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ISBN: 9789722128964
Editorial Caminho, SA
uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
LIVRO TRÊS
O Bebedor de Horizontes
RESUMO DOS ANTERIORES VOLUMES
Não era apenas entre nós, africanos, que emergiam querelas. Não há dia
em que os chefes militares portugueses não troquem acusações. E todos,
europeus e africanos, procuram-me para se lamentar. Não sei por que
confiam em mim. Mais do que tradutora sou uma ponte. Talvez eu seja a
aranha que vivia no pátio de Dabondi. Nas minhas patas carrego palavras e
com elas faço uma teia que une diferentes raças.
Durante a caminhada, Mouzinho de Albuquerque já me havia abordado
de forma casual. Desta vez senta-se a meu lado e permanece imóvel, sem
tirar os olhos de Álvaro Andrea.
— Aquele tipo odeia-me — afirma Mouzinho. — Posso dizer-te, nenhum
preto me despreza assim tanto.
O modo lento como o capitão pousa o chapéu sobre os joelhos denuncia o
seu propósito de conversar.
— Sei quem és — começa por dizer. — E tu sabes o que queremos de ti.
Traduzir será apenas a parte visível do teu trabalho.
Faz uma pausa cofiando o bigode. O reinado de Gaza durou demasiado,
disse. E sabes porquê?, pergunta. E ele mesmo responde: Este Gungunhana
sabia tudo sobre nós e nós nada sabíamos dele.
Aqueles negros ali sentados, com os pulsos atados, não são apenas
simples prisioneiros. É o que diz Mouzinho. São donos de valiosos
segredos, e são essas confidências que entregarei ao exército português.
Esse é o verdadeiro motivo da minha presença naquela jornada. Pigarreio,
receosa:
— Entendi, meu capitão.
Mouzinho enrola um cigarro. Não o acende. Deixa-o pendendo preso nos
lábios. Olho-o de esguelha. É um homem bonito. Razões tinha Bianca para
sonhar.
— Agora, se me dá licença — peço num murmúrio —,volto para junto da
minha gente...
— Prefiro — diz Mouzinho — que te deixes ficar entre os brancos. É
entre eles que moram as mais graves traições.
Um mal-amanhado bilhete
Não vejas nisto uma carta. É um simples bilhete rabiscado à pressa. Não
tarda que me conduzam para Inhambane. Quero, mais que tudo, dar-te uma
boa nova: estou livre! Sobre mim já não pesam suspeitas da autoria da
morte de Santiago Mata. Para te ilibar declarei-me culpado. Era mais
credível que fosse eu o autor do disparo.
O meu sacrifício não teve custos maiores pois logo surgiu uma outra
versão dos acontecimentos que falava em suicídio. Ainda pensei que fossem
os meus companheiros republicanos que me tentavam salvar. Mas não.
Quem defendeu a tese do suicídio foi o próprio Mouzinho de Albuquerque.
E quem iria duvidar da palavra do grande herói? Fico a dever esse favor ao
meu fiel inimigo.
Mouzinho, Mouzinho, Mouzinho! Quando deixará esse Mouzinho de me
ocupar tanto? Às vezes arrependo-me deste meu despeito: é tão fácil odiar o
sucesso dos outros! Mais vezes, porém, desconfio desta recente euforia de
Mouzinho. Como é que alguém tão fascinado pela morte se pode ocupar
tanto com a imortalidade?
O que importa, querida Imani, é que daqui a umas horas estarei no
Hospital Militar de Inhambane. Vou usar as enjeitadas mãos para ficar
isento dos serviços militares. Tenho esperança, melhor, a certeza, de que me
fazem voltar a Portugal. O meu anseio não é regressar. O que realmente
desejo é reencontrar-te. Se tudo correr bem ainda nos veremos em Lourenço
Marques.
Entrego este bilhete a Álvaro Andrea, o comandante da lancha militar em
que irás embarcar em Zimakaze. É um velho amigo que comunga dos ideais
republicanos. Pela mesma via te farei chegar, mais tarde, uma verdadeira
carta, uma carta decente no tamanho e indecente nas entrelinhas.
Teu
Germano
Capítulo 3
A lama e a neve
[…]
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
Que primeiro vendestes escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas!
Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas,
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueastes tranquilas povoações africanas,
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças,
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prémios de Novidade de quem, de cabeça baixa
Arremete contra o mistério de novos mares!
[…]
(Fernando Pessoa, excerto da Ode Marítima)
Não se amaldiçoa o lugar onde se acaba de chegar. Assim me educaram.
Mouzinho não segue este princípio. Desde que chegámos não fez outra
coisa senão maldizer o posto de Languene.
— Vou mandar incendiar esta miséria! — resmunga. — Isto não é um
aquartelamento, é um esconderijo. Esta gente tem tanto medo de morrer
que faz tudo menos combater.
Vocifera contra o que chama de «cáfila de politiqueiros». E alerta para
uma conspiração de «intriguistas». Usa esses termos com a mesma raiva
com que Ngungunyane chama de «mulheres» aos seus inimigos.
— Imani... É assim que te chamas, não é? A minha dúvida pode parecer-
te estranha mas preciso de perguntar: sentes que pertences a um país, a
uma nação?
Fala sozinho. E responde por mim. Está certo de que me falta esse
sentimento de pertença. Apesar da minha aparência, continuo a ser uma
indígena, leal à família, fiel à raça. E lembra a maldição que recai sobre os
irmãos gémeos. Estando perante um desses irmãos, pensa-se reconhecer o
outro e, assim, acabamos por não conhecer nenhum deles. Era assim que ele
me via a mim e aos demais africanos: todos gémeos. Da próxima vez que
falássemos eu teria de recordar-lhe o meu nome.
*
Tudo isso se passara dias antes, naquele mesmo lugar. No fim do relato,
Mouzinho volta a cobrir a cabeça e a sombra do chapéu obscurece-lhe as
palavras.
— Percebes agora por que desconfio desse Andrea? — pergunta-me
Mouzinho. E movimenta o assento como se, ao fazer-se mais próximo, nos
tornássemos mais coniventes. Álvaro Andrea, começa por dizer Mouzinho,
apostara que ele seria morto em Chaimite. E ali estava ele, vivo e vitorioso.
Mouzinho era um espinho cravado no seu orgulho. Como entregar nas mãos
desse traidor o mais precioso troféu de todas as guerras coloniais
portuguesas?
Passam por nós soldados que se dirigem ao rio para lavar os pratos.
Mouzinho sacode a cabeça e lamenta-se:
— Há poucos dias estes homens saudavam a prudência do seu
comandante. Hoje todos eles o maldizem.
O que antes tinha sido ponderação é agora cobardia. Por culpa de Andrea,
aqueles jovens foram excluídos do panteão dos heróis.
Aproxima-se de nós um soldado branco, com ar apatetado. O capitão
anuncia o visitante:
— Ora aqui está o único soldado português que está em África sem nunca
ter saído da sua aldeia ribatejana. Eis alguém que viu neve no meio do
inferno.
O jovem soldado ergue-se na ponta dos pés, o corpo todo espigado numa
caricata continência:
— Apresenta-se o 222, da terceira companhia do regimento de infantaria.
De repente deixo de o ver. O jovem português estava à minha frente mas,
em seu lugar, surgia o meu irmão Mwanatu. A mesma caricatura de
soldado, a mesma desajeitada farda. E a mesma distância da realidade:
Mwanatu Nsambe acreditando ser branco de nascença e este português
tomando por neve a tórrida areia dos trópicos. Apetece-me abraçar o
soldado. Contenho-me quando me enfrenta, a um tempo distante e curioso:
— És tu a preta que fala português? É verdade que falas melhor do que a
maior parte dos brancos?
A minha resposta é um sorriso. Espero que ele corresponda. O moço,
porém, bate continência e retira-se movido por uma estranha urgência.
Mouzinho contempla o soldado 222 que se afasta e comenta:
— Este é um anjo estúpido, tombou de cabeça na terra. Mas não deixa de
ser um desses anjos cuja única função é lembrar que vivemos num inferno.
Minha querida
Andorinhas e crocodilos
*
Álvaro Andrea mantém-se na proa como um irreverente anjo: vigia as
imperfeições de Deus. A linha da costa, impossível de mapear, é a prova de
que o universo é apenas um rascunho.
— E o que tanto vê, meu comandante? — pergunta Mouzinho.
Andrea demora a responder. Contempla as ondas, que se erguem cegas
para depois desabarem num escuro abismo.
— O que vejo? Não sei. Vejo andorinhas.
— Andorinhas? — espanta-se Mouzinho.
— Dizem que o Gungunhana odeia essas aves tanto quanto teme o
oceano. Já lhe perguntei a razão desse ódio.
— Dou-lhe um conselho, meu comandante: não pergunte nada a essa
gente — adverte Mouzinho. — É um duplo erro. Primeiro, porque lhe
mentirão ao responder. E depois porque, ao dirigir-se-lhes, você dá-lhes
uma importância que nos pode ser perigosa.
— Uma das rainhas disse-me que as andorinhas não são aves. São
mensageiras. Há que escutar o recado que trazem.
— Tolices, caro Andrea. E mais tolo é quem lhes dá ouvidos.
A jornada até Xai-Xai deveria durar dois dias. Mas a súbita tempestade
impede o progresso da lancha e isso deixa transtornado Mouzinho de
Albuquerque. Para o capitão não há tempo a perder: a glória espera por ele
em Lourenço Marques. Não seria um estuário revolteado que faria protelar a
celebração dos seus feitos. Habituado a mandar, é-lhe difícil assumir um
tom solícito: Prossiga a viagem, comandante Andrea, este barco foi feito
para galgar tempestades.
Álvaro Andrea enfrenta o olhar altivo de Mouzinho e depois replica com
azedume:
— No seu cavalo manda o senhor; aqui quem comanda sou eu.
Mouzinho podia resolver a discussão numa penada, fazendo uso dos
galões. Para além de capitão, ele é agora o governador do distrito militar de
Gaza. Mas prefere regressar a um tom mais apropriado. Estão ali os presos
que se entreolham, estranhando a desavença entre os chefes brancos.
Encolhido entre a bagagem, Ngungunyane acredita ser ele o motivo daquela
altercação. Os portugueses, desconfio, discutem a sua sumária execução.
— Sabe por que prendi tão facilmente o chefe dos Vátuas? — pergunta
Mouzinho ao comandante do navio.
No momento da prisão, explica o capitão, os guerreiros de Ngungunyane
imaginaram que o destacamento que tinham diante de si era uma reduzida
amostra de um enorme exército que os cercava para além do horizonte.
— É por isso que lhe digo, caro Andrea — conclui Mouzinho —, nunca
se fie na linha do horizonte.
Minha querida
Germano de Melo
Capítulo 7
As mãos e as mães
Mudungazi Ngungunyane
*
Coloco ponto final na carta com um malicioso sorriso. De que te ris?,
pergunta Ngungunyane. Só pode ser ironia, meu rei, arrisco dizer. Como
assim?, pergunta ele. O senhor não pode ter sido sincero, declaro. Escreveu
tudo como lhe disse?, pergunta o rei como se não me tivesse ouvido. Aceno
que sim. É a vez de ele sorrir, com malícia. Espeta o dedo, em aviso:
Mandarei Dabondi confirmar se foste fiel ao que ditei. Contesto, a medo:
Dabondi não sabe... Não me deixa terminar: Dabondi sabe ler. Ainda tu
estás a pensar no que vais dizer e já ela está a ler as tuas palavras.
Ngungunyane toma a folha nas mãos e percorre com o indicador o
contorno das letras. É o seu modo de medir a minha obediência. Queres
saber por que escrevo ao rei de Portugal?, pergunta. Em Chaimite, diz ele,
os caçadores penduram as caveiras dos leões na árvore sagrada. Todos
pensam que é uma vaidosa exibição. Mas é apenas a humildade que
comanda os caçadores: veneram os vencidos, pedem perdão aos deuses dos
bichos.
— Entendes por que escrevo esta carta? — pergunta Ngungunyane.
Capítulo 10
Um lenço branco
iluminando o passado
Querida Bianca
Germano de Melo
PS. Pode suceder que, por um feliz acaso, a minha amiga encontre Imani
durante os festejos de Lourenço Marques. Se isso acontecer imploro que
fale de mim e das cartas que lhe enviei. Se não as recebeu, ela que insista
com o comandante para reaver o que lhe pertence. De qualquer modo — e
para prevenir qualquer dissabor — fiz cópias desses textos. Em anexo a esta
missiva seguem essas reproduções. Entregue-as a Imani, por amor de Deus.
Capítulo 12
Pegadas no orvalho
Para a rainha não existem dúvidas: aquele navio, todo de ferro, foi
fabricado a partir de sobras de canhões e espingardas. Por fora cheira a
maresia, por dentro cheira a pólvora. Todas as outras mulheres da corte
perderam a conta aos filhos que pariram. Apenas ela teve um único menino.
Tão franzino tão diminuto, que aconchego encontraria num lugar feito de
restos de canhões?
Olho para Dabondi e penso: a jovem rainha está perdida. Se a vida fosse
justa bastaria ser mulher para se ser rainha. Esta rainha, porém, é a mais
triste e carente das criaturas. Para se sentir viva ela necessita de que o
marido a deseje. Por esta razão as mulheres da corte, todas elas, precisam de
ser belas. Dabondi é formosa mas sabe que a beleza, no desamparo em que
vive, dura pouco. Por isso imita as sombras: todos os dias desaparece. Uma
miragem não envelhece. E é assim que gostaria que o marido, o imperador,
a surpreendesse: uma miragem viajando sobre o mar.
O rei quer ver-te, diz Dabondi. A mim?, pergunto. Não há dia em que ele
não te veja nos sonhos, responde a rainha.
Dabondi conduz-me ao quarto do comandante. É lá que se encontra
Ngungunyane. Tinha acabado de ser interrogado. O interrogatório correra
bem. Só isso explica que Álvaro Andrea tenha deixado que o rei de Gaza
tome conta do seu compartimento. Pede Ngungunyane que Dabondi se
retire. Está preocupado, o soberano dos vanguni: o seu irmão, o rei D.
Carlos não respondeu aos seus pedidos: Zixaxa continua a partilhar o
mesmo espaço, dormindo e conspirando contra ele no escuro. Não
entregaram a minha carta a D. Carlos. Está convencido de que alguém o
traiu, desviando a mensagem para um outro destinatário. Não houve tempo
para que a carta chegasse a Lisboa, digo. Falo em vão. Ngungunyane
apenas a si mesmo se escuta.
— Quer que escreva uma nova carta? — pergunto.
Sorrindo, o rei de Gaza acena com um papel e declara: Já vais tarde,
minha filha. Andrea acabou de me ajudar. Contei-lhe segredos e, em troca,
ele redigiu esta carta. Quem serviu de tradutor foi Godido. Sabe menos
português, diz o rei, mas conhece melhor o que é a lealdade.
Se escolheu outro escrevente por que está aqui comigo? — indago com
inesperada fúria.
Surpreende-me o meu despeito por terem escolhido um outro escriba. A
escrita, percebo então, inverte as hierarquias: quem dita uma carta tem
menos poderes do que quem a escreve.
O rei encosta-se a mim. Esfrega-se voluptuoso. Mantenho-me imóvel à
espera que desista. Pede-me que lhe acaricie os joelhos. Estranha que não
lhe obedeça de imediato.
— Os joelhos — repete o rei. — Vou explicar-te por que um homem
precisa de bons joelhos.
Antes de partir para a guerra um pai de família ajoelha-se frente à sua
mulher e pede que ela pronuncie o nome dos seus amantes. O guerreiro
deve permanecer de joelhos até obter uma confissão de deslealdade. Se, por
acaso, um soldado morrer em combate fica provado que a esposa mentiu.
— Há algo de errado nessa história, meu rei. Nenhum homem se ajoelha
perante uma mulher.
Ngungunyane ri-se, divertido com a minha impertinência. Não entendeste
nada, diz. Não é às esposas que os chefes de família dirigem o pedido.
Seria tempo perdido, as mulheres mentem sempre. Os homens, diz
Ngungunyane, ajoelham-se para que as mulheres pensem que se
apresentam submissos.
Vou-me afastando lentamente enquanto o monarca continua divagando.
Quando dá conta estou no canto oposto do quarto.
— Não vou perder mais tempo — diz Ngungunyane. Quero apenas que
me leias uma carta que ditei a Andrea. — Quero ficar sem dúvidas sobre o
que ele escreveu.
Demoro a recolher a folha que me quer entregar. Dou-me importâncias,
como diria a minha mãe. E percebo, logo nas primeiras linhas, que Álvaro
Andrea foi longe no embelezamento do texto. Ambos aportuguesamos
demasiado as palavras do rei dos vanguni. Vou traduzindo lentamente para
que Ngungunyane me acompanhe:
«Meu irmão,
Rei de Portugal
Venho falar-lhe de traição. Não é este o assunto que mais ocupa os reis,
em todo o mundo? Foi sempre assim: o sangue da família real é o mesmo
que corre nas veias dos seus assassinos.
Desde o início desta viagem que trago um traidor amarrado aos pés.
Quem deu esse nó não foi uma mão branca. Por esta razão lhe agradeço ter
autorizado o meu leal ajudante de campo, o jovem Ngó, a viajar comigo.
Ambos sabemos que, sob a capa de cozinheiro, se esconde uma outra
função: a de provador do rei. E ambos temos que reconhecer: abusamos do
uso desta silenciosa arma. Envenenámos tantos poços que acabámos
matando a nossa própria gente. Guardemos esse segredo. Essa é outra
vantagem do veneno: a morte acontece longe, num tempo que não pertence
a ninguém.
Uma vez mais lhe peço, agora que vai começar a grande viagem: separe
Zixaxa de mim. Esse maldito mfumo que fique longe, onde não veja o meu
sono nem escute os meus sonhos. Os meus companheiros de cela já me
viram dormir, comer, urinar, defecar. Que autoridade posso ter diante deles?
Por favor, meu irmão D. Carlos, afaste de mim esse traidor. Elimine este
homem, ninguém notará, ninguém reclamará. Fica, como o veneno que
usamos em excesso, um segredo entre nós.
O rei de Gaza
Lourenço Marques, 4 de janeiro de 1896»
Cara Imani
«Em qualquer país civilizado atos de guerra como estes praticados pela
nossa esquadrilha do Limpopo, além de serem condenados pelos princípios
humanitários e parecerem repugnantes a briosos cavaleiros, provocariam
reações violentas, reações de ódio e vingança dos povos castigados pelas
culpas do soberano; em África, porém, não se manifestam tais reações,
porque só podem produzi-las noções elevadas de moral e sentimentos de
justiça e de dignidade que falecem aos negros.»
Devia poupar-te a estas ofensas à tua raça. Mas quero que saibas como
pensam aqueles que me comandam. Depois da resposta de António Enes
abandonei a minha lamentação epistolar. Concentrei-me na redação de um
relatório sobre as imoralidades cometidas por Mouzinho de Albuquerque.
Sou ingénuo mas não sou estúpido: ninguém quer saber dessas denúncias. A
aventura em Chaimite, a «Chaimitada» — é assim que lhe chamo — é uma
boia de salvação da monarquia. Será preciso que os festejos esfriem para
que se aceite uma outra versão dessa inventada epopeia.
Talvez Mouzinho te tenha relatado como me encontrou no posto de
Languene. Era Natal e o heroico capitão fez questão de ridicularizar a festa
que eu, com tanto zelo, preparara para os nossos soldados. Pediu-me
emprestada uma espada e, num acometimento absurdo, espetou-a no meio
do pântano. Quem a apanhou foi o tenente Miranda e, por lapso, levou-a
consigo para Chaimite. E o impensável sucedeu, minha cara Imani: foi
exatamente essa minha espada que usaram para trespassar o coração dos
dois fuzilados. Fecho os olhos e vejo sangue. Essa espada golpeia-me o
sono, todas as noites.
Não me verás amanhã no desfile. Estarei longe, de volta ao rio Limpopo.
Não seria capaz de suportar essas exibições circenses. Na verdade, não
diferem muito das encenações dos outros pavões europeus. Grande ilusão!
Reivindicamo-nos donos de um continente que desconhecemos. É mentira
que a Europa tenha conquistado África. Tomam o desejo por realidade.
Apenas comandamos pequenas e dispersas feitorias junto à costa. Essas
feitorias conheço-as eu e elas contam-se pelos dedos. Todo o resto do
continente continua a ser governado por reis e imperadores africanos. Duas
Áfricas se revezam como misteriosas mulheres: uma noturna, outra diurna.
Não conhecemos nenhuma das duas. Para manter a aparência do nosso
poderio, precisamos de exibir o rei de Gaza pelas ruas de Lisboa. Não se
trata de uma deportação. É uma feira.
Saudades.
Álvaro Andrea
Capítulo 14
Desfiles e delírios
*
Nunca pensei que houvesse tantos brancos no mundo. Nem pretos, para
dizer a verdade. Mas agora vejo-os, uns e outros, a aplaudir freneticamente
as tropas portuguesas que desfilam na única avenida da cidade. Soldados de
todas as raças fazem continência perante uma tribuna repleta de
individualidades coloniais. No centro do palanque encontra-se o governador
interino, Correia Lança, rodeado por diplomatas de várias nações. Os
lugares de honra foram reservados para os comandantes dos cruzadores
alemão e inglês estacionados no porto. Em redor do estrado aglomeram-se
jornalistas portugueses e ingleses. Naquela tribuna estão, enfim, todos
menos quem mais direito tem de ali estar: o capitão Mouzinho de
Albuquerque. Aquela ausência enerva o governador que, entredentes, vai
repetindo a ordem:
— Chamem Mouzinho! Chamem-no, rápido. Todos o querem aclamar.
Um diligente emissário sai à procura do herói. Sei onde o irão encontrar:
sentado junto ao leito de morte do major Caldas Xavier. Mouzinho
confessou-me no dia anterior: aquele era o pior momento para se festejar.
Vítima de doença tropical, agonizava o grande obreiro da ofensiva militar
portuguesa em Moçambique. E passou pela cabeça de Mouzinho que a vida
era feita de desencontros. Durante meses Caldas Xavier tinha sido
administrador da Companhia de Ópio da Zambézia. Um campo de papoilas
a perder de vista embalou, durante meses, o sono do major português. Esse
mar de flores vermelhas desvanece agora sob as suas pálpebras.
Para os brancos, Caldas Xavier era vencido por uma doença. Para nós, os
negros, o homem era vítima de um serviço encomendado. Na nossa terra
não se morre de um «quê». Morre-se de um «quem». A morte não tem
causa. Apenas culpado.
No início do tempo,
havia apenas uma aldeia e um poço.
E o homem sentiu
que era chamado pelas águas sem fundo.
Bartolomeu
e o caminho marítimo para o céu
«... Tem razão Dabondi quando diz que o navio é uma prisão.
O oceano é tão infinito que cria um sentimento de clausura. O
ruído da quilha rasgando as ondas, o subterrâneo vibrar das
hélices, o lúgubre lamento das chaminés, o metálico correr da
âncora: tudo isso me traz uma fadiga milenar.
O Gungunhana está certo quando se lamenta que não existe
neste navio uma pedra onde se possa sentar. Já quase não há
madeira nos barcos de hoje. Agora as embarcações pedem
pouco ao vento. Tal como essas mulheres, que pararam de
sonhar e se deixam engordar, estes navios deram-se ao luxo de
ser pesados.
Não posso dizer quanto me cansam estas ambulantes prisões.
Apesar de tudo, sempre que me demoro em terra volto a ser
tentado pelo chamamento de um mar longínquo. E, de novo,
me faço ao cais, de novo sigo viagem.
Essa é a indecifrável sedução do mar: nenhuma voz é tão
humana, nenhum silêncio é tão cheio de histórias.»
(Excerto do diário do comandante
António Sérgio de Sousa)
À saída de Lourenço Marques a rainha Dabondi vaticinou que ia chover.
Uma água lê-se noutra água, disse ela fixando-me demoradamente os
olhos. Tinha razão a rainha: desde ontem que chove tão intensamente que se
deixou de ver o mar.
Atravesso lentamente o convés como se marchasse por dentro de uma
nuvem. Fui chamada pelo capitão António Sérgio de Sousa.
Sacudo as vestes e a medo entro no camarote do capitão. O aposento é
espaçoso e iluminado. A primeira coisa que vejo é um pássaro pousado no
ombro do português. O bicho espreita-me, curioso, numa postura híbrida
entre príncipe e palhaço. Depois assusta-se e bate as asas para se refugiar
numa gaiola pendurada no teto. O comandante chama-o: «Bartolomeu!» E o
pássaro, um papagaio do Congo, responde: «Pronto, meu capitão!» Salta
para a mesa e caminha com o andar oscilante dos anões.
— De vez em quando suja-me os mapas — lastima-se o comandante.
O papagaio ensaia um desajeitado voo que faz sobressair a cauda
vermelha por entre a plumagem cinzenta. Pergunto se devo fechar a porta.
Deixe-a aberta, recomenda Sousa. Bartolomeu criou as suas rotinas:
esvoaça pelo convés, em pleno mar alto; em terra não sai do camarote, com
medo das gaivotas.
— Quanto ao pássaro estou tranquilo. Não estou certo é se não devemos
separar esse Zixaxa do rei de Gaza.
— Zixaxa não vai molestar Ngungunyane.
— Como podes estar tão certa?
— Zixaxa acredita que se Ngungunyane morrer vocês, os portugueses, o
atiram ao mar. Sem o rei, nenhum dos prisioneiros tem mais valor.
A intenção de António de Sousa é oferecer o papagaio ao filho, que vai
completar oito anos. O menino nasceu na Índia mas cresceu em África.
Agora está em Lisboa e sofre de asma. Acredita o capitão que o filho sente
falta dos céus africanos. Não é no chão, é nos céus que ele mais encontra
África.
*
— Não foi por causa de um papagaio que te chamei — diz o capitão
sacudindo as mãos, como se lhe ardessem os dedos. Está a enxotar-me. A
minha visita não se pode prolongar. Sou o comandante, diz ele, não me
podem ver fechado contigo nos meus aposentos.
Chamou-me porque está preocupado. Um dos presos do porão, desses do
grupo de Machava, suicidara-se na noite anterior. O capitão receia que mais
presos lhe sigam o exemplo. Mandou que lhes melhorassem a dieta. Não
resultou. Aquela gente carecia de um conforto espiritual. O que falta em
bem-estar pode ser compensado pela crença.
— Esta gente — diz ele — é muito crente.
Seria de toda a conveniência que os presos acreditassem que os deuses
protegiam o barco e abençoavam a viagem.
No dia anterior tinha convocado Roberto Machava. Sabia da influência do
pastor junto dos restantes negros. O encontro aconteceu naquele mesmo
camarote. Sousa explicou a sua intenção. Iria juntar os presos numa grande
assembleia para que o pastor conduzisse uma bênção africana e, assim,
garantisse que o barco chegaria a bom porto. Uma benção africana?,
perguntou o pastor Machava. Peço perdão, mas há aqui um engano,
acrescentou ele. Sou um missionário cristão. Não tenho crenças africanas.
Eu e o senhor partilhamos o mesmo Deus, o único que pode abençoar este
barco.
Sem uma palavra, António Sérgio de Sousa deixou que o pastor se
retirasse. Mas não desistiu. Foi por isso que me chamou esta manhã e me
transmitiu com estranha pressa:
— Não resultou com o pastor. Mas vai resultar com a rainha feiticeira.
Vais trazê-la ao meu camarote. E quero que os presos saibam que a vou
receber. E saibam que, aqui, no meu camarote, ela vai abençoar a nossa
viagem.
Sonho que viajo num navio comandado por um capitão negro. O navio
chama-se Europa e tem o casco pintado de cores garridas como os panos
africanos. Os mastros são árvores e dão sombra ao convés. O vento espalha
folhas sobre o mar.
Um roçar de dedos na porta interrompe-me o sonho. Deve ser Dabondi,
penso estremunhada. Dou um jeito ao cabelo e, com inesperada dificuldade,
amarro uma capulana à cintura. Estou de cinco meses, não tarda que seja
devorada pela minha própria barriga.
Voltam a bater. Entreabro a porta. É o missionário Roberto Machava.
Mãos apressadas antecipam-se ao rosto do visitante:
— Vê este desenho — pede-me.
Estremeço. É um desenho a cores que, em criança, fiz para o meu pai.
Nele se via uma aldeia queimada e corpos jazendo no chão. Sob as figuras
está escrita uma legenda, uma jura de vingança contra as tropas de
Ngungunyane.
— Como conseguiu este papel? — pergunto, alarmada.
Deixa-me entrar. Não posso falar aqui no corredor.
Venha noutra altura.
Este é o melhor momento. Estão todos distraídos com a chegada à
próxima cidade.
O pastor entra e fica encostado à porta como se a quisesse duplicar. Deixa
de falar português e explica-se na sua língua materna. Machava tinha
passado pelo Save e visitara o meu pai, Katini Nsambe, e a sua atual esposa,
a profetisa Bibliana. O meu pai estava certo de que o missionário me
encontraria em Lourenço Marques. Quando lhe entregou o desenho, o meu
velhote foi categórico: «Entregue a Imani para que ela não se esqueça do
que prometeu.»
— Fiz a mesma promessa — afirma Machava. — Também busco a mesma
vingança e preciso da tua ajuda.
— Peça ajuda a Zixaxa.
— A todos menos esse. Estou preso, junto com os meus companheiros,
graças a esse traidor.
Reabre a porta e espreita o corredor, a confirmar que ninguém nos
escutava. Depois volta a trancar a porta. O seu rosto está perto do meu
quando confessa: Estou a preparar uma revolta. Sacudo a cabeça e ele
repete: É o que estou a preparar, uma sangrenta rebelião. O plano é
simples, mas de uma lógica arrepiante: vai matar o rei de Gaza. Sem
Ngungunyane, os portugueses chegariam a Lisboa de mãos vazias, sem
prova da arrebatadora vitória que tanto proclamavam. Se o matássemos
agora, argumenta Machava, seria impossível preservar o cadáver até
chegarmos a Lisboa. As nações europeias pensariam que Portugal tinha
forjado uma desajeitada encenação. O plano do missionário fechava com
chave de ouro: no interior de Moçambique os religiosos protestantes
clamariam que Ngungunyane continuava vivo, errando pelas montanhas do
Transvaal. E quem, neste mundo, poderia provar o contrário?
— Vou dizer-te o que deves fazer — declara o missionário.
— Não! Não me diga nada. Não estou preparada.
Uma terrível dúvida me assalta: se Ngungunyane morrer na viagem, por
que motivo continuariam a levar-nos até Lisboa? Seríamos certamente
abandonados em Luanda ou em Cabo Verde. Nunca mais veria Germano,
nunca mais o meu filho conheceria o pai. Fiz uma promessa de vingança, é
verdade. Mas não tenho que a cumprir agora.
— Escuta, minha filha.
— Vá-se embora, pastor Machava. Vá-se embora ou eu grito!
— Pensa no que te pedi — murmura o pastor à saída.
Passa pelo sentinela, que dorme. Vejo-o desaparecer no porão. Tranco a
porta e suspiro. Várias angústias me roubam o peito: a minha recusa em ser
cúmplice de um assassinato não basta. É imperioso fazer abortar aquele
plano. Há que denunciar, sem demora, as intenções do missionário. Não é
difícil, porém, adivinhar as consequências dessa denúncia: lançarão ao mar
o Machava e os seus correligionários. Resta-me a impossível escolha entre
dois crimes.
Um involuntário suicídio
Foi há instantes que Dabondi recebeu a mais grave das notícias mas
parece ter passado um século desde que ela desapareceu. Sozinha no meu
cubículo temo que, desesperada, se tenha lançado ao mar. E eis que, de
rompante, se abre a porta da minha cela e surge Dabondi escoltada por dois
militares. Vem desgrenhada e coberta de cinza. Empurram-na para cima do
leito enquanto lhe ordenam, aos gritos:
— Vais ficar aqui quietinha!
E mandam que traduza: a partir daquele momento, a rainha ficará
enclausurada no quarto com um guarda à porta.
— O que aconteceu? — pergunto.
— A tua amiga tentou suicidar-se. Desceu à casa das máquinas e tentou
atirar-se para o forno. Se não fôssemos nós seria agora um pedaço de
carvão.
— Pedaço de carvão é o que ela sempre foi — ironiza o outro militar.
Suspendem as gargalhadas para me advertirem de que, a partir de agora, me
compete cuidar de Dabondi. A rainha não tem qualquer importância para os
portugueses. Convém, todavia, que o número das prisioneiras negras se
mantenha intacto. Quanto mais mulheres forem exibidas em Lisboa mais o
rei se apresenta como autenticamente africano. É o que dizem os soldados.
Toma conta dela, repetem ao se retirarem. Do lado de fora escuto a chave a
rodar. E percebo então que, doravante, faço parte dos prisioneiros.
Fico um tempo a contemplar a rainha. Falta-lhe corpo, falta-lhe vida.
Mais do que nunca estou desvalida. Perante o tamanho daquela dor qualquer
tentativa de conforto se torna ridícula. De repente, Dabondi ergue-se como
se a alma tivesse deixado de lhe pesar:
— Abram a porta. Quero falar com Ngungunyane.
Negoceio com os guardas. São irredutíveis, a rainha não pode sair. Em
contrapartida, autorizam que o rei se desloque até ao nosso quarto. Minutos
depois, apresenta-se Ngungunyane. Dabondi não espera que ele cruze o vão
da porta para declarar:
— Todos pensam que Mangueze era o teu filho preferido. Todos acham
que foi por amor que o enviaste para Lisboa. Foi o contrário: querias
afastá-lo. Esperavas que ele fosse devorado pelo mar.
— Dabondi, minha esposa — apela o rei. — Queres acusar-me porque
estás a sofrer.
— Não sou tua esposa — responde Dabondi. — Nunca fui mulher de
ninguém. Saberás o que é o peso da culpa. E não haverá bebida que te
alivie.
Seguem-se as ameaças. O imperador sofria de maus sonhos? A partir de
agora teria pesadelos mesmo quando não sonhasse. E de pouco lhe valeria o
suicídio. Mesmo depois de morrer esses fantasmas não deixariam de o
consumir. E Dabondi termina, rainha em exercício, dando ordem aos
portugueses: Levem-no, não o quero ver mais.
Ngungunyane retira-se, em silêncio. A porta fecha-se. Só então Dabondi
desaba em pranto.
Os amnésicos defuntos
Véspera da terra
12 de março de 1896
António Sérgio de Sousa
Excelentíssimo capitão
António Sérgio de Sousa
Despedimo-nos desta curiosa maneira, trocando cartas como se
tivéssemos perdido o dom da fala. E é bom que assim seja. Esta é, meu
capitão, a sua derradeira viagem. O meu percurso, porém, não termina aqui.
Morrerei no mar e serei sepultado em incógnitas águas. Sem chão, dizem os
seus africanos, o morto não encontra nunca a morte. Pareço um preto a
falar, Deus me perdoe.
Para começo de conversa, tenho que reconhecer que o meu capitão é um
homem bom. Interrogo-me, porém, sobre o valor da bondade neste mundo.
De uma coisa estou certo: não tenho o menor desejo de ser bom. A minha
única intenção é ser justo. E a justiça pede homens que não tenham medo de
ser cruéis.
Tem razão, o meu capitão: vivo obcecado com o fim do mundo. Não é
apenas o século dezanove que termina, não é apenas a monarquia que
agoniza. É o inteiro universo que se esvai como areia entre os dedos. Está
escrito nos livros, meu capitão. Houve vezes que perguntei aos negros que
ideia possuíam sobre a criação do mundo. Todos me deram a mesma
resposta, espantados com o absurdo da minha pergunta: ora, o mundo não
começa nem acaba. A matéria do mundo é o próprio tempo, diziam, não há
palavras para distinguir uma coisa da outra. Foi isso que responderam os
pretos, nas suas humildes palavras. O senhor dirá, com o seu incurável
paternalismo, que essa resposta traduz uma profunda sabedoria. Eu direi que
é uma total falta de discernimento.
Por que lhe falo disto agora? A verdade é esta: não pode haver justiça se
não houver a ideia de um juízo final. Não tendo ideia de um julgamento
divino, os africanos estão-se marimbando para os outros. Um povo assim
desprovido de civismo deve ser guiado por gente civilizada. Não
assumirmos essa missão é que é falta de coragem e de bondade.
Se o mundo está em pleno apocalipse então prefiro ir ao fundo às costas
de demónios. Essa é a única vantagem de viajar pelos mares do Sul: estão
povoados de diabos. Essas criaturas malignas são hoje os meus únicos
conselheiros e protegem-me mais do que todos os anjos. Dizem que
trazemos os barcos cheios de «casacos de zinco», que é o nome polido que
damos aos caixões. Comigo sucede o oposto: há uma parte de mim que já
não volta a Portugal. Parte de mim fica entre pretos e, sobretudo, entre as
pretas.
Deus Nosso Senhor foi precavido: europeus e africanos não foram feitos
no mesmo molde. E é bom que assim seja. Porque não tenho tempo nem
paciência para destrinçar os bons dos maus. Queria que tivesse tratado os
presos como pessoas? Se fosse o inverso, se os presos fôssemos nós, diga-
me, meu capitão, dar-nos-iam os negros igual oportunidade? Conhece
algum branco que tenha ficado cativo na selva africana? E sabe por que não
conhece? Porque os mataram a todos.
Certa vez, em plena batalha, escutei a voz do comandante gritando: «Não
matem mulheres nem crianças!» Pensei para mim: este tipo é um ingénuo
estreante. Em terra africana não há mulheres, não há crianças. Aqui todos
são inimigos, todos nos querem matar. É por isso que digo: quanto mais
felizes eles se apresentam, mais eu os odeio. Não suporto quando riem, não
aguento quando falam alto, cantam ou dançam. Diga-me com verdade, meu
capitão: que há de tão importante nesta vida para ser tão festejado?
Não vale a pena perdemos mais tempo. Sou um homem de ação e o
assunto para mim é bem simples: o senhor foi envenenado por essa Imani. É
assim que elas fazem: inoculam-nos um veneno doce, de que só damos
conta quando já estamos mortos. Imagino as falsidades que essa rapariga
contou a meu respeito. Nunca lhe toquei. Vontade não me faltou. Essa cabra
— desculpe, mas o termo é este — não passa de uma sonsa. E deixe-me
dizer o seguinte: há rumores que se escutam entre a tripulação. São boatos,
dirá o senhor. E em sua defesa argumentará que, neste caso, não há fumo
nem fogo. Várias vezes, contudo, viram entrar Imani para o seu camarote.
Que lhe tivesse feito proveito. Porque, confesso, essa rapariga não faz o
meu género. Não quero cá pretas a falar português tão bem como eu e a
olharem-me com altivez nos olhos. Quem me atrai são as outras, as pretas
verdadeiras, mais autênticas, mais selvagens. Essas, sim. Ainda as espreitei
quando faziam a higiene. E se a faziam: banhavam-se duas vezes por dia!
Mas nunca as vi nas poucas-vergonhices com os maridos. Explicou-me o
cozinheiro que o sexo lhes é interdito quando em viagem ou em guerra.
Quem se esqueceu dessa proibição foi a Dabondi e o Godido. Ainda os
apanhei, no depósito de carvão. Era ali que se deitavam e fornicavam no
meio das cinzas.
Regresso à fotografia que me enviou para lhe dizer o seguinte: essa
imagem não prova coisa alguma. As fotos são como nós, os sargentos:
dizem o que lhes mandam dizer. São as legendas que lhes dão sentido. E
não vejo aqui nenhuma inscrição. Não nego. Houve ali, sem dúvida, uma
barbaridade. Mas quem a praticou foram os belgas, que são mais
estrangeiros do que quaisquer outros europeus. Ou quem sabe não terão sido
os próprios pretos? Nunca ouviu falar das cenas de canibalismo, das práticas
feiticeiras, das vinganças tribais?
De todo o modo, nós, portugueses, não somos capazes de tão gratuita
crueldade. Não somos como os europeus do Norte que, de manhã, caçam
borboletas e, à noite, matam pretos. Nós, lusitanos, somos diferentes.
Mesmo quando punimos fazemo-lo como pais zelosos. Os castigados — por
mais severa que seja a punição — não deixam nunca de ser nossos filhos.
Odiamos com amor, e o senhor sabe bem disso. Ninguém mais do que nós
se misturou e criou tanto filho mulato. Veja o caso da Imani. O filho que ela
traz no ventre não é de um dos nossos? Vai ser, estou certo, um belo
rapazola. Pode ter a certeza, os outros europeus raramente fazem filhos
mestiços, e quando os fazem não os concebem com tanto aprumo.
Com o devido respeito, meu capitão, tenha cuidado com essa fotografia
que é uma lâmina de dois gumes. Porque testemunhei, com estes olhos que
a terra irá comer, gente branca a ser chacinada pela fúria dos pretos. Não
havia ali fotógrafo para registar aquele horror. O que lhe posso dizer é que a
verdade não é coisa que se fotografe. A verdade está nos olhos de quem vê.
Por tudo isso lhe peço: deite fora essa fotografia. Porque essa imagem, Deus
me perdoe, apenas fabrica desejos de vingança contra os brancos.
É fácil ser-se bom quando já se foi feliz. A vida foi para mim uma esposa
adúltera. Mais valia ser viúvo, meu caro capitão. Um viúvo fecha as
pálpebras e sonha. Um homem que foi traído pela vida perde para sempre o
dom de sonhar.
Devolvo-lhe a sua carta e a maldita fotografia. Não me dou ao trabalho de
as rasgar. Talvez o senhor as queira guardar. Serão um bom alimento para a
sua má consciência.
O sargento
Júlio Araújo
Capítulo 22
A luz de Lisboa
Dei-me ao mar
num perpétuo sonho de navio
e tive das ilhas
a redonda ilusão de um infinito.
Depois,
quebraram-se os remos
e rasgou-se o fundo de todos os navios.
O meu naufrágio
aconteceu sem nenhuma grandeza,
foi um simples vazar de maré.
E na areia da praia
para sempre se apagou a lembrança
de alguma vez ter havido mar.
(Versos do diário de bordo de
António Sérgio de Sousa)
Eis Lisboa, o último porto, o fim da viagem. No navio, os soldados, em
lágrimas, acenam com os bivaques aos que esperam no cais. Algo de
inesperado nos une na guerra, africanos e europeus: do outro lado do mar,
na terra distante em que nascemos, todos nos julgam mortos.
Passos vigorosos e rosto tenso, a rainha Dabondi atravessa o convés
abrindo alas entre os tripulantes. Da casa das máquinas trouxe uma pá que
arrasta ruidosamente atrás de si. Sente a areia a crescer dentro da boca,
cospe para poder respirar. Procura o capitão do barco, quer saber onde está
enterrado o filho, João Mangueze. A primeira coisa que fará depois do
desembarque é visitar essa sepultura. Se assim não proceder, a terra que
sobrou da cova crescerá dentro dela. Todas as mães que perderam os filhos
são sepultadas por dentro, diz Dabondi. E volta a cuspir areia.
O capitão explica que será difícil alguém saber daquela sepultura. A
cidade é muito grande, argumenta. Dabondi estranha: que grandeza tem
uma terra que não sabe onde foram semeados os seus mortos?
— Pior que ver um filho morrer — diz ela — é aprender a esquecê-lo
ainda vivo.
O capitão Sousa sacode a cabeça confuso. E pergunta-me, em surdina:
Mas o filho dela não morreu? E eu respondo: Depois de mortos, os filhos
tornam-se ainda mais vivos. A rainha tosse e o chão fica coberto de areia. O
português dá um passo atrás, receoso. Quando recupera a respiração,
Dabondi afirma: A mulher e a terra têm a mesma boca. E entrega a pá ao
português. Desenterre-me, capitão, pede a rainha. Desenterre-me, antes que
eu sufoque.
Um soldado segreda ao ouvido de António de Sousa: Prenda-lhe as mãos,
há em África mulheres que se suicidam comendo terra. O capitão está
sentado com a pá sobre os pés. Não sabe o que fazer. Ocorre-lhe apenas
escutar uma mãe lamentando-se.
— Todos os dias parimos o mesmo filho — diz Dabondi. Todos os dias o
cordão umbilical renasce para voltar a ser decepado. Durante a vida inteira a
mãe recomeça o parto, escuta o primeiro choro, sente o primeiro riso. Todo
o parto infinitamente se reparte.
Dabondi faz o que desde o princípio do tempo todas as mães fizeram:
recolhem as pegadas dos filhos que partiram. Assim o chão se torna mais
vivo. E a terra ganha a curvatura de um ventre.
Deve haver um sol dentro deste rio. Só assim se explica a luz de Lisboa. É
o que digo ao capitão enquanto contemplamos as colinas da cidade. António
de Sousa admite, sorrindo: a cidade deveria chamar-se «Luzboa».
É manhã do dia treze de março de mil oitocentos e noventa e seis. O
navio progride, lento e vaidoso, pelo estuário do Tejo. À nossa volta há
mais barcos que gaivotas. E são de todos os tamanhos e feitios: lanchas,
canoas, fragatas, botes a motor, à vela e a remos, todos carregados de gente
que acena num infinito alarido. Para os portugueses é uma festa. Para os
prisioneiros é um prenúncio de fim do mundo.
Mais perto do cais percebemos como a multidão se estende e ondula ao
jeito de um outro mar. Escutam-se os gritos:
— Já chegou! Já chegou o Gungunhana!
Os motores são desligados, ao longe a terra balança, informe e ébria.
Desço ao quarto para escapar das náuseas. Espreito os degraus para além do
ventre. Estou no sexto mês de gravidez.
Ainda não atracámos e começa a invasão dos jornalistas, que chegam
transportados em barcaças. Sobem a bordo com tal entusiasmo que ninguém
os impede de visitar o cubículo que, durante dois meses, serviu de prisão
aos meus conterrâneos. O sargento apressa-me a que siga os jornalistas.
Naquele momento, adverte-me Araújo, convém que eu apareça como sendo
uma das esposas. Na tradução terei que adotar um sotaque mais africano. A
gente da imprensa, diz o sargento, é perita em forjar histórias e fabricar
escândalos. E logo, dirigindo-se aos visitantes, deixa-se tomar pela vaidade.
Com modos circenses, anuncia à porta do quarto: Eis os pretos, caros
senhores!
Usando lenços sobre o rosto, os jornalistas espreitam o exíguo espaço.
Escuta-se a voz de Zixaxa comentando na sua língua: Ainda bem que
cheiramos mal. Assim não se aproximam de nós.
— É aquele o Gungunhana? — interrogam-se os jornalistas apontando
Zixaxa. Não entendem uma palavra do que foi dito, mas o simples facto de
aquele homem ter ousado falar sugere que seja distinto dos demais.
O sargento Araújo levanta o pano com que Ngungunyane se tinha
coberto. Não precisava de se esconder. O imperador deixara de ter rosto.
Restam-lhe uns olhos redondos de recém-nascido. Não entende a
voracidade dos repórteres. Só podem querer a sua alma. E a alma do rei
ficou do outro lado do oceano.
Ngungunyane chora e os repórteres estranham. Estavam à espera de uma
postura mais digna. E adiam os fotógrafos o tão ansiado retrato. O espaço
torna-se exíguo, há uma mulher negra que tosse nuvens de poeira e há um
rei debulhado em lágrimas. Urge sair dali. Araújo lidera eufórico o pelotão
dos escribas: Venham comigo, vamos levar esta gandulagem para a tolda.
Ngungunyane segue cambaleando à frente dos presos. Tinha obedecido
ao conselho do capitão: bebera tão rapidamente que o álcool lhe fez do
cérebro uma deslaçada nuvem. Os bêbados não se contentam com tristezas.
Querem tragédias. E ele está certo do seu desfecho: vai ser fuzilado como
aconteceu com os seus conselheiros em Chaimite. Chora, implora, esconde
o rosto com as mãos, oferece tudo o que já não tem para obter a sua
redenção: libras, gado, ouro, marfim, escravos, terras. E suplica para ser
recebido por D. Carlos. Quer provar que lhe estão a mentir, quer jurar
fidelidade ao seu homólogo lusitano.
Espera que eu lhe traduza as súplicas. Peço a Godido que me substitua
nessa incumbência. O filho do imperador não se faz rogado: o seu porte
emproado e o domínio da língua portuguesa tornam-no o centro das
atenções. Os filhos dos chefes são quase sempre insuportáveis: o que lhes
falta em maturidade sobra-lhes em arrogância. Mais tarde, quando constar
que este Godido sabe assinar o nome, distintas damas irão assediá-lo para
obter um autógrafo.
Xailes às riscas vermelhas e brancas são distribuídos pelas rainhas. São as
cores que elas usam para convocar as chuvas. Não fui prevista, não recebo
agasalho. Até àquele dia o inverno era, para mim, uma palavra dos livros.
Agora é uma flecha branca que me atravessa o corpo. Tenho medo que
trespasse o meu filho. O capitão Sousa coloca-me sobre os ombros um
manto preto. E diz: Fica-te bem, é teu, leva-o contigo.
*
Vivemos como toupeiras, num buraco escavado em terra alheia. A rainha
Dabondi reconhece a nossa triste condição mas não parece lamentar-se, Um
dia destes, diz ela, a água brotará das pedras e subirá pelas paredes. O nosso
desafio é claro, vaticina: sobreviverão aqueles que se converterem em
peixes. Foi o que sucedeu aos portugueses.
Faz hoje uma semana que nos encarceraram dentro das trevas. Escuto
passos. Um sentinela chega carregado de jornais. Atira-os pelas grades da
porta. É para leres alto para os outros, diz-me. Mostro as fotografias ao
imperador de Gaza. Ele sorri, satisfeito. Foi o rei de Portugal que mandou
que me publicassem, proclama. Abstenho-me de traduzir os títulos. Tratam
Ngungunyane como a «fera cruel», o «régulo sanguinário», «o brutal tirano,
aliado dos ingleses».
Os jornais são depois distribuídos entre os presos. Retalham-nos como se
fossem panos à medida do corpo. Usarão essas folhas para se aquecerem.
Os que nunca souberam ler dormem agora cobertos de letras.
No oitavo dia vieram limpar os quartos e caiar as paredes. Diz-se em
surdina que D. Carlos visitará Monsanto. Para Ngungunyane a notícia não
causa espanto: «Sempre acolhi bem os emissários da realeza lusitana. Vão
receber-me, é o que fazem os reis.»
No dia seguinte suspendem as limpezas e as pinturas. O rei D. Carlos
anulou a visita. A decisão é política, explicam. Trouxeram Ngungunyane
para que fosse o centro das atenções. Mas a presença do Leão de Gaza
acabou tornando-se incómoda. Esse constrangimento tem um nome: as
mulheres. Ngungunyane pode ser africano, pode ser inimigo de Portugal.
Mas não pode exibir tão impunemente o pecado da poligamia. A igreja
protesta, os jornais reclamam, a sociedade faz eco desse desconforto. Os
conselheiros avisam D. Carlos: visitar Ngungunyane seria legitimar aquela
imoralidade.
Desiludido, Ngungunyane manda o filho tapar a única janela que ilumina
o calabouço. Se não me recebem também não quero a luz que eles, por
caridade, me enviam, declara. Questiona em voz alta como se, para além
das paredes, alguém mais o escutasse: Convidaram-me junto com as minhas
sete mulheres. Alguma vez andei a contar as esposas que os acompanhavam
nas visitas a Moçambique?
*
Não é tanto o sol que me falta. Do que tenho mais saudade é da lua. Já
não a vejo brilhar. Talvez seja por isso que penso tanto em Germano. A sua
lembrança chega-me como o luar que deixei de contemplar. Dabondi pede-
me que me afaste das recordações. Diz-me que cante. E que o faça na minha
língua. Que língua?, pergunto-lhe. Em silêncio, ela se afasta.
Nos dias seguintes somos visitadas por damas da corte. Falam por gestos
e logo se percebe que têm um propósito: civilizar, dizem elas, as suas
congéneres africanas.
E a primeira lição centra-se no adequado uso dos talheres. Podem as
negras dirigir-lhes insultos numa língua impercetível. Mas não se aceita que
elas comam com as mãos. Usar os dedos para comer é, como a poligamia,
uma inaceitável obscenidade.
Depois das visitas as portuguesas passam pela igreja para se confessarem.
Estiveram num antro pecaminoso. Deus não aceita que um homem tenha
várias mulheres, explica-nos uma delas. Os homens aqui só têm uma
esposa?, pergunta Dabondi. A portuguesa sorri, e não responde.
Acabaram proibindo a visita das damas da corte. A partir de então é no
jogo de cartas que as rainhas passam a maior parte do tempo. Enquanto
jogam vão-se penteando umas às outras. Não estranham aquele infinito
ócio: nunca na vida estiveram grandemente ocupadas. Havia na corte de
Gaza quem fizesse o trabalho por elas. Ngó, Godido e Mulungo fazem
cestas e colares de missangas. Zixaxa estuda português num caderninho que
lhe deram no barco. Ngungunyane bebe, tosse e dorme. O velho Mulungo
vai passeando de um lado para o outro. Faz como todos os prisioneiros:
conta os passos para que a cela deixe de ter dimensão. Está feliz por não
entender uma palavra de português. Tal como os guerreiros zulus — que se
untam com a seiva do impundu — também ele se tornou invisível. Essa sua
desistência torna as paredes inexistentes. O velho conselheiro é o único que
não chegou nunca a estar preso.
No meu canto na cela vou mantendo uma única ocupação: a gravidez. A
barriga é o meu relógio de areia: vai enchendo com o vazar do tempo. Estou
agora de sete meses. E faço como Dabondi me aconselhou: vou cantando.
Mas canto sem palavras. Não escolhemos o idioma em que nascemos. O
que se canta a um filho é um ventre que perdura para além do parto.
Todas as noites durmo abraçada a Dabondi. O frio pede um corpo
acrescido. Nesse duplicado ventre se anicha agora o meu filho. Antes de
nascer já ele tinha várias mães. De noite, quando todos já dormem, retiro o
pano que tapa a janela. Incapaz de dormir, vou espreitando a noite como um
afogado que emerge à superfície da água. Não existe insónia, diz Dabondi.
Existe apenas um outro modo de dormir. Nesse distinto sono, escuto o rei
gemendo e tossindo convulsivamente. Não é uma doença, garante Dabondi.
Alguém quer sair do corpo dele. O imperador está mais grávido do que eu.
Um maléfico espírito abrigou-se nele e consome-lhe o peito e tritura-lhe os
joelhos.
Desde ontem que não se escuta o ruído infernal das cercanias. Proibiram o
arraial. Os comerciantes levantaram as barracas e foram vender caricaturas
do Leão de Gaza num outro lugar. Estão com medo de mim, ironiza
Ngungunyane. Já estava a fazer concorrência ao rei deles.
Cada um dos presos pode ter o seu passatempo. Há, porém, uma ocupação
que nos é comum: o sono. A velhice e a prisão ensinam a mesma lição:
dormir anula o tempo. Ao meu lado ressona ininterruptamente aquele que os
portugueses chamam de «Leão de Gaza». O título concede-lhe a nobreza de
um rei. Aos leões os europeus reservam um de três destinos: serem caçados,
enjaulados num zoo ou domesticados num circo. O rei de Gaza reúne estes
destinos numa só pessoa.
Os dias passam sem história até que, numa tarde cinzenta, recebemos a
visita do médico do forte. Alertaram-no para as dores no tórax e para o
estado febril de Ngungunyane. Enquanto o paciente é auscultado, a rainha
Dabondi anuncia o seu diagnóstico: há um pássaro dentro do peito do
imperador. Escuta-se a ave piar durante a noite. É uma xikhova, uma coruja,
diz Dabondi. É preciso espantá-la, defende a rainha. O médico do forte
abana a cabeça. É uma doença, uma pleurisia, declara com superioridade.
No dia seguinte levam Ngungunyane estendido numa maca. Godido vai
com o pai, para as traduções. O choro lancinante das mulheres confunde-se
com as sirenes da viatura que transporta o rei para o hospital. As rainhas
entram de luto. Não sabem despedir-se do esposo em terra alheia. Pedem
uma lâmina e rapam o cabelo. Deixarão crescer o cabelo apenas quando o
marido regressar. Dabondi já não me abraça durante a noite. Não me pode
tocar enquanto o rei estiver ausente. Estou impura, justifica ela. Trago um
mulato dentro de mim.
Um corpo rasgado
Querida Imani
Esta não é uma carta fácil. Começo, assim, sem rodeios: não vou para
Lisboa. Não haverá barco, não haverá viagem. Fico em Lourenço Marques.
Haveremos de nos reencontrar mais tarde, aqui em Moçambique ou quem
sabe por aí, em Portugal.
Não te quero magoar, não te quero perder. Todo o amor que senti — e
ainda sinto por ti — é absolutamente verdadeiro. Não é da minha lealdade
que podes duvidar. As razões desta separação são outras. Posso ser teu
marido. Mas não poderei ser pai dessa criança. Estive preso numa cela, em
Portugal. Estive preso em Moçambique sem parede, sem porta, sem grades.
Não quero ficar preso a uma rotina doméstica. Foi isso que aprendi com os
meus colegas casados. A vida em casal é a mais perpétua das prisões.
Talvez eu esteja doente, talvez me tivesse faltado uma família. O meu velho
professava uma espécie particular de ateísmo: era descrente da felicidade. E
dizia das pessoas da aldeia: «Quanto mais estúpidos, mais felizes se tornam.
Quanto mais burros, mais facilmente adormecem.»
Há um outro motivo para esta decisão: não posso voltar para Portugal
enquanto não for derrubada a monarquia. Seria imediatamente encafuado
num calabouço. Ficarias na mesma sem marido. E ficaria o nosso filho sem
conhecer o pai.
Não sintas pena de mim. Estou bem por aqui, Imani. Melhor do que
alguma vez estive na terra onde nasci. Chorou a minha mãe quando parti
para a guerra. Chorou como se eu saísse de um lugar de paz. Era um
engano. Encontrei mais sossego nas batalhas de África que alguma vez
encontrei na minha terra.
Desculpa a brevidade destas linhas. Mas esta é a mais crua das verdades:
a guerra despe os homens. A proximidade da morte expõe a alma humana
sem vestes, sem retoque, sem disfarce. E acredita, Imani, a alma dos
homens não é coisa que se queira ver. É por isso que o melhor, por agora, é
que me mantenha distante. O amor que tivemos, e tivemo-lo inteiro,
sobreviverá. Não há palavra para dizer o que o amor foi. E não há silêncio
para esquecer o que o amor nos deixou.
Não sabes quanto me custam estas derradeiras palavras.
PS. Talvez não voltemos a falar. Tenho que ter coragem para dizer-te
tudo. Estamos perante governos e exércitos poderosos que matam, prendem
e dividem as pessoas. Todavia, há algo mais poderoso que qualquer governo
ou exército e é a viciada mentalidade que nos cerca. Contra a violência
deste insidioso cerco pouco podemos fazer. Não há ilha nem exílio que nos
salve desse reino da estupidez.
Fui sincero em tudo o que antes escrevi. É verdade que não me agrada a
ideia de sermos um casal com a sua vidinha rotineira. É verdade que pouco
me entusiasma ter filhos. A nossa relação não foi, contudo, destruída por
nenhuma das razões que antes invoquei. Foi destruída muito antes de nos
conhecermos, muito antes de termos nascido. O mesmo enredo que
propiciou o nosso encontro, tornou impossível o nosso amor. Estaremos
mais próximos assim separados, do que estaríamos vivendo juntos. Tu
serias culpada por seres negra. E eu seria odiado por ser o marido da negra.
Resistiríamos, no início. No final, porém, acabaríamos por ceder ante o
invisível exército do preconceito. O único modo de vencermos é recusar a
batalha. O nosso amor viverá como estas cartas: só os teus olhos
despertarão as palavras que deitámos a dormir.
Capítulo 25
Horas depois Dabondi visita-me. Estou grávida, diz ela, posso pegar no
teu filho, não receies. Uma mulher com os sangues — essas que dizemos
que saltam a lua — está interdita de tocar no recém-nascido. Não é o seu
caso.
A rainha dança com o bebé ao colo. Que nome lhe vais dar?, pergunta.
Chama-se Sanga, respondo. Quem escolheu o nome foi o avô Sangatela. A
rainha encolhe os ombros. A decisão devia pertencer ao pai. Germano que
se queixe mais tarde.
Peço contas a Dabondi: ela tinha ameaçado que, depois do parto, eu
ficaria vazia. Foi esse o termo que usou: vazia. Disse que os deuses me iam
apagar por dentro.
— Que vazio é esse que nunca me senti tão cheia? — pergunto.
— Falamos disso noutra altura.
— Diga-me agora, Dabondi. Que maldição era essa?
— Agora que o teu filho nasceu — responde ela — deixarás de saber
falar a língua dos brancos.
Sorrio, descrente. Não é possível. Aquele língua fazia parte do meu corpo.
— Duvidas? — indaga a rainha. — Pois experimenta falar em português.
Sorrio, sacudindo a cabeça. E ensaio pronunciar umas palavras. E o que
escuto é diverso do que digo. Repito a fala e mantem-se a dissonância:
penso em português mas as palavras são proferidas em txitxope. Afinal, a
maldição é verdadeira: a partir de hoje deixei de saber português. A rainha
estava certa. As minhas raízes estão-me devorando. Peço, imploro. Ela que
me devolva a voz da minha alma. Esse sempre fora o teu engano, alega a
rainha.
— A tua alma tem outras vozes — declara a rainha. — A partir de agora,
não mais servirás os portugueses.
Não me castigava, dizia ela, pousando a criança no meu colo. Pelo
contrário, estava apenas a devolver uma parte do meu ser.
Uma semana depois Dona Laura regressa ao forte. Vem buscar o menino.
Não deixo que se aproxime. Com a criança nos braços, vou escapando pelo
terreiro. Os guardas perseguem-me. Lembro de todas as mães que, durante
séculos, correram para salvar os filhos. A força e o desespero dessas
mulheres habitam agora o meu corpo. E vou voando sobre o pátio até ficar
encurralada entre os tanques de lavar a roupa. Dona Laura grita para que
tenha cuidado, o chão está molhado, não vá eu tombar e magoar o neto.
De repente, das traseiras da lavandaria surgem as dez rainhas. Todas elas
empunham facas. Fazem um cordão à minha volta. E ameaçam os soldados.
Esse menino é filho de todas nós, anuncia Mazimussi. As mesmas facas que
lhes foram entregues para se civilizarem, brilham agora no seu gesto
rebelde. Eram talheres, agora são armas. De cada vez que lavaram a louça,
uma peça desaparecia. Tivessem-nas deixado comer com as mãos e não
teriam agora que as enfrentar.
Pela janela do quarto o embriagado rei de Gaza espreita e sorri. Em
tempos foi assaltado pela ideia de um exército africano composto só por
mulheres. Não era um sonho. Era um pesadelo. Agora ali estavam as
mulheres enfrentando os militares brancos. Não são as pequenas facas que
os soldados mais temem. O que os atemoriza é o simples facto de serem
confrontados. Aprenderam a enfrentar um exército. Mas não sabem como
vencer uma dezena de mulheres.
A batalha, contudo, estava decidida mesmo antes de começar. As
mulheres são dominadas e a minha criança é-me arrancada dos braços.
Dona Laura embrulha-a numa manta e afasta-se a passo acelerado.
Desvanece na distância o choro do meu bebé. Até que escuto apenas a água
tombando sobre o tanque. Daqui para a frente será sempre assim: um rumor
de água será a única voz do meu pequeno filho.
Capítulo 26
O bebedor de horizontes
Esta carta é uma surpresa. Sou eu, o Nwamatibjane Zixaxa, que te escreve
dos Açores. Como vês, foi muito bom ter aprendido português. Na viagem
aprendi a falar. Agora, na ilha, ensinam-me a escrever. Nesta primeira carta
ainda sou ajudado por um soldado que se tornou meu companheiro. Chamo-
lhe Munganu. E ele risse, desconhecendo que o chamo exatamente de
«amigo», na minha língua. Passo mais tempo na companhia dele do que
com qualquer um dos que vieram de Moçambique. Os brancos estranham
essa minha escolha. Devia ficar entre a «minha gente». Para eles somos
todos pretos, sem distinção. Não sabem que sou um mfumo. E os outros três
presos são vanguni, são da realeza dos zulus. Não entendem por que confio
mais neste soldado branco do que em qualquer dos meus companheiros de
cela. A próxima carta, combinámos eu e Munganu, serei eu sozinho a
escrevê-la.
Viajámos para os Açores num navio chamado Zambeze. Já o grande barco
que nos trouxe de Moçambique se chamava África. Ngungunyane acha que
estes nomes foram atribuídos em sua homenagem. Está doente o Leão de
Gaza. Não lhe chegava a velha embriaguez. Busca agora na loucura o
derradeiro refúgio. Durante toda a viagem dormiu abraçado a uma garrafa
de vinho. De manhã cedo lançava as garrafas vazias contra as grandes aves
que voavam sobre navio.
Na ilha Terceira fomos recebidos de maneira especial: não houve insultos
nem ameaças como aconteceu em Lisboa. Disseram-nos que éramos
hóspedes, não prisioneiros. Deram-nos uma casa dentro do forte. Somos
autorizados a circular no grande recinto da fortaleza. Num dos edifícios
caiados a branco gravaram a ferro uma frase que, para nós, os exilados, só
nos pode fazer rir. Está escrito assim: «Antes morrer livres que em paz
sujeitos.» Aquelas palavras recordam-me o pastor Machava ao desembarcar
em Cabo Verde. António Sérgio de Sousa despediu-se dele, com visível
culpa. E justificou-se: Há coisas, disse ele, que não faríamos se não fosse a
guerra. E o missionário respondeu: Ninguém mais quer a paz do que os
meus religiosos, que aqui ficam presos. O que se passa, disse o pastor, é
que, para nós, viver é já uma guerra. E o comandante Sousa defendeu-se,
argumentando que tudo o que fazia era com o propósito de acabar com a
guerra. As últimas palavras de Roberto Machava foram pronunciadas na sua
própria língua: Quer a paz, meu patrão? Pois nós queremos isso e muito
mais. Queremos uma outra vida.
Ouvi dizer que o Machava foi reenviado para Moçambique. Os ingleses
pressionaram tanto as autoridades portuguesas que estas cederam e
deixaram-no regressar. Mas os outros crentes, seus seguidores, ficaram em
Cabo Verde. Ainda esperaram que Machava viesse buscá-los. Ou que Deus
fizesse justiça. Mandaram-nos trabalhar nas salinas. A maior parte deles
morreu, segundo me disseram. Assim que era ensacado, o sal convertia-se
numa pedra dura. Era um problema da qualidade do sal. Mas os patrões
culparam os escravos de Moçambique. E castigaram-nos, obrigando-os a
dormir amarrados aos sacos. Os homens foram mirrando, perdendo carne e
substância. No dia em que choraram eles se dissolveram. Pode ser mentira.
Mas é isto que contam. Os ausentes servem para isso mesmo: para serem
convertidos em histórias. Essas histórias regressam a Moçambique. E assim
os ausentes reencontram o seu caminho de volta.
Imagino que queiras saber como passo o tempo cercado por tanto mar.
Pois eu te digo: se esta ilha é uma prisão então eu partilho com milhares de
açorianos esse castigo. Sou aqui tudo menos um prisioneiro. Por detrás da
fortaleza há uma mata extensa onde caçamos coelhos. As árvores aqui são
diferentes. Não sabemos que almas ali moram. Ngungunyane não se
descalça para entrar na floresta. Caminha sem pedir licença por entre as
árvores que desconhece. Os loucos estão dispensados de temer os deuses.
Para matar coelhos, o Ngungunyane usa um pau que trouxe de
Moçambique. Lança essa estaca e nunca falha. Ngungunyane diz que essa
madeira foi tratada por Dabondi. Um dia, diz ele, lançará esse pau de
encontro ao oceano. Em vez de coelhos matará baleias. Beneficiará, então,
do respeito devido aos caçadores do mar.
De noite o rei circula pelo pátio e nós escutamo-lo a gritar pelo nome da
única mulher que amou: Vuiaze! Godido sai a resgatar o pai. Abraça-o e
entrega-lhe uma garrafa de vinho doce. O rei guarda as rolhas de cortiça.
Tem centenas dessas rolhas, que foi juntando para construir um barco.
Nesse barco, diz ele, regressará um dia a Moçambique.
Confesso, Imani, que sinto pena de Ngungunyane. O desgraçado já foi
punido. Foi castigado da única maneira possível: ele é o seu próprio
carrasco. Agora nem precisa beber: o horizonte enche-lhe os olhos, a
solidão inunda-lhe a alma.
Já a mim não me dói estar cercado pelo mar. Na verdade, não é a primeira
vez que estou numa ilha. Quando tinha vinte anos os portugueses enviaram-
me de castigo para a Ilha de Moçambique. Perdoaram-me, depois. E
deixaram-me voltar para Lourenço Marques. Foi um erro. Se alguém devem
odiar é a mim. Fui eu — e eu sozinho — que ataquei Lourenço Marques.
Por pouco não venci, por pouco não lancei os portugueses às águas da baía.
São curiosos os encontros e os desencontros deste mundo. O militar que
redige esta carta trouxe ontem um grupo de outros soldados brancos.
Sentaram-se à minha volta, muito atentos, e perguntaram como era a minha
terra. Querem fugir da ilha, não aguentam a pobreza em que vivem. Muitos
da idade deles foram para o Brasil. Mas estes pensam que África possa ser
melhor destino, agora que deixou de haver guerra. Queriam saber como era
a vida lá na nossa terra. Respondi-lhes o seguinte: Se me derem autorização
conduzo-vos para Moçambique e, se não mudarem de raça no caminho,
acabarão todos ricos. E riram-se, rimo-nos todos. Rir junto é um abraço.
E é assim, minha filha. O Ngungunyane vai tecendo cestos. Eu vou
tecendo pequenas alegrias. Ser feliz é o melhor modo de me vingar de
Ngungunyane. O rei de Gaza entregou-me aos portugueses? Pois agora é o
que eu sou: um português, um português de pele escura. Um português feliz
que olha para quem o traiu e o vê infeliz e bêbado. Aos fins de semana
levam-me às casas das mulheres. Durmo com elas, esqueço-me das minhas
esposas que ficaram longe. Eu e Godido divertimo-nos nestes programas
noturnos. Mulungo está velho, nunca vai. Ngungunyane vai às vezes,
quando está sóbrio. Mas fica apenas o tempo para um primeiro copo.
Depois é vencido pelo medo que sente das mulheres. E volta para casa
sabendo que, mais que destronado, ele foi despromovido da sua virilidade.
O nosso Ngungunyane odeia o mar, as mulheres e as andorinhas por essa
mesma razão. Ele receia o que não pode governar.
Não quero terminar esta carta sem te falar daquilo que sei que te
atormenta. Os três prisioneiros que foram fuzilados na viagem. Pois agora te
quero dizer: não te tortures, Imani. Não és culpada. Fui eu quem, no barco,
denunciou os planos de Machava. Fui eu que impedi que o meu grande rival
fosse assassinado. Fiz isso com medo da reação que a morte do Leão de
Gaza iria provocar. Os portugueses iriam vingar-se em mim. Seria também
eu executado e deitado ao mar.
Despeço-me de ti, pedindo a este amigo que me empreste a caneta que
usou para redigir esta carta. Porque quero escrever, agora por meu próprio
punho: ita vunana musuko, nkata Imane! Vemo-nos amanhã, querida Imani.
O derradeiro idioma
Não sabia que havia tantas Áfricas. Foi preciso uma ilha pequena para
aprender o tamanho das terras africanas. Em São Tomé cruzam-se gentes,
línguas e crenças de todo o continente. E é de tal modo que nos guardamos
quietos e tímidos sempre que cruzamos com outro negro. Somos da mesma
cor de pele mas não somos da mesma raça. É por isso que hesitamos antes
de nos lançar em calorosas saudações. E, no entanto, há sempre um gesto
esboçado, um riso contido, um silêncio escondido que partilhamos em cada
encontro. Na suspensa intenção de um abraço nos vamos adiando irmãos.
Na primeira semana somos albergadas nas dependências de uma
plantação que aqui chamam de «roça». Dormimos num armazém de café.
Ali nos ocupamos com o que já antes fazíamos: absolutamente nada. Desta
vez, porém, não há grades nem soldados. Um único guarda — à civil e
desarmado — vigia à porta do armazém. Quando chove — e chove
constantemente — convidamos esse vigilante para se abrigar no nosso teto.
Não sei o que seria de mim sem a companhia das rainhas. A presença
destas mulheres é mais uma prova da profecia de Dabondi: as raízes da
minha alma devolvem-me agora todo o meu ser. Não se trata apenas de
regressar ao idioma da minha aldeia. Estas mulheres trazem de volta a
minha terra e a minha gente. E trazem-me de volta a mim.
Este convívio tão familiar tinha, porém, os dias contados. Na segunda
semana somos separadas. Muzamussi, a matriarca, é conduzida para um
estaleiro no sul da Ilha. É a mais corpulenta, obrigam-na a carregar pedras
para as obras. Oito das restantes rainhas são levadas a trabalhar no hospital.
Ali prestarão serviços de limpeza. Ficarão alojadas nos anexos da unidade
hospitalar. Dabondi e eu somos as únicas que permanecemos no armazém
de café. A razão não é exatamente a melhor: acham-nos as mais atraentes,
somos postas a servir num bordel para o exército. Não se apercebem de que
Dabondi está grávida. E ela prefere nada dizer. Tem medo que, ao ser tida
como imprestável, seja deitada aos bichos. Cumpre-se, enfim, o augúrio de
Bianca Vanzini: sou finalmente uma mulher da vida, vendendo-me de noite
como uma coisa de carne.
Todas as noites eu e a rainha percorremos um caminho de areia ladeado
por coqueiros. Esse atalho leva-nos ao bar onde os soldados nos esperam.
De madrugada regressamos exaustas e embriagadas ao armazém da roça.
Adormecemos ao som das carroças e dos carregadores empilhando os sacos.
São negros, jovens, cirandam de tronco nu. Transportam a carga como
fazemos nós as mulheres: à cabeça. Os corpos libertam um aroma doce, o
mesmo que emana dos grãos de café. Esse aroma entorpece os sentidos.
Estranho sofrer aquele que vicia como uma bebida: a própria carga impede
que sintam o cansaço.
Certa manhã, a rainha acorda-me. Escorre-lhe sangue pelo rosto, foi
espancada por um cliente a quem recusou servir. Vem comigo, diz ela.
Vamos à casa do administrador. Dabondi sabe coisas que eu não sei: o
administrador português chama-se Almada Negreiros, a mulher dele é
mulata, natural da terra, e está gravemente doente. Levanto-me com custosa
obediência: E o que vamos lá fazer? Não espera resposta, apressando-me
porta fora. No caminho, passo estugado, respiração ofegante, Dabondi
explica-se: vai pedir emprego na casa dos Negreiros. Fico a tomar conta
dos filhos do casal, diz ela.
Vamos subindo encostas, cruzamos riachos e cascatas e atravessamos
extensas plantações. Os cafezeiros estão em flor, rendas brancas tocam os
nossos braços. Não gosto desta paisagem, resmunga ela. Nunca vi o mato
tão penteado. Todo o caminho a rainha vai tateando o ventre. Um fio de
sangue escorre-lhe pelas pernas. E pragueja: Se esse homem magoou o meu
filho, eu mato-o!
A casa do administrador Negreiros fica assente em pilares e em redor há
grutas por onde escorrem fios de água que nascem dos céus. Vais conhecer
Dona Elvira, a mulher desse branco, estou certa de que nunca viste olhos
tão grandes, adverte Dabondi.
— Ela está muito grávida — acrescenta a rainha —, deve estar quase a
parir, se demorar mais uns dias saltam os olhos das órbitas. Pede-me que
lhe sirva de tradutora. A princípio resisto: A senhora roubou-me o
português, agora, mesmo que queira, já esqueci. Lacónica, Dabondi afirma:
Vais falar!
Após longa espera, surpreendemos o administrador e a esposa saindo para
o hospital. Dabondi apresenta-se. Fala da sua origem, da corte de Gaza. O
funcionário observa-nos, desconfiado. Rainhas?, pergunta com sarcasmo. E
apressa a esposa que traz um menino pela mão: Vamos, Elvira? Não temos
tempo para isto.
Com firmeza, Dabondi interpõe-se entre o casal. Enfrenta, em desafio, o
português: Eu conheço-o, senhor administrador. Quer que diga como nos
encontramos? Sem que eu traduza, António Almada Negreiros parece
perceber. Em silêncio, encosta-se a uma parede. A rainha aproxima-se de
Dona Elvira, leva as mãos à barriga e proclama:
— Por favor, minha senhora. Olhe para mim, também estou grávida.
Como me podem obrigar a deitar com os soldados?
Dona Elvira fixa os olhos na negra que ousa barrar-lhe o caminho. Não
parece contrariada. Pelo contrário, tem um ar fascinado. Toca nas pulseiras
que cobrem o braço da rainha.
— És de Angola? — pergunta. — Reconheço os teus traços, vens de
Benguela...
A rainha não entende mas responde afirmativamente. O administrador
reage, nervoso. Tem pressa e mais apressado se sente por estar a ser
incomodado por aquelas duas estranhas.
— Por favor, minha senhora, fale com o seu marido! — insiste Dabondi.
De repente, a rainha deixa de pedir. Está descalça, mas fala do trono da
sua dignidade. A senhora tem sangue negro, vai ter que me ajudar, declara.
A família do administrador está parada, suspensa das palavras que
empolgadamente vou traduzindo. A esta minha amiga — e Dabondi aponta
para mim — tiraram-lhe o filho. E a mim... — detém-se, engole em seco e
só depois retoma o discurso — ... a mim acabaram de maltratar o meu
filho.
— E onde está esse menino? — pergunta a esposa do administrador.
— Está aqui, dentro de mim.
O administrador puxa pelo braço da relutante esposa. Deixe-me!, reage
ela com firmeza. O marido, mais delicadamente, insiste: Vamos, Elvira.
Elas que venham depois.
Não houve depois. No dia seguinte Dabondi perdeu o filho no hospital.
Num outro quarto, da mesma casa de saúde, morreu no parto a esposa do
administrador Negreiros. Assim que soube da notícia, Dabondi saiu do seu
quarto e, com passo decidido, atravessou as linhas que, naquele hospital,
separavam as raças. Uma enfermeira perseguiu-a todo o caminho,
advertindo-a das consequências daquela insubordinação. No quarto da
falecida Elvira, a rainha irrompeu por entre os consternados visitantes, foi
ao berço e pegou ao colo o recém-nascido. Embalou-o e conduziu-o até ao
pequeno irmão. O menino fixou nela os desorbitados olhos que herdara da
Elvira. Dabondi falou em xizulu: O teu irmão nasceu enquanto o meu filho
morria. Duas sombras se tocaram, nos meus braços encontrarás a tua
mãe...
Não tinha sentido traduzir. Nem teria tempo para o fazer: as outras
rainhas, entretanto, já se haviam reunido no hospital. E conduzem Dabondi
de regresso a casa.
— Vais escrever a informar Ngungunyane — ordena Muzamussi no
caminho. Quando uma criança morre no ventre diz-se que «decidiu voltar».
E há culpas que pesam sobre a mãe. Devemos dizer a Ngungunyane que não
foi este o caso. Este menino foi morto. É imperioso informar o pai, mesmo
sabendo que a notícia levará tempo a chegar aos Açores.
— É Godido quem tem que ser avisado, reage Dabondi. E acrescenta: É
só ele quem tem que saber.
*
Começo esta carta pelo fim. E já vou assinando com o meu mais recente
nome: Roberto Frederico Zixaxa. Como vês, fui batizado. Com a minha
idade e a minha raça, isso quer dizer o seguinte: lavaram-me a alma. E fui,
posso dizer, lavado com águas nobres. Conforme me explicaram, Frederico
é nome de gente distinta. Quiseram assim os brancos mostrar que nos
respeitam como reis das terras de onde viemos. O batismo decorreu na
maior igreja da cidade. Trouxeram pessoas importantes, os indunas da ilha
Terceira e das outras ilhas. Saíram satisfeitos acreditando terem mudado a
nossa natureza. Mas eu imagino que, no fundo, eles sabem: os nomes são
tatuagens na alma. Não há morte que os apague.
A ti posso confessar: uso este novo nome como se fosse um par de
sapatos. Servem-me nos pés, mas não são parte do meu corpo. À nascença,
os nossos ancestrais escolhem o nome que teremos. Os patrões do mundo
decidem o nome que deixamos de ter. Tudo isto pode ser verdade no caso
de Ngungunyane. No meu caso, preservo o meu passado no nome que me
restou. Os filhos e netos que terei nesta ilha não negarão este nome africano:
Zixaxa. Sou feliz com esta minha pequena eternidade.
Não foi apenas a mim que mudaram o nome. Todos nós os quatro fomos
batizados na mesma cerimónia. Ngungunyane chama-se agora Reinaldo
Frederico Gungunhana. Na folha do registo, inventaram-lhe uma idade.
Ficou escrito que tem sessenta anos. O desgraçado não chegou aos
cinquenta. Um dia destes, ante os veementes protestos do próprio,
decretarão que está morto.
Na semana passada, o Nkosi de Portugal, o rei D. Carlos, visitou os
Açores. Para evitar que o ilustre visitante tivesse que encontrar o
Ngungunyane mandaram que fôssemos passear pelo campo. Dizem que D.
Carlos ainda fez questão de nos vir cumprimentar. Dissuadiram-no.
Ngungunyane não valia sequer como lembrança do que antes fora.
Por isso nos levaram para longe, a passear pela chamada Lagoa do Preto.
O lugar foi criado pelas lágrimas de um escravo. Esse africano apaixonou-se
por uma grande senhora. O marido descobriu o caso e mandou que o
matassem. O infeliz escapou de casa mas foi perseguido por cães e
soldados. Refugiou-se num pântano. E ali chorou. Chorou tanto que, quando
deu conta, em seu redor tinha nascido um lago. Foram essas águas que
fizeram parar os cães. Cercado pelos soldados, o escravo afogou-se na
lagoa.
Sentado na margem desse mesmo charco, o rei de Gaza comoveu-se ao
ouvir esta lenda. Mas logo adiantou que não podia ser da sua etnia esse
homem que tanto chorou por uma mulher. Na nossa raça, declarou em voz
alta, as mulheres é que choram de amor. E Vuaize, perguntei?
Fui malvado, reconheço. Não devia ter reavivado tão triste lembrança.
Porque o rei, depois de escutar o nome da sua amada, deambulou trôpego e
descalço como um fantasma. O pântano está cercado de grandes pedras a
que deram o nome de «mistérios negros». Os soldados, vigilantes, seguiram
o preso até que ele tropeçou numas ossadas. Não eram restos de bicho. Era
um esqueleto humano, parcialmente enterrado. Ngungunyane esgravatou e
apanhou um osso comprido. E viu que nele estava escrito um nome. E logo
maldisse o dia em que aprendera a ler. Porque viu que ali estava gravado o
seu próprio nome: Reinaldo Francisco Gungunhana. Raspou com as unhas,
queria apagar aquelas letras. Raspou com raiva até sentir sangue escorrendo
nos pulsos. Cortei-me, pensou. Os dedos, porém, estavam intactos. E, no
entanto, ele via o sangue tombar generosamente. Percebeu, então, que era o
osso que sangrava. Assustado, soltou a ossada na areia e ali a deixou
sangrando. Cada vez mais enfraquecido, ficou a olhar o chão avermelhando-
se. E tombou sobre os ossos o esqueleto que trazia escrito o seu próprio
nome.
Esse episódio deixou Ngungunyane transtornado. Regressou calado para a
fortaleza. Num certo momento segurou-me pelo braço e disse: Virão
buscar-me, Zixaxa. Os meus netos virão buscar-me.
Pode ser verdade, admito, pode ser que o venham buscar. Mas a mim já
me vieram buscar. E não vieram de longe. Quem chegou veio daqui mesmo.
Tenho uma namorada. É verdade, uma noiva branca, completamente
branca. Chama-se Maria Augusta, é filha de João de Sousa, um açoriano
natural da Ribeirinha. A mãe dela, a minha futura sogra, chama-se Francisca
Vila d’Amigo e nasceu em Espanha. O mundo é pequeno e grande, Imani.
Eis-me aqui, um africano numa ilha portuguesa, pronto para casar com uma
açoriana de origem espanhola.
Não poderei lobolar a minha noiva. Nesta ilha é como na terra dos zulus:
um boi vale mais do que uma pessoa estranha como eu. Que dote tenho para
lhe oferecer? Para meu consolo, consegui convites para um espetáculo de
circo em homenagem aos presos de África. Noutras palavras, em nossa
homenagem. A família da noiva — a sograria, como lhe chamamos — ficou
impressionada com a minha importância. Mais impressionada ficou quando
soube que fui promovido a guarda florestal. Tenho emprego, faço o meu
dinheiro, ganho o meu respeito. Sabes o que me puseram a guardar? Guardo
um monte inteiro, guardo um monte chamado Brasil. De vigiado passei a
vigilante. Tudo isto acontece e a tudo isto Ngungunyane assiste com a idade
a que acabou de ser promovido. Confesso, minha filha: já começo a ter
saudades do ódio que já senti ao Ngungunyane.
Numa destas madrugadas o rei de Gaza acordou aos berros: Não o levem,
não o levem! Como sempre foi o seu filho Godido que o socorreu. Só ele
está autorizado a acudir aos delírios do imperador. Cada vez mais,
Ngungunyane desconhece se está no meio de um sonho ou em plena
embriaguez. Desta vez confessou que tinha acabado de ver o grande touro
sagrado dos zulus, o isibaya. O bicho atravessou dois oceanos para vir ter
com ele. Emergiu das águas, atravessou a praia, subiu a duna pedregosa,
galgou as «bocas do lobo» que protegem as muralhas da fortaleza. Quando
se apresentou à frente da nossa cela o touro dobrou os grandes joelhos e
pôs-se a jeito de ser amarrado. Mas não chegou a deitar-se porque,
inesperadamente, surgiu um grupo de brancos gritando e agitando panos e
cordas. Queriam levar o touro sagrado para a festa da largada dos bois. Um
dia lhe explico o que são estas festas. Nunca vi um povo tão triste e tão
festivo.
Mais uma vez foi preciso ajudar o Ngungunyane a sair do sonho, mais
uma vez Godido conduziu o pai pelas ruelas que circundam o forte. As
autoridades deixaram que o rei se distraísse nessa passeata. Eu e Mulungo
seguimos atrás, deambulando entre os trilhos marginados por montes de
pedras. Para felicidade de Ngungunyane a ilha está cheia de bois. Por onde
passa o rei toca nos bichos, aprecia-lhes o porte e a grossura dos chifres.
Todos aqueles bois, garante ele, são propriedade sua. Naquela madrugada o
rei decidiu que devia ensinar os brancos a falar zulu. Apenas a sua língua
tem riqueza para traduzir o mundo dos bovinos. O gado é o ouro dos
vanguni. Não têm castelos como os que vimos em Lisboa. Mas têm uma
nação de bois, currais e pastores. E os deuses são chamados pelo sangue dos
animais.
No regresso ao forte, era já manhã, sentimos a terra tremer. Os açorianos
são feitos metade de lava, metade de mar. Por isso não temem os sismos.
Talvez desconheçam a verdadeira causa dos terramotos. A terra treme
quando o wamulambo, o dragão que vive nas montanhas, sai da sua gruta
para desovar no mar. Daquela vez o dragão caminhava zangado: o
terramoto foi forte e duradouro. As pedras rolaram pela estrada, pareciam
bichos enlouquecidos. Os bois saltaram dos quintais e tresmalharam-se
pelos campos. Os militares vieram-nos buscar — cada um de nós tinha
fugido para o seu lado — e levaram-nos de volta para o forte.
À porta cruzámo-nos com o general Almeida Pinheiro, o comandante da
fortaleza. Chamamos-lhe de xipôngo xa mahetche, por causa das barbas que
lhe descem até ao peito como um bode velho. O português acredita que
estamos em pânico e convida-nos para o seu gabinete. Serve-nos um chá e
abre um jornal para mostrar uma fotografia da visita de D. Carlos e Dona
Amélia. Ngungunyane observa a imagem com excessiva atenção. Depois
comenta: É bonita a rainha mas embeleza-se como um homem. As penas
que ela usa na cabeça são coisas de macho. A rainha portuguesa, diz ele,
está a imitar-nos a nós, os guerreiros vanguni. E comenta, a fechar: O
senhor é que devia usar essas penas, meu general!
O general reage primeiro com distância. Afinal, é da rainha de Portugal
que se fala. Mas logo solta uma risada, divertido. Afaga as longas barbas e
desafia os colegas a imaginarem-no coberto de plumas de avestruz.
Uma vez mais o rei de Gaza se debruça sobre a fotografia. O dedo sapudo
vai engordurando a imagem enquanto esclarece: Deixe-me dizer, senhor
general, que a vossa rainha está magrita. As minhas esposas estão
anafadas. Não são, diz ele, como as demais mulheres que só comem carne
nos dias de festa. Diga ao rei que não fica bem exibir uma esposa tão
magrita e tão emplumada.
E de novo todos se riem. De súbito, Ngungunyane torna-se sério, quase
solene, quando implora: Por favor, meu general: não me mande de volta!
Almeida Pinheiro contempla, surpreso, o rei e não sabe o que dizer. De
volta para onde, para Moçambique?, indaga, confuso. Não me mataram
vocês, matar-me-iam os meus irmãos, afirma Ngungunyane. E retira-se. São
tristes os olhos do general ao ver o rei negro a dissolver-se no escuro.
E estou a chegar ao fim. Confesso, minha filha: quem escreve esta carta é
o meu sogro, João de Sousa. Apenas as duas primeiras linhas são da minha
autoria. Tudo o resto é letra e arranjo dele. Este meu sogro quer saber quem
és, ou melhor, quer saber como és. Descrevi-te como a mais bela das
mulheres. Depois de Maria Augusta, é claro. A minha namorada açoriana
não tem quem se lhe compare. Expliquei ao meu sogro que, como nós, vives
numa ilha. E ele, com o ar misterioso que é tão seu, declarou: Todas as
pessoas vivem numa ilha.
Quando lhe pedi para lhe ditar esta carta, o meu sogro disse que o faria de
bom gosto mas teria que ser num lugar que ele escolhesse. A moça é
africana, não é?, perguntou. E lá me levou para a Praia da Vitória e ali
andou farejando entre os penedos até que escolheu uma enorme pedra e
disse: É aqui. Sentámo-nos os dois, lado a lado. E escrevemos esta longa
carta apoiados nessa pedra branca que contrasta com o paredão de rocha
escura que margina a praia.
Esta pedra tem uma história, disse ele. Quem a trouxe para a Terceira
tinha sido o seu avô, um velho marinheiro de longo curso. Numa viagem
junto à costa de África decidiu o capitão acostar numa praia. A intenção era
visitar um padrão que os descobridores portugueses ali haviam implantado
há séculos. Perguntaram aos indígenas pelo Cabo da Cruz. Ninguém nunca
ouvira tal nome. Perguntaram pela coluna de pedra com a cruz e as cinco
quinas gravadas. Ninguém vira tal pedra. Os marinheiros deram as devidas
explicações aos nativos. E os negros mostraram-lhes um enorme buraco. O
padrão tinha-se afundado, como se a praia tivesse fome de pedra.
Desenterraram-no os marinheiros e voltaram a colocá-lo de pé sobre a areia.
No dia seguinte o padrão de novo submergira no chão africano. Os negros
disseram aos portugueses: Levem essa pedra. É vossa, levem-na convosco.
Este nosso chão não aguenta o peso dessa pedra.
E é isto, minha filha. A pedra escutou a nossa história, escutamos nós a
história dela. Juntaram-se o avô do meu sogro, tu, eu, o tempo. Por favor,
Imani, não leias esta carta às minhas esposas. Não quero que saibam que
casei. Na correspondência que troco com elas contam-me novidades. A
maior parte delas é mentira. Não me importo. Não é para isso que servem as
cartas?
Capítulo 30
*
Mozi caminha à nossa frente, levando-nos por um corredor escuro com
cheiro a maresia. Sei o que passa pela cabeça do escritor. Deve estranhar:
com o mar tão longe, de onde vem aquele aroma? Só pode vir dos cabelos
de Mozi. Rumores de búzios cascateiam nos seus ombros. E toda ela é uma
onda que se soltou do mar. As ancas de Mozi mordem os olhos do
forasteiro. E ele baixa o rosto para se salvar.
Chegamos, por fim, ao meu quarto, o único lugar em que a idade se
esquece de mim. Custa-me a aceitar, mas a presença desta minha sobrinha
acaba sendo providencial. Por uma misteriosa razão, Mozi é a única pessoa
que escuto sem esforço. As palavras, ditas por ela, ganham estranha
sonoridade. Aliás, toda ela se parece comigo. Todos dizem: Mozi sou eu,
com outra idade. Essa comparação envaidece-me mas, ao mesmo tempo, me
enche de fúria. Vamos ficando velhos e o que menos queremos são
espelhos.
— Lindo nome, Mozi — afirma o meu neto. — Adivinho que seja um
diminutivo da palavra «Moçambique».
Mozi sorri. Exibe o riso como palmeira em oásis: quer ser vista e, ao
mesmo tempo, quer cegar quem nela pousar os olhos. Deambula pelo meu
quarto fazendo rodopiar a saia. Toda aquela exibição me cansa. Com
azedume dirijo-me ao meu neto:
— Vieste para ficar aqui?
— Ficar aqui? — pergunta ele.
— Se não vieste para viver connosco, podes ir embora.
A minha sobrinha-neta troca segredos com o escritor. Depois dirige-se a
mim, resumindo a conversa que tiveram. Este homem quer que a avó conte
a sua história. Junto ao meu ouvido, ela segreda: o escritor pensa que fui
mulher do imperador Ngungunyane. Sou a única sobrevivente das mais de
três centenas de esposas.
— Queres que conte a minha história? — pergunto.
— Posso gravar, Dona Imani?
Excitado, o meu neto vai mexendo em fios e botões. E começa a gravar
muito antes de eu ter vontade de falar. A fita do gravador vai girando
sonolenta. Já me pesam as pálpebras quando Mozi me sacode e me
encoraja: Conte, avó, conte que eu também quero ouvir!
*
Eis o que me sucedeu, meu neto: aos quinze anos tive um filho. Dias
depois roubaram-me esse menino e levaram-me para a ilha de São Tomé, no
meio do oceano Atlântico. Fiquei nessa ilha durante quinze anos. A seguir à
proclamação da República Portuguesa, em 1911, mandaram-me buscar a
mim e às rainhas que me acompanhavam. Disseram que nos iam recambiar
para Moçambique. Dez mulheres tinham chegado àquela ilha, voltavam
agora sete. A rainha Dabondi, a minha querida Dabondi, foi uma das que
ficou sepultada na ilha. Quem perde a vida numa ilha não sabe regressar da
morte. O seu espírito vagueia na neblina, sem saber se pertence à terra ou ao
mar.
O barco que nos foi buscar fez escala em Lisboa. Durante quinze anos
sonhei com aquele destino. Ou melhor: aquele foi o único destino dos meus
sonhos. Fiz as contas: cinco mil e quatrocentas noites, cinco mil e
quatrocentos sonhos. Todos iguais: eu resgatando o meu filho, ele
anichando-se nos meus braços como se regressasse, inteiro, ao meu corpo.
Nas poucas horas de escala, autorizaram que visitasse a casa da minha
sogra, Laura de Melo. Fui escoltada por um sargento da Marinha. A minha
intenção era resgatar o meu filho, o meu Sanga, e levá-lo comigo para
Moçambique. O coração pulsava-me quando um rapaz me abriu a porta da
família Melo. Contive-me, as mãos tão tensas que me magoava com os
meus próprios dedos. A mãe de Germano, Dona Laura, estava de cama e foi
o meu filho que me conduziu até ao seu quarto. Segui calada, olhando em
contraluz aquele que habitou a minha carne. Estendida num leito e de olhos
cerrados, a mãe de Germano declarou em desafio.
— Mostra a essa mulher quem é a tua única e verdadeira mãe.
O meu filho, calado, aproximou-se do leito da avó. Baixei o rosto, os
olhos marejados. Morri, pensei. Não me resta senão retirar-me. Como podia
caminhar, porém, se me faltava estar viva? Pigarreando, Dona Laura fez-me
sinal para que me aproximasse. Sempre deitada, estendeu a mão e afagou-
me o ombro. E depois murmurou: Ficaste fora quinze anos. Pensa neste
menino, minha querida. Pensa e responde: para além de mim, existe uma
outra mãe neste quarto?
Abriu os olhos e contemplou-me demoradamente. Sabia que nunca mais
nos veríamos. Não há culpa nesta história, disse ela. Foi a vida que
escolheu, acrescentou. Sacudi a cabeça a sugerir que não a queria escutar.
Permiti, contudo, que ela mantivesse a mão sobre o meu ombro.
— E que nome lhe deu, Dona Laura?
— O nome que já lhe tinhas dado — respondeu Laura. — É o nosso
Sanga.
— E Germano? — quis perguntar. Mas não tinha voz para tanto. E foi
como se Laura adivinhasse as minhas secretas interrogações. Porque
murmurou: O meu Germano vai chegar para a semana, vem muito doente.
Nem força tem para escrever, diz Laura. Nem por isso deixou de mandar
religiosamente a mesada para o filho dele... E corrige: ... para o vosso filho.
No regresso ao barco não era apenas eu quem chorava. Recatadadamente
o sargento ia trocando um lenço comigo. Seguimos pela Estrada das
Laranjeiras e, a certo ponto, o marinheiro suspendeu a marcha para dizer:
Foi aqui, foi aqui que ele se matou! E antes que o questionasse, clarificou:
Mouzinho de Albuquerque, foi aqui que ele morreu.
Passou os dedos pelas pedras da calçada como se sentisse o sangue.
Fizeram-lhe a cama, comentou o sargento. Puseram a correr que Mouzinho
foi muito desumano nas campanhas em África. Quem o tramou foi o meu
chefe, o capitão Andrea, que andou por lá também...
No cais o sargento despediu-se com um inesperado aperto de mão.
Aquele marinheiro experimentava, quem sabe, algo novo: o respeito pela
tristeza de uma mulher negra. Não sendo capaz de um consolo tentou uma
distração.
— E do Gungunhanha, sabes o que lhe aconteceu? — perguntou. — O
Gungunhanha, o rei dos pretos...
Após todos aqueles anos já havia desistido de corrigir o nome de
Ngungunyane. Desta vez, por respeito a quem perguntava, endireitei a
pronúncia do militar. Morreram todos, disse eu com secura. Morreu o rei de
Gaza, morreu o filho, morreu o tio. Sobreviveu o único que foi feliz: o
Zixaxa. A última notícia que recebi é que esse Zixaxa ia ter um filho. Um
filho mulato, como o meu Sanga.