento
de uma pessoa humana comum que veio à existência na
concepção. De fato, não seria uma encarnação especial de
absolutamente nada. Mas João realça a encarnação ao chamar
atenção para a condição pré-encarnada do Verbo. Então, essa
abordagem explica a encarnação porque nos diz o que foi que
encarnou e quem foi que veio ao mundo. A natureza divina é
considerada por si só antes de a encarnação ser mencionada.
Portanto, ao iniciar seu Evangelho com a identidade e atividade
do Verbo antes de falar da encarnação, João nos esclarece a
natureza de Cristo — que nele havia a natureza divina, a qual se
fez carne, de modo que também havia a natureza humana.
Talvez por causa de seu zelo em exaltar a necessidade e
realidade da encarnação, algumas pessoas afirmam muito mais
do que têm garantia bíblica para fazer. É comum alguns crentes
insistirem que o Filho de Deus não pode ser considerado à parte
da encarnação, sendo até mesmo alegado que Deus não pode
ser entendido sem a revelação pessoal do Filho de Deus em seu
estado encarnado. Aqueles que pensam dessa forma podem se
congratular por renderem tanta honra a Cristo como o Deus-
homem, mas estão errados. João faz aqui exatamente o que eles
dizem que não pode e não deve ser feito. Ele fala sobre “o Verbo”
inteiramente à parte da encarnação.
É errado dizer que não poderíamos saber como Deus realmente
é até que o Filho de Deus se fizesse carne e nos mostrasse por
suas palavras e ações como Deus é, pois essa doutrina equivale
a uma negação de todo o Antigo Testamento. Também é errado
supor que Jesus veio para nos mostrar algumas das principais
dimensões do caráter de Deus que não haviam sido claramente
reveladas antes, como seu amor e perdão, pois o Antigo
Testamento alude explícita e repetidamente ao amor e perdão de
Deus e a outros atributos que os ignorantes consideram
peculiares à revelação de Jesus Cristo.
Além disso, seria errado sugerir que Cristo veio para nos mostrar
um caminho de salvação que era antes desconhecido. Pois o
evangelho foi pregado à humanidade logo no início, quase
imediatamente após nossos primeiros pais caírem no pecado; e
então as ideias da expiação, fé e arrependimento foram
declaradas ao longo dos séculos pelos profetas. Jesus Cristo veio
cumprir esses ensinamentos há muito já revelados no Antigo
Testamento.
Algumas doutrinas do Antigo Testamento poderiam sugerir a
encarnação ou se referir a ela na forma de predições, mas meu
ponto é que elas foram reveladas antes de o Verbo encarnado vir
em carne para falar-nos dessas doutrinas. Elas foram reveladas
pela inspiração do Espírito aos profetas, declaradas por eles e
entendidas pelos seus ouvintes antes e à parte da encarnação do
Verbo. Mesmo agora é possível discutir sobre Deus, até mesmo
sobre o Filho de Deus, sem pensar na encarnação, como o
próprio João faz no início do seu Evangelho. É de fato possível
conhecer e discutir a natureza de Deus totalmente à parte da
encarnação. O mesmo vale para o Espírito Santo — o Antigo
Testamento nos dá ensinos sobre ele que são perfeitamente
inteligíveis, embora dados antes da encarnação.
Mais uma vez, isso não significa desvalorizar a encarnação, mas
corrigir uma piedade equivocada e uma alegação exagerada em
relação a ela. É errado exaltar o Verbo encarnado com a
implicação de que a porção mais antiga da Escritura era quase
totalmente inútil. Outro ponto a considerar é que se o Verbo é a
revelação de Deus, a expressa imagem do Pai, o embaixador
intelectual divino da Deidade, então o Antigo Testamento é sua
revelação tanto quanto o Verbo encarnado ou as palavras do
Novo Testamento. Ele esteve se revelando — de forma clara,
precisa e significativa — desde o início. Assim, ao honrar a
revelação trazida a nós pelo Verbo encarnado, devemos ter
cuidado para não insultar ou negar a revelação trazida a nós pelo
Verbo pré-encarnado.
À parte de qualquer relação com a encarnação, o Verbo “era
Deus” e “estava com Deus”. Que o Verbo “era Deus” refere-se à
divindade do Verbo. Foi esse “Verbo” que se fez carne, que
assumiu uma natureza humana; e o Deus-homem foi chamado
Jesus, que era o Cristo. A divindade do Verbo não foi afetada
pela humanidade que ele assumiu nem se misturou com ela;
porém, as duas naturezas se uniram em uma união permanente,
de modo que seria correto e preciso nos referir a Jesus Cristo
como Deus ou homem ou como Deus e homem.
O Verbo “era Deus”, mas João acrescenta que o Verbo estava
“com Deus”. Isso mostra que é possível fazer uma distinção entre
o Verbo e aquele, neste contexto, chamado de “Deus”. A doutrina
da Trindade é sugerida aqui. Embora João 1.1 não mencione o
Espírito Santo, há passagens na Bíblia que ensinam o que lemos
aqui sobre o Verbo — que o Espírito Santo é Deus, uma
divindade, e que ele pode ser distinguido do Pai e do Filho.
Quando membros da Deidade são distinguidos, a palavra “Deus”
se refere geralmente ao Pai; caso contrário, “Deus” denota a
Deidade inteira — a Trindade. Assim, nosso versículo diz que
Jesus era Deus no sentido de que era uma divindade; e que ele
estava com Deus no sentido de que era distinguível de Deus o
Pai.
Novamente, essa informação serve para indicar o que ou quem
foi que veio ao mundo, que encarnou. A resposta de João é que
foi o Verbo, ou Deus o Filho, que assumiu uma natureza humana
e viveu entre os homens na pessoa de Jesus Cristo. Ao longo do
Evangelho, Jesus alude ao fato de ter sido enviado pelo Pai, que
está ensinando as palavras do Pai e realizando as obras dele.
Isso seria ininteligível se não houvesse uma distinção entre Jesus
e o Pai, embora Jesus afirme ser o próprio Deus. A Trindade dá
perfeito sentido a isso. João 1.1 nos prepara para isso e observa
que esse relacionamento já existia antes da encarnação, não que
era um efeito da encarnação.
A fé cristã afirma que há um só Deus e que Deus é uno. A
objeção contra a doutrina da Trindade é que ela contradiz o
monoteísmo. Os cristãos geralmente admitem que há uma
contradição aparente, e alguns parecem curiosamente felizes
com isso. Mas a ideia de uma contradição “aparente” é subjetiva
e, portanto, inútil — a não ser para expor a condição perturbada e
a incompetência daquele para quem essa contradição é aparente.
Ou há uma contradição ou não há. Se a pessoa vê uma
contradição lógica onde não há nenhuma, isso não diz nada
sobre o assunto em discussão, mas diz que a pessoa é
logicamente delirante. Se a fé cristã se contradiz com sua
doutrina da Trindade, a doutrina não pode ser verdadeira. Mas se
não há nenhuma contradição, não deve tampouco haver uma
aparente. Ao contrário do comportamento cristão comum,
perceber uma contradição aparente não é motivo de orgulho, se
queremos dizer que alguém percebe uma contradição onde não
há nenhuma.
Uma explicação-padrão oferecida aos que sofrem da ilusão lógica
de que a doutrina contradiz o monoteísmo é bem-sucedida. O
princípio básico é observar que só ocorre uma contradição
quando se afirma que algo é isto e não aquilo ao mesmo tempo e
no mesmo sentido. A doutrina da Trindade é que Deus é um num
sentido e três em outro. Isso por si só basta para evitar a
contradição, mesmo que não saibamos mais nada sobre a
Trindade — como a natureza precisa da união e a relação entre
os membros da Deidade. Desde que Deus não seja um e três no
mesmo sentido, não há contradição.
Pensemos nisso de outra maneira.
Até onde posso me lembrar, quando aprendi sobre a doutrina da
Trindade quando criança, não me ocorreu que alguém pudesse
considerá-la uma contradição com a doutrina de que há um só
Deus verdadeiro. Mesmo ciente do suposto problema, ele não me
impressionava. Na verdade, a primeira vez em que realmente
tomei ciência dele foi quando adolescente li a resposta de um
cristão para ele.
E por quê? Não porque me faltasse compreensão da ideia de
contradição. Mesmo quando criança eu sabia que as várias
religiões se contradizem mutuamente, que o Deus cristão não é
como Buda ou qualquer divindade ou figura não cristã — essas
coisas me eram muito claras. Eu entendia o politeísmo, que ele
contradiz o monoteísmo, e nunca achei que a Trindade fosse algo
parecido com um politeísmo. Assim, entendia a ideia de
contradição e podia distinguir entre religiões que se contradiziam
mutuamente. Mas não via nenhuma contradição, aparente ou
real, na doutrina da Trindade.
Ao contrário, eu não via nenhuma contradição porque a Trindade
era o único Deus que a Escritura cristã me apresentara desde o
início. O Deus cristão jamais me fora apresentado como uma
antitrindade. Em outras palavras, eu nunca havia aceitado as
definições pagãs de Deus como fundacionais e então as refinado
até chegar ao conceito cristão de Deus. Nunca tive necessidade
de tornar a Trindade coerente com a ideia não cristã da unicidade
de Deus. O Deus cristão sempre tinha sido uma Trindade.
Se tomarmos um “deus” como definido pelos pagãos e o
multiplicarmos, teremos muitos deuses, um politeísmo. Mas se
considerarmos a revelação cristã em seus próprios termos ao
invés de compará-la ou acomodá-la à definição pagã, veremos
que a Escritura não define a unicidade de Deus de uma forma
aqui e de outra ali. Ela ensina que há um Deus e apenas um
Deus: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É isso o que significa
Deus. O que então queremos dizer quando afirmamos que há um
Deus? Queremos dizer que há apenas uma Trindade. Um
problema só ocorre quando contrabandeamos uma ideia não
cristã de Deus para dentro da discussão e depois tentamos fazer
o Deus cristão se encaixar nela.
A ideia cristã de Deus é uma Trindade. Ora, o Pai é Deus, o Filho
é Deus e o Espírito é Deus. Mas isso não significa que se Deus é
uma Trindade deve haver três Trindades ou que cada um é
apenas um terço da divindade; isso novamente deixa de
considerar a doutrina cristã em seus próprios termos.
Exemplificarei com a relação que existe entre o Filho e o Pai. O
Filho é Deus; e se refere ao Pai como se ele fosse distinguível do
Pai. Mas então o próprio Filho diz: “Eu e o Pai somos um” (Jo
10.30). Ou seja, ele pode ser distinguido do Pai, mas não
separado dele.
Obviamente, se Deus o Pai não existisse, não poderia haver uma
relação que tornasse o outro membro Deus o Filho. Ademais, se
o Pai pudesse perecer, ou a relação entre o Pai e o Filho pudesse
ser diferente, ou se o Pai e o Filho pudessem até mesmo
discordar, então, em primeiro lugar, essa não seria a ideia cristã
de Deus. As relações dentro da Trindade são intrínsecas à
definição da Deidade. Quando se diz que Deus o Filho é “Deus”,
entende-se que Deus é uma Trindade; e a relação do Filho com o
Pai está implícita, pois o chamamos de Filho. Portanto, não
dizemos “Deus, Deus, Deus”, mas “o Pai, o Filho e o Espírito”.
Nunca se deve tentar reconciliar o Deus cristão com alguma ideia
não cristã de monoteísmo. Toda ideia de “Deus” vem de uma
cosmovisão. Se vem da cosmovisão cristã, já estamos nos
referindo a uma Trindade, e todas as demais cosmovisões são
contestadas por nós imediatamente. Mas se a ideia de Deus vem
de uma cosmovisão não cristã, ela é diferente da visão cristã
desde o início, e a visão cristã não tem obrigação de adotar essa
definição externa em sua autodescrição. Se a Trindade fosse uma
comunidade de três “deuses” no sentido pagão, seria impossível
reconciliar isso com a ideia pagã de monoteísmo ou de uma
divindade não triúna. Mas a Trindade é um Deus no sentido
cristão, e essa ideia cristã de Deus inclui necessariamente o Pai,
o Filho e o Espírito, cujos próprios nomes reconhecem a Trindade
e implicam suas relações.
O Verbo, então, era Deus, uma divindade. Em termos de
Trindade, era Deus o Filho.[3] João começa seu Evangelho nos
preparando para aprender que Jesus de Nazaré era a
encarnação do Verbo, a encarnação da divindade. Sendo Deus,
Jesus possuía todos os atributos da divindade e toda a honra
devida à divindade, inclusive nossa adoração. João, ao longo de
seu Evangelho, ilustraria isso apresentando episódios ou retratos
dos discursos e milagres de Cristo; e através deles também nos
mostraria as implicações de sua vinda, especialmente no que diz
respeito à nossa salvação.
3. Jesus e a razão

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era


Deus (NAA). Estava chegando ao mundo a verdadeira luz, que ilumina
todos os homens. (Jo 1.1, 9, NVI)

A palavra grega traduzida como “Verbo” em João 1.1 é Logos.


Tem havido certo debate sobre o que João tinha em mente ao se
referir a Deus o Filho com esse termo. Alguns gregos
consideravam Logos o princípio racional do universo. Ele fornecia
a estrutura que mantinha todas as coisas unidas e regulava a
operação de toda a realidade. Esse mesmo princípio instilara a
razão no homem e lhe dera a capacidade de pensar, distinguir e
fazer deduções.
A questão é se João tinha esse Logos grego em mente ao aplicar
o termo ao Filho de Deus. Alguns temem que se isso for admitido
parecerá que João está emprestando um conceito grego para
usar em algo tão fundamental para a fé cristã que é a natureza de
Cristo. Outros sugerem que João não poderia ter o Logos grego
em mente porque há importantes diferenças entre o Logos do
Evangelho de João e o Logos do pensamento grego. Para os
gregos, Logos não era uma entidade pessoal, e eles teriam
rejeitado a ideia de o Logos poder assumir uma natureza humana
e andar entre nós.
As duas objeções são inadequadas e inconclusivas. Ainda que
João tivesse o Logos grego em mente ao escrever, isso não
significaria que seu Logos era uma adaptação do pensamento
grego, porque poderia ser uma resposta a ele. Por exemplo, eu
poderia tomar a ideia chinesa de “Rei do Céu” e usá-la como meu
ponto de partida para falar sobre o Deus cristão. Se isso é ou não
aconselhável, é uma questão à parte; mas é possível, desde que
eu observe as diferenças e acrescente no caminho as coisas que
estão faltando. Eu não estaria tomando emprestada a ideia de
Deus dos chineses, mas usando meu entendimento existente de
Deus para corrigir a concepção deles. Portanto, se os gregos não
concebiam um Logos pessoal que pudesse se fazer carne, isso
não tem nenhuma relevância para a questão. João poderia estar
afirmando que Deus o Filho é a realidade da qual o Logos deles é
apenas um tênue reflexo, introduzindo com isso a ideia de que o
Logos é na verdade pessoal e até veio em carne e osso.
Uma alternativa proposta é que João não tinha o Logos grego em
mente, mas o “Verbo” ou “Sabedoria” do Antigo Testamento e da
literatura judaica. Essa “Sabedoria” é dita como estando com
Deus desde o princípio e é considerada um agente na criação de
todas as coisas. Assim, pareceria haver mais semelhanças entre
isso e o Logos no Evangelho de João. Porém, não devemos
exagerar a implicação dessa observação. O fato de o “Verbo” no
Evangelho de João poder ter mais semelhanças com a
“Sabedoria” judaica do que com o Logos grego não é uma
indicação necessária de que João tinha em mente a Sabedoria
judaica em vez do Logos grego ou a Sabedoria judaica à
exclusão do Logos grego. Ainda é possível João ter tido o Logos
grego em mente, ou tanto a Sabedoria judaica quanto o Logos
grego, ou nem um nem o outro.
A questão tem importância secundária, pois o que esse
Evangelho e o resto do Novo Testamento dizem sobre Jesus
Cristo guarda um significado completo e inflexível
independentemente de qualquer contexto judaico ou grego que
João tivesse em mente. Todavia, o debate chama nossa atenção
para a questão de quem ou o que Jesus era em relação à criação
e operação do universo e para a natureza racional do homem.
Será que o Logos ordena e controla o universo? É o Logos quem
habilita o homem a pensar e raciocinar? Só podemos entender a
natureza do Logos a partir dos ensinos do Novo Testamento.
Por princípio racional do universo, queremos dizer a inteligência
que determina a estrutura da criação e o poder que regula sua
operação. Referimo-nos à Sabedoria que concebe o projeto e a
natureza de todos os vários objetos que existem na criação e ao
Poder que mantém os relacionamentos entre esses objetos.
Descobrimos que Cristo satisfaz essa descrição. Paulo escreve:
“pois nele foram criadas todas as coisas… todas as coisas foram
criadas por ele e para ele… e nele tudo subsiste. Nele estão
escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento”
(Cl 1.16-17, 2.3). Então, lemos em Hebreus 1.3: “O Filho é o
resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu ser,
sustentando todas as coisas por sua palavra poderosa”.[4] E
voltando ao Evangelho de João: “Nele estava a vida, e esta era a
luz dos homens… a verdadeira luz, que ilumina todos os homens”
(1.4, 9).[5]
Assim, em poucas palavras é dito que Cristo satisfaz a
concepção inteira do Logos grego e até mesmo a excede, na
medida em que é uma pessoa. Se Logos é a Razão, Cristo é a
Razão personificada. E o Verbo que se fez carne era a Razão
encarnada. Mais uma vez, a Escritura diz que toda a sabedoria e
conhecimento estão nele, que todas as coisas foram criadas por
ele e que ele é quem sustenta a criação. Note que ela não diz
apenas que ele criou e agora sustenta o universo, mas que ele é
caracterizado por “sabedoria e conhecimento”. Portanto, quer o
chamemos de Razão, de Sabedoria ou de Conhecimento, Cristo
é a Mente ou Inteligência divina que criou e agora sustenta o
universo. Ele satisfaz e excede o Logos grego; e é o que é
independentemente do Logos grego ou de termos ou não algum
contato com o pensamento grego. É perfeitamente legítimo
chamá-lo de Mente, Inteligência ou Razão.
Então, João tinha o Logos grego em mente? Isso não importa.
Mas Deus o Filho é o princípio racional do universo? Sim, é. Isso
faz de Jesus Cristo a encarnação da inteligência suprema, da
sabedoria e da razão. Portanto, os discípulos de Cristo são
racionalistas no sentido mais elevado da palavra. Os cristãos são
os discípulos da Razão. Sua revelação é nosso princípio primeiro,
e nosso conhecimento vem de deduções válidas dela. Embora
ele satisfaça a ideia de Razão e embora a Escritura afirme que
ele é a Mente que criou e agora sustenta o universo, alguns se
recusam a reconhecer isso por medo de parecer que estaríamos
apelando ao pensamento grego ou concordando com ele. Mas
isso é cuspir em Cristo sob o pretexto de desprezar os gregos.
Não importa o que os gregos pensavam. E, fora do Antigo
Testamento, não importa o que os judeus pensavam.[6] O Novo
Testamento ensina que Jesus Cristo é a Razão, Mente,
Sabedoria e Inteligência.
Razão, portanto, é o modo como Deus pensa. Isso se reflete na
ordem e projeto do universo e na capacidade do homem de se
envolver em pensamentos lógicos. Assim, quando “razão” é
usado num sentido desprovido de conteúdo, equivale às simples
leis da lógica. Isto é, a razão sem conteúdo se refere à lógica.
Quando é incluído um conteúdo, ela se refere à mente de Deus,
parte da qual nos foi revelada através da Escritura. Isto é, a razão
com conteúdo se refere à verdade. E pela regeneração e
iluminação do Espírito nós somos capacitados a pensar como ele.
Como cristãos, podemos pensar de acordo com a Lógica — a
estrutura do pensamento de Deus. E com a lógica podemos
entender, processar e aplicar a Verdade — o conteúdo do
pensamento de Deus.
Consideremos algumas implicações disso.
Visto que Jesus é a Razão, devemos exaltar a Razão ao lugar
mais elevado. É um testemunho do sucesso do engano de
Satanás os cristãos terem um medo quase supersticioso da
razão. Isso se deve em parte a definições imprecisas e
desnecessárias. Um dos usos da palavra assume uma exclusão
da religião ou revelação. Mas como você pode ver pela forma
como definimos a razão acima, a rejeição da religião ou revelação
é um acréscimo desnecessário à simples ideia de razão. Outro
uso da palavra se refere à capacidade humana de pensar ou
descobrir. Mas esse significado traz consigo uma enorme
bagagem contrabandeada para dentro sem justificativa, não por
uma necessidade lógica ou linguística.
Se a razão está necessariamente associada a um pensamento
antibíblico, é claro que devemos ser cautelosos. Mas nossa
discussão deve ter eliminado qualquer dúvida de que a razão nos
pertence; e se ainda há alguma reserva, devemos aprender a
superá-la. Eu poderia usar a palavra “sabedoria” e me referir à
mesma coisa. A palavra é suficiente. Por exemplo, eu poderia
dizer que Jesus é Sabedoria e que devemos, portanto, servir a
Deus de uma maneira que siga e aplique a sabedoria. Por essa
afirmação, estaria querendo dizer aproximadamente a mesma
coisa, quer estivesse usando a palavra “mente”, quer “sabedoria”,
quer “inteligência”. Mas eu escolheria usar a palavra “razão”
mesmo quando não precisasse, pois os cristãos têm um grande
complexo com ela; e espero que, esfregando-a em seu rosto,
consiga ajudá-los a superar isso. Ela é uma boa palavra; e não
deve ser sequestrada pelos incrédulos para que eles possam se
gabar dela contra nós.
A discussão típica sobre a relação entre a fé e a razão é
equivocada. Visto o que dissemos acima, devemos rejeitar
propostas como fé contra razão, fé com razão ou fé além da
razão. Nessas propostas se alude à versão tendenciosa da razão,
isto é, a uma razão inseparavelmente ligada à capacidade
humana de pensar à parte da revelação. Mas devemos rejeitar
esse significado tendencioso e, em vez disso, usar a palavra de
uma maneira que seja consistente com nossa própria
cosmovisão, a qual irá igualar a fé e a razão. Na verdade,
qualquer coisa que não torne a fé e a razão idênticas deve ser
falsa. A única concepção legítima sobre a relação entre a fé e a
razão é que fé é razão.
Você dirá: “A razão é limitada”. Mas a razão de Deus não é
limitada. Se parar de usar a si mesmo como ponto de referência
para todas as coisas no universo, você expandirá bastante seu
horizonte mental e o escopo de sua percepção intelectual. A mim
não faria sentido dizer que Deus está além da razão, pois a mim
isso significaria que Deus está além de si mesmo ou além de sua
própria capacidade de pensar. Minha visão da razão deixa para
trás a capacidade do homem, pois esta é uma bagagem que não
tenho obrigação de aceitar no meu uso dessa palavra ou ideia.
Se Deus pode raciocinar e se Deus é a razão, a palavra não deve
ser reduzida à capacidade do homem de pensar.
Outra implicação é que devemos servir a Deus com nosso
pensamento, com a máxima diligência e cuidado no uso da razão.
Considere o que isso significa para a nossa teologia, pregação,
educação e assim por diante. Poderíamos passar muitas horas
discutindo essas implicações positivas da afinidade do cristão
com a Razão; como, porém, devemos mencionar algumas outras
implicações, deixarei que você gaste mais tempo pensando em
como o uso adequado da razão deve promover a saúde e solidez
da fé cristã.
Quando criou o homem, Deus soprou vida nele e lhe deu um
espírito racional. Depois que o homem se rebelou contra Deus, a
corrupção do pecado infligiu graves danos à sua mente, incluindo
seu desejo e sua capacidade de pensar de acordo com a razão, a
lógica e a verdade. Isso explica por que os não cristãos são muito
estúpidos. Qualquer não cristão de qualquer época, lugar e
persuasão pode ser facilmente derrotado a partir de um uso
adequado da razão. Nenhuma visão não cristã sobre qualquer
assunto em toda a história humana suporta mais que alguns
segundos de análise lógica. E leva alguns segundos porque
geralmente somos muito lentos.
Mas o não cristão não se transformou num animal. Ainda há uma
centelha de razão nele, embora não passe de uma tênue sombra
de inteligência. É por isso que os não cristãos, embora sejam
muito estúpidos, geralmente não correm pelos campos como
bestas selvagens, não urinam a esmo pelas ruas ou balbuciam
asneiras e espumam pela boca enquanto olham vagamente para
o céu. Deus preserva sua capacidade de funcionarem para os
propósitos dele — para a glória de seu nome e o bem dos seus
eleitos.
Até mesmo Satanás pode aparecer como anjo de luz, mas sua
luz é uma que cega o juízo do homem, não uma luz que o guia
para a verdade. Os não cristãos são como seu pai, o diabo. Em
vez de usarem o débil intelecto que resta neles para clamarem a
Deus por iluminação e perdão, eles o usam para construir
interpretações alternativas do mundo e da realidade e para
conspirar contra o Senhor e seu povo. A ciência empírica é um
dos exemplos mais conhecidos disso em nossos dias. Os não
cristãos acham que vendo, tocando e experimentando podem
inferir informações verdadeiras sobre a realidade. Mas a
sensação não é confiável, a indução é falaciosa e o método
científico é apenas uma forma sistemática de repetir o não
confiável e o falacioso vezes sem fim. Mas os homens acham que
esse é o auge do desenvolvimento intelectual, a forma mais
segura e justa de se descobrir a verdade!
Jesus é o Senhor da Razão. Ele é a luz da mente. Embora por
seu próprio decreto o pecado tenha obscurecido o intelecto do
homem, Jesus pelo seu poder e para o seu propósito preserva
uma centelha de razão nos não cristãos. Mas ele pode extinguir
até mesmo essa minúscula inteligência sempre que o desejar,
como fez por certo tempo em Nabucodonosor para que sua
sanidade lhe fosse tirada. Nabucodonosor se tornou como um
animal, foi expulso do meio das pessoas e comeu capim como os
bois (Dn 4.29-37). Por outro lado, naqueles que escolheu para
salvação e faz crer em sua palavra, Jesus acende essa centelha
de inteligência até virar um poderoso incêndio, inundando sua
mente com luz — com clareza de mente, profundidade de
pensamento e compreensão da verdade.
Jesus é a minha Razão. É a minha sabedoria, minha verdade,
minha sanidade. Sem ele, estou perdido — não, não só perdido
para o fogo do inferno, mas também para crenças tolas e
suposições irracionais. Por sua graça, ele enche minha mente
com luz, com informações verdadeiras e percepções claras. Seus
pensamentos não eram os meus pensamentos e seus caminhos
não eram os meus caminhos. Seus pensamentos estavam tão
acima dos meus quanto os céus estavam acima da terra. Mas ele
me mudou — eu nasci de novo, desta vez nascido do alto. Agora
seus pensamentos se tornaram os meus pensamentos e seus
caminhos se tornaram os meus caminhos. Agora posso entender
a filosofia celestial, os pensamentos do alto, de uma maneira
clara, precisa e unívoca. Há alguns que se consideram indignos
dessa bênção, que se recusam a entrar e que impedem outros de
entrar. Mas ela é a herança de todos os crentes; e aqueles que
têm fome e sede de sabedoria e verdade se afastarão das
tradições humanas, das ameaças e enganos religiosos, e
entrarão naquilo que Deus nos preparou antes mesmo da
fundação do mundo.
4. Jesus e a revelação

Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do


Pai, é quem o revelou. (Jo 1.18, ARA)

Há dois mil anos, Deus o Filho assumiu uma natureza humana e


andou entre nós. Por grandioso que esse evento foi, há maneiras
certas e maneiras erradas de descrevê-lo. Por exemplo, poderia
ser enganoso descrevê-lo com uma expressão clichê do tipo “ele
modificou o curso da história”. Pois ele não fez isso — embora o
evento tenha sido um ponto muito significativo na história, a
história mesma estava correndo na direção precisa decretada por
Deus, uma direção que se desenvolvia com vistas à encarnação
de Cristo e que culminava nela. Deus havia preparado o mundo
para a sua vinda, a fim de que as condições fossem exatamente
certas para o Filho de Deus vir a nós como homem para instruir a
humanidade, expiar pecados, derrotar o diabo e demonstrar o
amor e poder de Deus. Esta é uma forma mais precisa de
entender a encarnação.
Já mencionei anteriormente um ensino que, provavelmente
devido à falsa piedade e influência do pensamento não cristão,
exagera a necessidade da encarnação quando se trata de nosso
entendimento de Deus. Ele sugere que Deus está quase
totalmente escondido de nós e à parte da encarnação nos é
quase totalmente ininteligível. Esse ensino, em qualquer grau que
o afirmemos, é um insulto à toda a revelação do Antigo
Testamento e uma negação dela. Deus pode ser conhecido,
entendido e discutido com clareza e precisão à parte da
encarnação. Ele mesmo faz isso no Antigo Testamento por meio
dos profetas, e João o demonstra em seu Evangelho antes de
mencionar a encarnação. Novamente, isso não significa
desvalorizar a encarnação — a grandeza da encarnação é tal que
não há necessidade de exagerá-la para poder honrá-la.
Algumas pessoas insistem que é impossível entender ou discutir
Deus “de forma abstrata”, mas isso apenas por causa de sua
recusa em aceitar um Deus que possa ser explicado na fala e
apreendido pela inteligência. Elas falam tanto sobre quão
impossível é entender Deus com sua mente finita que chega
mesmo a parecer que são arrogantes em sua ignorância. De fato,
é presunçoso assumir que sabemos tanto sobre Deus a ponto de
saber que não podemos entendê-lo ainda que ele se explique a
nós, ainda que ele pense que podemos entendê-lo. Isso é uma
falsa humildade e uma teologia preguiçosa. É uma concepção
particular de transcendência divina tão ferozmente defendida que
equivale a uma rejeição da imanência divina. Essa crítica parece
se aplicar em maior ou menor grau a quase todos os teólogos da
história. Mas não cabe a eles ditar o que Deus pode me dizer ou
o que eu posso entender.
Isso nos leva a outro ensino falso sobre a encarnação,
provavelmente também inventado devido à falsa piedade e
influência do pensamento não cristão. Refiro-me à ideia de que
Jesus Cristo nos trouxe uma revelação superior, no sentido de
que trouxe uma revelação pessoal e não uma mera revelação
intelectual ou proposicional. Em outras palavras, é dito que sua
pessoa era a revelação — ou que a principal contribuição dele em
termos de revelação era a sua pessoa —, e que isso era mais
importante do que as palavras ditas por ele ou sobre ele. Os
defensores dessa visão talvez não aleguem maior suporte para
ela do que o Evangelho de João. Porém, o Evangelho ensina o
oposto disso.
Nosso versículo diz que Jesus veio e “explicou” Deus. Isso define
o tom para o restante do Evangelho, e encontramos muitos
exemplos onde isso é ilustrado. A mulher samaritana em João 4
diz: “Eu sei que o Messias (chamado Cristo) está para vir.
Quando ele vier, explicará tudo para nós” (v. 25). Essa poderia
ser a opinião dela sobre o que o Messias iria fazer, mas lembre-
se de que o Evangelho apresenta episódios da vida de Cristo que
pretendem nos educar sobre ele. Em todo caso, Jesus responde:
“Eu, que estou falando com você” (v. 26). Ele era o Messias que
ela esperava, que “explica[ria] tudo”.
Por sua vez, em João 6, quando seus ouvintes ficam ofendidos e
se afastam dele, Jesus pergunta aos Doze: “Vocês também não
querem ir?” (v. 67). E Pedro responde: “Senhor, para quem
iremos? Tu tens as palavras de vida eterna” (v. 68). Ele se
concentra nas palavras, ou proposições e doutrinas, e isso num
contexto onde afirma que Jesus é “o Santo de Deus” (v. 69). Em
João 18, ao responder a Pilatos, Jesus diz: “De fato, por esta
razão nasci e para isto vim ao mundo: para testemunhar da
verdade. Todos os que são da verdade me ouvem” (v. 37).
Testemunho é uma declaração verbal sobre alguém ou alguma
coisa, e Jesus veio para dar uma declaração verbal sobre a
verdade. É assim que ele define sua própria missão.
Comentando o prólogo de João, William Barclay escreve: “Jesus
não veio falar aos homens sobre Deus; ele veio mostrar aos
homens como Deus é, a fim de que a mente mais simples
pudesse conhecê-lo tão intimamente quanto a mente do maior
filósofo”.[7] Isso está errado tanto no princípio geral assumido
quanto no caso particular de Jesus. Tome João 13 como
exemplo: ali é dito que Jesus lavou os pés de seus discípulos. Ao
fazê-lo, disse: “Eu dei o exemplo”. Assim, se alguma vez Jesus
quis ensinar “mostrando”, foi neste caso. Mas ele disse na face
de Pedro: “Você não compreende agora o que estou fazendo a
você; mais tarde, porém, entenderá” (v. 7). Assim que terminou,
disse “Vocês entendem o que fiz a vocês?” (v. 12) e passou a dar
uma explicação detalhada.
Os discípulos não entenderam o significado da ação de Jesus, e
portanto ela precisou ser explicada verbalmente — Jesus falou
sobre ela. Falou sobre o que havia mostrado a eles. E a
explicação incluiu princípios que não poderiam ser inferidos da
ação. Por exemplo, “vocês também devem lavar os pés uns dos
outros” e “nenhum escravo é maior do que o seu senhor, como
também nenhum mensageiro” (v. 14, 16). Ele falou aos discípulos
sobre o que não poderia lhes mostrar. Mesmo “o maior filósofo”
não poderia ter inferido com certeza a intenção de Jesus ou a
lição ensinada por ele. A ação concreta de Jesus deixou os
discípulos desorientados, mas até a mente mais simples poderia
compreender a explicação abstrata dada por ele.
Barclay reflete uma opinião comum, mas que é exatamente o
oposto do que o Evangelho de João ensina. Embora ela seja
antibíblica e absurda, é teimosamente mantida por causa de uma
falsa piedade. Ela deve ser descartada se quisermos realmente
honrar a obra de Jesus Cristo. Ele veio nos mostrar mais como
Deus é ao falar sobre ele. Esse era principalmente um “mostrar”
intelectual e não uma demonstração física ou sensorial. Como
João escreve em outro lugar: “Sabemos também que o Filho de
Deus veio e nos deu entendimento, para que conheçamos aquele
que é o Verdadeiro” (1Jo 5.20).
Outra maneira de afirmar a visão popular é, como escreve
Barclay: “Para ver a verdade, precisamos olhar para Jesus”.[8]
Com isso ele quer dizer que “muito poucas pessoas conseguem
entender ideias abstratas”, conseguindo aprender melhor quando
algo lhes é mostrado em vez de falado. Já expusemos esse erro.
Mas e quanto à ideia de que devemos “olhar para” Jesus? Há
alguma base bíblica para ela?
Em João 12.44-45, Jesus diz: “Quem crê em mim, não crê
apenas em mim, mas naquele que me enviou. Quem me vê, vê
aquele que me enviou”. E em João 14.9: “Você não me conhece,
Filipe, mesmo depois de eu ter estado com vocês durante tanto
tempo? Quem me vê, vê o Pai. Como você pode dizer: Mostra-
nos o Pai?”. As pessoas se apegam a esse tipo de declarações
para afirmar que Jesus nos trouxe uma revelação pessoal e não
uma revelação proposicional. Mas o que Jesus tinha em mente
ao dizer essas coisas? E o que João tinha em mente ao
relacionar esses retratos da vida de Cristo?
Esses versículos em João 12 e 14 são mal utilizados. Em João
12, continua Jesus, “Se alguém ouve as minhas palavras… Há
um juiz para quem me rejeita e não aceita as minhas palavras…
Pois não falei por mim mesmo, mas o Pai que me enviou me
ordenou o que dizer e o que falar…[9] Portanto, o que eu digo é
exatamente o que o Pai me mandou dizer” (v. 47-50). Da mesma
forma, em João 14, Jesus imediatamente alude às suas palavras:
“Você não crê que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As
palavras que eu digo não são apenas minhas” (v. 10).
É comum as pessoas usarem as declarações “Quem me vê, vê o
Pai”, “eu estou no Pai” e “o Pai está em mim” para enfatizarem
uma revelação pessoal. Mas do que ele estava falando? Ele
estava falando de suas palavras, seus discursos, suas doutrinas.
Estava o tempo todo se referindo a um “ver” intelectual. “Ver”
Jesus era “ver” o Pai porque Jesus disse aquilo que seu Pai lhe
mandou dizer.
Portanto, mais uma vez, a Bíblia ensina o oposto do que essas
pessoas afirmam. É preciso arrancar essas passagens do
contexto para conseguir afirmar um significado alternativo sobre o
que significa “ver” Jesus. E foi o que fizeram aqueles que afirmam
a visão popular. Ao afirmarem sua ideia de uma revelação
pessoal em contraste com uma proposicional, eles nunca deram
atenção ao que essa pessoa tinha a dizer. E eu me pergunto o
quanto respeitam essa pessoa, afinal.
Jesus revelou Deus não só ao aparecer, mas também ao falar.
Revelou Deus não apenas por ser uma pessoa, como se sua
própria encarnação ou própria existência como homem
comunicasse Deus ao mundo, mas relevou Deus ao falar sobre
ele, usando palavras para contar às pessoas sobre os atributos,
propósitos e preceitos de Deus. A ideia de que Jesus veio nos
ajudar a conhecer Deus em vez de nos ajudar a conhecer sobre
Deus é um completo absurdo. De novo, isso está ligado ao erro
de se achar que a revelação de Deus, ou pelo menos a revelação
superior de Deus, é pessoal, não proposicional. Por outro lado, o
Evangelho de João ensina que Jesus Cristo era uma
manifestação pessoal que veio nos oferecer uma revelação
proposicional. A ênfase nunca está na sensação física ou visão
empírica, mas no entendimento espiritual e na percepção
intelectual. João repetiria esse tema ao longo do Evangelho.
Jesus veio e nos deu uma revelação de Deus. É costume se
sugerir que ele veio dar uma revelação que era superior às
revelações anteriores — Deus tendo dado revelações
proposicionais pelos profetas —, uma revelação pessoal em
Jesus Cristo. Este é um falso contraste. Em sua pessoa, Jesus
era superior a todos os profetas, mas era uma pessoa superior
que deu uma revelação proposicional. Como afirma Hebreus 1.1-
2: “Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de várias maneiras
aos nossos antepassados por meio dos profetas, mas nestes
últimos dias falou-nos por meio do Filho”. Em outras palavras, em
Jesus Cristo, Deus não deu algo superior à revelação verbal mas
teve uma pessoa superior nos dando uma revelação verbal. Não
existe nenhum contraste entre o pessoal e o proposicional.
“Toda a Escritura é inspirada por Deus” (2Tm 3.16). O Espírito de
Cristo foi a inspiração dos profetas, de modo que as palavras
deles são tão autênticas e autoritativas quanto as palavras de
Cristo, pois são todas palavras de Cristo. Jesus não falou em
letras vermelhas. Ele falou todas as palavras da Bíblia. A
diferença é que os profetas não tinham a plenitude do
entendimento, e certamente nenhum profeta tinha uma percepção
de todo o plano de Deus. Por outro lado, Jesus possuía o Espírito
sem medida e falava a partir de uma perfeita compreensão.
Ademais, ele disse que veio “do alto”, do Pai, e que
testemunhava sobre Deus nessa base. Isso sugere que ele falava
mais a partir da recordação do que da revelação como tal; e
falava das coisas de Deus de uma maneira mais completa,
profunda e explícita. Em todo caso, o ponto é que o que ele
trouxe continuava a ser uma revelação proposicional.
Tome cuidado com uma falsa piedade exibida num constante
senso de mistério — o qual coloca a indefinição no mesmo
patamar da espiritualidade e não pode ser traduzido em palavras,
como se fosse a mais elevada sabedoria. É uma forma de
reverência que requer muito pouco esforço e quase nenhuma
obediência, mas que faz a pessoa se sentir bem consigo mesma
e que ganha a admiração dos outros. Essa não é uma maneira de
abraçar a pessoa de Cristo, mas de escapar dela. Cristo se
revelou em proposições, em doutrinas que devem ser
apreendidas pelo intelecto. Verdadeira piedade, portanto, é
estudar essas palavras, entendê-las, crer nelas e obedecê-las.
Essa é a maneira como você aprende com uma pessoa. É como
respeita uma pessoa.
Jesus é a manifestação pessoal de Deus que veio entregar uma
revelação proposicional. Essa verdade define o crescimento e o
ministério cristãos. Agora sabemos como aprender sobre Deus e
como ensinar aos outros sobre Deus. Nós entendemos que Deus
é transcendente. Mas esse mesmo entendimento vem de sua
revelação proposicional imanente. Como diz a Bíblia: “A palavra
está perto de você; está em sua boca e em seu coração” (Rm
10.8). Se você quer conhecer a Deus, ele não está longe. Você
não precisa que ele apareça em carne. Não precisa sentir uma
presença especial. Não precisa compreender uma “pessoa” em
contraposição a compreender as palavras ditas pela pessoa e as
palavras que testemunhas confiáveis disseram sobre a pessoa.
As palavras podem ser ditas, escritas, entendidas e
memorizadas. Elas são claras e públicas; e por isso podem ser
estudadas, discutidas, proclamadas, cridas e obedecidas. Não há
indefinição na forma como você pode conhecer a Deus ou em se
de fato o conhece. E não há desculpa em não o conhecer.
Ninguém pode dizer que o caminho é ambíguo ou que é
impossível compreender sua “pessoa”, porque Deus se explicou
em proposições claras. Do mesmo modo, não introduzimos Deus
a outras pessoas apresentando sua “pessoa”, mas falando sobre
ele. Naturalmente, devemos viver as doutrinas que proclamamos
e nos tornar bons exemplos para os outros. Mas porque
entendemos que Deus se mostra por uma revelação
proposicional, também teremos certeza de que explicaremos os
nossos exemplos.
5. Luz e trevas

A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela.


(Jo 1.5, A21)

O Evangelho de João é uma história de algumas das coisas que


foram ditas e feitas quando o Filho encarnado de Deus andou na
terra. É um testemunho verdadeiro sobre eventos passados;
porém, mais que um relato de eventos, é também um testemunho
sobre o significado e a importância desses eventos. Ele afirma a
interpretação correta dos eventos descritos.
Por exemplo, em João 12.27-30 um ruído soou do céu. Esse foi o
evento. Alguns na multidão pensaram que havia trovejado,
enquanto outros disseram que um anjo havia falado. Talvez isso
estava tão além da expectativa de algumas pessoas que elas não
podiam acreditar. A confusão demonstra que as sensações não
são confiáveis e ela serve como um exemplo inspirado contra o
empirismo. Contudo, alguns pensaram ter ouvido palavras, que
um anjo havia falado.
Por outro lado, João é capaz de fornecer uma interpretação
precisa e completa do evento. Primeiro ele nos dá o contexto.
Jesus estava orando ao Pai, que respondeu com uma voz audível
do céu. Em segundo lugar, João também nos fala o significado e
a importância do evento. As palavras faladas são ruídos, mas
ruídos inteligentemente organizados de modo a transmitir um
significado. João não registra para nós apenas o fato de que
ruídos foram ouvidos, mas também as palavras que o Pai falou
do céu. Então, também diz o motivo do evento, pois Jesus
explicou que a voz não era para o seu próprio benefício, mas
para benefício da multidão que estava presente.
O Evangelho de João não é apenas um relato de eventos, como
“Um ruído veio do céu”, mas uma interpretação dos eventos,
como “O Pai falou do céu para benefício da multidão em resposta
à oração de Cristo”. O Evangelho faz isso para a pessoa, obra e
doutrina de Cristo, apresentando dessa forma episódios
selecionados de sua vida, começando pelo Logos pré-encarnado
de Deus. Essa interpretação do Cristo vai necessariamente além
da observação dos sentidos e além das inferências estritas de
eventos observáveis.
Quando digo que a revelação vai “além” da observação dos
sentidos, não quero dizer que eles estão no mesmo caminho e
que simplesmente a revelação completa o que a sensação
começou. Não, quero dizer que a revelação contém um tipo de
informação que é superior ao que a sensação pode obter, mesmo
que consideremos a sensação confiável. Mas a sensação não é
confiável, e a revelação não tem nenhuma relação necessária
com ela. Ao contrário, a revelação é uma maneira totalmente
diferente de conhecer — e a única confiável.
Por esse motivo, não é exagero dizer que, logicamente falando,
não é possível ser empirista e crente ao mesmo tempo. Isso
porque o empirista não pode conhecer nada e não pode acreditar
em nada. Aqui se incluem aqueles que afirmam considerar a
revelação o princípio primeiro da sua cosmovisão mas depois
insistem que a confiabilidade da sensação é, antes de tudo, a
precondição para qualquer acesso à revelação. Na verdade, a
confiabilidade da sensação é que é então seu princípio primeiro.
A despeito de suas pretensões, eles não passam de empiristas;
porque se eles fazem do empirismo seu ponto de partida, nunca
podem ser outra coisa senão empiristas. Logicamente não podem
ser cristãos, embora possamos seguir o caminho da caridade e
assumir que essas pessoas são inconsistentes com sua própria
filosofia. Todavia, como elas parecem insistir que são
intelectualmente competentes e, portanto, alertas às implicações
de sua epistemologia, esse caminho é escolhido à força, de uma
relutância em condená-las.
João gosta de usar certos artifícios e termos para comunicar o
que quer que saibamos sobre Jesus Cristo. Como ele nos lembra,
Jesus disse e fez muitas coisas. Embora todos os quatro
Evangelhos registrem a verdade sobre as palavras e ações de
Cristo, nenhum pode registrá-las todas. Assim, quando
percebemos que há certas características que parecem
peculiares a esse Evangelho, é porque João se concentra nesses
aspectos de Cristo. Dois artifícios retóricos que geralmente
ocorrem nesse Evangelho são o contraste e o simbolismo
(imagens, linguagem figurada, etc.) e eles geralmente são usados
juntos, de modo que muitos contrastes são feitos por linguagem
simbólica. Isso está, por sua vez, associado ao mal-entendido
das pessoas ou à sua falta de compreensão dessas expressões
simbólicas, ressaltando assim sua obtusidade espiritual.
Há muitos exemplos disso, mas uma breve menção de alguns
ajudará você a entender do que estou falando. Quando Jesus
disse que uma pessoa deve “nascer de novo”, estava se referindo
a algo espiritual. Mas Nicodemos não conseguiu entender isso e
processou a informação da única maneira que sabia, pensando
que Jesus se referia a um segundo nascimento natural — o que
obviamente não fazia sentido para ele. Então, quando Jesus
ofereceu “água viva” à mulher samaritana, ela pensou que ele se
referia à água natural, física. Depois disso, quando Jesus falou
sobre comer sua carne e beber seu sangue, aqueles que o
ouviram não perceberam o significado espiritual disso e, assim,
ficaram ofendidos. Jesus trouxe uma revelação “do alto” e às
vezes usou imagens para comunicar verdades espirituais. Mas as
pessoas que eram “de baixo”, por não se elevarem de sua
mentalidade terrena, não puderam perceber o significado
pretendido por Jesus.
Em conexão com isso, também devo mencionar que João relata
os milagres de Jesus como “sinais” que ilustram verdades
espirituais. Obviamente, quando nos fala sobre os milagres que
Jesus fez, esses milagres realmente aconteceram. Por exemplo,
Jesus curou um cego em João 9. Isso realmente aconteceu, no
sentido de que o homem era fisicamente cego — ele não podia
ver, mas depois pode. Esse foi um milagre público e físico de
cura. Porém, a cura foi então usada para ilustrar algo sobre a
cegueira espiritual. Há inúmeros exemplos como esse.
Algumas pessoas podem achar estranho e incrível que os
personagens no Evangelho não conseguiram entender o que
para nós seriam simples expressões simbólicas. Mas uma razão
por que elas nos parecem expressões diretas é a profunda
influência que a fé cristã teve em nossa língua e cultura. Nós não
estamos na exata posição daqueles que as ouviram pela primeira
vez. Aqueles que não foram imergidos num pano de fundo de
influência cristã podem não achar as expressões tão fáceis assim
de entender. À medida que as categorias e expressões cristãs
perdem seu antigo domínio na sociedade, as pessoas também
perdem sua compreensão das imagens que existem na Escritura.
Dito isso, mesmo aqueles que parecem ter um pano de fundo de
influência cristã muitas vezes não entendem tanto quanto
esperaríamos. Isso inclui aqueles que se afirmam cristãos.
Pergunte a dez pessoas em sua igreja o que significa “nascer de
novo”. Você é feliz se está numa igreja onde mais de uma em
cada dez pode dar a resposta correta.
A algumas pessoas pode parecer que o uso de imagens e
expressões simbólicas torna o significado do Evangelho uma
questão de interpretação subjetiva. Mas isso não procede, já que
o próprio Evangelho explica as expressões simbólicas que usa.
Quando o Evangelho fala sobre água, luz, morte e assim por
diante, diz a você o que essas coisas significam. Assim, não há
necessidade de você recorrer à sua imaginação para determinar
o significado de uma expressão ou fazê-la significar algo diferente
do que é pretendido pelo Evangelho. Podemos ter uma
compreensão clara e precisa do que o Evangelho comunica.
Um contraste proeminente e recorrente que João apresenta no
início de seu Evangelho é aquele entre luz e trevas. O Verbo, ou
Jesus Cristo, era a luz; e ele veio a um mundo caracterizado
pelas trevas. Embora Jesus fosse a luz num sentido único, esse
conjunto de contraste também é aplicado entre aqueles que o
seguem e aqueles que não o seguem. Assim, Paulo chama os
crentes de “filhos da luz”. E quando adverte contra relações
impróprias com os incrédulos, escreve: “que comunhão pode ter a
luz com as trevas?” (2Co 6.14). Em outras palavras, Jesus Cristo
é a “verdadeira luz”, e os cristãos também são chamados de “luz”
em um sentido derivado. O resto do mundo, incluindo todos os
não cristãos, são chamados de trevas.
A natureza dualista do contraste oferece implicações instrutivas.
Primeiro, ela divide o mundo em dois grupos. Isso significa que
há mais de um e que nem todos pertencem ao mesmo grupo.
Nós não somos todos filhos de Deus. Não somos todos uma
grande família. E não viveremos todos juntos felizes para sempre.
Há charlatães espirituais que enganam muitos para fazê-los
pensar que todos pertencem à luz. Mas até a luz da qual eles
falam não passa de trevas. Lembre-se, até Satanás pode
aparecer como um anjo de luz para enganar e desorientar. É por
isso que João diz que Jesus Cristo é a verdadeira luz.
Então, o contraste dualista também significa que não há muitos
grupos. Não importa como as pessoas se identifiquem e se
distingam, no fim das contas só há dois grupos, dois tipos de
pessoas. Ou você pertence a um, ou pertence a outro. Você não
pode dizer que não gosta de nenhum dos dois ou que ambos são
muito extremos, juntando-se assim a um terceiro, quarto ou ainda
outro grupo. Se você não é um cristão, é um não cristão, não
importa como se chame enquanto não cristão. Não importa se é
um não cristão ateu, um não cristão muçulmano, um não cristão
católico ou um não cristão budista. No fim das contas, são todos
iguais.
Como termo simbólico, a luz é usada num sentido intelectual e
num sentido ético. Quando usada no sentido intelectual,
representa sabedoria, conhecimento, entendimento e percepção
mental clara. Quando usada num sentido ético, representa
retidão, santidade, vida limpa e estilo de vida transparente. Em
alguns contextos, os dois sentidos são pretendidos ao mesmo
tempo. Consequentemente, no sentido intelectual as trevas
representam tolice, ignorância e uma mente que é obtusa e cega.
E no sentido ético representam a injustiça, todos os tipos de
maldade e sujeira e uma vida indecente.
Obviamente, Cristo, o Logos, a verdadeira luz, representa a
sabedoria e santidade da maneira mais perfeita e completa. Ele é
a definição mesma de inteligência e retidão. E essas são
qualidades que devem ser demonstradas pelos seus seguidores.
Por outro lado, todos os não cristãos são caracterizados pelas
trevas — são estúpidos e maus, irracionais e iníquos. Esse é o
contraste que João faz repetidas vezes em seu Evangelho e que
também aparece frequentemente em outras partes da Escritura.
Alguns cristãos negam os dois aspectos do contraste, mas é de
se duvidar que essas pessoas são realmente cristãs, já que essa
negação reflete uma falta de entendimento ou aceitação das
afirmações básicas que concernem à necessidade e eficácia da
obra de Cristo. E há pessoas, por sua vez, que reconhecem o
aspecto ético do contraste, mas tendem a negligenciar ou minar o
aspecto intelectual. Isso também é muito perigoso. A Bíblia
ensina sobre esse aspecto da condição não cristã em termos
explícitos e com inúmeras ilustrações. Negar ou ignorar isso
tornaria grande parte da Bíblia sem sentido e equivaleria a uma
rejeição da doutrina bíblica sobre a queda do homem e a um
repúdio da obra de Cristo na redenção. Se você não afirma que
todos os não cristãos são estúpidos e pecadores, iníquos e não
inteligentes e se não afirma que os cristãos são tornados sábios e
santos em Cristo, deve examinar a si mesmo para ver se
realmente entende o evangelho ou crê nele.
Há aqueles que se dizem cristãos, mas criticam esse tipo de fala
como sendo algo indelicado. Ora, se você se recusa a dizer que
todos os não cristãos são pecadores, então não é nem mesmo
cristão. É apenas um não cristão que critica a fé cristã como
alguém de fora. Porém, se diz que todos os não cristãos são
pecadores, mas se recusa a também dizer que eles são
estúpidos, embora este também seja o claro ensino da Escritura,
você é pelo menos um hipócrita. Quem lhe disse que os não
cristãos são inteligentes? A Bíblia os chama de tolos. Você foi
enganado pelos não cristãos, que se apresentam a você como
inteligentes. Quanto a mim, não tenho vergonha do evangelho,
pois pela fé em Cristo sou salvo das trevas intelectuais e éticas.
O Deus que disse “Haja luz” no momento da criação fez a luz de
Cristo brilhar também em mim. Ele me removeu do reino das
trevas e me colocou no reino do seu Filho. É o que acontece na
conversão. É o que significa tornar-se cristão.
Nosso versículo diz que “as trevas não compreenderam” (ARC) a
luz. O verbo pode se referir à apreensão com a mente, mas
também a apoderar-se de algo com o fim de superá-lo. Assim,
algumas traduções dizem que “as trevas não prevaleceram”
contra a luz. Alguns comentaristas argumentam em favor de um
ou outro sentido, enquanto outros sugerem que a ambiguidade é
intencional. Ambos os aspectos do conflito entre luz e trevas se
manifestam perante nós no curso da narrativa que o Evangelho
faz de Cristo. Eles correspondem à ênfase intelectual e ética que
acabei de mencionar.
Os não cristãos não são inteligentes. Embora seu defeito
intelectual se aplique a todas as áreas de seu pensamento, ele é
mais evidente quando lhes é pedido que se envolvam em
discussões espirituais. Eles não conseguem entender até mesmo
os conceitos espirituais mais básicos; e quanto mais tentam
argumentar contra a verdade, mais tolos parecem. Eles também
são iníquos, de modo que resistiriam à luz não apenas no
pensamento e na fala, mas também em suas ações e políticas. O
Evangelho nos mostra que eles iriam longe a ponto de matar o
Senhor Jesus.
É evidente que esses dois fatores distinguíveis nas pessoas não
cristãs estão, todavia, inseparavelmente relacionados. A falta de
sabedoria contribui para a natureza maligna deles e a perpetua; e
sua natureza maligna mantém seu preconceito contra a verdade.
É da maior importância reconhecermos esse conflito, que há essa
hostilidade necessária entre os cristãos e os não cristãos, e
também a natureza dual desse conflito, que ele implica o
intelectual e o ético. Isso é necessário para ter um entendimento
adequado do Evangelho de João, assim como para ter um
entendimento adequado de nosso conflito com o mundo.
Os não cristãos são estúpidos, e por isso não entendem o que
dizemos e não percebem que estamos certos. Todos os seus
argumentos e refutações são tolos e irracionais. E os não cristãos
são pecadores, movidos por suas más disposições; de modo que,
quando não podem nos refutar, nos perseguem. Mas nosso
versículo diz que as trevas não prevaleceram contra a luz. A luz
sempre vence; e sempre vence simplesmente por ela ser o que é.
Mas isso não significa que a luz é passiva, pois ela sempre ataca
as trevas. Ela o faz natural, ativa e constantemente. A luz está
sempre invadindo as trevas, sempre destruindo as trevas. Ela
ataca apenas por brilhar. É isso o que Jesus veio fazer — destruir
as obras do diabo. E é o que os cristãos devem fazer por sua
própria natureza, como filhos da luz.
Num de seus sermões, George Whitefield disse: “É bastante
notável que só há dois tipos de pessoas mencionadas na
Escritura. Ela não fala de batistas e independentes nem de
metodistas e presbiterianos; não, Jesus Cristo divide todo o
mundo em somente duas classes: ovelhas e bodes. Que o
Senhor nos conceda ver esta manhã a qual delas pertencemos.
Mas é preciso notar que os crentes sempre são comparados a
algo que é bom e proveitoso, e os incrédulos sempre descritos
como algo que é mau e de pouca ou nenhuma serventia”.[10]
Permita-me reiterar isso. Só há dois tipos de pessoas: cristãos e
não cristãos. A Bíblia sempre descreve os não cristãos como
maus e de nenhuma serventia.
Se isso ainda não está claro, deixe-me repeti-lo. Se você não é
um cristão, a Bíblia o compara a lixo que deve ser queimado no
lixão. Você se acha esperto? Você é estúpido. Pensa que é útil?
Você é inútil. Acha que tem valor e importância? Você é um
pedaço de lixo humano. Jesus o compara a joio no meio do trigo.
Você não passa de um parasita, um obstáculo a tudo o que é
bom e justo. Você não contribui com nada digno para a
humanidade. Uma vez fui como você, mas Jesus Cristo me
resgatou do depósito de lixo e me tornou um príncipe e servo em
seu reino. Mas meu status é derivado. Mesmo agora, sem Jesus
Cristo eu não teria nada, não seria nada. Eu seria imundo como
você, inútil como você. Jesus Cristo é sua única esperança. Ele é
a única esperança de qualquer pessoa. Creia e seja salvo. Não
creia e seja condenado.
Hoje em dia esse tipo de pregação é imperdoável. Muitas vezes
inclusive entre aqueles que se identificam como evangélicos ou
reformados, que se queixam do evangelho diluído das igrejas
“orientadas para o consumidor” e que com grande paixão instam
os crentes a pregarem a palavra de Deus. Bem, essa é a palavra
de Deus. Você vai pregá-la ou não? Ou vai suprimir a verdade
sob o disfarce da civilidade social e da cortesia acadêmica? E vai
me apoiar quando eu pregar assim? Ou vai se distanciar de mim
ou até mesmo me criticar e me perseguir? Se você se opõe ao
que estou pregando e à minha forma de fazê-lo, não passa de um
hipócrita. Você diz que prega o evangelho, mas se recusa a dizer
a verdade sobre a humanidade e sobre a necessidade e o poder
de Cristo para a salvação daquele que crê.
Você diz que devemos responder ao mundo com gentileza e
respeito, mas permite que o mundo defina essas virtudes para
você. E então me critica por ignorar esse padrão não bíblico, essa
ética pagã, inclusive. Eu desconfio de você. É como se você
nunca tivesse lido a Bíblia ou os pregadores de destaque que
afirma admirar e seguir ou como se nunca tivesse dado atenção.
Você já leu a pregação de Elias, Jeremias, Jesus, Pedro, Paulo?
Já leu os sermões de Agostinho? Calvino? Lutero? Whitefield? É
você quem está passando dos limites. Você é a razão de por que
a igreja está fraca e sem foco. É como os fariseus que iriam polir
a lápide de profetas mortos, mas tê-los-iam matado com as
próprias mãos se tivessem vivido quando eles profetizaram.
A fé cristã ensina que todos os não cristãos são intelectualmente
fracos e eticamente falidos; e ensina em termos vívidos. É como
o Logos vê o mundo. Se você não reconhece isso e não se alinha
com isso, não pode entender a redenção e a conversão. Você
não entende o evangelho. Como então pode alegar que crê nele?
Como pode alegar que o prega? Você ao menos gosta da fé
cristã, ou sua fé em Cristo é apenas um grande mal-entendido? O
que, eu o deixei com raiva? O que vai fazer quanto a isso? Vai
jogar a Bíblia em mim? Qual delas? A real ou a versão
romantizada que só existe em sua imaginação?
6. Um homem enviado por Deus

Surgiu um homem enviado por Deus, chamado João. Ele veio como
testemunha, para testificar acerca da luz, a fim de que por meio dele
todos os homens cressem. Ele próprio não era a luz, mas veio como
testemunha da luz. (Jo 1.6-8)

O Evangelho chama João Batista de um homem “enviado por


Deus”. Isso significa que Deus o concebeu em sua mente e
decretou que ele serviria a um propósito específico. E, tendo
nascido, Deus o preparou para ser o instrumento exato que
queria que ele se tornasse. Deus então o autorizou e ungiu com
seu Espírito. João estava ciente de seu propósito porque Deus
lho comunicara. Ele tinha recebido uma comissão de Deus. Por
causa dessa comissão, João estava ciente de sua obrigação e
autoridade para falar e agir. Dentro dos limites definidos pela
comissão, João estava falando e agindo em nome de Deus com a
autoridade de Deus, pois havia sido enviado por Deus.
Há uma crise de confiança e autoridade entre os ministros
cristãos. Isso se deve em parte à confusão sobre a base
adequada da autoridade espiritual. O problema existe entre todos
os grupos e denominações. Sua teologia de ministério é
totalmente inadequada para explicar a legitimidade de seu
trabalho.
Se eu perguntasse “Quem o autorizou a liderar e falar — os
homens ou Deus?”, não receberia uma resposta adequada do
típico ministro, cuja autocompreensão é geralmente deficiente.
Se a autoridade dele veio dos homens, por que ele está falando
por Deus? O que torna os homens que o autorizaram melhores
que outros homens que acreditam em coisas muito diferentes e
que poderiam, portanto, não o ter autorizado para o ministério? E
como sua autoridade veio dos homens, por que tenho a
obrigação de ouvi-lo? Se ele argumenta que esses homens foram
colocados em posição de autoridade por Deus, de modo que
exercem uma autoridade legítima, neste contexto isso não muda
quase nada. Ainda não explica qual ministro em particular tem
autoridade sobre mim ou se devo prestar atenção à autoridade de
todos os ministros ordenados por homens que se opõem uns aos
outros. Se o argumento equivale a dizer que um homem tem
autoridade legítima se for autorizado por qualquer grupo
organizado de homens, então, a menos que se façam algumas
qualificações, isso também legitimará qualquer religião que tenha
algum tipo de estrutura de autoridade. Mas se para responder
isso ele apela à autoridade da revelação divina, de modo que
nem todas as autoridades são legítimas em matéria de religião,
isso nos leva de volta a todas as perguntas anteriores: Quem
autorizou ele — os homens ou Deus? Que grupo de homens,
mesmo homens “cristãos”, é legítimo? Suas respostas não
parecem torná-lo diferente de qualquer outra pessoa.
Talvez ele não esteja disposto a dizer que sua autoridade veio
dos homens, mas que o próprio Deus o autorizou a realizar a
obra do ministério. Mas então suponha que eu diga: “Bom. Em
que base você diz que sua autoridade veio de Deus?”. Ele pode
dar uma resposta que mais uma vez apela à aprovação dos
homens. Por que eu deveria acreditar que você sabe alguma
coisa? “Bem, tenho um diploma de seminário.” Mas com
frequência isso apenas me fala dos padrões pobres do seminário
e que alguém como ele poderia vir desse seminário ou que o
mesmo fez vista grossa a um fracassado — ou provavelmente a
milhares de fracassados. Que autoridade você tem para liderar e
falar? “Bem, fui ordenado pela minha denominação.” Certo, mas
por que devo respeitar sua denominação? Quem autorizou sua
denominação? Se a denominação é apenas um grupo de homens
que se aprovam uns aos outros e se sua ordenação é apenas
mais um exemplo dessa aprovação mútua, ela não é muito
diferente de um bando de fariseus que se chamam uns aos
outros de justos. Ela é totalmente insignificante. Uma aprovação
humana feita repetidas vezes não equivale a autorização divina.
Quando eles falam sobre canonização da Escritura, insistem que
a igreja só reconheceu a autoridade divina que já estava na
coleção de documentos inspirados, não lhe conferindo
autoridade. A Bíblia seria autoritativa do mesmo modo, ainda que
por qualquer motivo decretado pela providência divina a igreja
tivesse deixado de reconhecê-lo. Certamente, embora a Escritura
reivindique autoridade divina por si mesma, como ela não
promete que a igreja como comunidade iria reconhecer sua
autoridade, devemos em princípio deixar em pé a possibilidade
de a igreja falhar em reconhecer a autoridade da Escritura. Do
contrário, faríamos do reconhecimento da igreja o teste de
autoridade da Escritura, o que colocaria a autoridade da Escritura
sob a autoridade da igreja, o que por sua vez derrotaria a própria
doutrina que a igreja tenta afirmar — isto é, que ela apenas
reconhece a autoridade que já está lá.
A questão é se o mesmo pensamento se aplica ao modo como a
igreja considera a autoridade divina em outras áreas, como
indivíduos chamados para o ministério. Encontramos um exemplo
em Atos 13: “Enquanto adoravam o Senhor e jejuavam, disse o
Espírito Santo: Separem-me Barnabé e Saulo para a obra a que
os tenho chamado. Assim, depois de jejuar e orar, impuseram-
lhes as mãos e os enviaram” (v. 2-3). O Espírito Santo já havia
chamado esses homens. Não cabia à igreja autorizá-los ou não,
mas apenas concordar e obedecer. Novamente, Deus já os havia
chamado; portanto, mesmo que a igreja desobedecesse, os
homens ainda teriam sido comissionados e autorizados por Deus,
assim como a Bíblia continuaria sendo uma revelação divina,
mesmo que ninguém a reconhecesse como tal.
Da mesma forma, assumir que a igreja reconheceria sem falha
todas as pessoas que Deus chamou não abre possibilidade de
haver uma igreja imperfeita ou mesmo apóstata. Mas a Escritura
não diz que a igreja reconhecerá sem falha todo ministro legítimo
ou que nenhuma igreja pode ser imperfeita ou mesmo apóstata.
Às vezes se diz que mesmo que um indivíduo seja chamado por
Deus, não se deve permitir que ele atue enquanto não tiver obtido
o reconhecimento da igreja. Mas a Bíblia não ensina isso em
lugar algum, e a doutrina é bastante suspeita. Ela concede à
igreja o direito de ignorar ou anular o chamado de Deus. Também
impossibilita que haja reformadores da igreja — pelo menos os
torna pecadores até seus pontos de vista virarem a norma. Se a
alegação é que o próprio Deus instituiu a ordem na igreja e
garantirá portanto sua função adequada, isso é refutado por
exemplos de igrejas confusas e desobedientes no Novo
Testamento. A Escritura dá margem a que Deus levante servos
fieis que falem às igrejas e as corrijam quando elas se desviarem
dos princípios dele e deixarem de reconhecer a autoridade
legítima.
Se é concordado que a ordenação da igreja apenas reconhece
uma comissão divina, então a comissão existe sem a ordenação
e deve haver uma base para a autoridade que seja diferente da
ordenação e anterior a ela. Em outras palavras, nossos ministros
têm seu evento de Atos 13.3, mas onde está seu evento de Atos
13.2? O término ou encerramento da Escritura o torna
desnecessário? A doutrina do cessacionismo o torna impossível?
Mas a Escritura não afirma a relevância de seu encerramento
para essa questão e não aprova a doutrina do cessacionismo.
Essas são tradições religiosas inventadas por homens para
encobrir sua própria incredulidade e deficiência e para desviar a
atenção das questões acerca da competência e autoridade deles.
Tudo isso é puro lixo inventado.
Um verdadeiro representante de Deus exerce autoridade divina
porque recebeu uma comissão de Deus e foi capacitado pelo
Espírito. Você tem um diploma de seminário? Ele será
desprezado pelos homens. A menos que tenha o que é
necessário à parte de seu diploma de seminário, ele apenas
acentuará sua incompetência. Você tem documentos de
ordenação? Tente usar isso no lugar do escudo da fé. O diabo rirá
disso e lançará seus dardos inflamados direto em seu coração.
Independentemente de quantos homens o respaldem, a
aprovação humana jamais se transformará em autoridade e poder
divinos. Afinal, um diploma, uma ordenação e coisas do tipo são
nada mais que a opinião de homens sobre suas qualificações.
Um verdadeiro homem de Deus é ensinado por Deus e enchido
com seu Espírito. O homem que recebeu uma comissão de Deus
é um homem que tem autoridade de Deus e produzirá fruto que é
consistente com a descrição bíblica do homem de Deus. Se em
seu pensamento uma pessoa se respalda na aprovação humana
ou em se defender perante os outros, isso mostra ou que ela não
tem uma comissão de Deus, ou está em tal estado de fraqueza e
incredulidade que não confia na comissão.
Deixe-me dar um exemplo de como a perda de autoridade divina
pode distorcer nosso pensamento sobre o ministério. Ele pode
ser demasiado sutil para algumas pessoas perceberem — e por
essa razão, talvez, seja uma boa ilustração da profundidade do
dano.
Primeiro precisamos ler 1 Pedro 4.10-11. A passagem diz: “Cada
um exerça o dom que recebeu para servir os outros,
administrando fielmente a graça de Deus em suas múltiplas
formas. Se alguém fala, faça-o como quem transmite a palavra de
Deus. Se alguém serve, faça-o com a força que Deus provê, de
forma que em todas as coisas Deus seja glorificado mediante
Jesus Cristo, a quem sejam a glória e o poder para todo o
sempre. Amém”.
A passagem faz uma declaração ampla, no sentido de que todos
os crentes devem administrar fielmente as habilidades que
receberam de Deus, e depois divide esses crentes em dois
grupos — aqueles com o dom de falar e aqueles com o dom de
servir. Certamente, todo crente pode falar a verdade sobre Deus,
mas Pedro tem em mente aqueles que receberam um dom
espiritual para o ministério de falar. Além do mais, falar é de certo
modo servir; mas aqui é feita uma distinção, de modo que o servir
enfatiza aquelas obras espirituais cujas principais características
não envolvem o falar. Pedro está dizendo que cada pessoa deve
usar o dom que tenha recebido. Quem fala deve usar seu dom de
falar e, assim, fazê-lo como aquele que fala as próprias palavras
de Deus. Quem serve deve usar seu dom de servir e, assim,
fazê-lo com a força que Deus provê.
Ora, John Piper cita essa passagem em seu livro Supremacia de
Deus na pregação; mas, segundo a interpretação dele, o
significado de Pedro é que quem fala deve usar a Bíblia![11] É
claro que devemos usar a Bíblia, mas a passagem desenvolve
um ponto totalmente diferente. Pedro não diz “Se alguém fala,
deve citar a Bíblia”. Não. Ele diz que, primeiro, cada crente deve
usar o dom que recebeu para realizar seu ministério. Portanto, se
o crente fala, que fale usando o dom que recebeu e estará
fazendo isso como alguém que fala as próprias palavras de Deus.
Se serve, que sirva usando o dom que recebeu e estará fazendo
isso com a força de Deus.
Piper transfere toda a autoridade para a Bíblia somente, embora
Pedro esteja falando da pessoa que Deus chamou e dotou. Três
vezes Pedro declara o princípio associando o crente a um dom
carismático (de “graça”), mas Piper muda o segundo, de modo
que quem fala é agora associado ao texto público e objetivo da
Escritura. Mas então aquele que fala é cortado de qualquer
relação com um dom carismático, subvertendo-se a estrutura e o
significado da passagem.
Como que para manter uma relação entre a pessoa e o dom,
Piper combina os dois grupos num só e interpreta a passagem
como se ela dissesse que aquele que fala deve falar a Bíblia com
a força do Espírito. Essa é uma alteração direta do que Pedro diz,
feita para manter o preconceito teológico. O ponto de Pedro é,
claramente, que quem serve pode servir na força de Deus porque
recebeu o dom carismático de servir; e que quem fala pode fazê-
lo como alguém que fala as próprias palavras de Deus porque
recebeu o dom carismático de falar.
Isso é embaraçoso para aqueles que afirmam o cessacionismo
ou rejeitam esse aspecto do ensino bíblico. Pode significar que
eles não estão falando pelo dom de Deus ou não são de fato
chamados para falar e não têm, portanto, o dom. Estou
convencido de que a maioria dos ministros ordenados, qualquer
que seja a persuasão ou denominação, se encontram nessa
posição. Com que base você fala comigo? Com que autoridade
me ensina? Você fala comigo com base em credenciais humanas
e pela autoridade de homens? Saia! Mande alguém que saiba
que recebeu uma comissão de Deus, que recebeu um dom de
Deus e que pode se dirigir a mim como alguém que fala as
próprias palavras de Deus.
7. Testemunha e testemunho

Surgiu um homem enviado por Deus, chamado João. Ele veio como
testemunha, para testificar acerca da luz, a fim de que por meio dele
todos os homens cressem. Ele próprio não era a luz, mas veio como
testemunha da luz.
Então João deu o seguinte testemunho: Eu vi o Espírito descer dos
céus como pomba e permanecer sobre ele. Eu não o teria
reconhecido se aquele que me enviou para batizar com água não me
tivesse dito: Aquele sobre quem você vir o Espírito descer e
permanecer, esse é o que batiza com o Espírito Santo. Eu vi e testifico
que este é o Filho de Deus.
Filipe, como André e Pedro, era da cidade de Betsaida. Filipe
encontrou Natanael e lhe disse: Achamos aquele sobre quem Moisés
escreveu na Lei e a respeito de quem os profetas também
escreveram: Jesus de Nazaré, filho de José.
Perguntou Natanael: Nazaré? Pode vir alguma coisa boa de lá?
Disse Filipe: Venha e veja.
Ao ver Natanael se aproximando, disse Jesus: Aí está um verdadeiro
israelita, em quem não há falsidade.
Perguntou Natanael: De onde me conheces?
Jesus respondeu: Eu o vi quando você ainda estava debaixo da
figueira, antes de Filipe o chamar.
Então Natanael declarou: Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de
Israel! (Jo 1.6-8, 32-34, 44-49)

João foi enviado por Deus “como testemunha, para testificar”.


Aqui está outro grande tema do Evangelho, consistindo nas duas
ideias de testemunha e testemunho. Testemunha refere-se à
pessoa e testemunho refere-se ao que a pessoa faz como
testemunha. As duas ideias são inseparáveis e se explicam
mutuamente. Estamos interessados no que o Evangelho significa
para que uma pessoa seja testemunha de Deus ou alguém que
testifique acerca das coisas de Deus.
O Evangelho nos mostra que testemunho é basicamente uma
declaração verbal. O versículo 15 diz: “João dá testemunho dele.
Ele exclama…”. Então os versículos 19 e 32 dizem que ele dá
seu testemunho, e a isso se segue um registro de suas
declarações verbais. Mais tarde, em 18.37, Jesus diz a Pilatos:
“De fato, por esta razão nasci e para isto vim ao mundo: para
testemunhar da verdade. Todos os que são da verdade me
ouvem”. Ele veio para testificar da verdade, e a natureza de seu
testemunho é tal que uma pessoa o ouviria. Seu testemunho é
uma declaração verbal.
Devemos acrescentar algo mais a essa ideia de testemunha.
João 3.11 (ARA) diz: “Em verdade, em verdade te digo que nós
dizemos o que sabemos e testificamos o que temos visto”. João
3.31-32 nos dá algo parecido: “Aquele que vem dos céus está
acima de todos. Ele testifica o que tem visto e ouvido”.
Testemunho é uma declaração verbal sobre o que “sabemos”. Em
outras palavras, uma testemunha é alguém que fala sobre algo
ou alguém; e se presume que ela saiba do que está falando, que
esteja familiarizada com a verdade do assunto.
Testemunho é uma declaração verbal do conhecimento que uma
pessoa tem de alguém ou algo. Esse conhecimento vem do que
uma pessoa “tem visto e ouvido”. Devemos discutir o que isso
significa, já que não se refere a sensações empíricas. Qualquer
pessoa com aptidão teológica deveria imediatamente detectar
isso — a verdade salta aos olhos em João 3.31-32; mas iremos
nos demorar um pouco para nos certificar de que isso está claro.
Em todo caso, devemos primeiro concluir esta parte da discussão
considerando se é possível haver algo como uma testemunha ou
testemunho não verbal.
Num certo sentido, algo não verbal pode funcionar como um
testemunho. Mas algo como um item, um evento ou uma ação só
pode ser um testemunho no sentido de ser um gesto simbólico
que represente uma declaração verbal.
Por exemplo, quando uma nação pousa na lua, seus
representantes (os astronautas) plantam uma bandeira no chão.
A bandeira serve de testemunha e dá um testemunho. Mas em si
mesma a bandeira não significa nada e não diz nada. Ao
contrário, ela é apenas um símbolo ou sinal que representa um
testemunho cujo conteúdo só pode ser expresso numa
abundância de palavras. No caso em questão, o testemunho
poderia incluir as ideias “Estivemos aqui” ou “Atingimos este nível
de desenvolvimento tecnológico” ou “Isso é prova de nossa
determinação e inteligência”. A bandeira poderia representar
todas essas ideias. Na verdade, perceba que, enquanto seu
significado não for definido por palavras, ela permanecerá
ambígua. Poderíamos com a mesma facilidade interpretá-la como
“Isso é prova da vanglória da humanidade, pois dedicamos
milhões de dólares para nos lançar ao espaço, enquanto não
podemos sequer cuidar dos problemas na Terra”.
Da mesma forma, uma bandeira no Monte Everest poderia
significar “Isso é prova da nossa determinação, resistência e
conquista”. Mas eu poderia interpretá-la como “Isso é prova de
sua vida fútil e atitude egoísta, pois vocês se dispõem a arriscar a
própria vida e se separar dos entes queridos só para mostrar que
podem fazer algo tão tolo e inútil”. O que a bandeira significa?
Ninguém pode dizer, a menos que isso seja explicado por uma
declaração verbal antes ou depois do fato.
Uma testemunha não verbal só “fala” de uma maneira simbólica,
aguardando uma interpretação verbal; portanto, até mesmo uma
testemunha não verbal pressupõe um testemunho verbal. É
assim que devemos entender as passagens bíblicas que aludem
a testemunhas não verbais, como as obras de Cristo. Por
exemplo, Jesus diz que a “obra” que o Pai lhe deu para realizar
“testifica” que o Pai o enviou (Jo 5.36, ARC). Mas esse
testemunho só faz sentido porque se pressupõe toda uma
teologia exposta verbalmente. Isto é, as ideias de “Pai” e “enviou”
e o princípio de que a “obra” de Jesus autentica sua comissão
não são transmitidos pelas ações em si.
Em outro lugar, Jesus diz: “Creiam em mim quando digo que
estou no Pai e que o Pai está em mim; ou pelo menos creiam por
causa das mesmas obras” (14.11).[12] Mais uma vez, crer por
causa dos milagres pressupõe as afirmações e explicações
verbais; do contrário não se saberia em que crer por causa dos
milagres. Quando Jesus diz para crer por causa dos milagres,
quer dizer crer naquilo que as pessoas poderiam se recusar a
crer sem os milagres. Isto é, foram feitas afirmações e
explicações verbais antes e à parte dos milagres. Parafraseando,
Jesus diz: “Creiam em mim quando digo que estou no Pai e que o
Pai está em mim; ou pelo menos creiam que estou no Pai e que o
Pai está em mim por causa das mesmas obras”. Ou “Se vocês
não creem nas minhas palavras só porque as falei, então creiam
nas minhas palavras porque faço milagres”. É por isso que o
Evangelho frequentemente chama seus milagres de “sinais”, uma
vez que eles são eventos históricos que simbolizam e autenticam
os testemunhos verbais sobre Jesus Cristo.
Uma característica essencial do testemunho bíblico é que ele
nunca está verdadeiramente baseado na sensação ou
observação humanas, mesmo quando o testemunho vem das
ditas “testemunhas oculares”. Praticamente qualquer exemplo na
Bíblia de alguém testificando algo sobre Deus serve como
exemplo disso, e uma pessoa que leia todo o Evangelho de João
encontrará muitos casos assim. Por enquanto nos limitaremos a
ilustrações tiradas do presente contexto.
Em 1.15, João Batista testifica: “aquele que vem depois de mim é
superior a mim, porque já existia antes de mim”. Quer se refira a
uma prioridade metafísica ou cronológica, já que o Cristo seria
uma encarnação da divindade, quer a uma superioridade de
posição ou status, já que o Cristo seria maior que qualquer
profeta, o “antes” em “existia antes de mim” não pode vir de
nenhuma sensação empírica ou inferência da observação, pela
simples razão de que esse “antes” não era algo que pudesse ser
visto, ouvido ou observado fisicamente. De fato, com base nos
versículos 31 e 33, nesta altura João Batista talvez nem conhecia
a identidade humana de Cristo. Certamente era impossível ele ter
inferido a partir de uma observação empírica que o Cristo era
metafisicamente anterior ou espiritualmente superior.
Então, em 1.29, João vê Jesus e diz: “Vejam! É o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo!”. Primeiro, seria impossível
alguém saber que Jesus era o Cristo apenas olhando para ele.
Do contrário, Jesus teria exibido diferenças essenciais do resto
da humanidade até mesmo na sua aparência, o que seria
contrário ao testemunho da Escritura. Além do mais, se fosse
possível saber que Jesus era o Cristo apenas olhando para ele,
João Batista não teria precisado dizer nada. De fato, grande parte
de seu ministério teria sido desnecessário. Em segundo, também
seria impossível alguém saber que Jesus era “o Cordeiro de
Deus” e que ele veio “tirar o pecado do mundo” ao ver, ouvir ou
observar Jesus. Essas declarações eram ricas de um conteúdo
teológico que não tinha qualquer relação necessária com a
aparência física de Jesus. O versículo 31 declara a razão do
ministério de João Batista. Isso fazia parte de seu testemunho e
também algo que não podia ser inferido da sensação ou
observação.
Novamente, 1.32 afirma que João deu um testemunho e disse:
“Eu vi o Espírito descer dos céus como pomba e permanecer
sobre ele”. Outras pessoas viram a pomba? Caso não, o que
João viu não era físico nem público, nem percebido pela visão
física. Mas se outras pessoas também viram a pomba, elas
sabiam que estavam olhando para o Espírito, ou apenas para
uma pomba como qualquer outra? Se não sabiam que estavam
olhando para o Espírito, João Batista percebeu algo adicional, ou
melhor, a verdadeira natureza da questão além da aparência da
pomba — e, de novo, o conhecimento não era derivado da visão
ou sensação física. E se todos podiam ver a pomba e todos
sabiam que estavam olhando para o Espírito, isso apenas
significa que todos perceberam algo mais profundo do que a
aparência da pomba, já que todas as outras pombas eram
apenas pombas. O verdadeiro conhecimento da situação,
portanto, não só estava além da aparência ou do que era
percebido pelos sentidos físicos, mas era diferente do que era
percebido pelos sentidos físicos.
O versículo 33 nos diz qual é a base do conhecimento e
testemunho de João: “Eu não o teria reconhecido se aquele que
me enviou… não me tivesse dito”. Ou seja, João Batista testificou
com base na revelação. Não testificou com base em qualquer
coisa que tinha visto e ouvido no sentido físico, mas com base no
que tinha visto e ouvido no sentido espiritual.
Quando voltamos a 3.31-32, citado anteriormente, esse princípio
fica ainda mais claro: “Aquele que vem dos céus está acima de
todos. Ele testifica o que tem visto e ouvido”. Jesus veio dos céus
e testificou sobre Deus e as coisas de Deus, do que tem “visto e
ouvido”. Mas neste mesmo Evangelho Jesus afirma que “Deus é
espírito” (4.24). Ele não é um objeto físico que pode ser percebido
pelos sentidos físicos. Além disso, Jesus realmente veio dos céus
e assumiu um corpo humano, mas antes disso ele não possuía
esse corpo físico e, portanto, não possuía órgãos de sentido
físicos pelos quais pudesse perceber algo no sentido físico ou
empírico. Assim, quando o Evangelho diz que ele testificou o que
tinha “visto e ouvido” nos céus, não pode estar se referindo à
percepção física ou empírica, mas apenas à percepção espiritual
ou intelectual.
Isso é verdade em todos os casos em que a Bíblia afirma que
uma pessoa presta um testemunho verdadeiro sobre Deus ou
sobre coisas espirituais. Nunca é referência a algo baseado no
físico ou empírico, mesmo quando a visão ou audição são
mencionadas. Ao contrário, em todos os casos a pessoa obteve
ou aplicou uma compreensão ou percepção espiritual que se
baseava na revelação. Às vezes isso ocorre em conjunção com
ou na ocasião de uma sensação física, mas o conhecimento que
é reivindicado e expresso no testemunho jamais deriva ou
depende da sensação.
Esse princípio é essencial para o fundamento da fé cristã. Foi o
princípio operacional pelo qual todos os profetas testificaram
sobre Deus e o Cristo que estava por vir. Eles testificaram de
acordo com o conhecimento, mas a base desse conhecimento
era a revelação, nunca a sensação ou inferência da sensação. E
quando o Cristo veio, esse foi o princípio operacional pelo qual
todos os discípulos reconheceram Jesus por quem ele era,
mesmo Deus em carne. Isso é evidente no nosso texto. Jesus
chamou Natanael de “verdadeiro israelita, em quem não há
falsidade”. Deus já estava trabalhando nele. E, quando Jesus
demonstrou ter uma percepção sobrenatural, Natanael
respondeu: “Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!”.
A passagem proíbe pensarmos que ele reagiu dessa forma
devido a uma personalidade crédula ou por falta de inteligência,
já que apenas alguns versículos antes Natanael esteve em um
estado mental cético, perguntando em tom de sarcasmo “Nazaré?
Pode vir alguma coisa boa de lá?”. Ao contrário, o coração desse
“verdadeiro israelita” percebeu Jesus por quem ele era ao
conhecê-lo. Mas sua percepção não se baseou numa avaliação
empírica nem foi inferida do que ele viu, pois no início Jesus não
havia demonstrado nenhum poder vastamente superior ao dos
profetas dos tempos antigos, e os profetas todavia nem eram
percebidos como messias. O próprio Jesus apontou para
Natanael que ele posteriormente veria “o céu aberto e os anjos de
Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem”.
Ou seja, as coisas que Natanael iria testemunhar aumentariam
sua percepção espiritual de Jesus, e não que sua percepção de
Jesus cresceria mediante demonstrações cada vez maiores de
poder e glória até ele chegar à conclusão de que Jesus era o
Filho de Deus. De fato, se a percepção espiritual se limita a
sensações empíricas e a inferências delas, então mesmo que as
sensações sejam confiáveis (o que a Bíblia nega) seria
necessário nada menos que uma demonstração de onipotência,
talvez a criação de um novo universo, para demonstrar que Jesus
era uma divindade, o Filho de Deus. Contudo, mesmo a criação
não requer onipotência, mas apenas um grande poder. Em
qualquer caso, o conhecimento está disponível por meios mais
prontos e confiáveis, a saber, por revelação.
O Evangelho é meticuloso em afirmar e reforçar esse princípio
vez após vez, pois ele também é essencial para a perpetuação da
fé cristã. Como diz Jesus perto da conclusão do Evangelho:
“Você creu porque me viu? Bem-aventurados são os que não
viram e creram”. A fé é um assentimento inteligente à revelação,
e qualquer tipo de fé deve transcender a sensação. O tipo de fé
que se baseie no testemunho da revelação totalmente à parte da
sensação é não apenas igual a essa fé, mas é superior e mais
abençoado.
Se testemunha de Deus é alguém que tem percepção espiritual e
percebe a revelação pelo que ela é, como sendo a verdade de
Deus, essa pessoa tem conhecimento de Deus e das coisas de
Deus, quer esse conhecimento esteja associado a alguma
sensação física ou verificação empírica, quer não. E ela é capaz
de fornecer um testemunho confiável sobre Deus e sobre as
coisas de Deus quando fala com base em seu conhecimento,
baseado na revelação divina e derivado dela. Ou seja, se
conhecimento significa uma compreensão da revelação pela
mente, mesmo aqueles que não estiveram com Cristo em carne
podem ser testemunhas verdadeiras dele — assim como os
profetas que viveram antes de sua encarnação e nós que cremos
após sua ascensão.
Os primeiros discípulos realmente viram Jesus com sua visão
física, mas eles não perceberam quem ele era por causa de sua
visão física. Antes, receberam a percepção espiritual de quem ele
era, de que ele era Deus, homem, e o Cristo. Quando eu
contemplo o testemunho da revelação sobre ele, talvez ao ler
atentamente as páginas da Escritura, o Espírito me concede a
mesma percepção da verdade — que Jesus era o Cristo, que ele
era Deus encarnado, que ele morreu pelos meus pecados e que
ele ressuscitou para a minha justificação. O Espírito, com base na
revelação, capacita minha mente a perceber o Cristo vivo agora,
de modo que tenho uma percepção em primeira mão dele e um
relacionamento em primeira mão com ele. Eu realmente o
conheço e posso testificar acerca dele com conhecimento e
convicção.
Isso é verdade acerca de você? Você tem a percepção espiritual
de que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus? Tem o entendimento
intelectual de que crer nele é a vida eterna? A revelação divina é
a base dessa percepção ou entendimento? O Espírito permitiu à
sua mente apreender e afirmar essas coisas à parte da
sensação? Caso sim, você tem um conhecimento verdadeiro
sobre o Senhor Jesus e é uma testemunha legítima dele. Pode
convidar as pessoas a “vir e ver” — não no sentido físico ou
empírico, mas a examinar o testemunho da revelação para que o
Espírito lhes conceda crença e discernimento na verdade sobre
Jesus Cristo. Você tem um conhecimento verdadeiro sobre o
Senhor Jesus. Pode dar um testemunho confiável de que ele é
Deus, de que ele veio à Terra em carne, de que ele morreu pelos
pecados daqueles que creriam e de que aquele que nele crê tem
a vida eterna — herdará uma alegria e glória eternas e um lugar
junto à mesa do Mestre.
8. Quando a religião fica sem vinho

Tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Eles não têm mais
vinho.
Disse Jesus aos serviçais: Encham os potes com água. E os
encheram até a borda.
Então lhes disse: Agora, levem um pouco ao encarregado da festa.
Eles assim fizeram, e o encarregado da festa provou a água que fora
transformada em vinho… e disse: Todos servem primeiro o melhor
vinho e, depois que os convidados já beberam bastante, o vinho
inferior é servido; mas você guardou o melhor até agora.
Quando já estava chegando a Páscoa judaica, Jesus subiu a
Jerusalém. No pátio do templo viu alguns vendendo bois, ovelhas e
pombas, e outros assentados diante de mesas, trocando dinheiro.
Então ele fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem
como as ovelhas e os bois; espalhou as moedas dos cambistas e
virou as suas mesas. Aos que vendiam pombas disse: Tirem estas
coisas daqui! Parem de fazer da casa de meu Pai um mercado!
Seus discípulos lembraram-se que está escrito: O zelo pela tua casa
me consumirá.
Então os judeus lhe perguntaram: Que sinal milagroso o senhor pode
mostrar-nos como prova da sua autoridade para fazer tudo isso?
Jesus lhes respondeu: Destruam este templo, e eu o levantarei em
três dias.
Os judeus responderam: Este templo levou quarenta e seis anos para
ser edificado, e o senhor vai levantá-lo em três dias? Mas o templo do
qual ele falava era o seu corpo. Depois que ressuscitou dos mortos,
os seus discípulos lembraram-se do que ele tinha dito. Então creram
na Escritura e na palavra que Jesus dissera. (Jo 2.3, 7-10, 13-22)

Os milagres de Jesus, como registrados no Evangelho de João,


foram eventos históricos. Não são meras lendas ou símbolos,
mas ocorreram em momentos e locais definidos e produziram os
efeitos descritos no texto. Ou seja, quando milagres de cura são
relatados, esses indivíduos tinham doenças e defeitos reais que
foram curados pelo poder de Cristo, de modo que eles não mais
tinham essas doenças e defeitos. Quando é relatado que Jesus
ordenou que uma tempestade cessasse, realmente houve essa
tempestade — os ventos realmente sopraram e as águas
realmente se moveram — e os perigos e temores associados a
ela eram reais e históricos. Mas por ordem de Cristo os ventos e
as águas aquietaram. Esse é um princípio bastante elementar
para uma leitura adequada dos Evangelhos e, na verdade, de
toda a Escritura. Não está aberto à discussão; e quem dele
discorda deve ser considerado um inimigo da fé cristã.
Quando lemos que Jesus transformou água em vinho, foi isso
que aconteceu. Por um ato de poder divino ele mudou uma
substância física em uma substância física diferente. O evento
envolveu uma série de coisas que não estavam sujeitas ao
controle humano. Eles não estavam brincando — era uma
situação séria, que poderia levar a um grande constrangimento
para os anfitriões. Se eles tivessem mais vinho, teriam chamado
a atenção para isso e a questão jamais teria sido levantada.
Então, os serviçais é que trouxeram a água e encheram os potes.
E foram eles que trouxeram a água transformada em vinho ao
encarregado da festa, que provou desse vinho e comentou sua
qualidade superior. Não houve truques nem exibições elaboradas.
Assim, o milagre “revelou sua glória”. Foi uma demonstração do
seu poder, de que ele podia fazer algo assim. O modo como
realizou o feito também demonstrou sua confiança ou segurança
espiritual. O Evangelho enfatizaria isso várias vezes, mostrando
que Jesus sempre sabia o que iria fazer. Ele nunca se
atrapalhava, nunca entrava em pânico, nunca era lançado num
estado de turbulência ou desespero. Em todos os profetas
existiram falhas, ainda que não em suas palavras inspiradas.
Abraão gerou Ismael, Moisés golpeou a rocha com raiva, Sansão
traiu seu voto, Davi cometeu assassinato e adultério, Isaías
precisou ser purificado; mas em Jesus vemos alguém que não
tinha falhas. Havia nele mais que uma disposição para a
santidade, como vemos nos profetas; havia a definição mesma de
santidade, como vemos em Deus.
Essas observações nos levam ao próximo ponto, a saber, no
Evangelho de João o maior aspecto de um milagre não é seu
poder probatório, mas seu poder revelador. Em outras palavras, o
significado do fato de Jesus ter transformado água em vinho não
estava apenas em mostrar que ele podia fazer isso; porém,
quando explicado e considerado em um contexto teológico
adequado, isso serve como uma ilustração sobre Deus e sua
relação com suas criaturas e sua criação. Como João dedica
bastante atenção a esse aspecto dos milagres de Jesus e
seleciona e organiza seus materiais com isso em mente, ele
prefere designar esses atos de poder como “sinais”. São eventos
históricos que transmitem um significado espiritual. Ora, João
seleciona e organiza seus materiais com propósito, e há uma
progressão definida de pensamento. É melhor ler o episódio de
Caná com o que vem imediatamente depois, o episódio do
templo. A exemplo de João 1, além do que transmitem em si
mesmas, essas passagens seguem para dar o tom ao resto do
Evangelho.
A religião judaica ficou sem vinho. Não estou me referindo ao
sistema de doutrina e adoração prescrito no Antigo Testamento. A
religião do Antigo Testamento era uma revelação de Deus; e era
correta para o seu propósito. Mas os judeus da época de Jesus
não seguiam o Antigo Testamento. Ao contrário, como Jesus
disse em outro lugar, eles haviam inventado suas próprias
tradições pelas quais fingiam seguir os mandamentos de Deus,
mas elas na verdade serviam para subverter ou contornar esses
mandamentos. A religião dos judeus não era a religião do Antigo
Testamento.
Há cristãos que pensam que os judeus rejeitaram Jesus porque
eram muito apegados ao Antigo Testamento, muito dependentes
da lei, mas isso é totalmente falso. Os judeus não acreditavam
em Moisés e não obedeciam às leis que ele entregara. Eles
seguiam suas próprias tradições, inventadas por homens para
homens, e as praticavam para impressionar os homens e ganhar
a aprovação dos homens. A despeito da aparência que tentavam
manter, ela tinha pouco a ver com a adoração que Deus ordenara
por meio dos profetas. Se tivessem acreditado em Moisés e o
seguido, teriam reconhecido Jesus por quem ele era (Jo 5.46).
Embora o templo fosse o ponto focal de sua religião, visto que
não levavam a sério a adoração a Deus em primeiro lugar, os
judeus o transformaram num mercado. Jesus veio dar um fim
nisso. Usou um chicote para expulsar as ovelhas e bois do
templo, espalhou as moedas dos cambistas e até mesmo virou
suas mesas. Essa foi uma exibição notável e ousada por várias
razões. Dentre elas devemos notar que, embora o texto não diga
que ele atingiu alguém, esse foi todavia um ato fisicamente
violento. Não há como contornar isso, e não devemos buscar
uma maneira de dizê-lo de outra forma. Jesus invadiu os
negócios dos comerciantes e arruinou bens que, humanamente
falando, não lhe pertenciam.
Este é o Jesus que eu conheço. Este é o Jesus que sempre
conheci desde que li a Escritura pela primeira vez quando
criança, e as tradições humanas não foram capazes de tirá-lo de
mim. Aqueles que se apegam a um falso conceito de Cristo o
teriam reprovado; e mesmo agora mostram sua reprovação ao
apresentarem um Cristo que foi domado e enjaulado.
Esperaríamos encontrar esse falso Cristo entre os teólogos
liberais, mas quase sempre ele também é pregado por
reformados e por evangélicos. Eles alegam defender o Cristo da
Escritura, mas o deles é na verdade o Cristo de sua tradição ou
denominação. Este é Jesus Cristo — aquele que virou mesas. Ele
não se comportava dessa maneira o tempo todo, mas pelo menos
em parte do tempo. Pegue tudo dele, ou não pegue nada. Eles
dizem pegar tudo, mas a hipocrisia deles se mostra na maneira
como reagem aos que vêm em nome dele e seguem o seu
exemplo.
Jesus veio para destruir a religião judaica e libertar seu povo do
fardo que ela impunha à consciência dos homens. Certamente
ele poderia ter limpado o templo cem vezes, mas isso não teria
efetuado uma mudança permanente. O que ele fez no templo
prenunciava a destruição de Jerusalém, que ocorreria dentro de
uma geração do seu ministério terreno. Ele estava comprometido
com o término permanente da religião judaica; e ele veio em 70
d.C., através do exército romano, que massacrou milhares de
judeus e destruiu seu templo. Os judeus que sobreviveram foram
dispersos e seu sistema de adoração desmantelado. Como diz
Jesus numa de suas parábolas, “O que fará então o dono da
vinha? Virá e matará aqueles lavradores e dará a vinha a outros”
(Mc 12.9). Jesus em seu corpo humano virou as mesas dos
judeus. Jesus em seu poder divino virou a nação e a religião dos
judeus.
Entretanto, o que realmente pôs fim à religião judaica não foi a
sua destruição, mas o cumprimento do que o templo significava
na pessoa de Jesus Cristo. Quando Jesus morreu, o véu do
templo se rasgou em duas partes de cima a baixo. O caminho
para Deus estava agora aberto a todos por meio de Jesus Cristo,
à parte do templo judaico e à parte de todos os rituais e tradições
judaicos. Então, dentro de uma geração deste evento, os judeus
foram massacrados, Jerusalém foi queimada e o templo foi
destruído. A religião judaica jamais seria restaurada como algo
que tivesse uma real importância. Certamente, os homens podem
construir um edifício e implementar uma religião, assim como
posso usar palitos de picolé para construir um templo em minha
mesa e chamar o meu quarto de Israel. Mas tudo isso não teria
nenhuma importância espiritual e não seria um sistema religioso
que Deus aceita. Não há nenhuma adoração judaica legítima nos
dias de hoje nem nunca mais haverá. A única adoração
verdadeira é a adoração cristã. Como qualquer outra pessoa, um
judeu pode se tornar cristão e oferecer uma adoração verdadeira
por meio de Jesus Cristo. Mas, como qualquer outra pessoa, um
judeu nunca pode ser justo perante Deus ou lhe oferecer
verdadeira adoração, a menos que se torne cristão. O judeu não
tem uma posição especial junto a Deus só por ser judeu; e nunca
a terá nessa base. Quem vem a Deus deve vir por meio de Jesus
Cristo, ou não pode vir de fato.
A religião judaica não tinha nenhuma realidade nem poder,
somente uma longa lista de tradições voltadas ao interesse
próprio, projetadas para eximi-los de obedecer aos mandamentos
de Deus. Aqueles que ofereceram uma adoração genuína,
fizeram-no por meio da fé e apesar das tradições humanas que
estavam em seu caminho. Jesus, por outro lado, veio e trouxe
realidade, verdade, poder, salvação — um vinho superior a todos
que vieram antes. Ele não efetuou essa mudança através da
economia ou política ou dos métodos dos homens, mas pela
verdade que veio do céu e por um poder divino que estava além
de uma mera forma de religião, mas que podia transformar água
em vinho e podia trazer os mortos de volta à vida. É através dele
que as pessoas podem encontrar a realidade e o poder na
religião e adorar a Deus em espírito e em verdade. O Evangelho
fala sobre essa realidade e poder e como podemos nos assentar
na festa nupcial de Cristo.
Lamentavelmente, a natureza humana pecaminosa continua
igual, e muitas igrejas hoje ficaram sem vinho. Não porque Cristo
tenha ficado sem vinho — ele faz vinho por seu poder inexaurível
— mas porque essas igrejas têm muito pouco a ver com Cristo.
Elas se desviaram de uma devoção simples e sincera a Cristo e
se voltaram para uma religião de sua própria autoria.
Elas se voltaram para seguir seus próprios desejos e tradições
tanto em questões doutrinárias quanto éticas. Os exemplos são
numerosos demais para eu conseguir compilar uma coleção
equilibrada — pode-se facilmente citar várias centenas de coisas;
e por isso só mencionarei alguns que me vêm à mente.
As igrejas redefiniram a compaixão para justificar o divórcio e o
novo casamento, quando o primeiro é proibido pela Escritura e o
segundo só permitido após a morte do cônjuge. As denominações
redefiniram o amor para permitir que os homossexuais se casem
e até se tornem ministros em suas igrejas. Mas Paulo escreve
que a ira de Deus é derramada contra essas pessoas — tanto os
homossexuais quanto aqueles que os aprovam. Alguns abusam
da doutrina da bondade da criação e do chamado “mandato
cultural” para justificar atividades mundanas, ambições políticas e
expressões pessoais. O efeito cumulativo de centenas ou mesmo
milhares de tradições, cada uma projetada para subverter o
ensino bíblico, é a perda quase total da verdade, realidade, vida e
poder nas igrejas.
Elas transformaram a fé cristã num mercado. Usam truques para
atrair multidões e comercializam a propagação da doutrina e
cultura cristãs. Jesus se tornou um produto para elas venderem.
Elas deparam com uma ideia comercializável — uma oração ou
jejum especial, uma série de novela, um slogan ou música
cativante — e então vêm os calendários, livros de atividades,
seminários, joias e filmes para lucrar com essa ideia. O mundo
tem shows de premiação; portanto nós também os teremos. O
mundo tem concertos; portanto nós também os teremos. A igreja
deve se reunir para adorar, mas muitas vezes se tem tornado um
local de reuniões sociais para agradar aos homens e facilitar os
negócios e relacionamentos pessoais.
Se até mesmo sinais genuínos efetuados pelo poder divino não
produzem por si só crentes verdadeiros, menos ainda podem
truques mundanos e um cristianismo comercializado levar as
pessoas à fé em Cristo. O Evangelho diz que Jesus não
precisava que os homens lhe contassem sobre os homens, que
eles pareceriam crer nele mas na verdade não creriam. Ou a
igreja contemporânea carece dessa percepção básica da
natureza humana, ou realmente não vê importância em fazer um
verdadeiro progresso em favor do evangelho. Assim como os
judeus, elas subvertem a revelação divina pela tradição humana.
Sua religião é um modo de vida e pensamento feito por homens
para homens, para promover os desejos e ambições dos homens,
fazê-los se aprovar uns aos outros e satisfazer suas luxúrias.
Enganamo-nos se pensamos que Jesus não julga suas igrejas.
Como escreve Paulo, “Pois, se Deus não poupou os ramos
naturais, também não poupará você. Portanto, considere a
bondade e a severidade de Deus: severidade para com aqueles
que caíram, mas bondade para com você, desde que permaneça
na bondade dele. De outra forma, você também será cortado”
(Rm 11.21-22). Como corpo de Cristo, a igreja permanecerá para
sempre. Deus sempre irá reservar para si um remanescente de
fieis e nunca destruirá a igreja como fez com a nação judaica.
Porém, não podemos dizer o mesmo de congregações individuais
e crentes individuais.
Apocalipse 2 e 3 mostram que Jesus escrutina cada comunidade
de cristãos com um olhar penetrante e que o destino de cada
igreja repousa no poder dele. Jesus manda mensagens a sete
congregações. Suas observações revelam que seus padrões são
elevados, mas também muito claros. Em suma, ele está satisfeito
com aquelas que mantêm zelosamente uma ética e doutrina
sólidas, mesmo em face de tentações e perseguições, e
desaprova aquelas que não fazem isso. A maioria das igrejas
hoje fica muito aquém disso. Será que eles — os líderes e
membros dessas comunidades — realmente acham que
nenhuma calamidade lhes sobrevirá? Há uma base adequada
para essa atitude complacente? O que diz a Escritura? Ela nos
mostra um padrão de perpétua imunidade ou um padrão de futuro
acerto de contas? Não devemos confundir a paciência de Deus
com falta de preocupação ou mesmo incapacidade de punir.
Não há temor de Deus nas igrejas. As pessoas não creem que
Deus agirá. Elas dizem: “Somos a Igreja do Senhor, a Igreja do
Senhor, a Igreja do Senhor. Nenhum mal nos sobrevirá.
Certamente, bondade e misericórdia nos seguirão todos os dias
de nossa vida”. Mas se elas se afastaram de Cristo em suas
doutrinas, sua ética e suas práticas, o mero emblema de Cristo as
salvará? Certamente o que era verdade dos judeus também é
agora verdade dessas pessoas — elas se aproximam de Deus
com os lábios, mas seu coração está longe dele. Deus poupará
pessoas como essas? Certamente, Cristo anda entre suas igrejas
para julgar e punir. Paulo disse aos coríntios que, por causa de
sua falta de reverência com o corpo do Senhor, muitos estavam
fracos, doentes ou até mortos. E disse que eles eram julgados
pelo Senhor para que não fossem condenados com o mundo. Se
Jesus Cristo iria infligir doenças a crentes indisciplinados e até
matar alguns, quanto mais irá atormentar aqueles que rejeitam o
evangelho?
Muitos cristãos se inclinam a uma fé deísta por causa de sua
incredulidade; portanto, o que digo aqui não é enfatizado com
frequência. O Senhor matou Ananias e Safira de maneira
dramática e aparentemente instantânea, por uma providência
extraordinária. Também matou alguns coríntios, mas
provavelmente de maneiras menos espetaculares, por uma
providência ordinária, de modo que Paulo precisou apontar-lhes o
motivo. O seguinte pensamento deveria nos ocorrer: sempre que
acha melhor, o Senhor mata as pessoas que o desagradam. Para
os cristãos isso é disciplina, a fim de não serem condenados
como incrédulos. Para os não cristãos, é o começo do castigo
eterno no fogo do inferno. O ponto é que Deus mata pessoas,
inclusive hoje, inclusive em nossas igrejas. Às vezes ele o faz
pela providência extraordinária, mas raramente — e por isso é
chamada de extraordinária. Mas a providência ordinária ainda é
efetuada pelo decreto e poder de Deus; e quem morre dessa
maneira é morto tanto quanto aquele que morre sob a providência
extraordinária. Ele olha. Ele age.
Ninguém deve pensar que Cristo não vê ou não age em meio ao
seu povo e no mundo. Ele não está esperando para resolver tudo
só depois que as pessoas morrem. Ele aplica punições já nesta
vida. Mas os cristãos não pensam nisso, não creem nisso ou são
tão cegos que nem percebem quando isso está acontecendo.
Paulo escreveu que de Deus não se zomba, pois o que o homem
semear isso também colherá. As igrejas estão colhendo —
colhendo em doenças, falências, perda de participação e filiação,
em ausência de fruto espiritual e aptidão teológica, em
escândalos éticos e financeiros e numa infinidade de maneiras.
Elas enfrentam oposições de fora e implosões de dentro. As
igrejas têm semeado para a indulgência da carne, e agora Cristo
as pune; e seus próprios filhos — gerações inteiras — as
abandonam.
Apesar disso, em épocas assim é que o remanescente de Deus é
revelado. Em Êxodo 32, Moisés viu que Arão deixara os israelitas
fora de controle, que adorassem um bezerro de ouro, “tendo se
tornado objeto de riso para os seus inimigos” (v. 25). Então disse:
“Quem é pelo S , junte-se a mim”; e os levitas se juntaram
a ele. Então lhes ordenou que matassem seu próprio povo. Os
levitas obedeceram e mataram cerca de três mil deles. Então
Moisés lhes disse: “Hoje vocês se consagraram ao S , pois
nenhum de vocês poupou o seu filho e o seu irmão, de modo que
oS os abençoou neste dia” (v. 29). A religião centrada em
Deus produz um zelo verdadeiro que permite a uma pessoa
condenar seu próprio povo por ele desafiar as doutrinas do
Senhor. E esse zelo é um sinal de fé genuína. Como também
aponta João 2, foi o zelo pela casa do Pai que moveu Jesus a
virar as mesas dos comerciantes no templo (v. 17). O Senhor
usará a desobediência e falta de fé das suas igrejas para peneirar
o verdadeiro do falso. Seus remanescentes serão aqueles que
queiram se separar e denunciar as igrejas e denominações
apóstatas.
Em outras palavras, espera-se que os verdadeiros discípulos de
Jesus Cristo também virem algumas mesas. Há dezenas de
milhares de pastores e professores que minam ou até negam a
inerrância bíblica, a divindade de Cristo, a expiação dos pecados
pelo sangue e outras doutrinas básicas e essenciais. Eles devem
ser removidos de suas posições imediatamente. Se necessário,
devem ser fisicamente (mas legalmente) lançados fora das
instalações pelo pessoal autorizado. Como está escrito,
“Expulsem o malfeitor do meio de vocês”. O que, em primeiro
lugar, eles estão fazendo em nosso meio?
Igrejas, seminários e até denominações inteiras que tolerem
hereges devem ser confrontados e, se necessário, derrubados e
destruídos. O pastor ou professor que, digamos, nega a
inerrância bíblica ou aprova a homossexualidade envia ao mundo
uma mensagem mista ou falsa e faz os crentes tropeçarem.
Aqueles que toleram, defendem ou endossam essa pessoa
compartilham da sua culpa. Isso também se aplica aos cristãos
individuais que há muito toleram e até bajulam hereges. Se você
é leal a Cristo, por que chama uma pessoa de “doutora” nisso ou
naquilo em uma igreja ou seminário, se ela rejeita a inerrância
bíblica ou se mostra herege de alguma outra maneira? Por que
eu deveria respeitar alguém só porque ele estudou muito para se
tornar herege? Por que deveria admirar as credenciais
acadêmicas e eclesiásticas dele se elas apenas significam que
outros homens maus o aprovam?
O evangelho diz que Jesus agiu como agiu por causa do seu zelo
por Deus. Temos algum zelo por Deus? Alguns dizem que sim,
mas que bando de covardes e hipócritas são se, mesmo quando
dão a entender que defendem Deus e criticam a incredulidade,
fazem-no com um ar de cortesia acadêmica. Onde estava o
senso de cortesia de Jesus quando ele expulsou as ovelhas e
bois dos cambistas e quando virou suas mesas e espalhou suas
moedas por todo o templo? Que a propriedade social deles
pereça com eles: “Mas, quanto a mim, graças ao poder do
Espírito do S , estou cheio de força e de justiça, para
declarar a Jacó a sua transgressão, e a Israel o seu pecado” (Mq
3.8). Eles se recusam a fazer o mesmo, e até criticam aqueles
que o fazem, porque não têm o Espírito de Deus.
Os judeus exigiram que Jesus provasse sua autoridade (2.18). Se
Cristo foi desafiado nesse assunto e se você é seu discípulo,
também será desafiado pelo estamento religioso. A ideia deles de
autoridade é baseada na aprovação humana, de modo que, se
queremos iniciar uma reforma, não devemos apelar à mera
aprovação humana como nossa licença para falar e agir, ainda
que nós a tenhamos. Como observa Donald Guthrie, Jesus “não
tinha sanção oficial para sua missão. Na missão de Jesus, os
ouvintes judeus perderam completamente a sanção do próprio
Deus”.[13] Entre as denominações, seminários, igrejas e crentes
há um entendimento pervertido do que é autoridade espiritual —
ele se baseia na aprovação dos homens uns pelos outros. Mas
enquanto seu conceito de autoridade divina for definido pela
aprovação humana, não haverá base para achar que eles têm
autoridade ou aprovação divina para o que dizem e fazem. Assim,
o que lhes dá o direito de se opor a outras pessoas, de se opor
aos que se lhes opõem? De onde vem a autoridade deles?
Os reformadores sempre serão perseguidos porque não têm
aprovação humana; pois se tivessem aprovação humana não
seriam reformadores. Isso também significa que os reformadores
estarão na minoria; e às vezes eles até precisam ficar sozinhos.
Jeremias, por exemplo, ficou sozinho contra toda a nação. Era
considerado um criador de problemas, até um traidor de seu
povo. Mas realmente havia sido enviado por Deus. Ele estava
certo, e todo mundo estava errado. Suas palavras foram
vindicadas pelo cumprimento, mas já antes disso ele estava
respaldado na Lei.
Portanto, não direi que um reformador não presta contas a
ninguém (ele presta contas a Deus) e que não pode ser julgado
falso até que seja tarde demais (ele é julgado pela palavra de
Deus). Não, estou dizendo que o chamado de um homem não
pode ser justificado por um apelo à aprovação humana nem pode
ser desafiado apenas porque ele não apela a essa aprovação.
Por outro lado, aqueles que apelam à aprovação humana para se
afirmar ou para desafiar os outros podem ser ignorados com
segurança. Ora, referimo-nos a reformadores apenas para
enfatizar um ponto, mas os reformadores, pelo menos no sentido
aqui pretendido, só são necessários quando a norma deve ser
derrubada. Porém, o princípio estabelecido sobre autoridade
divina e aprovação humana se aplica a todos os ministros de
Deus.
Muitas igrejas ficaram sem vinho e estão morrendo, se é que já
não morreram. Mas Jesus Cristo pode transformar água em vinho
e até mesmo trazer mortos de volta à vida. Para reviver as
igrejas, devemos voltar a uma devoção simples e sincera a
Cristo; não o Cristo que foi domado, enjaulado ou modificado,
mas aquele acerca de quem este Evangelho testifica. Mas isso
significa que muitas tradições devem morrer — doutrinais,
eclesiásticas, sociais, culturais, acadêmicas e toda sorte de
tradições antibíblicas inventadas pelos homens. Devemos levar
as pessoas a conhecer e adorar esse Jesus tal como ele
realmente era e como realmente é. Isso não é feito com truques,
mas simplesmente dizendo às pessoas para “vir e ver” — isto é,
fornecendo um testemunho confiável sobre ele para que o
Espírito de Deus também possa conceder a nossos ouvintes o
entendimento de que aquele que veio do céu era realmente o
Cristo, o Filho de Deus, de que ele havia morrido mas ressuscitou
dentre os mortos, para que todos os que nele creem não
pereçam, mas tenham a vida eterna.
9. Você deve nascer de novo

Havia um fariseu chamado Nicodemos, uma autoridade entre os


judeus. Ele veio a Jesus, à noite, e disse: Mestre, sabemos que
ensinas da parte de Deus, pois ninguém pode realizar os sinais
milagrosos que estás fazendo, se Deus não estiver com ele.
Em resposta, Jesus declarou: Digo a verdade: Ninguém pode ver o
Reino de Deus, se não nascer de novo.
Perguntou Nicodemos: Como alguém pode nascer, sendo velho? É
claro que não pode entrar pela segunda vez no ventre de sua mãe e
renascer!
Respondeu Jesus: Digo a verdade: Ninguém pode entrar no Reino de
Deus se não nascer da água e do Espírito. O que nasce da carne é
carne, mas o que nasce do Espírito é espírito. Não se surpreenda pelo
fato de eu ter dito: É necessário que vocês nasçam de novo. O vento
sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode dizer de onde vem
nem para onde vai. Assim acontece com todos os nascidos do
Espírito.
Perguntou Nicodemos: Como pode ser isso?
Disse Jesus: Você é mestre em Israel e não entende essas coisas? (Jo
3.1-10)

Quando estive na faculdade, tive um professor de economia que


trabalhou com um ministério prisional. Certo dia, quando estava
falando sobre raça e economia, ele falou de si como um “cristão
nascido de novo”. Como seu assunto não era religião mas
economia, falou isso de passagem e não disse mais nada a
respeito. Quando a aula terminou, outro aluno se aproximou de
mim e sugeriu que almoçássemos num restaurante próximo, o
que fizemos. Eu cuidava de meus assuntos e decidia o que pedir,
quando ele ergueu os olhos do menu e perguntou: “O que ele
quis dizer com nascer de novo?”.
Como minha comida é a vontade de Deus, eu alegremente teria
baixado meu menu para responder imediatamente à pergunta.
Mas não queria desapontar a garçonete e assim pedi algo
suntuoso (não lembro o quê); passei então a conversar com meu
amigo sobre Deus, pecado, julgamento, Cristo, expiação, fé e
justificação e, obviamente, novo nascimento ou o que significa
nascer de novo. Tanto quanto soube, a maior parte do que eu lhe
disse era novidade, e ele prometeu refletir mais sobre nossa
discussão.
Essa história ilustra minha afirmação de que nem sempre
precisamos ter pressa em dizer aos outros que somos cristãos ou
em pregar-lhes o evangelho. Alguns insistem que, se não deixa
as pessoas a par de que é cristão dentro de algumas horas, dias
ou semanas após encontrá-las, há algo seriamente errado com
você. Talvez você tenha vergonha do evangelho, com medo de
falar de suas crenças. Ou talvez seja tão deficiente na fé que sua
retidão não consegue afetar profundamente os incrédulos com a
consciência de que há algo diferente em você. Certamente, se
você se comporta como cristão, os incrédulos irão perceber e
perguntar sobre isso. Mas esse modo de pensar não tem garantia
bíblica e é bastante ingênuo e estúpido. Revela uma falta de
maturidade e de compreensão das coisas espirituais.
É verdade que a Bíblia nos ensina a ser luz neste mundo por
nossas boas obras, mas sempre se assume que isso seja
acompanhado pela pregação do Evangelho. Simplesmente não é
verdade que se você se comporta como cristão os incrédulos
automaticamente irão perceber e perguntar sobre isso. Essa
teoria falsa assume que existe uma sensibilidade espiritual nos
incrédulos; mas a Bíblia ensina que eles são espiritualmente
obtusos. Além do mais, mesmo que um cristão consiga se
distinguir em certas situações, há circunstâncias que são tão
comuns que não há oportunidade de o cristão naturalmente se
distinguir. Como um todo, a igreja deve ser luz neste mundo, mas
é tolice pensar que isso pode se tornar naturalmente óbvio em
cada simples interação ou relacionamento humano. A Bíblia
jamais ensina isso.
A única forma confiável de chamar a atenção para sua fé é
levantar o assunto e falar sobre ele. E mesmo neste caso não
existe uma regra que nos exige fazê-lo o mais rápido possível
quando nos apresentamos à pessoa. É claro, em princípio um
cristão pode pregar o evangelho a qualquer pessoa a qualquer
momento, a novos conhecidos ou a completos estranhos.
Também é verdade que alguns crentes podem ser tímidos demais
para fazer isso e podem buscar desculpas para se eximir da
tarefa. Mas não estou me referindo a esse aspecto do
evangelismo. Há a questão da ousadia, mas também a questão
da sabedoria. Quando você lida com alguém que provavelmente
encontrará várias vezes, existe a opção de esperar até que surja
uma oportunidade conveniente para apresentar o evangelho.
No caso em questão, eu era amigo desse estudante há meses.
Eu o via várias vezes por semana, mas só naquele dia a
conversa acabou oferecendo uma transição natural para uma
exposição do evangelho. E porque foi ele quem levantou o
assunto, e de maneira tão direta e inquisitiva, pude prender sua
atenção por bastante tempo sem nenhum protesto. Dificilmente
se pode imaginar uma oportunidade mais bela de apresentar o
evangelho do que alguém perguntar “O que ele quis dizer com
nascer de novo?”. Não estou dizendo que você deve esperar um
convite tão direto. Algo assim pode nunca acontecer, mas resta o
fato de que alguns contextos são melhores que outros, algumas
oportunidades superiores a outras e algumas conversas mais
facilmente transformadas em discussões religiosas que outras.
Novamente, o cristão deve ter ousadia e prontidão de espírito
para abordar um total estranho com o evangelho ou criar a
oportunidade forçando uma conversa para a direção desejada.
Isso nunca deve ser minimizado. O que quero dizer é que há
vantagens em aguardar oportunidades que permitam a você
entrar naturalmente no assunto. Se a oportunidade não surge,
não há nada errado em usar uma abordagem mais invasiva.
Estou longe, porém, de defender uma forma de “evangelismo de
amizade”, onde o cristão faz amizade com o não cristão e
impressiona este dizendo quão normal, sociável e atraente um
seguidor de Cristo pode ser. As oportunidades “naturais” a que
me refiro podem ocorrer nos primeiros segundos depois de
conhecer uma pessoa ou não ocorrer até vários meses depois.
Em todo caso, nenhum cristão deve se sentir culpado por não
anunciar imediatamente sua fé a todas as pessoas que conhece
ou não conseguir deslumbrar um incrédulo com sua santidade em
poucos dias, sobretudo se a razão para isso não é uma falta de
ousadia e convicção, mas de sabedoria, paciência e fé na
providência divina.
A história também ilustra algo que é mais relevante para a nossa
discussão, o fato de que nem todo mundo está familiarizado com
conceitos bíblicos que a nós parecem comuns. Meu amigo tinha
quase 20 anos e fora criado nos Estados Unidos. Com tantas
igrejas e crentes neste país, esperaríamos que alguém assim
compreendesse o que os cristãos querem dizer com “nascer de
novo”, ainda que não cresse nisso. Mas a verdade é que
pouquíssimos incrédulos entendem esta e outras doutrinas
bíblicas. Além de uma admissão direta, existem outros indicativos
de sua ignorância. Por exemplo, não é incomum um não cristão
afirmar que a religião deve tratar principalmente de unidade,
tolerância, justiça social, boas obras e assim por diante. Ele
falaria assim para um cristão sem fornecer qualquer suporte e
sem fazer qualquer esforço para antecipar objeções, mostrando
assim não ter nenhuma consciência de que a sua declaração
contradiz o que seus ouvintes creem. Um incrédulo costuma falar
dessa maneira assumindo que o cristão concorda com ele.
Isso mostra que, por mais ampla que pensemos ter sido a
propagação da cosmovisão bíblica nas culturas ocidentais, ela
não penetrou a consciência da maioria das pessoas. Não se trata
apenas de que elas não creem no que cremos; elas nem mesmo
estão cientes do que cremos. Além do mais, também é óbvio que
até aqueles que se identificam como cristãos geralmente não
sabem o que supomos que deveriam saber. Pergunte a vários
membros de igreja o que significa “nascer de novo” e é quase
certo que você ouvirá muitas respostas diferentes, todas elas
ridículas. A ideia não é, no fim das contas, comum. Agora faça a
mesma pergunta a pastores, e é improvável que obtenha
resultados muito melhores. Obviamente, uma razão para isso é
que a maioria dos membros e pastores da igreja não nasceu de
novo. Se a maioria das pessoas nas civilizações ocidentais — se
mesmo a maioria dos “cristãos” — não sabe o que significa
nascer de novo, precisamos tornar nossa exposição da fé cristã
muito mais clara e vigorosa diante do mundo. Não devemos
presumir que as pessoas de qualquer parte do mundo entendem
mesmo as ideias cristãs mais básicas, incluindo as pessoas em
nossas igrejas e seminários.
Deus criou o homem e o chamou de Adão. Ele foi criado reto,
mas caiu no pecado, e o pecado produziu danos devastadores
em todos os aspectos do homem. No momento em que
transgrediu o mandamento de Deus, a morte entrou nele. Seu
corpo começou a deteriorar; ele continuaria a sobreviver por
muitos anos, mas finalmente expiraria e retornaria ao pó. A vida e
a luz de Deus se dissiparam da alma do homem, e em lugar de
paz, alegria e clareza de pensamento vieram medo, vergonha e
confusão. Adão era o cabeça federal, isto é, o representante de
toda a humanidade. Portanto, quando caiu em pecado, toda a
humanidade caiu com ele. Toda pessoa humana produzida desde
então herdaria sua natureza corrupta e também ficaria debaixo da
condenação judicial de Deus.
Há um aspecto intelectual e um aspecto ético no dano infligido à
alma caída do homem. Podemos resumir a condição de todo não
cristão com duas palavras simples — ele é estúpido e pecador.
O não cristão é estúpido. Ele se afasta da sabedoria de Deus em
seu pensamento e tenta construir sua própria interpretação do
mundo usando métodos irracionais como a indução, sensação e
ciência. Ele afirma valorizar muito a razão, mas só é considerado
racional por outros homens irracionais. Na arena intelectual, as
credenciais dos homens vêm da mútua aprovação. Eles se
recusam a receber a sabedoria que vem de Deus, mas se unem
para construir sua Torre de Babel intelectual. Mas, sob o teste da
lógica, todo o projeto se transforma em pó. Não importa o que
digam uns dos outros. Não tenho respeito pela sua opinião. Como
não há uma só teoria, descoberta ou alegação não cristã de
conhecimento que eu não possa refutar em menos de dez
segundos, a única conclusão razoável é que os não cristãos não
são inteligentes. Eles são muito estúpidos. Seu pensamento é
caracterizado pela ignorância e irracionalidade. Isso é
especialmente evidente quando se trata de coisas espirituais.
O não cristão é pecador. Cometer pecado é transgredir de
alguma forma as leis e preceitos morais de Deus em
pensamentos, motivos, desejos ou ações. A Bíblia obviamente
inclui muitas dessas leis e preceitos, e eles definem para nós o
certo e o errado, o bem e o mal, e como distinguir entre eles.
Mesmo aqueles que não têm acesso à revelação verbal de Deus
ou que a rejeitam estão instintivamente cientes de alguns dos
princípios mais amplos do código moral de Deus para a
humanidade. Esses princípios podem não estar em foco nítido em
seus pensamentos. Parecem-se mais com tênues lembranças; e
quando emergem são geralmente reprimidos, distorcidos ou
explicados com alguma desculpa.
No homem não cristão há fortes motivos, desejos e disposições
para o mal, para crenças, pensamentos e ações que sejam
contrários aos mandamentos de Deus. Não é que os incrédulos
não tenham um conceito de moralidade, mas que suprimem em
sua mente o que instintivamente sabem sobre Deus e sua
santidade. E em sua perversidade inventam seus próprios
padrões para substituir os preceitos de Deus. Em outras palavras,
os não cristãos chamam de mau o que é bom e de bom o que é
mau. E fazem-no para que possam se considerar bons, ainda que
pratiquem o mal e desafiem seu Criador. Contudo, eles não
conseguem viver nem mesmo à altura dos padrões que
estabeleceram para si mesmos. Assim, o não cristão é um
fracasso intelectual e um fracasso ético.
O não cristão é uma pessoa defeituosa. Há algo errado com ele.
Não há algo errado somente no que ele pensa ou faz — uma
pessoa é o que ela pensa e faz. Há algo errado com sua pessoa,
com ele — todo ele. Todo não cristão é uma pessoa má, uma
pessoa podre. É assim desde o momento em que foi concebido.
Ele está morto por dentro e está morrendo por fora. Qualquer
doutrina religiosa ou filosófica deve ser falsa se negar a
verdadeira condição do homem, se propuser uma solução
superficial ou propuser uma solução que é impotente para efetuar
a mudança necessária.
Jesus disse que a única solução é a pessoa “nascer de novo”. A
palavra traduzida como “de novo” também pode ser traduzida
como “do alto”. A Bíblia ensina ambas as ideias. Ela se refere à
necessidade da regeneração da alma e à “nova criação” do
homem interior. Mas no Evangelho de João é feito um contraste
notável entre o que é “do alto” e o que é “de baixo”. E Jesus diz
dos seus discípulos que eles “não são do mundo”, apesar de
ainda estarem vivendo no mundo. Assim, as duas ideias se
aplicam. É de fato um segundo nascimento; mas não um segundo
nascimento natural, e sim um tipo diferente de nascimento. É um
nascimento do espírito, em que Deus dá vida divina à alma do
homem, revivendo seus sentidos espirituais, iluminando sua
mente com a verdade, orientando suas disposições para a justiça.
Jesus disse que a menos que um homem nasça de novo — a
menos que nasça do alto, nascendo de Deus no espírito — ele
não pode “ver” e não pode “entrar” no reino de Deus. A palavra
“ver” não se refere à percepção sensorial, mas à percepção
intelectual sobre coisas espirituais. Ou seja, a menos que um
homem nasça do alto, não pode realmente compreender as
coisas de Deus. Ele não pode entender a verdade sobre Deus ou
crer no que ele nos revelou. A palavra “entrar” se refere à
participação. Ou seja, a menos que um homem nasça do alto,
não pode fazer parte da família de Deus de amor, verdade e
justiça. Uma pessoa só pode se tornar cidadã do reino de Deus
nascendo no reino. Em outras palavras, a menos que uma
pessoa nasça de novo ou nasça do alto, sempre estará do lado
oposto de Deus e de tudo o que é bom e verdadeiro.
Há somente um Pai, ele tem apenas um Filho divino e há
somente um Espírito Santo. O Pai concedeu ao Filho um número
fixo de indivíduos, escolhidos antes da criação do mundo. Todos
os que nascem de novo necessariamente pertencem ao Filho de
Deus, e de fato todos os que lhe pertencem crerão nele. Nós não
nascemos de novo por crer em Cristo, já que ninguém que ainda
está morto no espírito pode crer na verdade. Este é o problema
do homem, em primeiro lugar, e ele não pode salvar a si mesmo
dessa situação. Antes, todos aqueles que Deus escolheu
pertencem a Cristo, e todos os que pertencem a Cristo nascerão
de novo, e todos os que nascem de novo se mostrarão como tal
ao crerem em Jesus Cristo.
Assim como no nascimento natural, o nascimento espiritual não é
uma obra que você realiza. Não é algo que você faz; é algo que
Deus faz. É algo que acontece com você, que acontece em você
pela decisão soberana de Deus e que ele causa pelo poder de
seu Espírito Santo. E quando isso acontece, você faz o que sua
nova natureza espiritual dita. Assim como uma pessoa humana é
movida por um desejo natural de alimento humano, o filho de
Deus tem um desejo natural — natural em oposição a artificial ou
fingido — de alimento espiritual, isto é, de consumir a palavra de
Deus e de fazer a vontade de Deus. Torna-se a coisa mais natural
essa pessoa crer na verdade, confiar sua vida e alma a Jesus
Cristo e amar e adorar a Deus.
É por isso que todas as propostas não cristãs religiosas e não
religiosas fracassam. A menos que um homem nasça do alto,
nasça de Deus, ele não pode perceber o reino de Deus ou dele
participar. Mas Deus regenera somente aqueles a quem escolheu
em Cristo. Portanto, ninguém que não seja cristão pode dizer que
nasceu do alto, que é filho de Deus. Não importa a religião a que
pertença. Não importa que filosofia afirme. Não importa quanta
educação tenha ou quantas boas ações tenha realizado. Não
importa se é forte, rico ou inteligente pelos padrões do mundo —
a aprovação dos homens não implica a aprovação de Deus. Não
importa se afirma buscar a verdade, mas sem aceitar a revelação
de Deus, e sim utilizando os meios que acha ter e julga ser
confiáveis, como seus sentidos físicos, o raciocínio indutivo e o
método científico. Não importa que faça uma profunda
introspecção ou expanda bastante os horizontes em busca de
iluminação. É tudo fútil. Nada que o homem faça pode fazer
diferença. Só uma nova criação, um novo nascimento do alto,
pode remover o homem do reino das trevas e colocá-lo no reino
da luz, da escravidão de Satanás para a liberdade justa em Deus.
A maioria das pessoas não é nascida de novo, nascida do alto, e
amiúde é fácil dizer quem elas são. Assassinos, adúlteros,
homossexuais, ladrões, enganadores, ateus, agnósticos — todos
aqueles que admitem não ser cristãos e todos aqueles que os
toleram ou aprovam, se permanecerem como tal, certamente não
herdarão o reino de Deus. A natureza demoníaca está ali na
superfície. Algumas pessoas não são tão óbvias nisso. Na
verdade, não é difícil ver o que elas são, mas uma percepção
clara exige descartarmos algumas de nossas suposições e olhar
além das aparências.
Nicodemos era um fariseu, inclusive um dos líderes judeus. Era
educado na religião de acordo com o padrão dos homens. Ele
reconheceu que Jesus realizava milagres e que pelo menos com
base nesses milagres Jesus deveria ter vindo de Deus. Como
nota à parte, Nicodemos possivelmente estava familiarizado com
o registro na Escritura sobre falsos profetas e mágicos, sabendo
portanto que enganadores podiam produzir truques ou milagres.
E percebeu que os milagres que Jesus realizava estavam acima
dessas coisas — eles devem ter sido numerosos, espetaculares,
esmagadores.
Mas Jesus era o Cristo, o Filho de Deus, e a opinião manifestada
por Nicodemos estava abaixo disso. Qualquer opinião sobre Deus
que esteja abaixo de vê-lo como Deus estará infinitamente
abaixo. Como Deus é infinitamente superior ao homem, enquanto
uma pessoa julgar Deus como um mero homem, por mais
especial que este seja, ela estará errada numa medida infinita.
Não deve nos surpreender Jesus ter dito que ele precisava
nascer de novo, nascer do alto, para perceber o reino de Deus e
dele participar. Não importa quanta educação religiosa
Nicodemos tinha, e embora parte dessa educação fosse sólida,
ele era um homem do mundo, um homem “de baixo”, e assim sua
percepção se limitava a essa perspectiva.
Não importa quão religiosa uma pessoa nos pareça e não importa
quão estabelecida ela seja nos círculos religiosos; se não
reconhece sincera e inteligentemente que Jesus era e é o Cristo,
o Filho de Deus, ela continua sendo uma pessoa do mundo,
morta no espírito e não nascida do alto. Muitos professores de
seminário, líderes de igreja e diretores de denominação serão
lançados diretamente no inferno quando morrerem — não por
serem estas coisas, mas porque não nasceram de novo. Talvez
eles tenham aprendido a dizer as palavras certas como um
papagaio que imita seu mestre, mas só uma pessoa nascida de
novo pode confessar a verdade com entendimento e crença e
depois crescer na graça e conhecimento de Cristo, dando muitos
frutos.
Há outro princípio, mais amplo, que nos ajuda a identificar
aqueles que não nasceram de novo. Muitos cristãos não pensam
claramente sobre essa questão e afirmam que uma pessoa pode
reconhecer Jesus como o Cristo, porém negar a inspiração e
inerrância da Escritura. Mas em que base essas pessoas
confessam que Jesus é Deus e Cristo? A verdade é que a pessoa
que nega a inspiração e inerrância bíblicas é pior do que
Nicodemos. Obviamente, até que também acreditasse no que ela
diz sobre Cristo, não podemos dizer que ele realmente acreditava
na Escritura; mas pelo menos, em princípio, ele afirmava a
autoridade da Escritura. Isso é mais do que podemos dizer
daqueles que rejeitam a doutrina. Logo, não nos deixemos
enganar nem também enganemos os outros. Uma pessoa que
nasceu do alto naturalmente irá crer na verdade que Deus
revelou. E, como Deus nos revelou a verdade na Escritura, uma
pessoa nascida de novo naturalmente irá crer na Escritura — em
toda ela — e por conseguinte irá crer e confessar que Jesus é o
Cristo, o Filho de Deus. Não há promessa de vida a alguém que
afirme qualquer coisa menos do que isso.
Quando falamos com não cristãos, devemos ver através das
aparências e ir além de meros sintomas. É claro, podemos
começar nossa abordagem com qualquer assunto que gostemos
ou seja conveniente. Uma conversa pode começar com comida,
clima, carreira, política e até religião. Mas logo em seguida
devemos usá-la para levar a questões mais profundas e,
especialmente, chamar a atenção para o que há de errado nos
não cristãos como pessoas. Que tipo de pessoa diria o que elas
dizem sobre comida? Que tipo de pessoa assumiria o que elas
assumem sobre o clima? Que tipo de pessoa adotaria a visão
delas de trabalho, educação, criação de filhos, ética e assim por
diante?
Mesmo ao discutir esses tópicos com eles num nível superficial, o
conflito de ideias entre nós deverá tornar-se imediatamente claro.
Mas quais são as razões do conflito? Fornecemos argumentos
para essas crenças, e eles também. Se cremos de acordo com a
Escritura, descobrimos que nossos argumentos esmagam os
deles toda vez e em todas as questões. Mas eles se apegam às
suas posições. Por quê? Por que eles são tão irracionais? Por
que são tão desonestos, tão imorais? Que tipo de pessoas são?
Ah, são pessoas estúpidas e pecadoras. É a conclusão a que
chegamos. Chegamos ao cerne da questão — eles devem nascer
de novo, nascer do alto, para ao menos perceber o que
percebemos, ver a verdade que é tão clara e simples para nós.
Quando um incrédulo chega até você com uma objeção ou
comentário sobre algo que discorda da fé cristã, o que você faz?
Responde à objeção ou reage ao comentário e então para e
espera pelo próximo? Se você foi educado pela Escritura com
crenças corretas e no caminho do raciocínio correto, é claro que
pode derrotar qualquer objeção e abordar qualquer comentário,
mas deve ir além disso. Como a Bíblia lhe deu ideias sobre o não
cristão, você o entende melhor do que ele próprio; cabe assim a
você empurrar a conversa numa direção que lhe permita dizer o
que ele precisa ouvir. Sua objeção hostil é só uma desculpa. Seu
comentário — que talvez não tenha qualquer relação aparente
com a religião, mas conflita tanto com o cristianismo — é só um
sintoma.
Não há nada errado com a fé cristã. Ele pensa do jeito que pensa
e age do jeito que age porque há algo errado nele. Ele é débil,
defeituoso, estúpido e perverso até o âmago. É um pedaço inútil
e estúpido de lixo espiritual. Ele não tem qualidades redentoras.
Ele deve ser mudado. Deve nascer de novo. Você precisa dizer
isso a ele. Precisa mostrar isso a ele. Obviamente não estou
dizendo que, se você pregar a verdade a ele, isso fará com que
ele nasça de novo ou possa decidir nascer de novo. Não, isso
depende de Deus. Mas você precisa pregar a verdade ao
incrédulo, como testemunha contra ele e como testemunha da
verdade sobre Deus, para que assim Deus talvez lhe mostre
misericórdia e traga convicção ao seu coração e o converta
mediante a fé e o arrependimento.
Portanto, você deve responder à objeção mas também apontar a
tolice da objeção e perguntar: “Que tipo de pessoa é você, que
pensa assim? Veja, você se acha uma pessoa inteligente e
racional, mas é na verdade uma pessoa estúpida e irracional.
Mas por que tão estúpida? Por que tão irracional? Porque há algo
errado em VOCÊ. Sua objeção estúpida é um produto do efeito
do pecado sobre a mente, um efeito da queda do homem. Só
Jesus Cristo pode salvar sua mente e dar-lhe luz”.
Se o incrédulo permanece teimoso, mesmo tendo perdido o
debate, ou se seu comentário, pergunta ou objeção tem a ver
com um conflito entre as éticas cristã e não cristã, você deve
dizer: “Respondi agora ao que você disse, mas que tipo de
pessoa é você, que insiste em acreditar numa mentira, mesmo eu
o tendo refutado? Por que é tão desonesto, embora afirme
respeitar a verdade e a razão? Ou: que tipo de pessoa é você,
que pensaria dessa maneira, que faria esse protesto ou
pergunta? Não consegue ver? Você é uma pessoa má, pecadora,
podre. Por que é tão desprezível? É porque você nasceu como
um filho do diabo. Mas Jesus Cristo pode salvar sua alma e dar-
lhe vida”.
O ensino de Jesus de que uma pessoa deve nascer do alto para
perceber o reino de Deus e dele participar define o modo como
vemos os não cristãos e, portanto, também o modo como
realizamos evangelismo e ministério. A doutrina requer que os
cristãos parem de adular os incrédulos e parem de lhes mentir
sobre a sua condição. Nosso debate com os incrédulos e com
muitos daqueles que se dizem crentes pode ser reduzido à
seguinte diferença básica: eles são de baixo, nós somos do alto.
Assim, nossa mensagem a eles não é que nós somos
praticamente iguais, que eles apenas estão desinformados e
equivocados e que se apenas nos ouvissem poderiam decidir
fazer esse pequeno ajuste e se tornar como nós.
Ao contrário, devemos dizer-lhes: “Você tem um problema, um
grande problema. Não é algo superficial que pode facilmente
consertar. Você é um ignorante, mas não pode consertar esse
problema simplesmente decorando um pouco mais de
informação. Seu intelecto é tão débil que você não pode aprender
o que precisa saber. Você é irracional, mas não pode consertar
isso apenas obtendo mais prática ou exercendo mais cuidado no
pensamento. Sua mente é tão confusa e estúpida que você
nunca poderá aprender o caminho do raciocínio correto enquanto
continuar sendo a pessoa que é. Você é mau, perverso, imoral e
imundo. Mas não pode fazer nada para mudar isso, por mais que
tente. Na verdade, você é tão estúpido e pecador que não
consegue realmente entender o que significa ser justo e como
viver à altura disso. Entenda, você é o problema. Você não é uma
pessoa inteligente que carece de oportunidades. Não é uma
pessoa ética que comete erros. Você não é uma pessoa
inteligente nem uma pessoa ética. Você precisa de um poder que
seja maior do que você e que esteja fora de você para
transformá-lo em outra coisa. Você deve nascer de novo. Deve
nascer do alto para ver e viver no reino de Deus”.
A doutrina também define como os cristãos devem entender a si
próprios. Mesmo antes da criação do mundo, Deus escolheu me
justificar e adotar por meio de Jesus Cristo. Quando eu nasci,
herdei a corrupção de Adão em minha alma e corpo, assim como
as demais pessoas, e compartilhei dos efeitos que o pecado
produziu nos aspectos intelectual, ético e físico do homem. Então,
no tempo designado por Deus, seu eterno decreto sobre minha
salvação foi manifestado e fui mudado. Eu nasci do alto. A vida
de Deus inundou minha alma, e a luz de Cristo encheu minha
mente e abriu meus olhos — isto é, minha percepção espiritual ou
intelectual — para a verdade e eu acreditei no evangelho. O
Espírito de Deus entrou em mim, testificou que eu era filho de
Deus e declarou à minha consciência que eu estava justificado e
era santificado em Jesus Cristo.
Por fora, posso parecer como todo mundo, já que a mudança não
foi um nascimento físico, um nascimento de baixo, e sim um
nascimento espiritual, um nascimento do alto. Eu continuo sendo
uma pessoa humana, assim como os não cristãos também são
humanos, mas a semelhança é apenas superficial. No espírito,
pertenço a uma raça espiritual completamente diferente, uma
raça que é tão superior em substância — em capacidades
intelectuais e disposições éticas — que às vezes é difícil fazer
comparações satisfatórias. Você pode comparar o homem ao
cachorro, mas eles são tão diferentes em algumas áreas que
talvez isso não faça sentido. Jesus disse que ele não veio trazer
paz entre os homens, mas uma espada que perturbaria até as
relações mais íntimas. Obviamente, a raça de Deus está em
conflito com a raça de Satanás desde a queda de Adão, mas
Cristo tornou a divisão mais clara do que nunca.
Sou um homem de outro mundo. Posso compreender as coisas
do Espírito; e a crença nas doutrinas de Deus é natural para mim.
Ela não me obriga a crer na verdade, porque vejo a verdade pelo
que ela é e posso testificar do que percebo no reino de Deus. No
natural, sou descendente de Adão e também posso entender tudo
o que os não cristãos acreditam. Sei como eles pensam, no que
acreditam e as razões que dão para justificar suas crenças e
ações. Mas também posso ver que eles estão errados e posso
mostrar como estão errados, toda vez. Portanto, não sou cristão
porque sou ignorante ou crédulo ou porque não entendo as
posições e argumentos dos não cristãos. Eu os entendo e vejo
que estão errados, mas também que a fé de Jesus Cristo é
verdadeira. Eu julgo o pensamento dos incrédulos. Mas os não
cristãos não podem se elevar ao meu nível de pensamento e
percepção, porque, como escreveu Paulo, as coisas de Deus são
discernidas espiritualmente, compreendidas por uma mente
capaz de processar coisas espirituais.
Esse nascimento do alto não é obra do homem. Eu não dei à luz
a mim mesmo no espírito nem levei Deus a fazê-lo. E isso não
aconteceu porque eu merecesse. Se fosse tão bom que
merecesse a regeneração, justificação e adoção, não teria
precisado dessas coisas, pois teria antes de tudo nascido do alto.
Não, Deus decidiu me adotar, justificar e santificar na eternidade
antes da criação do mundo, sem levar em conta a minha fé e
conduta. Antes, minha fé e boas obras são produtos do seu
decreto divino e não a causa dele. Portanto, notar meus
privilégios como crente, como membro da raça espiritual superior,
não é me gabar de mim mesmo, mas me gabar da graça e do
poder de Deus e fazer nada além de uma declaração factual.
É assim que todo cristão deve entender a si mesmo. É
surpreendente que haja pessoas que afirmam ser cristãs, mas
resistem a isso e criticam aqueles que falam nesses termos. A
exemplo dos fariseus, os hipócritas respeitam uma pessoa depois
que ela está morta e praticamente a adoram quando está na
moda fazê-lo, mas condenariam alguém que, estando vivo,
dissesse a mesma coisa. É por isso que sou frequentemente
criticado por “cristãos”, por meramente repetir as doutrinas dos
profetas e apóstolos, assim como reformadores como Lutero e
Calvino, e por ensiná-los com a mesma atitude e força. Lutero é
louvado e Calvino enaltecido; mas que ninguém ouse repetir o
que eles disseram!
Assim, cito Spurgeon para benefício delas: “O que é um
verdadeiro cristão? Se o compararmos com um rei, o verdadeiro
cristão acrescenta santidade sacerdotal à dignidade real. A
dignidade de um rei frequentemente é vista apenas em sua
coroa. Todavia, no que se refere ao verdadeiro cristão, a sua
dignidade é infundida em sua natureza interior. Por causa de seu
novo nascimento, o verdadeiro cristão está muito acima dos
outros homens, assim como o homem está acima dos animais”.
[14] Ele diz bem: o cristão é tão superior ao não cristão quanto um
homem está acima de um bruto. Esse é o ensino da Escritura e
de todos aqueles que têm respeito pela obra de Deus na
regeneração.
Não sejamos hipócritas, mas fieis à nossa profissão de fé. Se
dizemos apoiar os profetas e apóstolos, os reformadores e os
grandes teólogos e pregadores do passado, declaremos também
as mesmas doutrinas que eles ensinaram e na mesma ousadia
de discurso com que o fizeram às suas gerações.
10. Já condenado

Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o
que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus enviou o seu Filho
ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio
dele. Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado, por
não crer no nome do Filho Unigênito de Deus.
Este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens amaram as trevas, e
não a luz, porque as suas obras eram más. Quem pratica o mal odeia a luz e não
se aproxima da luz, temendo que as suas obras sejam manifestas. Mas quem
pratica a verdade vem para a luz, para que se veja claramente que as suas obras
são realizadas por intermédio de Deus.
Aquele que vem do alto está acima de todos; aquele que é da terra pertence à
terra e fala como quem é da terra. Aquele que vem dos céus está acima de todos.
Ele testifica o que tem visto e ouvido, mas ninguém aceita o seu testemunho.
Aquele que o aceita confirma que Deus é verdadeiro. Pois aquele que Deus
enviou fala as palavras de Deus, porque ele dá o Espírito sem limitações.
O Pai ama o Filho e entregou tudo em suas mãos. Quem crê no Filho tem a vida
eterna; já quem rejeita o Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece
sobre ele. (Jo 3.16-21, 31-36)

O Evangelho de João é geralmente usado pelos cristãos, de uma


maneira ou de outra, para apresentar o Senhor Jesus aos
incrédulos. Obviamente, muitas outras partes da Bíblia podem ser
usadas para esse fim, mas muitos preferem este evangelho. Isso
é compreensível. Este evangelho apresenta uma visão exaltada
de Jesus Cristo, ensinando claramente sua divindade e
humanidade. Ele oferece várias descrições instrutivas de Cristo,
como pastor e testemunha. Fala em metáforas vívidas, como luz
e água viva. Enfatiza ideias positivas como salvação, crença ou
fé, nascimento do alto, verdade, vida, ressurreição e assim por
diante.
Todavia, eu me pergunto se muitos desses cristãos que
favorecem tanto o Evangelho de João sabem o que ele realmente
diz ou se o leem e usam com preconceitos tão fortes que deixam
de ver as claras preocupações dele. Este evangelho traz
contrastes explícitos e repetidos entre Cristo e o mundo, entre os
cristãos e os não cristãos, entre luz e trevas, bem e mal e quase
continuamente enfatiza a ideia da condenação daqueles que não
creem em Cristo e não o seguem.
Essas coisas geralmente não são refletidas por aqueles que
empregam João para apresentar a fé cristã aos incrédulos. Eles
sabem o que o Evangelho de João realmente ensina? Muitos
incrédulos também deixam de notar esses aspectos quando leem
o evangelho. São, como o próprio evangelho ensina, cegos às
coisas espirituais, mesmo quando explicadas em linguagem
simples diante de seus olhos. E a mensagem distorcida que
ouvem dos cristãos acaba assegurando que a nuvem que paira
sobre sua mente incrédula, já tão destituída de inteligência,
permaneça escura e pesada. É bom que os cristãos apresentem
Jesus Cristo ao mundo pelo Evangelho de João, mas às vezes
eles não sabem o que estão oferecendo. Não devemos deixar as
pessoas lerem o evangelho e depois pregarmos algo diferente
dele.
João 3.16 é um dos versículos mais populares usados em
evangelismo. É positivo quase em sua totalidade e alude ao amor
de Deus, à sua provisão do Filho e à vida recebida por aqueles
que creem. O versículo seguinte não decepciona, pois diz que o
Filho não veio para condenar o mundo, mas para salvá-lo. Os
cristãos adoram tanto esse versículo que alguns chegam a alegar
que ele resume toda a mensagem do evangelho.
No entanto, é de duvidar que essa seja a impressão exata que
João quer transmitir. Isso porque João 3.16, que soa tão positivo
e passa tanta segurança, está agrupado com muito mais
versículos que falam da impotência intelectual e espiritual do não
cristão (3.1-12) e da condenação de Deus contra ele (3.18-21, 31-
36). Os versículos anteriores a 3.16 ensinam que, a menos que
uma pessoa nasça do céu, ela não pode perceber o reino de
Deus ou dele participar. A menos que isso lhe aconteça, ela se
encontra em um estado de incapacidade e desesperança. Por
sua vez, os versículos posteriores a 3.16 dizem que uma pessoa
que não crê em Cristo já está condenada e que, a menos que
creia, a ira de Deus permanece sobre ela.
Assim, é claro que Cristo não veio para condenar, pois o mundo
já estava condenado. Nenhum esforço especial ou passo extra
era necessário para colocar todos os não cristãos debaixo da ira
de Deus — eles já estavam debaixo dela. Até o próprio versículo
3.16 sugere que quem não crê em Cristo “perecerá” e que esse é
o veredito existente contra essa pessoa, a menos que creia. O
cristão não estará transmitindo a mensagem de João 3.16 a
menos que pregue considerando esse pano de fundo.
Assim como faz em muitos outros lugares, João divide a
humanidade em dois grupos. Há os eleitos, aqueles que Deus
escolheu para salvação, sendo portanto aqueles que já creram ou
que creriam em Cristo no tempo designado por Deus. E há os
réprobos, aqueles que Deus escolheu para condenação, sendo
portanto aqueles que se recusariam a crer em Cristo. Antes da
criação do mundo, Deus já havia decidido a qual desses dois
grupos cada pessoa pertenceria. Assim, isso não é determinado
quando Cristo é pregado a uma pessoa; antes, pela reação dela a
Cristo, é revelado o tipo de pessoa que ela é o grupo ao qual
pertence.
Jesus Cristo é o mesmo Senhor exaltado, quer se creia nele ou
se tenha algum respeito por ele, quer não. A reação de um
homem a Cristo não diz algo sobre Cristo, mas sobre o homem.
Ninguém julga a Cristo, mas todo homem é julgado por ele e
exposto por sua opinião sobre ele.
É comum as pessoas confessarem que não podemos conhecer o
coração de um homem, de sorte que na maioria das vezes
devemos refrear nosso julgamento. Isso é enganoso. Não
podemos conhecer o coração de um homem por nosso próprio
pensamento e investigação, mas não devemos tornar essa
limitação humana algo maior que a revelação divina. Quando
Deus afirma um princípio sobre o coração do homem, podemos
acreditar nele e podemos julgar um homem com base nele. João
escreve que Cristo veio ao mundo como uma luz, mas muitos
homens se recusaram a vir a essa luz porque suas obras eram
más e preferiam permanecer não expostos, sob o manto das
trevas. Não existe uma pessoa boa que seja ao mesmo tempo
não cristã. Os incrédulos podem reclamar dizendo que acham a
fé cristã falsa ou irracional, mas todas as objeções são facilmente
respondidas. São apenas desculpas que escondem a verdadeira
razão. A verdade é que eles se recusam a vir a Cristo porque são
pessoas más, almas condenadas que Deus não escolheu
resgatar, mas condenar pela culpa que herdaram de Adão e pela
culpa na qual incorrem por seus próprios pecados.
O Evangelho não retrata os incrédulos como vítimas infelizes,
mas como pessoas que permanecem em trevas intelectuais e
morais, em maus pensamentos e esquemas, em rebelião e
aberta hostilidade contra a natureza e padrão santos de Deus.
Como cristãos podem recomendar tão avidamente esse
Evangelho se sua pregação não refletir o que ele ensina? Parece
que, por causa de sua própria pecaminosidade remanescente e a
influência do mundo, eles também se tornaram cegos para o que
a Escritura diz em linguagem clara. E alguns até atacam aqueles
que pregam dessa maneira, a exemplo dos falsos profetas que
atacaram Jeremias porque ele proclamou julgamento contra seu
próprio povo. Assim como os incrédulos revelam sua verdadeira
natureza pela sua reação a Cristo, esses cristãos professos
revelam sua verdadeira natureza pela sua reação à Escritura e
aos que a declaram fielmente.
Na conclusão do Evangelho, João iria declarar que escreveu esse
registro da vida e dos ensinos de Cristo para que seus leitores
cressem nele e, crendo, tivessem vida eterna. E aqui, em João 3,
o apóstolo confronta seus leitores com a missão de Cristo de
salvar aqueles que creriam e com a realidade da condenação a
que estão sujeitos os não cristãos. Ele faz tudo isso por um
documento escrito que envia adiante.
Em outras palavras, aceitar ou rejeitar Cristo não implica
necessariamente ter um encontro com o Cristo encarnado, a
pessoa física. Aceitar o testemunho apostólico sobre Cristo é de
fato aceitar Cristo, crer nele e ter vida eterna. E rejeitar o
testemunho apostólico sobre ele é de fato rejeitá-lo e permanecer
debaixo da condenação. O fato de uma pessoa ser incapaz de
encontrar o Cristo encarnado não constitui um obstáculo, não
sendo portanto desculpa para a incredulidade. Pois as alegações
feitas sobre Cristo são espirituais e o conhecimento sobre ele e a
reação a ele também são espirituais, de modo que ele pode de
fato ser aceito ou rejeitado sem que haja uma percepção ou
contato físicos. Ele pode ser aceito ou rejeitado apenas na mente.
João era apóstolo e teve de fato um contato físico com Cristo,
mas seu testemunho sobre ele diz respeito ao espiritual, não ao
físico. E como eu disse anteriormente, uma pessoa a quem foi
concedida uma verdadeira percepção espiritual de Cristo é uma
testemunha confiável de Cristo. Ou seja, o Espírito Santo habilita
essa pessoa a perceber na mente que todos os ensinamentos
apostólicos sobre Cristo são verdadeiros — que ele era Deus e
homem, que ele andou na Terra, ensinou, curou e realizou
milagres, que ele morreu pelos pecados dos eleitos e ressuscitou
dos mortos para a justificação deles. Uma pessoa que recebeu
essa percepção é capaz de oferecer um testemunho verdadeiro
sobre Cristo. Ela percebeu Cristo de uma maneira e num nível em
que Cristo deve ser percebido.
Portanto, embora não tenhamos um contato físico com Cristo e
embora não sejamos apóstolos, podemos confrontar o mundo
com a pessoa de Jesus Cristo de forma tão verdadeira quanto os
apóstolos. E, de fato, nosso testemunho é baseado no
testemunho deles. Aceitar nosso testemunho sobre Cristo é
aceitar a Cristo, e rejeitá-lo é rejeitar a Cristo. Dito isso, ainda
temos o testemunho dos apóstolos conosco na Escritura, e
assim, embora estejam mortos, eles ainda falam.
Cristãos tendem a usar o Evangelho para promover sua visão
domesticada de Cristo e da fé cristã. Mas é o evangelho que deve
moldar a maneira como vemos o mundo, como vemos as
pessoas e as diferenças entre elas. E ele diz que só existem dois
tipos de pessoas — cristãos e não cristãos. Aqueles que creem
em Cristo herdarão a vida eterna, mas aqueles que não creem
nele serão condenados, pois a ira de Deus já permanece sobre
eles. Assim como João declara tudo isso abertamente aos que
ele deseja que creiam em Cristo, é muito melhor declarar toda a
mensagem de João 3 do que uma exposição seletiva de João
3.16 somente.
11. Um mundo de metáforas

Nisso veio uma mulher samaritana tirar água. Disse-lhe Jesus: Dê-me
um pouco de água. (Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar
comida.)
A mulher samaritana lhe perguntou: Como o senhor, sendo judeu,
pede a mim, uma samaritana, água para beber? (Pois os judeus não
se dão bem com os samaritanos.)
Jesus lhe respondeu: Se você conhecesse o dom de Deus e quem
está pedindo água, você lhe teria pedido e dele receberia água viva.
Disse a mulher: O senhor não tem com que tirar água, e o poço é
fundo. Onde pode conseguir essa água viva? Acaso o senhor é maior
do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço, do qual ele mesmo
bebeu, bem como seus filhos e seu gado?
Jesus respondeu: Quem beber desta água terá sede outra vez, mas
quem beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede. Ao
contrário, a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água a
jorrar para a vida eterna.
Disse a mulher: Senhor, vejo que é profeta. Nossos antepassados
adoraram neste monte, mas vocês, judeus, dizem que Jerusalém é o
lugar onde se deve adorar.
Jesus declarou: Creia em mim, mulher: está próxima a hora em que
vocês não adorarão o Pai nem neste monte, nem em Jerusalém.
Vocês, samaritanos, adoram o que não conhecem; nós adoramos o
que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. No entanto, está
chegando a hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. São estes os
adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e é necessário que os
seus adoradores o adorem em espírito e em verdade.
Disse a mulher: Eu sei que o Messias (chamado Cristo) está para vir.
Quando ele vier, explicará tudo para nós.
Então Jesus declarou: Eu sou o Messias! Eu, que estou falando com
você.
Então, deixando o seu cântaro, a mulher voltou à cidade e disse ao
povo: Venham ver um homem que me disse tudo o que tenho feito.
Será que ele não é o Cristo?! Então saíram da cidade e foram para
onde ele estava.
Muitos samaritanos daquela cidade creram nele por causa do
seguinte testemunho dado pela mulher: Ele me disse tudo o que
tenho feito. Assim, quando se aproximaram dele, os samaritanos
insistiram em que ficasse com eles, e ele ficou dois dias. E, por causa
da sua palavra, muitos outros creram.

E disseram à mulher: Agora cremos não somente por causa do que


você disse, pois nós mesmos o ouvimos e sabemos que este é
realmente o Salvador do mundo. (Jo 4.7-14, 19-26, 28-30, 39-42)

Se à menção de nosso Senhor Jesus todo pecador caísse


prostrado e clamasse por misericórdia, certamente nenhum
cristão teria medo de falar dele. Mas sabemos não ser este o
caso. Os não cristãos são ignorantes, confusos, orgulhosos,
desonestos e maus, e por isso o evangelho seguidas vezes
encontra resistência. Isso deixa alguns crentes nervosos em
mesmo levantar esse tema.
No entanto, pela Escritura e pelo Espírito, Deus proveu tudo o
que é necessário para tornar-nos testemunhas hábeis e
confiantes do Senhor. O tipo certo de confiança é mais do que
uma atitude direta; é baseada no entendimento, e o entendimento
leva à destreza. Se você tem problemas em falar com as pessoas
sobre Jesus Cristo, é aqui que deve começar. Você deve começar
com entendimento, isto é, com um conhecimento sobre Jesus
Cristo, sobre seu lugar nele e sobre o que acontece quando uma
conversa se volta para o assunto da religião.
Jesus abordava todas as situações com propósito, conhecimento
e ousadia. Ele sabia quem ele era, que Deus o enviara e o que
fora enviado a fazer. Era capaz de perceber todas as coisas em
sua vida dentro da estrutura de realização da vontade de Deus. O
Evangelho de João o retrata como alguém que sempre sabia o
que fazer e o que dizer e, mais do que isso, como alguém que
sabia o tempo certo para cada palavra e ação. Portanto, como
mostra o registro bíblico, ele controlava todos os encontros com
facilidade e segurança. Isso acontecia independentemente de
estar falando com inquiridores ávidos, com céticos hostis ou com
alguém como essa mulher junto ao poço. Ele sempre tinha em
mente a sua missão, ou o que chamava de a vontade do Pai; e,
não importando como uma situação começasse, poderia assumir
o controle dela para promover essa causa.
Ele nunca abordava uma situação para ver o que podia aprender
com ela e nunca conversava com alguém para ver o que podia
aprender com ele. Não porque lhe faltasse humildade — longe
disso. O fato de mesmo falar com alguém já era um ato de infinita
condescendência. Ao contrário, não havia motivo para se sujeitar.
Ele nunca precisava voltar atrás, contemporizar ou ser corrigido.
Ele falava de uma posição de absoluta e inquestionável
superioridade. Ele sabia que era superior a qualquer pessoa que
enfrentasse e superior a qualquer coisa ou pessoa em que o
mundo confiasse. O senso de superioridade e confiança estava
baseado no conhecimento, no conhecimento de quem ele era.
Quando a mulher mencionou Jacó, isso não impressionou Jesus.
Ele era maior do que Jacó. A mulher tinha os meios para tirar
água do poço, mas ele podia dar um tipo diferente de água,
superior à do poço de Jacó. Quando a mulher por fim se
submeteu ao Messias, a figura máxima de autoridade que viria
para explicar tudo e resolver todas as disputas, mesmo então
Jesus não se retirou, pois, como disse à mulher, “Eu sou o
Messias! Eu, que estou falando com você”.
Não pregamos nós mesmos, mas Jesus Cristo; e sua
superioridade não é perdida quando seus discípulos falam sobre
ele. Ele é o mesmo Jesus. Na verdade, nós o tornamos uma
pessoa diferente se não assumimos sua absoluta superioridade
sobre tudo e todos. Ele é superior a cada incrédulo com quem
falamos e a tudo e a todos em quem essa pessoa confie. Você
fortalece sua compreensão da superioridade de Cristo sobre
todas as coisas quando ora pela iluminação do Espírito, medita
na grandiosidade de Jesus com base em tudo o que a Escritura
diz sobre ele e pensa em como até as coisas mais aprovadas e
cobiçáveis deste mundo não passam de imitações pobres da
sabedoria, poder e glória dele. Então vem a saber que, perante
Cristo, o incrédulo é um verme digno de pena e não um homem a
ser temido.
É esta a confiança que temos em Cristo: não importa no que o
não cristão acredite ou quem adore, Jesus está sempre certo, é
sempre relevante e é sempre superior. Assim como nosso Senhor
nunca foi surpreendido, constrangido ou oprimido por nada,
nunca precisamos ser surpreendidos, constrangidos ou
oprimidos.
É verdade que Jesus pregou sobre si mesmo, de modo que o
mensageiro também era a mensagem e não havia distância entre
ambos. A confiança, então, era algo completamente natural, até
inevitável. Mas não somos ele; como então podemos falar com
confiança e autoridade como ele fez?
A diferença que isso faz tem sido exagerada. Novamente, não
pregamos nós mesmos, mas pregamos Jesus Cristo, a mesma
pessoa superior que ele próprio pregou. Neste ponto não há
diferença, e nossa confiança nele será proporcional ao nosso
entendimento dele e na medida da fé em nosso conhecimento
dele. Seus ouvintes observaram que ele falava como alguém com
autoridade, ao contrário dos escribas e fariseus. Os líderes
religiosos daqueles dias não tinham um conhecimento em
primeira mão de Deus. Embora tivessem a Escritura, não
acreditavam nela, pois do contrário teriam conhecido Deus por si
mesmos. Cristo, por outro lado, falou como alguém que veio do
céu e como o Filho de Deus.
Se você consegue ou não falar sobre Cristo com confiança e
autoridade revela se você é seu discípulo ou se é como os
escribas, que liam a verdade mas não a compreendiam nem a
abraçavam. O cristão é alguém que vê Jesus Cristo como ele é,
que verdadeiramente o conhece e que recebeu o Espírito Santo,
isto é, poder do céu para ser uma testemunha do Senhor. Assim,
o fato de que não somos Cristo não faz a diferença que muitos
supõem fazer.
Há aqueles que submetem toda autoridade ou a Cristo, ou à
Escritura. Precisamos ter cuidado aqui. É verdade que qualquer
autoridade que temos deriva de Cristo e da Escritura; mas não é
essa a conclusão da questão. Você conhece a Cristo ou não?
Você acredita na Escritura ou não? Você tem o Espírito de Deus
em você ou não? Pregadores, vocês foram enviados para falar
pelo Rei ou não? Se tudo isso não faz diferença e você só
consegue falar como os escribas e fariseus ou como os
incrédulos, então ainda fala como alguém de fora. É como se
você não tivesse lugar no reino dos céus, como se não fizesse
parte dele e não tivesse nenhum papel nele. A compreensão da
superioridade de Cristo deve ser acompanhada de uma
apreciação de nosso lugar em Cristo.
Quando você envolve um incrédulo numa conversa, deve
posicionar Cristo e portanto também a si próprio no lugar devido.
Não se trata de um diálogo de iguais nem um diálogo sobre
iguais. Você vai até ele com um senso de superioridade, pois
entende que Cristo é superior a ele e superior a tudo o que se
refere a ele. Você pode protestar dizendo que em si mesmo não é
superior, mas isso é irrelevante, pois você não está pregando
sobre si mesmo. Contudo, esse modo de pensar — que você em
si mesmo não é superior — se baseia numa teologia deficiente. A
Bíblia diz que você é coherdeiro com Jesus Cristo, já agora
sentado com ele à destra de Deus. Ela diz que você é nova
criação, nascido do céu para o reino de Deus. Declara que você
está neste mundo, mas não é dele. Como isso não pode ser
superior?
Reconhecer isso não tem nada a ver com arrogância ou
hipocrisia, pois você não credita essa realidade a si mesmo. Você
atribui sua condição superior à bondade soberana de Deus. Você
obteve sua posição atual como uma dádiva recebida e não como
algo que ganhou ou mereceu à parte da caridade de Deus.
Permanece a realidade de que é isso o que você é; e algo que os
incrédulos não são. E isso lhe permite falar com confiança e
autoridade, mesmo quando enfrenta o melhor deles. Assim,
mesmo ao se dirigir à elite ateniense, Paulo não disse: “Estou
impressionado com a cultura e sabedoria de vocês e seria uma
honra apresentar-lhes meu humilde Jesus para sua consideração.
Talvez possamos aprender algo uns com os outros”. Não, ele
disse: “Vim dizer-lhes algo que vocês não sabem, sanar sua
ignorância sobre o assunto”.
Qualquer conversa pode ser orientada para uma direção
espiritual. Alguns contextos são mais apropriados que outros e
são dados a transições mais naturais, mas é sempre possível
assumir o controle e obrigar o incrédulo a considerar coisas mais
profundas. Um modo de fazer isso é tornar coisas mundanas,
físicas e naturais da vida analogias e metáforas para coisas
espirituais e, ao fazê-lo, elevar a conversa a um plano superior,
obrigando o incrédulo a segui-lo do terreno para o celestial. Essa
abordagem é capaz de pegar as coisas com que o incrédulo está
geralmente preocupado e redirecionar sua atenção para a
verdadeira condição dele e para suas maiores necessidades e
obrigações.
Não estou dizendo que devemos usar analogias e metáforas para
facilitar a compreensão. Há quem insista que Deus e outros
conceitos espirituais não podem ser entendidos senão por
analogias e metáforas, por comparações com coisas naturais, já
que se alega que podemos entender o concreto melhor do que o
abstrato. Essa é uma ideia popular que surgiu da falsa humildade.
Simplesmente não é verdade que só podemos entender as coisas
espirituais por meio de analogias e metáforas ou que só podemos
entender o abstrato e o não físico mediante comparações com o
concreto e o físico.
Algumas pessoas aplicam o cansativo contraste “hebraico x
grego” e mesmo afirmam que os hebreus não tinham ideias
abstratas e que Deus não pode ser considerado de forma
abstrata — só os gregos tentam isso. Isso é uma invenção anti-
intelectual que segue o modo como alguns estudiosos querem
ver as coisas, mas não tem base na Bíblia. Em vez disso, como
mencionado num capítulo anterior, João inicia seu evangelho com
uma consideração totalmente abstrata sobre Deus e o Verbo.
Ideias como tempo, criação, vida, luz e assim por diante são
usadas sem qualquer conexão com o concreto. Francamente, a
suposição por trás desse contraste injustificado parece ser que
essas pessoas são estúpidas ou pelo menos acham que os
judeus eram estúpidos e incapazes de pensamentos abstratos,
muito embora feitos à imagem de Deus.
Não estou portanto me referindo às alegadas vantagens de se
usar analogias e metáforas para explicar coisas espirituais. Antes,
estou dizendo que as coisas naturais são reflexos das coisas
espirituais, podendo assim ser usadas como pontos de partida
em uma conversa para chamar atenção às coisas de Deus. Isso
permite a você fazer uma transição suave do natural para o
espiritual em qualquer conversa.
Alguns discordam de que devemos fazer uma distinção nítida
entre o natural e o espiritual; e, segundo eles, dizer que as coisas
naturais são reflexos das coisas espirituais novamente soa grego.
Mas, repito, não existe essa distinção entre os pensamentos
hebraico e grego — isto é, as diferenças não são encontradas em
concreto versus abstrato ou dualístico versus holístico. Esse é um
mito na erudição bíblica que não pode resistir ao teste da simples
leitura das palavras da Bíblia e da observação de suas claras
afirmações e pressuposições.
A Bíblia está cheia de pensamentos concretos e abstratos e é
dualística sempre que a distinção entre o natural e o espiritual é
necessária ou sempre que se refere à verdadeira natureza das
coisas, mas é holística sempre que a distinção não é necessária
— de modo que nestes casos, por uma questão de conveniência,
ela iria se referir a uma parte como se fosse o todo. Por exemplo,
embora a Bíblia faça uma distinção nítida entre espírito e carne
ou entre mente e corpo, quando alguém fala comigo eu não
penso “Seu corpo está falando as palavras que sua mente
organizou”, mas “Ele está falando comigo”. As duas afirmações
são verdadeiras, mas a precisão metafísica é desnecessária
neste contexto. Porém, se faço a distinção ainda que uma só vez,
isso significa que acredito nela. A Bíblia frequentemente faz
essas distinções.
Não importa o que seja hebraico, grego, chinês, russo ou
marciano — a Bíblia reflete uma cultura própria. Em que época os
israelitas em geral pensaram como os profetas? Desde quando a
população judaica concordou com o Senhor e os apóstolos? Se
os profetas falavam de forma abstrata, então eu também posso
— não importa a partir de que cultura falassem. Se os apóstolos
falavam em termos dualísticos, fazendo distinções entre o natural
e o espiritual, o secular e o sagrado, como certamente fizeram,
então também o farei — não importa o que os gregos
pensassem. Se tudo isso soa grego para você, significa que os
gregos concordaram com a Bíblia — bem, então melhor para os
gregos!
Os estudiosos protestam dizendo que é necessário entender as
culturas dos tempos bíblicos para se entender a Bíblia.
Evidentemente, eles não entendem as culturas, pois o que dizem
sobre os hebreus nessa área contradiz claramente como a Bíblia
fala e o que a Bíblia ensina. De novo, independentemente do que
é assumido sobre o pensamento hebraico, a Bíblia fala de forma
abstrata e a Bíblia é dualística, pois faz distinção entre o natural e
o espiritual, entre o secular e o sagrado, entre o corpo e a alma
Jesus iniciou a conversa pedindo à mulher samaritana um pouco
de água. A mulher ficou surpresa, pois os judeus não se davam
bem com os samaritanos. A conversa permaneceu no plano
natural, embora houvesse nisso um fundo religioso. Então, ao
mencionar a “água viva”, Jesus elevou a conversa a um nível
espiritual. Neste ponto Jesus já havia feito a transição para o
espiritual. A menção seguinte à água também era uma referência
espiritual, pois era a água da “vida eterna”. Ele usou a sede física
como metáfora para uma sede mais profunda, uma sede
espiritual. Jesus chamou atenção para isso e afirmou que o “dom
de Deus” pode prover “água viva”, que satisfaria perpétua e
permanentemente essa sede. No início a mulher não conseguiu
entender. Seu pensamento continuava no plano natural e ela
pensou que essa estranha água poderia aliviá-la de ir ao poço
tirar água. Assim, Jesus sondou mais a fundo os antecedentes
dela.
Ele fez algo parecido com seus discípulos, que vieram e o
encontraram falando com a mulher. Eles ficaram surpresos, mas
não exigiram uma explicação. Quando lhe ofereceram algo para
comer, Jesus disse que tinha uma comida que eles não
conheciam. No início eles não entenderam e seu pensamento
permanecia no plano natural, de modo que pensaram que ele
tinha comida de outro lugar. Então, explicando, ele disse que sua
comida era fazer a vontade de Deus. Novamente, ao transformar
algo mundano, natural e físico numa metáfora para algo
espiritual, ele elevou a conversa, bem como o pensamento e as
prioridades dos discípulos, a um plano mais elevado.
Da mesma forma, um cristão pode elevar qualquer conversa a
uma discussão espiritual. Por exemplo, uma conversa sobre
riqueza pode ser transformada numa conversa sobre verdadeiras
riquezas. Uma crise financeira pode se tornar uma metáfora para
uma fome da palavra de Deus, isto é, para uma escassez de
conhecimento sobre ele. Uma conversa sobre vários tipos de
escândalos pode ser transformada numa conversa sobre engano
espiritual, fortalezas mentais ou teólogos heréticos. Eles também
podem servir de ilustração para a destruição que resulta de se
semear para a carne e não para o Espírito. Fazemos a vontade
ou investimos nas coisas da carne e colhemos um turbilhão de
problemas e punições.
Uma conversa sobre amigos e família pode ser transformada
numa sobre os verdadeiros amigos e a verdadeira família do
cristão em Cristo. Quando o incrédulo fala sobre educação, o
cristão pode elevar a discussão a uma sobre a verdadeira
sabedoria. Ou, se o assunto é casamento, o cristão pode fazer a
transição para falar sobre o verdadeiro amor e a união entre
Cristo e os cristãos. À menção de comida, o cristão pode fazer a
transição meditando sobre o significado de comer juntos,
especialmente em algumas culturas, e então elevar a conversa
discutindo como uma pessoa vem a sentar à mesa do Senhor. A
arte pode ser um ponto de partida para o cristão falar sobre a
verdadeira beleza, a beleza moral, a beleza espiritual e intelectual
e a beleza do Senhor. Os esportes costumam estar ligados ao
heroísmo, mas o que há de tão bom nas pessoas que são muito
persistentes em acertar uma bola com muita força ou correr
muito, muito rápido? Todos esses feitos são insignificantes e na
verdade bastante patéticos em comparação com o heroísmo do
Senhor, que sofreu grande dor e humilhação para redimir seu
povo.
Um efeito dessa abordagem é que ela gera um contraste. Por um
lado, há a vida e os desejos inferiores e quase bestiais do
incrédulo. Por outro, há os pensamentos elevados de Deus e os
muitos poderes e bênçãos dele que correspondem às
necessidades mais profundas do incrédulo. Jesus usou a
metáfora da água para enfatizar que a mulher tinha uma
necessidade maior que a bebida física e natural. Havia uma sede
espiritual nela que permanecia insaciada. E também usou a
metáfora para descrever o que só ele poderia fornecer, isto é, um
suprimento contínuo de água viva, água espiritual, que iria
satisfazer e nunca secar.
A Bíblia faz por nós o que Jesus fez por essa mulher. Conforme
lemos a Bíblia, ela eleva nossos pensamentos do mundano para
o espiritual. Informa em nossa contemplação de Deus as
doutrinas que ele revelou e seus atos salvadores no decurso da
história. Redireciona nossa atenção das coisas naturais, físicas e
terrenas para as coisas sobrenaturais, espirituais e celestiais. Os
não cristãos são de baixo, mas como cristãos nascemos do alto,
e a Escritura nos fornece o conteúdo para conversas e
pensamentos espiritualmente ricos, enquanto o Espírito de Deus
nos possibilita permanecer nesse nível de fala e pensamento.
Jesus disse à mulher que se ela conhecesse o dom de Deus e
quem é que estava falando, teria pedido água viva. Pela Escritura
e pelo Espírito, conhecemos o dom de Deus e quem é que fala
conosco; e pedimos “Senhor, dá-nos dessa água viva, para que
jamais tenhamos sede!”. Como cristãos, temos essa água viva
em nós, de modo que mesmo quando o corpo sofre
decomposição, o homem interior se renova dia após dia.
Então, Jesus expôs o fato de que a mulher tinha tido cinco
maridos e o homem com quem estava, o sexto, não era seu
marido. Os comentaristas podem debater se isso significava que
ela era uma mulher imoral ou se era vítima de homens abusivos e
infiéis. Isso não é importante para nós neste momento. O
importante é que, para seguir uma agenda espiritual legítima,
Jesus não deixou de mencionar coisas dolorosas e
constrangedoras da vida de uma pessoa. Podemos dizer que o
fez com uma nota de gentileza, mas isso não muda o fato de que
ele fez a menção.
Independentemente do motivo dos muitos casamentos dela,
Jesus mostrou que ela era uma mulher arruinada e tinha uma
necessidade maior e mais profunda que nenhuma solução natural
poderia remover ou aliviar. É isso que acontece quando você usa
algo da vida do incrédulo como metáfora para sua necessidade
espiritual. Você mostrará que ele é uma pessoa arruinada. Por
arruinado não quero dizer que o não cristão é uma vítima, mas
que é deficiente e defeituoso — todo incrédulo é um bem
danificado. Ele está numa condição vergonhosa que nenhuma
coisa natural ou física pode reparar ou reverter. Ele precisa de
Jesus Cristo.
Por trás de toda gritaria, blasfêmias e comentários sarcásticos
está um derrotado espiritual, uma pessoa imunda e patética, uma
prostituta abusada pelo diabo. Seria objeto de desprezo, algo
para ser chutado, rido e cuspido, não fosse o fato de que todos os
outros não cristãos são exatamente iguais a ele. E é tão ignorante
e orgulhoso que não pediria a Cristo por renovação, restauração,
vida e luz. O incrédulo assume uma fachada corajosa, não
querendo mostrar suas falhas. Mas se você sonda um pouco, não
é difícil descobrir o que ele é. Ele quer que você o veja como um
gigante, mas por dentro ele não passa de um pequeno verme
assustado. Se você falar com ele e fizer algumas perguntas,
sempre descobrirá que é assim. Você encontrará aqui uma
abertura para atacar todas as coisas em que ele confia e oferecer
Jesus Cristo como sua única esperança.
Jesus cruzou vários limites bem definidos. Ela era uma mulher,
uma samaritana, que casara cinco vezes e agora parecia estar
coabitando com um homem que não era seu marido. Todos esses
eram motivos para um rabino judeu evitar se associar com ela.
Mas Jesus o fez mesmo assim; e ao fazê-lo se opôs às tradições
e autoridades humanas. Como podemos ver pela resposta inicial
da mulher e depois pela reação dos discípulos, o comportamento
dele contrariou o que de todas as perspectivas humanas seria
esperado dele.
Essa é uma observação comum, mas às vezes se extraem
implicações incorretas disso. Há pessoas que interpretam a
associação de Jesus com pecadores como uma licença para
comparecer a jantares, festas e todo tipo de reuniões sociais com
incrédulos. O exemplo do Senhor se tornou para eles uma
desculpa para satisfazer seus próprios desejos carnais de
comunhão e entretenimento profanos. Ademais, como o
evangelho às vezes contrasta os pecadores com os fariseus,
esses cristãos às vezes transformam os incrédulos numa espécie
de heróis e se congratulam por serem tão semelhantes a Cristo
que cruzariam todas as fronteiras, como supostamente fez Jesus,
para se deleitarem em atividades mundanas, se não
libertinagens, com os não cristãos. São levados às lágrimas por
sua própria coragem e mente aberta.
Contudo, essa é uma total perversão do que Jesus fez. Embora
cruzasse fronteiras, Jesus jamais violou a palavra de Deus;
apenas terminou com as tradições e expectativas humanas.
Assim, quando um cristão alega seguir o exemplo de Jesus em
cruzar fronteiras, essas fronteiras só devem consistir de normas e
regras humanas. O cristão jamais tem permissão de transgredir a
palavra de Deus. Isso faz com que muitas atividades gozadas
pelos incrédulos sejam proibidas aos cristãos e também remove o
entusiasmo pecaminoso e a indulgência sensual das atividades
de que os cristãos têm permissão de participar. É como as coisas
são. O cristão deve ser honesto sobre essas atividades e sobre o
motivo para querer se envolver nelas com os incrédulos. Ou deve
se refrear, ou deve reconhecer que ele próprio é um incrédulo.
Obviamente, Jesus se associou com pecadores. Conversou com
eles e comeu com eles. Mas o fez para salvar pecadores, para
ensiná-los, para mudá-los e não para entretê-los ou se entreter.
Não foi porque estava entediado ou se sentia solitário e precisava
socializar com incrédulos porque as pessoas religiosas eram
muito enfadonhas. Ele cruzou fronteiras para cumprir sua missão
e não para satisfazer a carne e concupiscências pecaminosas,
apaziguar seus inimigos ou estender sua aprovação aos
incrédulos. Como diria a Pilatos, sua missão era testemunhar da
verdade. Isso incluía a verdade sobre Deus, sobre si mesmo
como o Cristo e sobre o homem e seu pecado. Ele cruzou para
se associar com pessoas que não eram como ele; não para dizer-
lhes que já eram aceitáveis aos olhos de Deus, mas para dizer
que já estavam condenadas e que a ira de Deus já estava sobre
elas e que a única maneira de poderem ser salvas era segui-lo e
confiar nele, já que ninguém poderia vir ao Pai senão por meio
dele.
Portanto, o cristão seguir o exemplo de Jesus significa ele
prosseguir em sua missão de declarar a condenação de Deus
contra todos os pecadores e apresentar Jesus Cristo como o
único caminho para a salvação. Podemos nos associar com os
pecadores ao fazer isso; de fato, se não tivermos nenhum contato
com eles não podemos dizer-lhes nada disso. Podemos, portanto,
dizer que eles são pecadores miseráveis na rua, na praia, no
trabalho, na escola, numa festa, num almoço casual ou jantar à
luz de velas, em suas mesquitas e sinagogas ao desafiarmos
suas religiões, em pleno ar enquanto mergulhamos juntos à terra
num salto de paraquedas ou em qualquer cenário onde não seja
inerentemente pecaminoso o cristão estar presente.
Não usemos o exemplo de Cristo para mascarar nossa hipocrisia,
se a verdade é que ansiamos pela companhia mundana dos
incrédulos e de fato nos importamos muito pouco com a missão
que Deus nos confiou. Se você é uma daquelas pessoas que
gostam de fazer amizade com os incrédulos para ser assim “sal e
luz” para o mundo, veja então se realmente é sal e luz. Do
contrário, estará apenas mentindo para si mesmo e para os
outros e escondendo o fato de que se deleita mais com a
comunhão profana dos não cristãos do que com a conversa
decente do povo de Deus.
A mulher era inicialmente incrédula. Embora tivesse acesso ao
poço que Jacó fizera e do qual bebera, Jesus afirmou que se
soubesse quem ele era, ela lhe teria pedido água viva. Ela
perguntou: “Acaso o senhor é maior que Jacó?”. Jesus não
somente afirmou que era superior, como lhe explicou em que
sentido era superior. Jacó, que era apenas um homem, só podia
fornecer água natural, que aliviava temporariamente a sede física.
Jesus, por outro lado, podia fornecer água viva, que satisfaria
perpétua e permanentemente as necessidades e desejos
espirituais de uma pessoa.
A mesma diferença se aplica a todos os personagens da história
bíblica. Abraão, José, Moisés, Samuel, Davi, Elias, Isaías e
muitos outros eram realmente grandes homens; de fato, de várias
maneiras o Espírito de Deus os fez superiores aos seus
semelhantes. Mas ainda assim não passavam de meros homens,
nada além de humanos. Deus os regenerou, e eles nasceram do
alto e foram transformados pelo poder do céu, tornando-se assim
homens dos quais o mundo não era digno. Mas Jesus Cristo veio
do alto. Ele não precisava de nenhuma graça do céu, pois vinha
antes de tudo como portador da graça. Ele era o mediador da
graça que transformava esses homens escolhidos.
Paulo disse que os coríntios tinham um espírito faccioso entre si.
Eles se alinhariam aos homens que favorecessem, de modo que
alguns diriam “Eu pertenço ao grupo de Paulo!” e outros se
gabariam dizendo “Eu pertenço ao grupo de Pedro!”. Ele os
repreendeu e disse que esse tipo de pensamento era carnal. Não
era reflexo de uma espiritualidade ou conhecimento superior.
Esse problema ainda existe entre nós hoje. “Bem, sou calvinista”.
“Mas o que Spurgeon disse sobre isso?”. Ou: “Você acha que é
maior que Jonathan Edwards?”. E: “Como ousa contradizer essa
Confissão de Fé?”.
Você pode jogar toda a sua denominação contra mim, mas se
isso é tudo o que tem, por que devo me importar? Que autoridade
vocês têm sobre mim? Vocês não passam de uma multidão de
homens fracos e confusos que sem genuíno poder espiritual
construíram um sentimento de conforto e uma ilusão de
autoridade oferecendo aprovação formal uns aos outros. Então
você fala segundo essa plataforma, citando suas confissões e
mencionando seus teólogos, supondo que com isso pode obrigar
os outros a dar ouvidos às suas opiniões. Isso não é sabedoria
nem conhecimento nem espiritualidade. É pensamento carnal. É
conversa de criança. É idolatria. E as raízes disso são muito mais
profundas e mais difusas do que muitas pessoas imaginam, já
que muitas pessoas compartilham esse modo de pensar e ele
amiúde se expressa de formas veladas.
Por exemplo, um de meus críticos rejeitou meus comentários
bíblicos porque pelas “notas de rodapé” podia dizer que eram de
qualidade inferior. Seu ponto era que as notas de rodapé
indicavam uma referência inadequada à erudição avançada. Mas
isso diz mais sobre ele do que sobre mim ou meus comentários.
Ele tinha um preconceito pessoal contra mim e muito
provavelmente não fazia as mesmas críticas aos autores que
admirava, já que alguns deles não citariam de fato nenhuma obra
em seus comentários. Em qualquer outro contexto ele
provavelmente teria reconhecido que existem vários tipos de
comentários e que quantas obras o autor cita e quais tipos de
obras cita depende do propósito desses comentários. Não existe
uma regra universal para isso. Sua observação reflete que ele só
tinha um tipo de comentário em mente e que seu padrão de
julgamento vinha do costume acadêmico, não da verdade e da
razão.
Ele também assumia que, se eu tivesse consultado as obras
avançadas que ele aprovava, eu as teria citado. De fato, interajo
com materiais avançados em meu estudo e pesquisa; porém, cito
trabalhos de outros não por causa de seu nível acadêmico, como
que para impressionar os leitores com meu aprendizado ou como
se dependesse da concordância dos outros. Antes, cito obras que
são relevantes, às vezes para concordar e às vezes para refutar,
sobretudo quando afirmam certas coisas de uma maneira que as
torna úteis ou apropriadas no contexto dos meus escritos. Isto é,
eu cito outros não basicamente por apoio ou para compelir a uma
concordância, como se não tivesse confiança ou autoridade por
mim mesmo, mas amiúde para esclarecer e ilustrar devido às
expressões particulares usadas ou à forma como algo é dito. Mas
agora fico bastante desconfiado das razões do crítico para aludir
a obras de estudiosos em seus próprios materiais. Talvez seu
ímpeto de impressionar os outros o tenha feito supor que eu faria
o mesmo.
Isso nos leva para o ponto mais revelador de sua crítica. Seu
pensamento sobre erudição, mesmo em se tratando das coisas
de Deus, estava ligado ao plano da realização, interação e
aprovação humanas. Ou seja, a boa erudição, mesmo a erudição
cristã, seria construída com base em realizações humanas,
exibida na interação com outras obras humanas e na aprovação
por outros estudiosos humanos.
Seu comentário revelava que ele não tinha aprendido a pensar
como um verdadeiro discípulo de Jesus Cristo. Quando as
pessoas ouviam Cristo, ficavam maravilhadas, pois ele falava
como alguém que tem autoridade e não como os escribas e
fariseus. Mais tarde os apóstolos causaram uma impressão
parecida nas pessoas, e elas entenderam que eles haviam sido
estudantes de Jesus Cristo. Confiança e autoridade espiritual é
algo notavelmente diferente de presunção acadêmica, e por isso
as pessoas comuns os ouviam com alegria. É na ausência de
poder espiritual que uma pessoa precisa se proteger sob um ar
de sofisticação acadêmica — isto é, sofisticação acadêmica tal
como definida por costumes não cristãos.
Não deveria um cristão que é cheio do Espírito de Deus falar com
certa medida de autoridade, um tipo de poder espiritual que é
independente da tradição e aprovação humanas? Este crítico
reclamou que eu não falava como os escribas e fariseus! Ele
permanecia desligado da verdade bíblica e autoridade espiritual.
Permanecia como uma pessoa que era “de baixo” e seu
entendimento permanecia nesse plano carnal; portanto, pensava
como aqueles que não tinham nenhuma autoridade ou cujo senso
de convicção intelectual consiste na interação e aprovação dos
homens. Assim, por suas críticas contra mim, ele condenava a si
mesmo.
Os patriarcas e profetas bíblicos só eram superiores aos seus
semelhantes no sentido de que Deus os havia escolhido e os
movia às vezes a falar por seu Espírito. Quando conduzidos pelo
Espírito, suas palavras eram autoritativas e infalíveis porque era
Cristo quem falava através deles. Eles são reverenciados pelos
papeis que desempenharam na história bíblica, mas não
passavam de meros homens e não podiam produzir efeitos
celestiais por si próprios. E mesmo enquanto falavam pelo
Espírito de Deus, não pregavam eles mesmos, mas apontavam
para a vinda, humilhação e exaltação de Cristo. Assim, embora
fossem grandes homens, Cristo era infinitamente superior a eles.
Embora tivessem nascido do alto, Cristo era alguém que veio do
alto.
Isso nos fornece uma maneira de entender a diferença entre a fé
cristã e todas as religiões não cristãs. Cristo era maior do que
Jacó, mas Jacó pelo menos seguia a Cristo e compreendeu
algumas das coisas de Deus pelo Espírito. Os fundadores das
religiões não cristãs não tinham essa percepção espiritual. Se
tivessem percebido e aceitado qualquer parte da verdade, teriam
seguido a Cristo. Mas eles eram homens “de baixo” e, portanto,
falavam como homens de baixo. Todos os seus ensinos
consistiam de especulações e sugestões humanas. Mesmo
dando o seu melhor, eles só podiam fornecer água natural aos
seguidores, que nunca poderia começar a satisfazer a sede
espiritual.
Muitos cristãos prefaciariam sua opinião sobre esses fundadores
de religiões não cristãs dizendo: “Eles foram grandes mestres
morais e tiveram grandes percepções, mas…”. Mesmo
apologistas cristãos famosos e respeitados diriam isso. Mas até
isso é falso e inaceitável; e é uma contemporização e traição.
Aqueles que falam dessa maneira pecam contra Cristo e todos
aqueles que creem nele. Se aqueles que se dizem cristãos se
livrassem desse senso de obrigação de ser asquerosamente
corteses e efeminados em discussões religiosas — algo sem
dúvida lhes imposto por não cristãos e não pela Escritura —,
veriam que essas religiões não cristãs não têm de fato boas
percepções morais e humanas. Ao contrário, são todas muito
patéticas e absurdas, e seus líderes como cegos guiando outros
cegos para a vala do fogo do castigo eterno.
Vendo que Jesus era um profeta, a mulher mencionou a disputa
religiosa entre os judeus e os samaritanos e, particularmente, a
discordância deles quanto ao local adequado de adoração. Jesus
se colocou contra os samaritanos e, a certa altura, disse que “a
salvação vem dos judeus”. Ele seguiu adiante e disse mais
coisas, mas devemos fazer uma pausa aqui, porque há tantos
equívocos sobre o status do povo judeu, isto é, dos descendentes
naturais de Abraão por meio de Isaque, que vale a pena
considerar o significado e importância dessa declaração.
Os judeus haviam sido o ponto focal da história da salvação até a
época de Cristo. Primeiro, Deus manifestara seus atos de graça e
poder sobretudo através do povo judeu. Eles eram os recipientes
e portadores da revelação histórica. Em segundo lugar, também
eram os recipientes e portadores da revelação proposicional.
Deus revelara os fatos da criação e da história, de sua natureza
divina e de suas sagradas leis e preceitos em palavras ditas
através dos profetas. A revelação histórica, pelo menos
epistemologicamente, se reduz à revelação proposicional, pois a
própria história é registrada em forma proposicional e passada
adiante somente em forma proposicional. Em suma, Deus se
manifestou de forma especial e concentrada ao povo judeu e
superintendeu sua história para construir grande parte da
Escritura Sagrada, isto é, do que chamamos de Antigo
Testamento, que já na época de Cristo funcionava como uma
coleção estabelecida de documentos sagrados.
A promessa do Messias não foi dada primeiro aos judeus, mas,
muito antes disso, a Adão e Eva. Assim, nesse sentido amplo,
nunca foi uma promessa para ou em favor dos judeus, mas para
a humanidade e especificamente para os eleitos de todas as
épocas, todas as raças e todas as nações. Todavia, Deus focou
essa promessa ao decretar que esse Messias viria como semente
de Abraão.
Por causa das considerações acima, é dito que “a salvação vem
dos judeus”. Essas considerações são de fato significativas e
fizeram dos judeus um povo privilegiado. Porém, como são
muitas vezes superestimadas e mal aplicadas, também devemos
esclarecer o que a declaração não pode significar e as limitações
dessa condição privilegiada.
Primeiro, embora “a salvação venha dos judeus”, isso não
significa que todos os judeus são salvos. De fato, a maioria não é
salva. Durante seu ministério, tão poucos aceitaram Cristo que
João escreveu “ninguém” ter acreditado em seu testemunho. O
fato de o Messias vir dos judeus em termos de sua natureza
humana não os beneficiou, visto que o rejeitaram. Eles o odiaram
e muitas vezes tentaram matá-lo. Por fim o assassinaram pelas
mãos dos gentios, embora teriam feito isso por suas próprias
mãos se pudessem (Jo 18.31). Eles não se beneficiaram de sua
afiliação natural com o Messias.
Então, eles não se beneficiaram do fato de Deus tê-los feito
recipientes e portadores da revelação histórica, pois a história
registrada sobre eles é de constante incredulidade, idolatria e
rebelião. O registro de sua história só beneficia os cristãos:
“Essas coisas ocorreram como exemplos para nós, para que não
cobicemos coisas más, como eles fizeram… Essas coisas
aconteceram a eles como exemplos e foram escritas como
advertência para nós, sobre quem tem chegado o fim dos
tempos” (1Co 10.6, 11).
Por fim, eles não se beneficiaram do fato de Deus tê-los tornado
recipientes e portadores da revelação proposicional, visto que
não acreditavam nela. Eles alegavam crer na Escritura, mas a
maioria nunca fez isso. Ao contrário, construíram tradições
humanas que supostamente impunham as leis de Deus mas na
verdade os permitiam contornar e subverter essas leis. Jesus
disse que se eles tivessem acreditado em Moisés, acreditariam
nele, porque Moisés falara sobre ele e ele cumpriu o que Moisés
dissera. E também que eles não eram pessoas que acreditavam
e se arrependiam a partir das palavras dos profetas, mas em vez
disso assassinaram os profetas que Deus lhes enviara.
Nos dias de hoje, quem fala assim pode ser chamado de racista e
antissemita. Mas isso é só uma cortina de fumaça, uma evasiva.
A própria Escritura dos judeus testifica o que Jesus disse. O
próprio Antigo Testamento os condena, mas os gentios não
escreveram o Antigo Testamento. A verdade é que os judeus já
tinham sua própria cultura e religião estabelecidas, de formas que
eram muito contrárias a Moisés e aos profetas, e não queriam
que ninguém, nem mesmo Deus ou o Messias, perturbassem seu
estilo de vida.
Ao rejeitar Jesus Cristo, os judeus repudiaram todas as
vantagens que tinham sobre os outros povos do mundo. Deus se
lhes manifestou na história, mas eles se rebelaram contra ele.
Deus lhes revelou sua palavra, mas eles não creram nela. Deus
lhes apareceu em carne, mas eles o assassinaram. Sim, a
salvação veio dos judeus, mas eles a rejeitaram; e, como Jesus
disse, o reino foi tirado deles e dado a outro povo que creria e
daria os frutos, a saber, os cristãos.
Todas as vantagens que os judeus já tiveram pertencem agora
aos cristãos. Os judeus renegaram sua história — esta história
agora nos pertence. Eles rejeitaram sua própria Escritura; do
contrário seriam cristãos. Mas nós cremos tanto na Escritura que
os judeus tinham quanto em seu cumprimento e sua extensão,
que chamamos de Novo Testamento. Temos agora a Escritura
completa. Mas eles nem sequer têm o que seguram nas mãos,
pois não acreditam nesse texto. Como Jesus disse, “De quem
não tem, até o que tem lhe será tirado”. As vantagens que os
judeus tinham sobre os samaritanos, aquelas que perderam
desde então, são as mesmas vantagens que os cristãos agora
têm sobre os judeus.
Isso é tão importante, mas tão pouco compreendido, que devo
repetir. Os judeus tinham de fato vantagens espirituais sobre os
outros, mas as repudiaram por causa de sua incredulidade, que
persiste até hoje. Todas as vantagens espirituais pertencem
agora aos cristãos e somente aos cristãos. Os judeus nem
mesmo devem ser considerados filhos de Abraão, pois Jesus
disse que se o fossem, teriam seguido o exemplo de fé e justiça
de Abraão. Em vez disso, eles odiaram Jesus e conspiraram para
matá-lo; e por fim o mataram. Isso, disse Jesus, Abraão jamais
teria feito. Pelo contrário, Abraão vislumbrou o dia de Jesus e se
regozijou. E agora os cristãos e somente os cristãos se regozijam
com ele, compartilhando a fé de Abraão. Portanto, como
escreveu Paulo, os cristãos são os filhos de Abraão. A verdadeira
herança é do espírito e não da carne. A carne não significa nada,
mas um seguidor do espírito de alguém é o verdadeiro herdeiro
dessa pessoa.
O que tudo isso significa? Significa que qualquer doutrina que
sequer insinue uma superioridade judaica estará se opondo ao
espírito de toda a Escritura, sobretudo do Novo Testamento. É
bastante ridícula a ideia de que devemos olhar para os judeus
para aprender como nos tornar melhores cristãos. Ora essa, os
judeus é que devem olhar para os cristãos para aprender como
ser de fato salvos! O apelo, comum em alguns círculos, de que
devemos “voltar às raízes judaicas” da fé cristã é totalmente
injustificado. Os apóstolos nunca sugeriram isso aos gentios, seja
em matéria de realização espiritual, seja em matéria de avanço
teológico ou hermenêutico. Não há uma só sugestão de que os
gentios se beneficiariam espiritualmente, entenderiam melhor a fé
cristã ou se tornariam intérpretes mais fieis da Escritura se
tivessem um conhecimento ou apreço pela cultura judaica, tanto
mais se implementassem parte dela em sua vida. Na verdade, os
apóstolos lutaram veementemente contra isso. Era exatamente o
que eles queriam que os gentios evitassem fazer.
Os apóstolos foram claros em que os gentios poderiam vir tal
como eram, como gentios, e se tornar cristãos sem precisarem se
tornar judeus ou aprender qualquer coisa sobre os judeus ou
adotar qualquer coisa do seu pensamento e cultura. Obviamente
eles tinham de acreditar na Escritura, mas, como já se mostrou,
isso não era algo judaico a fazer, pois os judeus rejeitavam a
Escritura. Acreditar na palavra de Deus sempre foi uma coisa
cristã, desde os tempos de Adão, quando a promessa de Cristo
foi anunciada pela primeira vez. E, novamente, os apóstolos
nunca sugeriram que para poder acreditar ou entender a Escritura
os gentios deveriam aprender sobre a cultura judaica.
Além do mais, não é que os gentios já estivessem familiarizados
com a cultura judaica. Como indicado por várias partes do Novo
Testamento (por ex., At 17) e até mesmo pela própria passagem
que estamos considerando (Jo 4.9), o público gentílico original
amiúde não estava familiarizado com a cultura judaica. Porém, os
apóstolos não fizeram nenhum esforço para remediar isso, como
se isso tornasse possível um entendimento mais preciso da
religião cristã. A verdade é que isso não é necessário. A
suposição de que é necessário quando se trata de teologia e
hermenêutica é falsa e vai exatamente contra o que os apóstolos
trabalharam tanto para estabelecer.
Uma vez que tenha misturado as ideias da superioridade dos
judeus e da necessidade de se compreender a cultura judaica
para se tornar um cristão melhor ou intérprete melhor da
Escritura, você contaminou o evangelho de Jesus Cristo e anulou
a liberdade que ele estende ao povo eleito de Deus. Você não
tem em mente os interesses de Deus, mas os interesses dos
homens. Você voltou a pensar como os homens “de baixo”. Está
indo na direção errada. Está regredindo na fé. E está em risco de
cair da graça de Cristo.
A fé do Novo Testamento, inclusive a fé de Abraão, é espiritual.
Está centrada somente em Cristo e não em qualquer raça,
gênero, cultura ou classe. Não existe um cristianismo judeu ou
“messiânico”, assim como não deveria existir um “cristianismo
negro”. Se alguém o seduz a pensar nesses termos, recuse-se a
fazê-lo. Permaneça firme em sua liberdade e contra-ataque.
Devemos nos rebelar contra essas versões privadas da fé cristã
sem medo de ser chamados de racistas ou fanáticos. Os
apóstolos lutaram pela pureza do evangelho e pela liberdade da
fé para que fosse uma mensagem sobre a simples devoção a
Jesus Cristo e não uma mensagem que exaltasse uma raça
específica ou servisse à agenda de um povo específico.
Paulo escreveu que, no que se refere ao pecado, “não há
diferença” — independentemente de serem judeus ou gentios,
homens ou mulheres, livres ou escravos, todos estão debaixo do
pecado. E no que se refere à salvação, mais uma vez, “não há
diferença” — independentemente de serem judeus ou gentios,
homens ou mulheres, livres ou escravos, só há salvação por meio
de Jesus Cristo, que faz de seu povo eleito nova criação. Você é
judeu? Desista. Ou você é cristão, ou não é. Se é cristão, Deus o
aceita; e se não é, simplesmente queimará no inferno como os
demais. Você é negro? Esqueça isso. Ou você é crente em Jesus
Cristo, ou não é. Se é cristão, está salvo da ira de Deus; e se não
é, pode chamar Deus de racista quando queimar no inferno, mas
sua raça não terá nada a ver com isso, pois encontrará pessoas
de todas as raças queimando com você lá.
Jesus fez a mesma observação que eu aqui. Depois de ficar do
lado dos judeus em sua disputa contra os samaritanos, disse: “No
entanto, está chegando a hora, e de fato já chegou, em que os
verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade.
São estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e é
necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em
verdade” (Jo 4.23–24). Os judeus estavam certos e os
samaritanos errados. Mas ambos estariam errados se não
seguissem o programa de Deus. A disputa sobre o local
adequado de adoração não importava mais, porque todos
aqueles que adorassem o Pai deveriam adorar em espírito e em
verdade por meio de Jesus Cristo e independentemente de
edifícios e rituais. Todas as orações, rituais, festivais e lugares
sagrados de todos os não cristãos — judeus, mórmons, católicos,
muçulmanos ou budistas — são tolices sem sentido.
Às vezes, os cristãos esquecem que a nossa fé não é sobre
trazer as pessoas às nossas tradições humanas, nossas
denominações e nossos teólogos e pregadores favoritos.
Devemos praticar a adoração verdadeira e conduzir as pessoas a
ela, o que só é possível em espírito e em verdade, por meio da fé
em Jesus Cristo. O verdadeiro adorador deve ser uma pessoa
que nasceu do alto, que Deus tornou seu próprio templo santo.
Assim, ele não precisa adorar em algum lugar específico ou se
voltar para uma direção específica para ser ouvido. E não adora
alguém ou algo que não entende, mas adora de acordo com a
verdade, isto é, as doutrinas de Jesus Cristo. Ele não adora Deus
com rituais e cerimônias, mas com sua inteligência, em seu
espírito, pelo poder do Espírito Santo.
A mulher tinha um maior apreço pelo Messias do que muitos
cristãos hoje. Ela disse: “Eu sei que o Messias (chamado Cristo)
está para vir. Quando ele vier, explicará tudo para nós”. Jesus
não se opôs a esse entendimento do Messias, mas o acolheu e
declarou à mulher “Eu sou o Messias! Eu, que estou falando com
você”. Isso atinge o fundamento do modo como muitos crentes
professos entendem a fé. Em primeiro lugar, ao contrário deles, a
religião cristã não consiste de mistérios ou ensinos
incompreensíveis. Em vez disso, a mulher presumia que “tudo”
podia ser explicado, e Jesus concordou com ela. Por
conseguinte, em segundo lugar, a religião cristã detém a
explicação para “tudo” — nós temos todas as respostas.
Isso não é uma afirmação arrogante sobre nós mesmos, mas é
um fato sobre Jesus Cristo e sobre o que ele revela por suas
próprias palavras e pelo seu Espírito através das palavras de
seus alunos, os apóstolos. A relevância desse fato continua
através de nós, já que somos os atuais alunos de Jesus Cristo e
dos apóstolos. Na medida em que aprendemos seus ensinos,
temos agora todas as respostas. Por necessidade lógica, todas
as crenças não cristãs que contradigam o que dizemos devem
estar erradas. E, uma vez que todas as crenças não cristãs
discordam de fato de nós — mesmo quando não discordam
explicitamente, discordam em suas nuances, suposições e
implicações —, todas as crenças não cristãs são falsas. Visto que
Jesus e os apóstolos explicaram “tudo”, também sucede que não
pode haver nenhuma nova religião que suplante ou mesmo seja
edificada sobre os ensinos deles. A religião cristã é a revelação
final, completa e perfeita de Deus.
Muitos convertidos parecem ter sua vida em ordem, pelo menos
mais do que outros, mas ainda não se dispõem a testemunhar
sobre Jesus Cristo às pessoas. Ou alguns convertidos esperam
as coisas estarem em ordem na sua vida antes de fazê-lo. O
pensamento é que seria hipocrisia dar sermões aos outros sobre
verdade, religião, retidão e julgamento se nós mesmos não
atingimos antes a perfeição.
Esta mulher não esperou, mas deixou seu cântaro no poço,
voltou a seu povo e disse: “Venham ver um homem que me disse
tudo o que tenho feito. Será que ele não é o Cristo?”. Ela ainda
era aquela mulher arruinada que casara cinco vezes. Não havia
hipocrisia nisso, pois ela não estava pregando sobre si mesma,
mas falando sobre Jesus Cristo às pessoas. Ela não esperou até
poder se tornar mais confiável, pois não alegou que era ela quem
poderia explicar tudo. Mas sua mensagem foi: “Venham ver”.
É isto o que o Evangelho de João convida seus leitores a fazer: a
“vir e ver” esse Jesus através das palavras faladas por ele e
escritas sobre ele e a perceber que ele era o Cristo. E é esta a
nossa tarefa perante o mundo hoje — não pregar nós mesmos ou
falar às pessoas sobre nossos méritos, nossas realizações ou
nossas opiniões, mas pregar Jesus Cristo, aquele que tem todas
as respostas e que deu essas respostas a nós. Chamamos as
pessoas a “vir e ver” convidando-as a ler sobre ele na Escritura
ou contando-lhes sobre suas palavras e obras nela registradas.

[1] D. M. Lloyd-Jones, Por que prosperam os ímpios? (São Paulo: PES, 1992), p. 14.
[2] Ibid., p. 15.
[3] Deus era, é e será o mesmo, e a natureza divina do Verbo permaneceu a mesma
após a encarnação. Se o Verbo era Deus, então é Deus. O mesmo deve ser dito sobre
o Deus-homem Jesus Cristo — ele era Deus e é Deus. Todavia, neste contexto,
seguimos João ao falar do Verbo no tempo passado. Sua narrativa do Evangelho
começa de um tempo anterior à encarnação e se refere ao Verbo à parte da
encarnação a fim de que possamos ter uma compreensão clara de quem ou o que
assumiu uma natureza humana.
[4] “Ele usa aí a palavra ‘Verbo’, mas em cujo significado tem em vista não apenas o
poder do Filho de Deus, mas também um arranjo admirável e uma ordem bem definida
que ele conferiu às coisas criadas, visto ser a Sabedoria de Deus. E podemos
contemplá-lo em todas as criaturas, pois ele sustenta todas as coisas através de sua
virtude e poder” [João Calvino, The Deity of Christ (Old Paths Publications, 1997), p.
30].
[5] “E que vida? Tal como todas as coisas são feitas e preservadas pelo Verbo de Deus.
Todavia, há algo mais excelente no homem, isto é, a alma, inteligência e razão” (Ibid., p.
32).
[6] De todo modo, o Antigo Testamento é um livro cristão, não um livro judaico.
Qualquer judeu que não creia no Novo Testamento — qualquer judeu que não seja
cristão — não crê realmente no Antigo Testamento.
[7] William Barclay, The Gospel of John, Volume 1 (Westminster John Knox Press,
1975), p. 67.
[8] Ibid., p. 66.
[9] Na versão em inglês usada pelo autor: “… me ordenou o que dizer e como dizê-lo”.
[N. do T.]
[10] George Whitefield, Select Sermons of George Whitefield (The Banner of Truth
Trust, 1997), p. 187-88.
[11] John Piper, Supremacia de Deus na pregação (São Paulo: Shedd Publicações,
2003), p. 37.
[12] “… por causa dos milagres em si” — na versão bíblica usada pelo autor. [N. do T.]
[13] Donald Guthrie, “John” em New Bible Commentary, 21st Century Edition (IVP
Press), p. 1037.
[14] Charles H. Spurgeon, Leituras Diárias - Volume 1 (São Paulo: Fiel, 2004), p. 125.

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