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15 de Maio de 2019

Cultura 21

OS AFRICANOS EM MANHATTAN
JEROEN DEWULF
director institute
of european studies
a primeira Comunidade de Língua Portuguesa na América u.c. Berkeley

Q
Nova Amsterdão em 1664
uando falamos da presença A primeira referência à presença de africanos es- mostra que o Mateus não era um caso único. Nem era
da língua portuguesa na cravizados em Manhattan data de 1628, quando o Waldron o único holandês que sabia falar português.
América, temos tendên- pastor da Igreja Reformada em Nova Amsterdão Outro era o capitão Johan de Vries, que antes de vir
cia para pensar imediata- se refere numa carta às suas “escravas angolanas”. a Manhattan tinha sido soldado em São Luís do Ma-
mente na comunidade de Naquela altura, não deve ter havido mais do que ranhão. Trouxe consigo dois escravos, Elária Crio-
emigrantes portugueses ou uma dezena de escravos em Manhattan. Provavel- ula e Paulo Angola, e também “a sua mulher negra
talvez no número crescente mente, foram levados lá por piratas holandeses que brasileira”. A probabilidade de o capitão holandês ter
de brasileiros residentes nos tinham capturado navios portugueses a caminho do falado português pode explicar a sua proximidade
Estados Unidos. Raramente Brasil. Por volta de 1645, quando os portugueses com a população negra: arrendou terrenos para eles e
pensamos em africanos. O começaram a reconquistar o Nordeste do Brasil e os foi padrinho no baptismo de vários filhos de negros.
que os resultados da minha pesquisa sobre a comuni- últimos holandeses que ainda havia no Recife pas- Entre os seus amigos estava um homem chamado
dade escrava em Manhattan no tempo dos holandeses saram a enviar os seus escravos para outras colónias, Sebastião, que era conhecido por “Capitão dos Ne-
(1614-1664) demonstram, porém, é que os africanos incluindo Manhattan, o seu número cresceu até uns gros”. Este Sebastião, inclusivamente, serviu como
tiveram um papel importantíssimo na história da nos- trezentos. Em 1654, os holandeses foram definitiva- testemunho batismal do filho mestiço do capitão e a
sa língua neste país. Pois foram eles a primeira co- mente expulsos do Brasil, e, dez anos mais tarde, so- tal mulher brasileira.
munidade de língua portuguesa na América do Norte. freram a mesma sorte em Manhattan, quando a ilha Uma confirmação indireta de que vários africanos
Para quem conhece a história colonial holandesa do foi capturada pelos ingleses que a rebatizaram “New escravizados em Nova Amsterdão sabiam expressar-
século XVII, a presença da língua portuguesa na co- York”. se o português vem de Northampton, Virgínia, onde
munidade negra não surpreende. Afinal, na mesma a primeira comunidade de escravos consistia quase
altura em que os holandeses ocupavam Manhattan exclusivamente de africanos que tinham sido com-
(chamado “Nova Amsterdão”), também tinham na prados em Manhattan. Em 1667, um deles, chamado
sua posse o Nordeste do Brasil. Para além disso, em Fernando, entrou com uma ação no tribunal, alegan-
partes das Caraíbas com um passado colonial holan- do que “era cristão” e apresentando vários documen-
dês, ainda hoje são faladas línguas crioulas com forte tos “em português” dos “vários governadores das
influência portuguesa, como é o caso do papiamento terras onde tinha vivido como homem livre”. Eram
(um termo derivado do português antigo “papiar” - provavelmente as suas cartas de alforria. Mesmo as-
falar), falado nas ilhas de Aruba, Bonaire e Curaçao e sim, o seu pedido foi rejeitado. O caso do Fernando
do saramaka, falado no Suriname. indica que alguns dos africanos levados a Manhattan
Os traços da língua portuguesa nesses territórios podem ter sido negros livres, talvez até tripulantes
tradicionalmente têm sido explicados pela presença mapa original de Nova Amsterdão, num navio ibérico capturado por corsários holan-
de judeus sefarditas. Sempre se pensou que muitos deses, e vendidos como escravos apenas por serem
judeus, após serem expulsos de Portugal, se muda- o Castello Plan, de 1660 negros. O seu caso também nos mostra que seria
ram para os Países Baixos e, posteriormente, para errado de pensar apenas em Manhattan como lugar
colónias holandesas. Ali teriam estabelecidas planta- Analisando documentos antigos, verificámos que onde havia negros de língua portuguesa. Outro caso
ções onde comunicavam em português com os seus a população negra inteira em Manhattan durante o vem do relato anónimo da “Insurreição dos Negros
escravos e, assim, ter-se-ia divulgado a nossa língua. período holandês tinha nomes portugueses como na Carolina do Sul” de 1739, onde se lê que “entre os
Como na colónia holandesa em Manhattan não vivia Maria, Isabel, Conceição, Manuel, João e António. negros escravos aqui, há muitos que vêm do Reino de
mais do que meia dúzia de judeus, nunca se imaginou Alguns tinham até apelidos lusitanos como Grande, Angola em África e muitos deles falam português e
que ali também os negros pudessem ter falado (um Brito ou Albuquerque. Em vários casos, encontrámos professam a religião católica romana”. Ainda hoje, os
crioulo) português... também uma referência de origem no apelido, o que negros da Carolina do Sul são às vezes chamados de
mostra que a grande maioria provinha do noroeste de “Gullah”, um termo derivado de (A)ngola.
Angola, mas que havia também alguns de São Tomé, Tudo isto nos mostra a importância da comunidade
do Cabo Verde e até de Portugal. No caso de um ne- africana para a história da língua portuguesa na
gro chamado António Fernando, por exemplo, está América. Trata-se de uma importância ainda muito
escrito que veio “de Cascais in Portugal”. desconhecida da população norte-americana, inclu-
Uma história trágica dá-nos uma ideia da língua que indo a própria comunidade afro-americana. Mais
os negros em Manhattan falavam. Em 1655, um hol- uma razão para continuarmos a investir no estudo
andês comprou uma escrava que, a caminho da casa, da língua, história e cultura portuguesa nos Estudos
caiu. Depois de gritar “arriba!”, a mulher levantou- Unidos.
se. Porém, “10 a 12 passos mais adiante” caiu de
novo e, “com os olhos girando na sua cabeça” pas-
sou a chamar “morre! morre!”, apontando para o seu
peito. Pouco tempo depois, morreu. Os termos usados
por essa mulher são claramente de origem ibérica.
Enquanto “morre” é obviamente português, o termo
“arriba!” com o significado de “Vamos! Levante-se!”
pode antes parecer espanhol, mas era comum no por-
tuguês do século XVII e sobrevive até hoje no crio-
ulo do Cabo Verde. A probabilidade de ser português
aumenta se juntarmos outra fonte, do ano de 1662,
sobre um negro chamado Mateus que foi levado ao
tribunal por ter bebido álcool num Domingo, algo
que era proibido na colónia dos holandeses (prot-
estantes). No seu processo, uma das testemunhas
disse ter visto Mateus no bar junto com um holan-
dês chamado Resolveert Wadron, mas desconhecia
o que tinham dito “porque eles estavam a falar em
português”. Como o Waldron tinha vivido no Brasil
Holandês antes de vir a Manhattan, é provável que
O primeiro leilão de escravos em tenha aprendido português lá. Isto também poderá
livro de jeroen dewulf à venda:
explicar porque vários outros negros tivessem pedido
Nova Amsterdão em 1655 ajuda a Waldron como intérprete no tribunal, o que www.upress.state.ms.us/books/1997

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