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Ficha Técnica

Título original: As Areias do Imperador - Livro Três. O Bebedor de Horizontes


Autor: Mia Couto
Capa: Rui Garrido

Agradecimentos: Afonso Dambile, Feliciano Chimbutane e Filipe Branquinho

ISBN: 9789722128964

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AS AREIAS DO IMPERADOR
uma trilogia moçambicana

LIVRO TRÊS
O Bebedor de Horizontes
RESUMO DOS ANTERIORES VOLUMES

Nos finais do século XIX, Portugal enfrenta a resistência do Estado de


Gaza que domina todo o Sul de Moçambique. A coroa portuguesa, já a
braços com o Ultimato da Inglaterra, não pode adiar mais uma ofensiva
militar contra Ngungunyane, o imperador de Gaza. O desafio é claro: ou
Portugal prova que domina efetivamente os territórios africanos ou perde-os
a favor de outras potências coloniais.
Em dezembro de 1895 um pequeno grupo de soldados portugueses,
comandados pelo capitão Mouzinho de Albquerque, toma de assalto a
povoação real de Chaimite e prende Ngungunyane. Com o rei de Gaza são
igualmente detidos o filho, Godido; o tio e conselheiro Mulungo e o
cozinheiro Ngó. Os portugueses autorizam o imperador a fazer-se
acompanhar por sete das suas mais de trezentas esposas. Num outro local,
na margem do rio Limpopo, prendem igualmente o chefe dos mfumos, o
Nwamatibjane Zixaxa, que é enviado para o exílio juntamente com os
presos da corte de Gaza. Zixaxa é deportado na companhia de três das suas
esposas.
Com os presos segue Imani Nsambe, uma jovem negra que estudou numa
missão católica e serve como tradutora das autoridades portuguesas. Imani
está grávida de um sargento português, chamado Germano de Melo. É esta
tradutora que narra os trágicos acontecimentos do final do reinado de Gaza.
Neste último volume da trilogia, os prisioneiros embarcam no cais de
Zimakaze e a lancha parte em direção ao posto de Languene. Ali farão uma
breve paragem para depois rumarem para o estuário do Limpopo e ali darem
início à viagem marítima que conduzirá os africanos para um distante e
eterno exílio.
Eu? — bebo o horizonte...
(Cecília Meireles, in Mar Absoluto)

Em tempos de terror escolhemos


monstros para nos proteger.
(Excerto de uma carta de Álvaro Andrea)
Capítulo 1

A mulher que chamava os rios

O cego foi o único que se salvou do incêndio. Porque foi o


único que não viu o medo.
(Zixaxa)
— Pergunta a esse branco se quer que chame o rio.
São as palavras da rainha Dabondi. Não ouso traduzi-las para o capitão
Mouzinho de Albuquerque. Nem ele escutaria tão estranha interpelação,
ocupado que está em comandar os seus homens, que chapinham num baixio
do rio Limpopo. O barco em que seguíamos encalhou num banco de areia e
há horas que os soldados portugueses tentam libertar a lancha. Alguns, mais
afoitos, têm o corpo meio submerso e empurram os costados da
embarcação. Poucas vezes se viu aquele cenário: brancos esfalfando-se à
torreira do sol enquanto negros aguardam sentados numa confortável
sombra. Mouzinho ordena aos soldados que regressem ao convés: as águas
estão infestadas de crocodilos.
Não é o atraso que incomoda Mouzinho. Desde que saímos de Zimakaze
a viagem decorreu célere e sem paragem. O que o capitão teme são os
perigos do mato em redor, onde, sem que se veja vivalma, já se escutam
vozes e se movem sombras furtivas. Não tarda que suceda uma emboscada
para resgatar os prisioneiros que viajam no seu barco.
A rainha Dabondi é uma dessas prisioneiras. Mais do que o capitão, ela
está tensa com aquela paragem. É ela que ergue subitamente os braços a
mandar que todos se calem. Um arrepio percorre toda a tripulação: como
que nascida do chão, uma multidão de homens, mulheres e crianças surge
na margem. Mouzinho ordena aos seus soldados que preparem as armas.
Um silêncio frio se instala e o próprio rio se cala.
— Posso chamar as águas? — volta a perguntar Dabondi. Depois dirige-
se a mim: — Disseste a esse branco que falo a língua dos rios?
Uma palavra sua e o rio Limpopo, como um cachorro dócil, viria comer-
lhe à mão. Mouzinho murmura entredentes: Calem-me essa mulher! A
tensão é insuportável. De súbito a rainha Dabondi salta do barco e caminha
na direção da silenciosa multidão, que foi crescendo na margem.
Todos os olhos se centram na rainha que atravessa as águas rasas do rio.
Os pés de Dabondi não tocam água nem terra. Na verdade, a rainha não
caminha. Ela executa uma dança. O balançar das ancas faz soar as anilhas
de cobre que lhe rodeiam os tornozelos.
Chegada à margem, a rainha fala animadamente com as criaturas que a
rodeiam. Nada podemos escutar mas percebemos que aponta com
insistência para nós. De súbito aquela turba precipita-se enlouquecida sobre
o barco. Os portugueses, aterrorizados, ainda levam as armas aos ombros.
Mas já não há tempo. Centenas de homens e mulheres já venceram o vau do
rio e atiram-se de ombros, pernas e braços contra o casco da lancha. A
embarcação balança com violência, os tripulantes gritam, os cavalos
escouceiam.
Num ápice o barco volta a flutuar. E só quando se confirma que estão
unidos numa intenção pacífica é que todos, negros e brancos, gritam de
entusiasmo. Ajudam Dabondi a regressar ao convés. A rainha está ofegante
mas feliz. Pergunto-lhe por que ajudou os seus carcereiros.
— Alguém me espera no fim desta viagem — responde.

Há dois dias sucedera o impensável: em Chaimite, o capitão Mouzinho


capturou o imperador Ngungunyane e trouxe-o amarrado até ao cais de
Zimakaze. Junto com o real prisioneiro seguiam as sete esposas que ele
elegera para o acompanhar. Essa escolha foi o seu último ato de soberania.
Na comitiva seguia também eu, Imani Nsambe, que os portugueses
escolheram como tradutora. Finalmente, em Zimakaze, o chefe dos
mfumos, chamado Nwamatibjane Zixaxa, juntou-se aos presos. Com este
rebelde vieram três das suas esposas.
De Chaimite a Zimakaze o mesmo espanto se repetiu: os habitantes de
Gaza contemplaram, incrédulos, o imperador Ngungunyane1 sendo
arrastado em prantos. Os militares portugueses eram tão poucos que se
tornava ainda maior o desconcerto de quem assistia ao inusitado desfile.
Não era apenas um imperador vencido que os portugueses exibiam. Era
África inteira que ali desfilava, descalça, rendida e humilhada. Portugal
precisava daquela encenação para desencorajar novas revoltas entre os
africanos. Mas necessitava ainda mais de impressionar as potências
europeias que competiam na repartição do continente.

Orgulhoso mas apreensivo, o capitão Mouzinho de Albuquerque


contemplava a turba que se acumulava pelos caminhos. E acontecia sempre
o mesmo: aquela massa de gente desatava aos gritos, numa festa.
— Bayeté ! — bradavam em uníssono.
O capitão pediu-me que traduzisse aquele clamor. E sorriu, vaidoso,
quando lhe segredava: a multidão aclamava-o a ele, o capitão dos brancos.
E louvavam-no com um fervor que, segundo o próprio Mouzinho, não seria
igualado nem pelos seus mais fiéis compatriotas. Nunca imaginou o capitão
que mais africanos que portugueses o saudassem como libertador. Foi o que
vaidosamente me confessou. E acrescentou:
— Quem sabe os pretos me façam aqui uma estátua, mais depressa que
os meus compatriotas lá em Lisboa.

Desde que retomámos a viagem que a rainha Dabondi se conserva junto


de mim. Foi ela que, no caminho para Zimakaze, me limpou o sangue da
garça degolada por um soldado. Estás grávida — disse enquanto me lavava
—, nenhum sangue te pode tocar.
Agora a rainha contempla os céus e vê desarrumação nas nuvens. Sacode-
me o braço e avisa-me de que uma tempestade se avizinha. Dirigimo-nos
juntas ao comandante do barco, um oficial de uniforme azul-escuro. Chama-
se Álvaro Soares Andrea. Esse homem alto e forte fixa em mim uns olhos
indefinidos. É um navegador. Mas o seu olhar é o de um náufrago.
Não chegámos, porém, a abordar o capitão. Porque Godido, o filho de
Ngungunyane, se aproxima e ordena que a rainha regresse ao lugar que lhe
compete e que é junto do seu rei. Dabondi finge não escutar. Godido
persiste, mais firme:
— Volte para junto do seu marido, minha rainha!
— Rainha? — protesta Dabondi. — Que rainha sou eu que cozinho com
as panelas da minha sogra? — O dedo em riste avança sobre o peito de
Godido: — Não me voltes a tratar assim. Sou uma viúva. É isso que sou.
O príncipe Godido retorna para junto dos prisioneiros. Não sabe como
explicar o insucesso da sua missão.
— O que se passa consigo? — pergunto a Dabondi. — Por que
desobedece ao Nkossi?
— Não sou rainha. Sou uma nyamossoro. Escuto os mortos e falo com os
rios.
O barco reduz a velocidade. Estamos a chegar ao posto de Languene, o
último reduto militar português no estuário do Limpopo. Mouzinho de
Albuquerque saúda os marinheiros que nos esperam na margem. Assim que
termina a atracagem transmito a Mouzinho a preocupação de Dabondi: uma
tempestade se levanta para além do estuário do Limpopo. Não são ventos
feitos no céu, explico. É uma tempestade encomendada.
— Meu Deus, como esta gente é atrasada — comenta o militar, deitando
as mãos à cabeça. — E as pretas são piores do que eles.
Não percebe quanto me magoa. O português em que me expresso, sem
ruga nem rasura, faz com que Mouzinho deixe de ver a minha raça. Guardo-
me em silêncio. Calo-me na mesma língua do homem que me humilha.

Enfim, desembarcamos no pequeno posto militar de Languene. Será uma


breve pausa para embarcar armas e feridos. Os presos africanos são
conduzidos para uma sombra. Recebem uns biscoitos e um copo de vinho. E
ali ficam, entorpecidos pelo cansaço. Dabondi volta a destacar-se do grupo
e vem sentar-se a meu lado. Guardou no fundo do copo um resto de bebida.
Deixa tombar umas gotas sobre a areia quente. Aplaca a sede dos defuntos
desde que o mundo nasceu.
— Sabe como aprendi a falar com os rios? — pergunta.
Foi na adolescência, disse ela. Aconteceu antes de ser tomada como
esposa do rei. Todas as manhãs observava uma aranha a entrar e a sair de
uma cova no pátio da sua casa. Nas patas, o bicho carregava orvalho para o
fundo da terra. Trabalhava como um mineiro às avessas: tirava do céu para
acumular no subsolo. Aquela ocupação prolongara-se há tanto tempo que,
no fundo da toca, foi nascendo um extenso lago subterrâneo.
A rainha quis ajudar o bicho nas suas húmidas escavações. Numa
madrugada sem orvalho trouxe uma taça de água, que deixou à entrada da
toca. Mas a aranha recusou a gentileza, sorrindo: Isto que faço não é um
trabalho, é apenas uma conversa. E acrescentou: Reconheço o quanto
sofres, é preciso muita solidão para se reparar em criaturas tão pequenas
como eu. Em sinal de gratidão, o bicho ensinou-lhe o idioma da água.
— Agora, converso com os rios, pequenos e grandes — conclui Dabondi.
— A cada um chamo pelo nome que só eu conheço.
Somos interrompidos por Muzamussi, a mais velha das esposas. Sem
cerimónia, esta puxa Dabondi pelos pulsos e arrasta-a para junto dos presos.
Depois grita para anunciar que Ngungunyane requer a minha presença.
Apresento-me sem demoras.
Diante do soberano ajoelho-me e bato as palmas, como mandam os
preceitos. O rei pretende saber que conversas mantive com Dabondi. Não
tenho tempo para me explicar. Não te consigo escutar, disse o rei. Elevo o
tom de voz. Ele sacudiu a cabeça: O problema não é a minha voz. Não me
escuta por causa do meu calçado. Esses teus sapatos falam muito alto, diz
Ngungunyane. De agora em diante só te aproximas de mim se estiveres
descalça.
Eu que ficasse a saber: chão que o imperador pisou torna-se sagrado. Os
meus sapatos ofendem essa divina condição. As rainhas escutam-no e riem
alto. O riso delas faz com que os meus sapatos deixem de existir.

Não era apenas entre nós, africanos, que emergiam querelas. Não há dia
em que os chefes militares portugueses não troquem acusações. E todos,
europeus e africanos, procuram-me para se lamentar. Não sei por que
confiam em mim. Mais do que tradutora sou uma ponte. Talvez eu seja a
aranha que vivia no pátio de Dabondi. Nas minhas patas carrego palavras e
com elas faço uma teia que une diferentes raças.
Durante a caminhada, Mouzinho de Albuquerque já me havia abordado
de forma casual. Desta vez senta-se a meu lado e permanece imóvel, sem
tirar os olhos de Álvaro Andrea.
— Aquele tipo odeia-me — afirma Mouzinho. — Posso dizer-te, nenhum
preto me despreza assim tanto.
O modo lento como o capitão pousa o chapéu sobre os joelhos denuncia o
seu propósito de conversar.
— Sei quem és — começa por dizer. — E tu sabes o que queremos de ti.
Traduzir será apenas a parte visível do teu trabalho.
Faz uma pausa cofiando o bigode. O reinado de Gaza durou demasiado,
disse. E sabes porquê?, pergunta. E ele mesmo responde: Este Gungunhana
sabia tudo sobre nós e nós nada sabíamos dele.
Aqueles negros ali sentados, com os pulsos atados, não são apenas
simples prisioneiros. É o que diz Mouzinho. São donos de valiosos
segredos, e são essas confidências que entregarei ao exército português.
Esse é o verdadeiro motivo da minha presença naquela jornada. Pigarreio,
receosa:
— Entendi, meu capitão.
Mouzinho enrola um cigarro. Não o acende. Deixa-o pendendo preso nos
lábios. Olho-o de esguelha. É um homem bonito. Razões tinha Bianca para
sonhar.
— Agora, se me dá licença — peço num murmúrio —,volto para junto da
minha gente...
— Prefiro — diz Mouzinho — que te deixes ficar entre os brancos. É
entre eles que moram as mais graves traições.

1 Os nomes Ngungunyane ou Gungunhana, na forma aportuguesada, serão usados ao longo texto em


função da origem dos locutores, africanos ou portugueses, mas referindo sempre a pessoa do rei de
Gaza.
Capítulo 2

Um mal-amanhado bilhete

«... a atividade dos portugueses nas Terras da Coroa, no Sul


de Moçambique, resume-se a isto: Em outubro e novembro de
cada ano percorrem as povoações palhota a palhota, cobram o
imposto, fornecem sovas de cavalo-marinho num ou noutro
negro menos reverente, levam o produto da cobrança ao quartel
de Anguane, recebem a sua percentagem e vão de novo dormir
onze meses.»
(Extrato de Eduardo Noronha, in «A rebelião dos indígenas de
Lourenço Marques, 1894», citado por René Pélissier)
Chaimite, 28 de dezembro de 1895
Minha querida Imani

Não vejas nisto uma carta. É um simples bilhete rabiscado à pressa. Não
tarda que me conduzam para Inhambane. Quero, mais que tudo, dar-te uma
boa nova: estou livre! Sobre mim já não pesam suspeitas da autoria da
morte de Santiago Mata. Para te ilibar declarei-me culpado. Era mais
credível que fosse eu o autor do disparo.
O meu sacrifício não teve custos maiores pois logo surgiu uma outra
versão dos acontecimentos que falava em suicídio. Ainda pensei que fossem
os meus companheiros republicanos que me tentavam salvar. Mas não.
Quem defendeu a tese do suicídio foi o próprio Mouzinho de Albuquerque.
E quem iria duvidar da palavra do grande herói? Fico a dever esse favor ao
meu fiel inimigo.
Mouzinho, Mouzinho, Mouzinho! Quando deixará esse Mouzinho de me
ocupar tanto? Às vezes arrependo-me deste meu despeito: é tão fácil odiar o
sucesso dos outros! Mais vezes, porém, desconfio desta recente euforia de
Mouzinho. Como é que alguém tão fascinado pela morte se pode ocupar
tanto com a imortalidade?
O que importa, querida Imani, é que daqui a umas horas estarei no
Hospital Militar de Inhambane. Vou usar as enjeitadas mãos para ficar
isento dos serviços militares. Tenho esperança, melhor, a certeza, de que me
fazem voltar a Portugal. O meu anseio não é regressar. O que realmente
desejo é reencontrar-te. Se tudo correr bem ainda nos veremos em Lourenço
Marques.
Entrego este bilhete a Álvaro Andrea, o comandante da lancha militar em
que irás embarcar em Zimakaze. É um velho amigo que comunga dos ideais
republicanos. Pela mesma via te farei chegar, mais tarde, uma verdadeira
carta, uma carta decente no tamanho e indecente nas entrelinhas.

Teu
Germano
Capítulo 3

A lama e a neve

[…]
Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!
Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!
Que primeiro vendestes escravos de novas terras!
Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atónitas!
Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas,
De encostas explodindo em verde vegetação!
Homens que saqueastes tranquilas povoações africanas,
Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças,
Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes
Os prémios de Novidade de quem, de cabeça baixa
Arremete contra o mistério de novos mares!
[…]
(Fernando Pessoa, excerto da Ode Marítima)
Não se amaldiçoa o lugar onde se acaba de chegar. Assim me educaram.
Mouzinho não segue este princípio. Desde que chegámos não fez outra
coisa senão maldizer o posto de Languene.
— Vou mandar incendiar esta miséria! — resmunga. — Isto não é um
aquartelamento, é um esconderijo. Esta gente tem tanto medo de morrer
que faz tudo menos combater.
Vocifera contra o que chama de «cáfila de politiqueiros». E alerta para
uma conspiração de «intriguistas». Usa esses termos com a mesma raiva
com que Ngungunyane chama de «mulheres» aos seus inimigos.
— Imani... É assim que te chamas, não é? A minha dúvida pode parecer-
te estranha mas preciso de perguntar: sentes que pertences a um país, a
uma nação?
Fala sozinho. E responde por mim. Está certo de que me falta esse
sentimento de pertença. Apesar da minha aparência, continuo a ser uma
indígena, leal à família, fiel à raça. E lembra a maldição que recai sobre os
irmãos gémeos. Estando perante um desses irmãos, pensa-se reconhecer o
outro e, assim, acabamos por não conhecer nenhum deles. Era assim que ele
me via a mim e aos demais africanos: todos gémeos. Da próxima vez que
falássemos eu teria de recordar-lhe o meu nome.

A raiva de Mouzinho Albuquerque contra o posto de Languene tinha a


sua explicação. O capitão tinha estado naquele posto há duas semanas no
caminho para o assalto à corte de Ngungunyane. A intenção era obter
reforços entre os marinheiros que serviam a corveta Capello. Chegara ali no
dia de Natal e constatara, com uma mistura de pasmo e comiseração, que o
comandante da corveta, Álvaro Andrea, tinha convertido o aquartelamento
num lugar de celebração cristã. Chapas de zinco tinham sido usadas para
servir de tampos de mesa e troncos foram convertidos em assentos.
Cartucheiras vazias e fitas de metralhadoras enfeitavam uma árvore no
centro do recinto.
Aquela fantasia natalícia surgia patética aos olhos do capitão de cavalaria.
E revelava não uma particular devoção cristã mas uma perigosa fragilidade.
Se os chefes militares fossem pelo caminho da encenação, cedo os soldados
pediriam mentiras maiores. Para acertarem naquele fingimento de Natal
faltava-lhes o frio, a neve e os cheiros da sua terra. Em contrapartida,
sobravam os mosquitos, as febres e os odores fétidos do pântano. E
sobejavam-se a si mesmos como magros vultos com mais farda do que
corpo. Num certo momento, um desses vultos ajoelhou-se aos pés de
Mouzinho. Era um jovem praça, com um ar apalermado, que a custo
balbuciou:
— Meu capitão, este posto está tão bonito que até parece o adro da
minha igreja. E ali abaixo passa o rio Tejo. Peço que me autorize a banhar-
me nessas águas, que são as da minha meninice.
Mouzinho dedicou-lhe um olhar vazio. Quis saber a sua idade. Dezoito
anos, respondeu o moço, sacudindo a cabeça. Mas não estava seguro.
Pediria confirmação aos pais que, segundo ele, moravam numa aldeia
ribatejana bem próxima do posto de Languene. Posso chamá-los, se o
capitão assim o desejar. Foi o que disse o jovem soldado. Mouzinho reagiu
como se o rapaz não tivesse chegado a dizer nada. Convocou Álvaro
Andrea e pediu-lhe a espada. Usando as duas mãos espetou-a fundo na terra,
bem rente ao corpo do aturdido soldado. A lâmina afundou-se como se não
houvesse chão.
— Parece-te neve esta pestilenta lama? — inquiriu Mouzinho.
— É neve, sim, é neve preta. Era branca, mas voltou assim de África.
O soldado mergulhou as mãos no chão e os dedos foram engolidos pelo
lodo. Naquele instante pareceu a Mouzinho de Albuquerque que o jovem
militar executava o seu próprio enterro.
— Não se preocupe com a sua espada — disse Mouzinho para Álvaro
Andrea. — Mando-a limpar e o tenente Miranda a entregará no seu barco.
Em redor do acampamento apinhavam-se auxiliares negros com as suas
fogueiras, os seus cantos e as suas danças. Ainda ocorreu a Mouzinho
ordenar que se calassem. Não chegou a fazê-lo. A seus pés jaziam os feridos
em macas feitas de capulanas. Era estranho ver a vida esvair-se em tão
garridos panos. As canções ocultavam os gemidos e as preces dos
agonizantes soldados. As vozes dos negros cumpriam o que a enfeitada
árvore não havia conseguido: aliviavam-no desse absurdo que era festejar o
Natal no meio do inferno.
E Mouzinho pediu a Álvaro Andrea que se dirigisse aos seus homens e
lhes desse a bênção. Não havia senão duas garrafas de vinho quinado. Mas
foram suficientes para o improvisado brinde. Álvaro Andrea ergueu o copo
mas não soube o que dizer, mortificado pela infantil avidez dos olhos que
nele se fixavam.
Mouzinho mandou que os soldados se afastassem, tomou assento sobre
uma caixa de munições e dirigiu-se ao comandante Andrea:
— Estou sentado em cima deste cunhete de balas mas falta-me quem as
dispare. Escolha-me uns vinte homens, dos mais saudáveis e afoitos.
O comandante Andrea olhou os céus à procura das palavras que melhor o
servissem:
— Permita-me a ousadia mas considero essa sua operação....
Não chegou a terminar a frase. A reação de Mouzinho foi pronta e seca:
— Pedi-lhe soldados, não pedi conselhos...
A disputa cresceu e os soldados se espantaram com o descontrolado
desfile de imprecações e insultos. Perentório foi Álvaro Andrea:
— Se quiser morrer sozinho morra. Mas dos meus rapazes não leva
nenhum.
— Já entendi — ripostou Mouzinho —, você é dos que advogam a paz por
terem medo da guerra. Está aqui enclausurado porque esta é a sua maneira
de fugir. Eis a verdade: você só precisa destes soldados para se proteger da
sua cobardia.
— Fique sabendo, capitão Mouzinho — argumentou o outro —, a Nação
pedir-lhe-á contas por esta aventureira perseguição ao Gungunhana. O
senhor vai às cegas e sem apoio. É por isso que digo e repito: não conte
com nenhum dos meus homens.
Em silêncio, todos os marinheiros da corveta Capello aplaudiram a
ponderada atitude do seu comandante. Andrea salvava-os de uma morte
certa. E usaram os restos do vinho para dar graças ao judicioso homem que
os chefiava. Os negros recolheram os copos espalhados sobre as mesas e
verteram na areia as gotas que restavam.
— Quer celebrar o espírito natalício? — perguntou Mouzinho a Andrea.
— Pois mande abater uns cabritos e distribua a carne pelos auxiliares
indígenas...

*
Tudo isso se passara dias antes, naquele mesmo lugar. No fim do relato,
Mouzinho volta a cobrir a cabeça e a sombra do chapéu obscurece-lhe as
palavras.
— Percebes agora por que desconfio desse Andrea? — pergunta-me
Mouzinho. E movimenta o assento como se, ao fazer-se mais próximo, nos
tornássemos mais coniventes. Álvaro Andrea, começa por dizer Mouzinho,
apostara que ele seria morto em Chaimite. E ali estava ele, vivo e vitorioso.
Mouzinho era um espinho cravado no seu orgulho. Como entregar nas mãos
desse traidor o mais precioso troféu de todas as guerras coloniais
portuguesas?
Passam por nós soldados que se dirigem ao rio para lavar os pratos.
Mouzinho sacode a cabeça e lamenta-se:
— Há poucos dias estes homens saudavam a prudência do seu
comandante. Hoje todos eles o maldizem.
O que antes tinha sido ponderação é agora cobardia. Por culpa de Andrea,
aqueles jovens foram excluídos do panteão dos heróis.
Aproxima-se de nós um soldado branco, com ar apatetado. O capitão
anuncia o visitante:
— Ora aqui está o único soldado português que está em África sem nunca
ter saído da sua aldeia ribatejana. Eis alguém que viu neve no meio do
inferno.
O jovem soldado ergue-se na ponta dos pés, o corpo todo espigado numa
caricata continência:
— Apresenta-se o 222, da terceira companhia do regimento de infantaria.
De repente deixo de o ver. O jovem português estava à minha frente mas,
em seu lugar, surgia o meu irmão Mwanatu. A mesma caricatura de
soldado, a mesma desajeitada farda. E a mesma distância da realidade:
Mwanatu Nsambe acreditando ser branco de nascença e este português
tomando por neve a tórrida areia dos trópicos. Apetece-me abraçar o
soldado. Contenho-me quando me enfrenta, a um tempo distante e curioso:
— És tu a preta que fala português? É verdade que falas melhor do que a
maior parte dos brancos?
A minha resposta é um sorriso. Espero que ele corresponda. O moço,
porém, bate continência e retira-se movido por uma estranha urgência.
Mouzinho contempla o soldado 222 que se afasta e comenta:
— Este é um anjo estúpido, tombou de cabeça na terra. Mas não deixa de
ser um desses anjos cuja única função é lembrar que vivemos num inferno.

Os soldados são como os caçadores: as suas histórias têm pouco a ver


com a realidade. Ninguém com isso se importa. Na verdade, só os mortos
sabem exatamente o que é a realidade.
João da Purificação, o mais novo dos soldados portugueses, já se
esquecera da primeira das realidades: o seu próprio nome. Desde há um ano
que ele não era senão um número: o 222. Queixava-se? Muito pelo
contrário. Não havia para ele nome mais sublime. Distintamente dos outros
soldados, o ex-João da Purificação não tinha glórias para contar, com
exceção de umas viagens que só existiam na sua cabeça. Poder-se-ia dizer
que é assim que as viagens sucedem sempre: dentro da nossa cabeça. A
verdade, porém, era outra: o 222 enlouquecera. Na mais bravia paisagem de
África, o soldado via um lugarejo de Portugal. Em cada um dos negros
reconhecia um compadre da sua pequena aldeia. E não havia rio de
Moçambique que não se chamasse Tejo e que não atravessasse a sua
infância.
Os soldados provocam João da Purificação na esperança de que ele volte
a descrever as suas delirantes viagens. O 222 acaba cedendo aos convites e,
feliz por ser notado, proclama:
— Escutai-me bem, meus irmãos: o mundo inteiro é um arrabalde da
nossa terra natal.
— Viajaste assim tanto? — incitam os outros.
— Naveguei tanto que não há céu que estes meus olhos não tenham
tocado.
— E como é o firmamento lá mais à frente? — perguntam-lhe.
— Lá mais adiante deixa de haver céu. É tudo terra, é tudo Portugal.
Capítulo 4

Primeira carta do sargento

É estranho o que a guerra faz com os soldados: pede-lhes que


apurem a pontaria; mas só deixa que disparem depois de
estarem cegos.
(Sargento Germano de Melo)
Inhambane, 29 de dezembro de 1895

Minha querida

Já em Inhambane, posso finalmente escrever-te com tempo e sossego. A


boa notícia, meu amor, é que não tarda que me levem para Lourenço
Marques onde, se tudo der certo, nos iremos reencontrar. Essa esperança faz
mais leve a espera. A verdade é que gosto desta cidadezinha que me é, ao
mesmo tempo, estranha e familiar. E não me pede mais do que estar numa
varanda e esperar por um outro destino. Morei em vários lugares, tive
apenas duas casas: a da infância e o pequeno quartel de Nkokolani. Lembro
essas casas como se fossem parte do meu corpo. E penso: deixamos de ver
as coisas que se tornam demasiado nossas.
Quem te irá entregar esta carta será o comandante Álvaro Andrea, que
certamente já terás conhecido. Como referi no anterior recado, este Andrea
é um português honesto que conheci nas minhas lides republicanas. Poucos
são os brancos que falam com os negros. Quando o fazem é para dar ordens.
Pois este amigo terá contigo uma deferência que é rara mas que lhe é cara e
genuína. Vais gostar dele. Só espero que não seja demais.
Talvez não entendas a razão por que nós, portugueses, nos demoramos
tanto a falar de nós mesmos. Fazemos isso por causa dos outros, os
estrangeiros. Temos medo que nos vejam pequenos. A nossa verdadeira
pequenez não vem da geografia mas do modo como nos pensamos. E não há
como um grande inimigo — como é o caso de Gungunhana — para nos
distrair da nossa insignificância. A guerra contra o rei africano esconde
outras guerras que dividem a nação lusitana. Encontram-se em
Moçambique, usando a mesma farda, monárquicos e republicanos. Odeiam-
se e matar-se-iam com a mesma facilidade com que uns e outros abatem um
cafre rebelde.
Sei que temes por mim, que receias a minha intempestiva entrega às
causas políticas. Fica tranquila. Não repetirei ousadias que antes me
custaram o desterro em terras africanas. Esse castigo acabou, afinal, por se
converter na maior das recompensas. O que devia ser um exílio converteu-
se num lugar de afeto. Foi aqui, em África, que encontrei o amor. A minha
única pátria és tu. A única causa que me resta é regressar aos teus braços.
Escapaste sã e salva dos lugares mais violentos. Mas há uma guerra a que
não poderás escapar: o conflito entre Mouzinho de Albuquerque e Álvaro
Andrea. Estarás, nestes dias, sob fogo cruzado. O meu amigo Andrea está a
preparar, em sigilo, um detalhado relatório dirigido ao Comissário Régio
denunciando o modo como Mouzinho de Albuquerque violou o código de
conduta militar. Andrea já me revelou o título provisório desse explosivo
documento: «Relatório dos atropelos aos códigos militares cometidos na
captura do Gungunhana». Quanto daria certa imprensa em Portugal para ter
acesso a esse relatório?
Peço-te, meu amor, que ajudes Álvaro a concluir a sua missão. É urgente
que Mouzinho seja desmascarado. Esse pavão fardado precisa de aprender
que só há um critério para medir a grandeza de um comandante: o modo
como trata os vencidos.
A imagem emblemática da nossa guerra em África é a de um garboso
cavaleiro montado no seu cavalo. Mas as campanhas militares em África
foram ganhas nos rios, cavalgando vagas, galgando rápidos e estreitos.
Dessas batalhas ninguém fala. Não há hoje quem não conheça os feitos de
Mouzinho de Albuquerque. Contudo, a Álvaro Andrea também assistem
motivos de glória. A sua embarcação, a corveta Capello, integrou a
chamada «esquadrilha do Limpopo». Durante três meses bombardeou as
margens do rio Limpopo. Se os ingleses deram um ultimato aos
portugueses, também nós impusemos um prazo de rendição aos chefes leais
a Gungunhana. Não tendo acatado essa intimação, as povoações ribeirinhas
foram fustigadas por canhões e metralhadoras. Aos bombardeamentos
seguiram-se operações no terreno. Os marinheiros desembarcaram e
atacaram as aldeias inimigas.
Essa campanha no rio Limpopo produziu a resposta desejada: aos poucos,
os chefes locais foram-se rendendo. Não havia dia em que não se
apresentassem debilitados e submissos. Alguns tombavam de joelhos e
murmuravam em desespero: «Eis-nos, somos mulheres do rei de Portugal.»
Haveria certamente um erro de tradução. Só tu poderias desfazer esse
equívoco. A verdade é que o próprio Gungunhana enviou mensageiros
propondo condições de rendição. Afinal, o imperador de Gaza já estava
vencido e tinha assumido essa derrota quando foi preso em Chaimite.
Mouzinho arrombou portas que já estavam abertas.
O que se passa, minha querida, é que a vida é caprichosa e não nos
bastam os factos. As pessoas adoram uma boa narrativa. Na guerra não se
defrontam apenas exércitos. Confrontam-se histórias. E Mouzinho tem uma
história bem melhor que a de Álvaro Andrea. Não interessa se a versão do
cavaleiro é falsa. A versão dele tem heróis. E esses heróis somos nós.
O mesmo se passa com o amor: Álvaro Andrea não tem, como é o meu
caso, uma namorada que lhe ilumine a existência. Ninguém espera por ele
no final da viagem. Talvez tu o possas ajudar. Mais do que idiomas, sabes
traduzir segredos do continente negro. Os brancos não pretendem apenas
perceber outras línguas. Querem deixar de ter medo.

O teu, sempre teu


Germano de Melo

PS. Encontrarás a minha caligrafia mais desajeitada do que o habitual.


Não imaginas a tempestade que por aqui vai. Ainda há pouco um relâmpago
desfez um coqueiro a poucos metros da casa. Os frutos incandesceram como
pedaços de carvão.
Em fugazes momentos de claridade vejo mulheres correndo para o rio.
Vão-se desfazendo da roupa e atirando os panos pelos atalhos. Os seus risos
confundem-se com o rumor das águas enquanto o escuro me volta a roubar
a visão. E ressurgem as mulheres no momento em que mergulham
completamente nuas nas escuras águas. Vou contemplando tudo isto e
recordo que foi num rio que nos beijámos pela primeira vez.
Não sei o que mais te dizer. O que vale nestas cartas não é a sua extensão.
O que mais conta é que, ao escrevê-las, te tornas tão presente como as mãos
com que escrevo. A tinta escorre escura e vais emergindo do papel em
fugazes momentos de luz.
Capítulo 5

Andorinhas e crocodilos

A chuva sentiu o cheiro da moça virgem


e com o seu hálito quente foi entrando pela casa.

Penetrou pelas frestas da porta


fazendo-se passar por nevoeiro.

E assim, nesse formato sem forma,


a chuva seduziu a jovem e fez com que ela sonhasse.

Nos sonhos, a moça viu uma nuvem pairando.


À porta da sua casa se ajoelhou a nuvem,
para que ela subisse para o seu dorso.

E sobre esse leito pernoitaram as duas, a moça e a chuva.

Foi então que os céus desabaram junto com os deuses.


E a terra toda se perfumou.

Cheira a chuva, dizem os homens.


E não sabem onde nasce esse perfume.
(Fala de Dabondi)
Passou uma hora desde que saímos do posto de Languene e a corveta
Capello muito pouco avançou rumo à barra do Limpopo. Certo era o
presságio de Dabondi: uma tempestade desabou sobre nós, convertendo o
rio num lençol de vagas e espuma. De pé na proa do barco, a mão em pala
sobre os olhos, o comandante Álvaro Soares Andrea espreita o horizonte.
Remoinhos de poeira fina fustigam-lhe o rosto tisnado pelo sol.
Os ombros largos do comandante ocultam o oceano inteiro. Os olhos são
rasgados e o olhar é inquisitivo mas seguro. E contudo ele hesita, o
navegador português: no calor dos trópicos tudo é aparência. Quantas vezes,
na agreste paisagem africana, surpreendeu o céu a emergir do chão?
Quantas vezes sentiu o sopro do inferno acender vultos de cinza e fogo?
E agora, de pé na proa do navio, a mão em pala sobre os olhos, o
comandante sente que o barco lhe pede para interromper a viagem.
Concebida na moderna Inglaterra, a corveta não foi ensinada a enfrentar os
monstros que a fazem escoicear como um potro enlouquecido.
A prudência do comandante tem razões acrescidas: nunca antes a Marinha
de Guerra transportara tão valiosa carga. Terão estes prisioneiros que
chegar, sãos e salvos, ao porto de Xai-Xai, onde serão transferidos para um
navio maior, o Neves Ferreira. Será este navio que os conduzirá até
Lourenço Marques. Naquela cidade haverá uma cerimónia pública para
apresentação dos troféus de guerra. Por fim, os negros serão levados para
Lisboa. Na capital portuguesa a sua exibição atingirá o apogeu.
Estou a par do que irá suceder com os prisioneiros. Mas nada sei do meu
destino. Tão-pouco sei de Germano de Melo. Uma única certeza me move
enquanto acaricio a curva do meu ventre: eu, Imani Nsambe, vou ser mãe. E
Germano é o pai dessa criança. Algures nos reencontraremos e seremos
felizes.
Para trás ficou o embarcadouro de Zimakaze e o posto de Languene. Os
presos abandonaram as suas vidas na outra margem do rio. Só eu não tenho
onde deixar o meu passado.

*
Álvaro Andrea mantém-se na proa como um irreverente anjo: vigia as
imperfeições de Deus. A linha da costa, impossível de mapear, é a prova de
que o universo é apenas um rascunho.
— E o que tanto vê, meu comandante? — pergunta Mouzinho.
Andrea demora a responder. Contempla as ondas, que se erguem cegas
para depois desabarem num escuro abismo.
— O que vejo? Não sei. Vejo andorinhas.
— Andorinhas? — espanta-se Mouzinho.
— Dizem que o Gungunhana odeia essas aves tanto quanto teme o
oceano. Já lhe perguntei a razão desse ódio.
— Dou-lhe um conselho, meu comandante: não pergunte nada a essa
gente — adverte Mouzinho. — É um duplo erro. Primeiro, porque lhe
mentirão ao responder. E depois porque, ao dirigir-se-lhes, você dá-lhes
uma importância que nos pode ser perigosa.
— Uma das rainhas disse-me que as andorinhas não são aves. São
mensageiras. Há que escutar o recado que trazem.
— Tolices, caro Andrea. E mais tolo é quem lhes dá ouvidos.

A jornada até Xai-Xai deveria durar dois dias. Mas a súbita tempestade
impede o progresso da lancha e isso deixa transtornado Mouzinho de
Albuquerque. Para o capitão não há tempo a perder: a glória espera por ele
em Lourenço Marques. Não seria um estuário revolteado que faria protelar a
celebração dos seus feitos. Habituado a mandar, é-lhe difícil assumir um
tom solícito: Prossiga a viagem, comandante Andrea, este barco foi feito
para galgar tempestades.
Álvaro Andrea enfrenta o olhar altivo de Mouzinho e depois replica com
azedume:
— No seu cavalo manda o senhor; aqui quem comanda sou eu.
Mouzinho podia resolver a discussão numa penada, fazendo uso dos
galões. Para além de capitão, ele é agora o governador do distrito militar de
Gaza. Mas prefere regressar a um tom mais apropriado. Estão ali os presos
que se entreolham, estranhando a desavença entre os chefes brancos.
Encolhido entre a bagagem, Ngungunyane acredita ser ele o motivo daquela
altercação. Os portugueses, desconfio, discutem a sua sumária execução.
— Sabe por que prendi tão facilmente o chefe dos Vátuas? — pergunta
Mouzinho ao comandante do navio.
No momento da prisão, explica o capitão, os guerreiros de Ngungunyane
imaginaram que o destacamento que tinham diante de si era uma reduzida
amostra de um enorme exército que os cercava para além do horizonte.
— É por isso que lhe digo, caro Andrea — conclui Mouzinho —, nunca
se fie na linha do horizonte.

Há outras razões para acelerar o passo: o barco parado no meio do


estuário pode encorajar uma reviravolta nas populações ribeirinhas. Essa é a
preocupação de Mouzinho. Os negros, que antes saudaram a detenção de
Ngungunyane, podem agora querer de volta o seu monarca. Contesta o
comandante Andrea: que ele se mantinha fiel aos compromissos que
assumira.
— Que compromissos? — inquire Mouzinho.
Não se esquecesse o capitão Mouzinho de que, muito antes da captura de
Ngungunyane, os chefes locais já haviam declarado fidelidade a Portugal.
Juraram-lha a ele, Álvaro Andrea. Em contrapartida, ele a todos prometera
que, caso o imperador se entregasse, não haveria retaliação. A família real
seria respeitada e o rei seria tratado com dignidade. Eram esses os seus
compromissos.
— Juraram-lhe os pretos? — indaga Mouzinho, com mal disfarçada
ironia. — Pois eu asseguro-lhe, meu caro Andrea: já nenhum dos pretos se
lembra dessa jura, assim como nenhum branco chegará a saber dos seus
compromissos éticos.
Calado, Andrea acatou a ofensa. Olhou para mim como se buscasse
tradução para o seu silêncio. Mouzinho falava da linha do horizonte. Não
devia ter escolhido esse assunto. De tanto oceano cruzarem, os navegantes
aprendem a lidar com brumas e miragens. O comandante Álvaro Andrea era
um perito em horizontes.

Com apoio de binóculos, Mouzinho de Albuquerque vai explorando as


margens. Está apreensivo: mesmo que decidissem prosseguir viagem, a
embarcação mover-se-ia com dificuldade entre os baixios do rio e a roda
propulsora na popa não garantiria, em caso de fuga, o ímpeto veloz do seu
cavalo Mike. Para além de tudo isso, os canhões e as metralhadoras
instalados no tombadilho eram de difícil manuseio. Mouzinho não quer
imaginar uma chuva de mortíferas setas tombando sobre a embarcação e,
mais grave ainda, trespassando o prisioneiro, que deve chegar vivo e inteiro
a Lisboa. Ironia do destino: o inimigo que apostou matar é quem agora deve
proteger, com risco da própria vida.
— Meu caro Andrea — declara Mouzinho —, você deve imaginar que me
precipito a recolher honrarias em Lourenço Marques. Fique a saber: tenho
pressa em sair destas águas lamacentas porque nelas acabei de perder um
dos meus homens. Ou já não se recorda?
Era impossível esquecer: a viagem mal tinha começado quando o soldado
João da Purificação, aquele que eu conhecera como o 222, foi mandado
buscar água para alimentar a caldeira. Ao mergulhar o balde no rio, o jovem
tombou nas águas escuras e, de imediato, foi arrastado por um gigantesco
crocodilo. Do navio inutilmente lançaram-se boias, soltaram-se
desesperados gritos e arremessaram objetos contra o monstruoso vulto.
Esperava-se que o 222 se debatesse em desespero, braços enlouquecidos
esgravatando a água. Mas não. O soldado aceitou aquele terrível destino
com a quietude de quem regressa a casa. Repetidas vezes o rosto pálido
assomou à superfície, os olhos abertos contemplando-nos com infantil
placidez. Até que o 222, num vagaroso rodopio, desapareceu nas águas
barrentas do Limpopo. Apesar das repetidas diligências nunca mais se
encontrou o corpo. E nunca mais ninguém dele se lembrou pelo número.
Apenas depois de morto o soldado teve direito a ter nome. Para mim, esse
nome podia ser João ou Mwanatu. Os dois morreram abraçados pela água,
sepultados no ventre de um rio.
Gorada a esperança de recuperar o corpo, a grande roda do barco voltou a
girar como um carrossel de feira. Com as suas largas folhas e vistosas
flores, os nenúfares giraram pelo ar como que revolteados por um invisível
crocodilo. O barco era um arado e arrancava as raízes do próprio rio. O
ruído das pás — «feque-feque-feque» — ilustrava de onde veio o nome que
a gente local dera àquele barco: «mafekefeke». Os nenúfares lembravam a
canção com que minha falecida mãe enchia a casa: «... as flores que
crescem na água são feitas de chuva».
— Suicidou-se — concluiu Mouzinho.
Para nós, os negros, aquela não era uma morte comum. O traiçoeiro
crocodilo era pertença de alguém e cumpria um encomendado serviço. O
que nele assustava não era o que tinha de fera mas de humano.
Dabondi avançou uns passos para tombar de joelhos à frente de Mouzinho
e, em xizulu, balbuciou uma lengalenga. Por um instante, não se escutou
senão aquela oração pronunciada numa língua que os brancos não
entendiam. Mouzinho interrompeu a reza. E mandou que a rainha fosse
afastada para o recanto dos presos. Cumprida a ordem, o português
perguntou-me:
— O raio da mulher rezava pelo infeliz soldado ou agradecia ao
crocodilo?
— Esse homem que morreu...
— Aquele soldado não morreu — corrigiu Mouzinho. — Matou-se.
— Esse soldado lembra-me o meu irmão que foi morto a tiro por um
militar português. — Acabo de falar e logo me arrependo.
— Como se chamava? — pergunta Mouzinho.
— O meu irmão?
— Não. Como se chamava esse que matou o teu irmão?
— Santiago Mata — respondi. — E fui eu que matei Santiago.
— Engano teu — declara Mouzinho. — Santiago escolheu o seu destino.
Capítulo 6

Segunda carta do sargento

As minhas histórias são tão antigas que quem as escuta


desaparece. Ninguém com isso se assusta, pois, no próximo
silêncio, todos reaparecem. É por isso que vou narrando no
mais suave dos sussurros. Tenho medo de enrodilhar o Tempo
e, assim, impedir o regresso dos encantados.
(Fala de Dabondi)
Inhambane, 30 de dezembro de 1895

Minha querida

Redigi a carta anterior à luz de relâmpagos. Enquanto escrevia ocorreu-


me um pensamento absurdo: para te conhecer passei por uma espécie de
cegueira. Agora só vejo pelos teus olhos, só tenho mãos quando sou o teu
corpo. Lembro a tempestuosa noite e já não considero absurdo esse
pensamento. Quem me dera os dias sucedessem com a brevidade de uma
faísca. Não haveria mais espera: no próximo lampejo estarias de novo nos
meus braços. Nestes trópicos africanos, porém, o tempo é preguiçoso e os
dias arrastam-se como vagarosas serpentes. Sem te poder tocar, disponho
apenas de duas meias mãos e regresso à deficiência que uma bala por ti
disparada recentemente me causou. Naquele momento, escolheste
sacrificar-me a mim para salvar o teu irmão. Não levo a mal. Pelo contrário,
essa escolha traduz a grandeza da tua alma.
A minha anterior carta já se encontra em poder de Álvaro Andrea. O
portador assegurou que a tinha entregue em mãos no posto de Languene,
dias antes do teu embarque. Não quero imaginar que o comandante não
tivesse imediatamente procedido à sua entrega. Por que não me respondes,
Imani?
Nas cartas de amor a grande felicidade é receber a resposta antes mesmo
de as escrever. Talvez seja por isso que iniciei esta carta vezes sem conta e,
de todas as vezes, a deixei cair no chão. Nos meus pés descalços se
imprimiram as palavras que nunca te foram enviadas. Não apanho esses
rascunhos. Deixo-os órfãos, sobre a poeira do chão. São um tapete que teci
para o teu regresso. Vou calcando palavras como na minha terra pisamos as
uvas para que nasça o vinho.
Releio o que acabo de escrever e penso: tudo isto é demasiado piegas,
uma patetice disfarçada de poesia. A verdade é que me viciei nestas
fantasias como um bêbado se agarra a uma garrafa já vazia. Se tudo correr
bem, esta carta não tombará no chão. Chegará, sim, às mãos do comandante
Álvaro Andrea assim que ele desembarcar em Xai-Xai. É curioso: a
primeira carta também lhe foi entregue num cais, o cais de Zimakaze. Cada
uma destas missivas pede cuidados não de um carteiro mas de um
marinheiro.
Já me ocorreu que o comandante se tenha simplesmente esquecido de
entregar a carta. Conhecendo-o como conheço, encontra-se de tal modo
atiçado contra Mouzinho que ficou cego para outras obrigações. Apesar de
tudo entendo que se alimente desses mesquinhos rancores. O que resta a um
militar depois da guerra? O que sobeja de um tempo que nunca mais se
pode esquecer?
Na verdade, tudo separa estes dois oficiais. Mouzinho é um homem fiel à
monarquia e orgulhoso das longínquas e puras raízes lusitanas. Álvaro
Andrea é um republicano de origem italiana. O avô era um marinheiro
genovês e as suas raízes estão repartidas entre mar e terra. Mouzinho e
Andrea disputarão a tua cumplicidade numa contenda que só a eles diz
respeito. Mas tu não terás escolha. Andrea é um amigo. Mouzinho é um
aliado. Andrea manda no barco. Mouzinho manda na viagem.
O mais grave de tudo, minha querida, é que a guerra em Moçambique não
terminou. Por isso te levam como tradutora. Esperam que faças bem mais
que traduzir. Querem que sejas uma espia ao serviço da coroa portuguesa. E
é isso que me apoquenta. Ao contrabandear valiosos segredos enfrentarás
sérios riscos. Tudo isso não me deixa dormir. Mas depois, no dia seguinte,
volto à razão e considero que estás fora desses imaginados perigos. Afinal,
apenas as mais altas autoridades portuguesas estão informadas da tua
missão. É muito pouco provável que, entre os portugueses, alguém descubra
a tua verdadeira identidade. Nenhum dos prisioneiros (com exceção de
Godido, o filho do rei) sabe falar uma palavra de português. E mesmo que
Godido te queira denunciar quem lhe dará qualquer crédito?
Minha querida, esta será a tua estreia no mar. Há um ano fiz essa viagem
no sentido inverso: de Portugal para Moçambique. Foram dois longos meses
dentro de um navio. Nesse tempo entendi o seguinte: não é apenas o barco
que se movimenta no oceano. São as almas dos passageiros que transitam e
se mesclam para além das raças e das nações. Sou um privilegiado neste
mundo, sou dos poucos que empreendeu essa outra viagem. E não foi no
mar que viajei. Foi em ti que cruzei fronteiras que me separavam de mim
mesmo. Os meus olhos são azuis para que me atravesses como se eu fosse
água.
Para consolo teu, deves pensar que a tua viagem não começou agora.
Desde criança que estás emigrando de ti mesma. Pensa nas vantagens desta
involuntária jornada: nessa outra pátria — que é a minha por nascença —
começaremos juntos uma vida nova. Esse é o meu desejo maior. Não quero,
porém, que te aconteça o que vi suceder com outras mulheres africanas em
Portugal. Não admitirei que sejas humilhada. Serás Imani de Melo. Serás
mulher, a minha mulher.

Germano de Melo
Capítulo 7

As mãos e as mães

A mais grave herança da guerra não são as feridas nem os


escombros. A pior herança são os vencedores. Acreditam os
vencedores que a vitória os fez donos da terra e acham-se no
direito de ser os seus vitalícios governantes.
(Extrato da carta de Álvaro Andrea)
Entendo agora por que a gente do estuário chama ao Limpopo de «Nambo
wa Nhimba», o rio grávido. Neste momento o rio encontra-se em trabalho
de parto: alargando as margens, contorcendo-se como uma serpente,
esgadanhando-se para expulsar as suas águas nas águas do mar. A corveta
cavalga sobre as vagas e não há lugar no convés que não seja varrido pelas
ondas. As sete esposas de Ngungunyane estreitam-se em redor do marido.
Se procuram conforto não o encontrarão: não há criatura neste mundo mais
aterrada que o rei de Gaza. Deleito-me ao ver tão atemorizado aquele que
tanto terror espalhou entre a minha gente.
A gravidez do rio faz-me lembrar o meu estado: nunca antes tinha sentido
náuseas. Agora, só me apetece fechar os olhos e adormecer numa espécie de
sono bêbado. De longe, Dabondi esboça um sorriso tímido. É a única das
rainhas que demonstra simpatia por mim. Com passos furtivos, ela vem
sentar-se junto a mim. O rei e as esposas observam-nos com suspeição. Não
viajam num barco, navegam num caixão. Caminham mortos sobre as águas.
Só ela, a bela Dabondi, se encontra viva. Inclino-me para escutar a sua
ciciada voz:
— Quero que me faça um favor, minha irmã. Peça aos brancos que
autorizem o Nkosi a usar a sua coroa.
Esconde entre as mãos o chidlodlo, a coroa de cera escura que, entre os
vanguni, distingue os nobres das restantes castas. A mulher está convicta: o
imperador ficaria aliviado se a pudesse usar. Vigia se alguém nos escuta. Só
depois volta a falar:
— Sou a única que tenho pressa em sair da minha terra. Queres saber
porquê? — E deixa que se instale um novo silêncio. Húmidos estão os seus
olhos quando anuncia: — Vou ver o meu filho!
Com dezassete anos, o seu filho João Mangueze foi mandado estudar em
Portugal. «Estudar» talvez seja um termo forçado. Há dois anos que
trabalha para uma serralharia na outra margem de Lisboa. Os portugueses
ofereceram ao rei de Gaza a possibilidade de os filhos serem educados por
instituições lusitanas: uns na Ilha de Moçambique, outros em Portugal
continental. O único que foi escolhido para viajar para além dos mares foi
Mangueze. O imperador disse aos portugueses: Vejam como confio em
vocês, entrego-vos o que de mais precioso tenho. As mulheres uniram-se
para contrariar aquela decisão: afinal, os filhos de uma eram filhos de todas.
Partilhavam um mesmo receio: o mar iria engolir o jovem que os
portugueses tinham batizado de «João». De todas as esposas apenas
Dabondi estava feliz. Escondeu essa alegria e fez de conta que também se
opunha. Há muito que secretamente rezava para que João Mangueze fosse
levado para longe. Melhor seria perder-se no mar a ser envenenado em
disputas pelo poder.
— Não tarda que todos vejam que estás grávida — diz ela tocando-me no
ventre.
— Nota-se?
— Sempre soube. Sou nyamussoro. Lanço os búzios. E trouxe-os comigo,
os tintxolo.
Estica o peito, exibindo um mpacatxu, um colar feito de pequenos paus
entrelaçados num cordão. Não é vaidade. O adereço prova que foi sonhada
pelos deuses. Levanta-se, entrega-me uma capulana, que faço questão de
não aceitar. Mas ela insiste. Não tarda que anoiteça e comece a fazer frio. O
pano que trago amarrado na cintura não deve ser posto aos ombros porque,
dentro de mim, a criança ficaria sufocada. Essa capulana deve pertencer a
uma outra mulher.
— Vamos viajar juntas — afirma Dabondi. — Serei a madrinha desse teu
filho. Em troca, serás a minha mulher pequena, a minha escrava lá em
Portugal.
— Nunca fui escrava...
— É bom que comeces a ser — declara Dabondi. — Essa tua criança, já
me disseram, não traz a raça certa. Precisarás de quem te proteja dos
brancos e dos pretos.
Deixa que a mão se arredonde sobre a minha barriga e arrisca adivinhar:
há três meses que não salto a Lua. Segundo a tradição, estou em estado de
obscuridade, guardados que estão os meus sangues lunares. É imperioso,
assegura a rainha, que eu sangre de outra maneira. Propõe-se fazer pequenas
incisões nas pernas para que o sangue não se acumule dentro do corpo.
— Tenho-te observado, minha filha — admite a rainha. — Há coisas que
deves aprender: por exemplo, ao beberes deves ajoelhar-te para que a água
não tombe em cascata sobre a cabeça da criança.
Na nossa terra as raparigas aprendem a não ser ninguém. Dabondi
também se anulou. Pensava que, desse modo, perderia os filhos sem sofrer.
Na noite em que o filho partiu para Portugal a rainha acordou com os dedos
grudados por um óleo espesso. Duvidou se ainda sonhava. Mas deixou que
acontecesse: se fosse sonho que viesse inteiro. No escuro sentiu o cheiro da
ferrugem e percebeu que sangrava abundantemente. A hemorragia nascia-
lhe do ventre: era João que se revolvia de regresso ao escuro. Aquele filho
que todos diziam que partia para longe, afinal nunca chegara a nascer.
Morrera-lhe ainda nas entranhas. Era um ximuku, um desses que, como se
diz, volta para o outro lado. É o mesmo nome que se dá aos afogados.
Morreram num infinito ventre, sem anunciar os segredos que traziam.
De madrugada, sem que ninguém na aldeia se apercebesse, Dabondi
esgueirou-se por entre os bosques. Caminhou sem saber se o chão que
pisava era real ou sonhado. Munida de uma pá, Dabondi abriu uma cova
estreita mas funda. Ali enterrou o seu filho, João Mangueze. Todos diriam
depois que a cova foi fechada vazia. Que não havia senão terra enterrando
terra. Todos jurariam que o jovem não morrera e que seguira, pelos
descaminhos do mar, com destino a Lisboa.
De nada importavam as falas e juras dos outros. Dabondi apenas queria
certificar-se de que o leite havia mirrado no seu peito. Assim procedem as
mães que concebem crianças sem vida. Vezes sem conta espremeu os
mamilos e nenhuma gota se formou. Quando se assegurou de que estava
mais seca que uma pedra, voltou a casa e adormeceu.
Na manhã seguinte o imperador passou por ela e não a reconheceu.
Dabondi tinha-se transformado numa árvore. E assim a rainha resolveu o
que não tem solução. Ser mãe é um verbo que não tem passado. Foi o que
disse a rainha.
— O sangue na lâmina que cortou o cordão umbilical pertence à mãe ou
ao filho? — perguntou. E acrescenta, decidida: — Pois é esse meu sangue
que vou reencontrar nesta viagem.

Não se visita um filho, afirma. Regressa-se a ele como se estivesse


sempre por nascer. Fecha os olhos, balança os ombros e trauteia os versos
de uma velha canção: «As mães metem as mãos no fogo e lançam aos céus
as cinzas ainda ardentes. É o que fazem desde o princípio dos tempos.
Assim se criaram as estrelas. Acontecerá com essas luzes o que sucedeu
com o sol: regressarão. Todas regressarão. E farão brilhar as mãos das
mulheres.»
Interrompo a ladainha com pouca convicção: O seu filho voltará para os
seus braços. Não é o que diz a canção? Olha-me longamente. Os dedos
tricotam um vazio como se, naquele momento, lesse os ossinhos
divinatórios. Há algo nesta mulher que me faz lembrar a minha falecida
mãe.
— Tenho inveja de ti — confessa num tom desfalecido. — Tenho pena de
não saber falar a língua dos brancos.
— Não tenha pena, minha rainha — afirmo. — Assim, não escuta as
ofensas que nos são dirigidas. Não percebe quantas vezes somos chamados
de macacos.
— Os brancos também desconhecem os nomes feios que lhes chamamos.
E repete, o rosto iluminado: Vou ver o meu filho, é só isso que importa.
Pede-me então que lhe ensine português. Será nesse idioma que comunicará
com o filho.
— João não se esqueceu do seu xizulu — asseguro.
— Não estás a compreender, minha filha. Quero falar com o meu filho
numa língua que nenhum dos meus parentes possa entender.

Para se resguardar dos mosquitos, o capitão Mouzinho de Albuquerque


refugia-se na cabine do piloto. Apoia a mão direita sobre o leme e assim
permanece, como se a humanidade o estivesse admirando. O comandante
Andrea resmunga entredentes: Ele que não ouse dar-me ordens. Quem
manda em mim é o mar. Mais ninguém.
Dabondi pega-me pela mão e conduz-me até Mouzinho. Pede-me que a
ajude a fazer-se entender. O capitão entreabre a porta e dispõe-se a escutar.
A rainha pede:
— Quando chegar a Portugal quero falar com o vosso mais velho.
— O mais velho? — indaga Mouzinho.
— O mais velho dos brancos. Quero agradecer terem recebido o meu
filho. Esse rei de Portugal é o novo pai do meu João. E sou esposa do vosso
rei.
O capitão sorri, condescendente. Pede-nos que o deixemos só. E volta a
fechar a porta.

Nas margens do Limpopo acendem-se centenas de tímidas fogueiras. A


maior parte delas não pertence às aldeias ribeirinhas. São fogos ateados por
gente que acampou junto ao rio apenas para testemunhar a deportação do
imperador. De vez em quando escuta-se uma imprecação: Vai-te embora,
abutre, e nunca mais regresses!
Dabondi retirou-se para junto das outras rainhas deixando-me a sós com
Álvaro Andrea. Com o seu casacão escuro o comandante é um vulto quase
indistinto. O lume das fogueiras reflete-se nos prateados botões da farda.
— A tua rainha diz que fala com os rios — afirma o português. — Tu que
és tradutora, sabes o que dizem esses fogos na margem do rio?
Não espera resposta. Olho-o da cabeça aos pés. Aquele fardamento está
deslocado no calor dos trópicos. Os botões metálicos deixam as rainhas
fascinadas. Ngungunyane não dispõe de tantos brilhos, nenhum pedaço de
sol lhe pende do peito. Apenas eu sinto compaixão por este branco coberto
de suor que, não fosse a solenidade do uniforme, pareceria uma criança
perdida no mundo. O casaco encharcado quase lhe chega aos pés, que, em
contraste com o rigor militar, se encontram indefesos. O português está
descalço. As botas foram para lavar, cobertas que estavam de escura e
fedorenta lama. As rainhas contemplam, divertidas, o desamparado branco,
como se, ao vê-lo descalço, o surpreendessem inteiramente despido. O tio
Mulungo comenta em voz alta: A zebra tirou os cascos. E todos se riem. Os
mais velhos juravam que os europeus eram unguladas criaturas. Vendo os
portugueses sempre calçados imaginavam que os sapatos faziam parte do
seu corpo.
Limpando o suor que lhe escorre da testa, o português adverte-me:
— Temos de falar, minha filha. Tenho uma missão a cumprir que é bem
maior do que pilotar uma lancha militar.
Capítulo 8

Antes de haver mar


havia um barco

Atirei uma pedra contra o vento


porque pensei que era um pássaro kuerre-kuerre.
E o vento parou de soprar.
E aos poucos o vento foi-se tornando poeira.
Porque lhe atirei uma pedra
e o vento agitou-se, tornou-se poeira e voou para longe.
Voltou depois a soprar forte
para se libertar da poeira.
E o ventou transbordou.
O vento que já foi um pássaro.
(Narrativa San recolhida em Cape Town em 1870 e traduzida
numa versão poética pela escritora sul-africana Antjie Krog)
Álvaro Soares Andrea acredita ter aprendido a navegar antes de o mar ter
nascido. Durante décadas vagueou ao longo da costa africana e desbravou
rios que estão ainda por nomear. E foram tantas as viagens que não há
noites que bastem para contar as suas aventuras. Daí o seu desdém pelos
caprichos de Mouzinho de Albuquerque.
— Quem sabe do mar sabe dos céus — proclama o comandante enquanto
percorre, para cá e para lá, toda a extensão da sua corveta.
Está alvoroçado, não pregou olho toda a noite. Foi visitado por sonhos,
estranhos presságios. Sonhou que se tinha convertido num prisioneiro negro
e que viajava no porão do seu próprio navio. No mesmo sonho, Mouzinho
desamarrava-lhe os pulsos e agitava um caderno em frente do seu rosto: É
isto que andas a escrever contra mim, meu filho da puta? No cano das botas
ia roçando uma nervosa vergasta. Depois atirava-lhe o caderno para o colo.
Queria que o lesse em voz alta. Andrea segurava as folhas com mãos
trémulas. Dava conta de que aquela era a sua caligrafia. Mas logo se
apercebia de que escrevera tudo aquilo numa língua que não entendia.
Parecia-lhe zulu, não tinha a certeza. E despertava, estremunhado.
— Quem sabe do mar sabe dos céus — repete Andrea, como se o mote o
ajudasse a permanecer desperto. Volta a olhar as nuvens escuras por cima
do oceano. Sujeita-se, enfim, ao comando das insondáveis forças da
natureza. Confia mais nessa estrela interior — que alguns designam de
intuição — do que em mapas e bússolas que se mostram imprestáveis nos
mares tropicais.

— Avisa o capitão que esse vento tem um nome feio.


De novo Dabondi quer ajudar Andrea a superar a sua ignorância. E são
muitos os desconhecimentos do capitão português. Desconhece, por
exemplo, que o vento já foi um pássaro. Disso sabemos nós, negros vatxopi.
São verdades que aprendemos desde crianças. O vento foi um pássaro e
fugiu para fora de si mesmo quando os homens o quiseram capturar. Deixou
de ter corpo, fez ninho nas nuvens e viaja com elas para pousar quando se
cansa. É por isso que o vento canta. Porque já foi um pássaro. Em menina
eu dizia que o vento «assopiava». E o padre português Rudolfo Fernandes
sorria com indulgência. Os idiomas são mulheres: namoram, engravidam e
geram filhos.
— Conheço este vento — garante a rainha. — Chama-se xidzedze.
É bem diverso da restante ventania, este xidezdze. Uiva como um bicho e
é fabricado por encomenda. Talvez tenha sido o imperador que o tenha
mandado chamar.
— O xidzedze prende quem prendeu o nosso rei — comenta Dabondi.
Se o vento ordena, o comandante obedece: a corveta encosta na margem
direita e ali, tão perto do revolto oceano, encontra refúgio seguro. Escuto a
âncora descendo sobre o fundo lodoso. Vamos passar a noite naquele
improvisado resguardo, na esperança de que, de madrugada, prossigamos
viagem rumo ao porto de Xai-Xai.

— Escutem, minhas irmãs! — instiga-nos Dabondi. — Não ouvem vozes,


vindas da praia?
A fúria do mar desordena-nos por dentro. Esse tumulto interior rouba-nos
o sono a todos, a presos e a carcereiros. Este escuro não é filho da noite —
é assim que Dabondi explica a dificuldade em adormecermos. E acrescenta:
— Este escuro vem dos rochedos do Zongoene.
Para além do estuário erguem-se dunas tão elevadas que, do topo delas, se
pode ver o outro lado do oceano. No sopé dessas dunas anicham-se os
rochedos do Zongoene. Não há em todo o universo rochas tão negras e tão
imóveis. A raiz dessas pedras mora mais fundo que a toca onde o demónio
nasceu.
Desde há séculos que os pescadores ali vêm rezar, implorando que os
navios naufraguem e as ondas tragam para a costa as riquezas que viajam
nos porões. Uma jovem é amarrada, completamente nua, por entre os
rochedos enquanto o clamor dos mais velhos se impõe sobre o estrondo das
ondas: Vós, os psikwembo, tornai o mar furioso para que os barcos se
afundem e nos cheguem prendas vindas de longe...
— Escuta bem, minha filha — pergunta-me a rainha —, não ouves vozes
vindas do mar?
Não me apercebo senão do rumor das ondas e do silvo do vento. Para
Dabondi, contudo, não existe nenhuma dúvida: na praia há gente clamando
aos deuses por um naufrágio. E há mãos sedentas por esventrar um navio. E
esse navio pode ser a lancha em que viajamos.

Alvoroçam-me os pressentimentos da rainha. E sou tomada por uma


espécie de delírio: aquele é o fim de tudo, os meus quinze anos vão-se
afundar, inglórios, nas águas turvas do Limpopo. Vou em busca do
comandante Andrea, que deambula pelo convés com uma lanterna nas
mãos. Faz lembrar um xipoco, um desses fantasmas insones que assombram
as crianças. O português demora a reagir ao meu pedido:
— Comandante, empreste-me essa lanterna, por favor.
— Para quê?
— Não sei. Apetece-me ver Germano.
— Germano? Por amor de Deus, Imani!
— Posso estar louca, mas deixe-me espreitar...
— Não se demore, não posso ficar sem a lanterna. Há aqui quem me
queira fazer mal.
O gesto trémulo, as mãos quase imateriais, o comandante entrega-me
aquele frágil luzeiro. O vento sacode o facho, que ilumina mais o meu corpo
que o caminho. A cada pincelada de luz torno-me mais e mais distinta, uma
espécie de vagalume deambulando no escuro. Talvez seja por isso que os
olhos dos marinheiros se concentram, vorazes e carnívoros, sobre o meu
vulto. Procuro Mouzinho para lhe implorar proteção. Pedir-lhe-ei que me
proteja de duas ganâncias: a dos meus irmãos negros que me querem morta
e a dos brancos que desejam violar-me.
É então que Álvaro emerge das sombras e me arranca a lanterna das
mãos: Pronto, acabou, declara. Tenho eu mais razões para temer o escuro.

É no degredo — e não no trono — que se reconhece o verdadeiro


imperador. Assim declarava o meu pai. E recomendava: olhem-se as
omoplatas do rei para avaliar da vitalidade do seu reino. Olho para
Ngungunyane e não vejo corpo. Reconheço apenas a curva da subjugação.
Em contraste, a nobreza permanece intacta em Nwamatibjane Zixaxa.
— Por que não se sentam todos juntos? — interroga-se Andrea
apontando para prisioneiros.
— É melhor assim, meu comandante — esclareço. — É grande o rancor
entre os dois chefes...
Com um subtil aceno, o rebelde Zixaxa aponta para as dunas de
Zongoene. Confirma o que já tinha sido anunciado por Dabondi: algures,
para além do estuário, os espíritos estavam a ser acordados. Pediam-lhes
que fabricassem naufrágios.
— O que é que ele diz? — pergunta o comandante.
— Diz-lhe que falo das estrelas — responde Zixaxa. E prossegue
lentamente, dando tempo para que eu possa traduzir: — As estrelas são
esposas da Lua. É isso que elas são para nós, os da nossa raça. São
demasiadas as esposas, é por isso que emagrecem. A Lua não lhes dá de
comer.
Um ténue sorriso desenha-se no rosto de Álvaro Andrea. Apoia-se na
balaustrada, sacode a cabeça e murmura:
— Esqueci-me de que esta é a última noite do ano.
Não me dou ao trabalho de traduzir para Zixaxa. O seu calendário é outro,
os anos são nomeados em função das secas, das guerras e da fome. O ano
que agora começa não terá nunca nome algum.
Andar descalço é hábito que o português já perdeu e, por isso, se vai
retirando com passos trôpegos. Quando o seu vulto se torna indistinto,
pergunto a Zixaxa:
— Não conheço essa lenda das estrelas...
— Inventei tudo isso, agora. Os brancos gostam de histórias. Às vezes
tenho pena deles. Trato-os com deferência, chamando-os de «patrões», e
eles acreditam que sou sincero.

O barco finalmente dorme quando nos chega um sinal da margem. Um


homem acena uma tocha e depois aos berros se anuncia em xishangana. É
um induna, um representante da corte dos vanguni. Traz uma mensagem da
rainha Impebekezane, a mãe de Ngungunyane. Deve entregar esse recado
pessoalmente ao destronado rei. Mouzinho hesita em autorizar a visita. Pede
conselho a Álvaro Andrea. Surpreso por ser consultado, o comandante
declara: O barco é meu, o prisioneiro é seu.
— A rainha Impebekezane sempre nos ajudou — diz Mouzinho. — O
preto que suba a bordo. — E dirige-se a mim: — E tu, Imani, já sabes:
depois contas-me o que se passou nessa conversa.
Mandam um bote buscar o induna enquanto se escutam, vindas das
margens, vozes em xishangana: vai-te embora, tirano gordo, que nos
roubaste o gado e as galinhas! E agora para onde te levam? Acompanho o
emissário até aos prisioneiros vanguni. Junto ao imperador o mensageiro
bate palmas e ajoelha-se para fazer a saudação: Bayete! No início,
Ngungunyane não reconhece o visitante. Ergue-se com esforço, a manta
tombando sobre as costas, deixando a descoberto os tornozelos. Espreita
desconfiadamente o rosto do intruso. O emissário identifica-se como sendo
adjunto do general Maguiguane e expressa-se em xizulu:
— Não faça caso das ofensas desta gente do rio. Não tarda que voltem a
saudá-lo como o Nkosi de todos os povos de Gaza
— O que queres? — indaga Ngungunyane.
— Trago-lhe notícias, meu rei. O comandante das suas ihimpi, o general
Maguiguane, está a organizar um movimento denominado «Ukubuya
Nkosi» para exigir o seu regresso a Gaza.
— E que mais? Vá, fala. Conheço bem as vossas maneiras: começam
pelas boas notícias para fazer demorar o anúncio das desgraças...
— Venho avisá-lo, meu rei, de que há acusações graves contra a sua
mãe, a rainha Impebekezane. E é por causa dela, dizem, que não chove há
mais de dois anos e que o gado morre de uma praga desconhecida. Diga-
me o que quer que façamos para salvar a sua mãe.
— Não se preocupe, Nkosi Kakhulo — responde o tio Mulungo. O velho
conselheiro tem um ideia clara sobre o futuro. Os brancos, diz ele, são
quem agora nos governa. É só dar um tempo. Em breve as mesmas culpas
que hoje lançam sobre a rainha-mãe serão dirigidas contra os novos
governantes.
— E que mais dizem? — insiste o rei.
Olhos postos no chão, o mensageiro hesita. E quando retoma a fala, vai
passando da reverência ao temor:
— Os seus tios querem matar Impebekezane. Acusam-na da mais grave
traição: entregou o seu próprio filho aos portugueses.
Ngungunyane escuta como se tudo aquilo fosse dito num idioma
desconhecido. O emissário aguarda uns longos minutos na esperança de que
o interlocutor abandone aquela letargia. E como nada sucede interpela
silenciosamente o tio Mulungo. Mas todos sabem: há silêncios que têm
dono. Por isso, o velho conselheiro faz de conta que não existe. E todos
esperam que o imperador, o dono de todos os silêncios, retome a palavra:
— Para eu estar aqui, cativo dos brancos, houve certamente quem me
traísse — declara Ngungunyane. — Procurem os culpados e façam justiça.
Comecem dentro da família.
O emissário despede-se com excessivas vénias. Vai recuando sem nunca
virar costas e dirige-se pela última vez ao rei:
— Quer que faça chegar uma mensagem à sua mãe ou a Maguiguane?
— Diz-lhes que mandem vir o Dokotela — responde o imperador.
Refere-se ao médico suíço, George Liengme, que lhe prestava assistência
em Mandlhakazi. Sempre de cabeça baixa, o emissário esclarece:
— Os portugueses expulsaram os suíços. O Dokotela teve que sair para o
Transvaal.
O induna regressa à canoa que o trouxe, escutam-se os remos
chapinhando as águas. Desaparece no escuro o último dos mensageiros do
rei. Nunca mais Ngungunyane receberá visitas do seu reino. O exílio
começou antes mesmo de abandonar a sua terra natal.
No convés, Mouzinho de Albuquerque espera pelo meu relatório. Subo as
escadas lembrando as palavras do meu pai: em tempos de guerra todo o
tradutor é um delator.

É madrugada quando o comandante Álvaro Andrea me oferece um prato


de sopa. Recuso com delicadeza e ele serve-se sem cerimónia da refeição
que me era destinada. Limpa os lábios nas costas da mão e quase não
percebo quando me fala:
— Falaste em Germano.
— É o meu namorado.
— Sei quem é. Tenho comigo uma carta dele para ti.
— E por que só agora é que me diz isso?
— Esqueci-me. Sou um homem solitário.
— Não entendo, comandante.
— Os solitários não dão conta de que se esquecem. Pode ser que me
lembre. Pode ser que me ajudes a lembrar.
Luzem os botões prateados do uniforme mas brilham mais os olhos que
fixa em mim.
— Estou grávida, meu comandante — declaro.
Surpreendo-me com a minha própria fala. O que acabo de proferir não é
uma defesa. É uma acusação. Por um momento o comandante baixa o rosto,
vencido pelo pudor. Mas logo se recompõe e regressa todo ele homem, todo
ele branco e militar:
— Estás grávida mas não estás amnésica. Há coisas que me vais contar.
Coisas que viste durante a captura do Gungunhana.
O comandante tem na sua posse a carta de Germano. O meu primeiro
ímpeto é reagir com raiva. O melhor, porém, será proceder como sempre
fiz: adiar a disputa, fingindo obediência. Aceito que falarei, mas já o vou
prevenindo: as nossas conversas criarão suspeitas entre os pretos e entre os
brancos. Melhor seria que eu escrevesse essas confissões. Bastaria que me
autorizasse a usar a arrecadação e me desse caneta e papel. Não sei, pondera
o comandante. As pessoas mentem, diz ele, a maior parte das vezes sem
sequer o saber. Quando escrevem, elas mentem ainda mais. Depois, cede. O
assunto da verdade não tem solução que seja verdadeira. No meu caso, a
mentira é quase sempre apenas um erro de tradução.
Capítulo 9

A caligrafia do rei analfabeto

Os cavalos são o que restou dos antigos dragões.


(Nwamatibjane Zixaxa)
É fim de tarde, estou sentada na arrecadação do barco. Um caderno, uma
caneta e um tinteiro esperam sobre uma mesa. O comandante fechou a porta
do compartimento, acreditando que, naquele recinto, criarei provas que
incriminem Mouzinho de Albuquerque. Não chego a iniciar o depoimento
porque sou surpreendida pela visita de Ngungunyane.
— Odeio os teus sapatos — começa por dizer ao entrar no pequeno
cubículo. — Odeio as tuas maneiras e não suporto o modo como me
escapas. Mas podes ficar tranquila — acrescenta —, não te venho fazer
mal.
Depois, arranca-me o caderno das mãos. Ergue-o sobre a lamparina, como
se lhe tomasse o peso. Por que escreves tanto?, pergunta. E comenta,
estreitando os olhos: Nem os brancos escrevem tanto. Nunca vi nenhum
deles escrevendo depois do pôr-do-sol.
Estou de olhos no chão e vejo os seus pés descalços. São raízes de uma
árvore morta. Sinto o seu hálito quente quando ordena que lance ao mar o
caderno e todos os outros papéis.
— Que papéis? — indago num fio de voz.
Rebusca a minha sacola e dela retira as cartas que nunca cheguei a enviar
a Germano. Nem eu imaginava que fossem tantas. O imperador precisa das
duas mãos para recolher toda aquela carga. Dá uns passos e deixa as folhas
cair. Faz de propósito. Pretende que me debruce para recolher o que se
espalhou pelo chão. Tira proveito da minha fragilidade. As mãos sapudas
tocam-me as coxas, percorrem-me as nádegas e, depois de um suspiro
fundo, moldam-me a cintura.
Deixo que abuse de mim. Quero que se distraia e permaneça longe do
lugar onde escondo os meus outros escritos. Ele que fique com as cartas
mas não toque nos cadernos em que vou relatando esta atribulada viagem.
Apressadamente escolho as cartas ainda mal esboçadas e deposito-as nos
seus braços. O imperador sacode a cabeça e murmura: Vais ser minha, a
minha oitava esposa, a minha nova feiticeira!
Dirige-se à escotilha oscilando o corpo como se embalasse uma criança.
Num gesto largo, atira as cartas pela borda fora. Os papéis voam por um
momento, rodopiando como gaivotas cegas. Quando tombam sobre as
ondas, o mar inteiro muda de cor. Fica negro como a noite. Ngungunyane
não dá conta dessa mudança. O oceano sempre foi para ele um manto
escuro.
— Vim aqui — diz ele — não foi por causa dos teus papéis. Foi por
causa da minha carta.
— Que carta, Nkosi?
— Essa que te vou ditar. Uma carta para o rei de Portugal.
Inspeciona a folha branca que ele mesmo foi separando, apalpa o bico da
caneta, cheira o tinteiro. E diz-me que não me poupe em adornos e
floreados. Quero que uses uma linguagem própria de reis, diz ele. Não
somos nós, soberanos das nações, quem manda nas palavras?
Pausadamente, começa a ditar. Mantém os olhos fechados como fazem os
que cantam com a alma à flor da pele.

Meu irmão, D. Carlos,


Rei de Portugal

Sou eu o Mudungazi Ngungunyane — filho de Muzila, que, por sua vez, é


filho de Manukusse, o Sochangane. Sou eu que lhe escrevo para agradecer a
sua grande bondade. Espalhou-se por aí o boato de que vou preso. Dizem
que sigo neste barco como um bicho, vencido e humilhado. Ambos sabemos
que não é verdade. Viajo a convite de Vossa Excelência. Tudo isto — a
minha captura, a minha prisão, a minha viagem — é uma encenação. Tudo
isto não passa de uma farsa para ser consumida pelos governos da Europa.
Não me algemaram os pulsos, não me amarraram os braços, nem me ataram
os pés. Estou imobilizado porque aceitei colaborar nesta nossa impostura.
Vou a caminho de Lisboa para conversar pessoalmente consigo sobre os
nossos assuntos. O privilégio deste convite causaria desconfiança aos reis
europeus e inveja aos reis africanos.
Houve vezes em que, confesso, fraquejei. Duvidei de si, temi pela minha
vida. Foi culpa da bebida, reconheço. E há um temor permanente que me
persegue: o receio de não regressar. É assim que pensam os zulus: quem
atravessa o mar não pode mais voltar. Não é um pressentimento. É essa
experiência de todos os africanos, sejam escravos, sejam donos de escravos.
Nenhum nunca voltou. Quem entra no mar perde o seu nome. E só se
lembra do que foi antes de ter nascido. É assim que dizemos na nossa terra.
Continuarei governando o meu povo de longe como fazem os reis já
falecidos. Não tenho medo da distância. Temo, sim, a deslealdade. Levo
comigo as minhas sete mulheres, cada uma delas com a sua sombra. De
entre elas Dabondi é aquela que sonha. Cada sonho dela é um conselheiro
que me avisa de tramas e traições. Vão sacrificar a minha mãe,
Impebekezane, acusando-a de ser fiel aos portugueses. O mais grave é que
essa acusação é verdadeira. A rainha Impebekezane confiou na palavra de
Portugal. Quero-lhe pedir, meu irmão, que a proteja como foi prometido.
Dizem que Maguiguane anunciou um movimento de revolta para forçar o
meu regresso a Moçambique. Não se deixe levar, meu caro Nkosi. Nem eu
próprio acredito nos motivos dele. Por que razão esse Maguiguane, com as
suas artes militares, não tentou uma emboscada para me libertar? Por que
me deixou atravessar lugares onde era tão fácil atacar de surpresa? Em vez
de lutar pelo meu regresso, Maguiguane devia ter impedido a minha saída.
Nada disso me surpreende, meu rei. Esse meu general tem uma história.
Ele vem dos vatsonga, a tribo dos conquistados. Obriguei Maguiguane a
ajoelhar-se, sentei-me sobre as suas costas enquanto me davam banho. Esse
homem vai querer sentar-se sobre as costas de alguém. E agora comanda
um exército que só existe nos seus sonhos. Maguiguane faz de conta que é
um general. Eu finjo que sou um prisioneiro. E o meu rei simula que é o
meu carcereiro. É por isso que eu digo: as batalhas ganham-se com armas.
Mas as guerras ganham-se com mentiras.
De tudo isto lhe falo, meu rei, porque mandam as boas maneiras que se
comece um assunto com outro assunto. A razão principal desta carta é um
pedido urgente. O quarto que me foi atribuído não me trouxe reclusão.
Trouxe-me proteção. Agora estou protegido dos portugueses que me
guardam rancor. O que lhe peço é que Zixaxa não continue na minha cela. É
dele que mais preciso de ser protegido. Este Nwamatibjane Zixaxa não é um
munguni, não faz parte da nobreza de Gaza. É um pequeno induna do Sul
de Moçambique, esses a quem vocês chamam de «régulo». Se há alguém
que Sua Excelência deve odiar é esse rebelde que nem a mim obedece.
Vencendo-me, o senhor venceu todos os que por mim foram vencidos.
Quero que saiba o seguinte: o assalto a Lourenço Marques não teve, como
lhe contaram, a minha cumplicidade. Zixaxa agiu por sua conta e risco. E
agora ele acusa-me de traição, culpa-me por o ter entregue às forças
lusitanas. Por isso lhe imploro: não me obrigue a dormir com quem me quer
matar. Se é meu destino deixar de viver, prefiro ser morto pelos
portugueses. Fuzile-me, senhor Rei.
Um último desejo: por favor, transmita uma mensagem ao capitão
Mouzinho de Albuquerque. Diga-lhe que não o recordo com raiva. O
capitão prendeu-me não como um inimigo mas como um companheiro de
armas que se insubordinou. Sou um sargento do mesmo exército. Viajei
com Mouzinho durante vários dias. E constatei que há uma moléstia que
nos irmana: os joelhos. Mouzinho caiu de um cavalo no exercício das suas
funções. O meu sofrimento não tem a mesma glória. Sofro apenas do meu
próprio peso. Essas dores são antigas mas foram avivadas depois da minha
captura. Durante dias consecutivos fui agredido a socos e pontapés. Sei que
não foram instruções suas. Mas continuo recebendo pancada, muita
pancada. No início pensei que se tratasse de pancadaria a fingir. Mas as
pauladas eram demasiado dolorosas para serem falsas. No esconderijo de
Chaimite bateram-me, primeiro para que me sentasse e voltaram a bater-me
para que me levantasse. No caminho para o rio desancaram-me porque a
minha marcha era lenta. Já no barco, soldados quiseram arrancar-me à força
o segredo de um tesouro escondido. E foi Mouzinho que, furioso, fez parar
aquela pancadaria. Foi ele que gritou: Ninguém toca no Ngungunyane! Este
africano é um convidado do Rei de Portugal! Esse Mouzinho, imagino eu,
deve suspeitar do nosso segredo. Tenha-o por perto, meu irmão. Não se
pode virar costas a quem nos conhece as feridas.
Falta pouco para conversarmos de viva voz. Não me deixaram trazer
presentes para lhe ofertar. Já tinha destinado três cabeças de gado para me
acompanhar nesta longa jornada. Não foi possível. Fica para o nosso
próximo encontro em Moçambique, altura em que, para além dos bois,
Vossa Excelência ficará com os pastos e os rios que fazem engordar as
manadas.
Saúdo Vossa Excelência à nossa maneira: Bayete, Rei D. Carlos!

Mudungazi Ngungunyane

*
Coloco ponto final na carta com um malicioso sorriso. De que te ris?,
pergunta Ngungunyane. Só pode ser ironia, meu rei, arrisco dizer. Como
assim?, pergunta ele. O senhor não pode ter sido sincero, declaro. Escreveu
tudo como lhe disse?, pergunta o rei como se não me tivesse ouvido. Aceno
que sim. É a vez de ele sorrir, com malícia. Espeta o dedo, em aviso:
Mandarei Dabondi confirmar se foste fiel ao que ditei. Contesto, a medo:
Dabondi não sabe... Não me deixa terminar: Dabondi sabe ler. Ainda tu
estás a pensar no que vais dizer e já ela está a ler as tuas palavras.
Ngungunyane toma a folha nas mãos e percorre com o indicador o
contorno das letras. É o seu modo de medir a minha obediência. Queres
saber por que escrevo ao rei de Portugal?, pergunta. Em Chaimite, diz ele,
os caçadores penduram as caveiras dos leões na árvore sagrada. Todos
pensam que é uma vaidosa exibição. Mas é apenas a humildade que
comanda os caçadores: veneram os vencidos, pedem perdão aos deuses dos
bichos.
— Entendes por que escrevo esta carta? — pergunta Ngungunyane.
Capítulo 10

Um lenço branco
iluminando o passado

«O cruzar do oceano, na ida ou na volta, devia ser para os


olhos dos africanos como o transpor de um rio.»
(Alberto da Costa e Silva, in
Um Rio Chamado Atlântico)
Os navios são como os búzios: neles se escuta a voz do mar. O Neves
Ferreira é um búzio gigante, uma concha metálica tombada de costas. As
chaminés são três bocas que engolem as nuvens e depois as regurgitam,
sujas e pesadas. Este navio que nos espera no porto de Xai-Xai provoca tal
espanto entre os prisioneiros que o oceano se torna invisível.
Sentado sobre fardos de algodão, o rei de Gaza quer saber quanto tempo
demorará a viagem até Lisboa. Transmito-lhe o que me disseram: até
Lourenço Marques são dois dias. Depois, são mais dois meses até chegar à
capital portuguesa. Ao traduzir para xizulu converto os meses em luas.
Pensei que Ngungunyane reagisse com tristeza. Sucede o oposto. Um
sorriso lhe ilumina o rosto: Duas luas?, pergunta, espantado. Os
portugueses percorreram tão longo caminho apenas para lhe dar luta? E
reergue os ombros, orgulhoso. Por breves segundos volta a ser imperador.

Durante horas os cativos aguardam no cais pela ordem de embarque.


Viajarão no porão. Os portugueses começam por movimentar as
mercadorias. Seguir-se-á a outra carga, essa que fala, chora e reza.
Grossas correntes amarram o navio Neves Ferreira ao porto. Está atado
pelo nariz como se faz aos bois. Partilha a agrilhoada condição do
imperador, cujos pulsos foram temporariamente presos por uma corda de
sisal.
O pasmo dos meus irmãos negros enche de vaidade o comandante
Andrea. De modo oposto se manifesta Mouzinho. Quer achincalhar a
Marinha de Guerra e os marinheiros. Os barcos, diz ele, só são bonitos em
terra. E virados ao contrário.
Os marinheiros riem alto. Mouzinho vai mais longe no apoucar da
Marinha. É preciso revirar um barco, diz ele, para entender a sua verdadeira
natureza. O nome «quilha» é partilhado por barcos e aves. Um navio é mais
pássaro do que peixe. É o que diz Mouzinho.
A rainha Muzamussi receia que o navio possa avançar terra adentro.
Implora aos gritos que não desamarrem o monstro. Ngungunyane ordena
que a mulher se cale. Dali em diante nenhuma das esposas volta a falar sem
que seja autorizada. Dabondi sorri com desdém: o imperador reconhece,
enfim, a fragilidade do seu império e a precariedade do seu harém. Com
sangue tomou posse da terra. Com sémen se apropriou das mulheres. Todo
esse comando agora lhe escapa. É por isso que grita com as esposas. A
única autoridade que lhe resta é ser um homem entre as mulheres.

No cais de Xai-Xai, o capitão Mouzinho de Albuquerque vigia o


embarque do seu precioso cavalo. Não é um simples animal que ali vai, não
é uma mera carga que é manuseada. O cavalo compõe o retrato que o
capitão faz de si mesmo. É assim que se sonha, reedição do centauro,
cavaleiro vitalício. Felizmente, o garboso militar não percebe o comentário
de Zixaxa: Ainda um dia havemos de comer esse cavalo.
É a vez de Mouzinho sorrir sem entender porquê. Conserva esse sorriso
enquanto percorre a escada que conduz ao interior do Neves Ferreira. No
tombadilho recebe cumprimentos do comandante, o tenente Jaime Leote do
Rego. O patrão deste navio é um homem bem distinto de Álvaro Andrea e
disso Mouzinho dá graças a Deus. Para ele a troca de comandantes é um
alívio. Para mim é um pesadelo. Livre das suas funções, Álvaro Andrea fica
mais disponível para me procurar. Não é a sua companhia que me
desagrada. É a minha falta de coragem para lhe exigir o que me deve: a
carta de Germano.

O navio faz-se ao mar e, por um momento, parece-me que quem se


movimenta é o continente. Não será num barco que viajaremos.
Navegaremos como sempre se viaja: através de lembranças e sonhos. Mas
eu já não lembro nem sonho. Tenho quinze anos. Vou para longe de mim,
sem bagagem e sem documentos. Mas levo comigo o meu filho, o princípio
da minha eternidade.
A meio da noite, Dabondi e eu somos chamadas ao camarote do
comandante Jaime Leote do Rego. À entrada, Dabondi toma nas suas mãos
os braços do militar. É raro uma das nossas mulheres dar-se a esses
avanços. A rainha, porém, simpatizou com o branco de barba grisalha. A
afeição é recíproca: o tenente fita a rainha como se lhe estudasse o rosto.
Perfeito, é ela quem eu queria, confirma ele com entusiasmo.
Ao fundo do camarote está uma tela suportada por um cavalete. Sobre
uma cadeira estão pousados dois pincéis e uma paleta onde se combinam
diferentes tons de azul. Quero pintar o mar, confessa. Foi por isso que
exigiu a presença de Dabondi. No cais, diz ele, escutei esta mulher. Diz-lhe
que volte a cantar!
— Não sou eu que canto — argumenta Dabondi. Outros usam a minha
voz.
— Explica a essa mulher que não estou habituado a pedir.
A rainha sorri e responde: Pergunta a esse homem se recebe ordens para
sonhar.
Com a ponta dos dedos Dabondi afaga a tela com delicadeza. Acredita
que está perante um tear e que o comandante é um tecelão. Com gestos
redondos, como se falasse com os braços, o português apresenta a obra por
começar: O mar não se vê: nele nos vemos nós. Depois acrescenta: Eu vi o
oceano quando escutei esta mulher a cantar no cais.
Oferece um cálice de aguardente à rainha. Dabondi vaza o cálice de um
trago. Acena o copo vazio reclamando por uma segunda dose. Se me
escutou cantando, este branco não pode ser um inimigo, diz ela. E
acrescenta: A bebida é boa, vou fazer-lhe a vontade. Depois a rainha solta a
voz. O comandante cerra as pálpebras e, lentamente, as águas do mar
inundam o seu camarote.
Com o braço direito soerguido, os passos afinados com a canção da
rainha, o comandante Jaime Leote do Rego avança na minha direção e
pergunta:
— Já alguma vez dançaste com um branco?

É manhã do dia quatro de janeiro de mil oitocentos e noventa e seis e o


Neves Ferreira lança âncora na baía do Espírito Santo. À nossa frente
exibe-se a mesma cidade que, há exatamente um ano, Zixaxa teve a ousadia
de assaltar. Os brancos chamam-na de Lourenço Marques, nós a batizámos
de Xilunguíne. Lembro-me de como a italiana Bianca Vanzini se queixava
da pequenez daquele lugar. Mas para nós, que nunca vimos uma cidade,
este amontoado de ruas, casas e luzes é um motivo de deslumbramento. É
por isso que lhe chamamos Xilunguíne, o lugar onde se vive e se fala como
os brancos.
Ingenuamente, acreditei estar próximo o momento do desembarque. Mas
logo entendi: todos os tripulantes são retirados em barcaças exceto nós, os
negros. Ancorado a meio da baía, o navio é uma prisão. Os portugueses
necessitam de tempo: fazem-se na cidade os preparativos da grande festa.
Virão jornalistas, diplomatas e dignitários estrangeiros. Juntar-se-ão os
governantes, os comerciantes e os chefes religiosos. Reunir-se-á, enfim, a
população das regiões vizinhas para ver o Leão de Gaza a desfilar derrotado
e humilhado, os pés lambendo a lama das ruas de Lourenço Marques.
Álvaro Andrea recusa desembarcar. Argumenta que, permanecendo a
bordo, garantirá a segurança dos prisioneiros. Todos sabemos que o
português tem outras razões. Aquela é a sua última oportunidade para
avançar no relatório contra Mouzinho. Naquele sonolento navio encontram-
se, à sua inteira mercê, as testemunhas que anseia interrogar.

Na manhã seguinte recebemos visitas a bordo. Vestido à civil, Mouzinho


de Albuquerque chega acompanhado por uma dezena de diplomatas e
jornalistas. Com ele vem também um negro magro e alto, envergando
sapatos e roupas europeias. Mouzinho dirige-se a mim e pergunta:
— Reconheces-me sem farda, rapariga? Venho vestido à alentejana, de
jaqueta, cinta e chapéu de aba larga.
Ordena que convoquem os presos e depois apresenta-nos o negro que o
acompanha:
— Este é Zeca Primoroso, o tradutor, o «língua» como nós chamamos.
Vem para ajudar nas entrevistas ao Gungunhana. — E acrescenta,
dirigindo-se a mim: — Estás dispensada, rapariga.
Tiram-se fotografias do rei ladeado por duas rainhas. Dabondi sorri,
satisfeita por ser uma das escolhidas. Saciada a imprensa, Mouzinho vira-se
de lado e desafia o tradutor: Pergunta ao Gungunhana se reconhece quem o
prendeu em Chaimite. Ergue-se pesadamente o Ngungunyane e aponta para
Mouzinho: Foi este!
— Estão a ver? — pergunta, ufano, o capitão. — Mesmo disfarçado fui
imediatamente reconhecido. Escrevam isso para que se calem os
incrédulos.
Enquanto decorrem as entrevistas Mouzinho chama-me à parte para
explicar o motivo de ter recorrido a outro tradutor. Não se tratava de uma
questão pessoal. É o mesmo problema com todos os espiões, explica o
capitão. Alguém, depois, os deve espiar a eles. Pagos para trair um,
acabam por trair todos.
No meu caso, essa suspeição era ainda mais grave. Eu era negra, era
mulher, abandonara a minha família e as minhas crenças. Mais grave ainda:
escolhera um branco como amante. Como podia inspirar confiança? Traíste
os teus, mais facilmente nos trairás a nós. Podes ser quase branca, mas há
algo que não muda: a família de um preto são todos os pretos do mundo.
A comitiva despede-se. A mesma barcaça que os trouxe leva-os de volta à
cidade. Regressam todos, exceto Zeca Primoroso.

O novo tradutor é um daqueles que designamos de muzwalana, isto é, um


negro que sabe ler e escrever. Assim que os brancos se retiram, Primoroso
pergunta-me:
— Acabaram de prender o missionário Roberto Machava. E vários outros
foram presos. Também és da igreja?
— Sou de outra igreja — respondo rispidamente.
— E qual é essa igreja?
— Não conheces. Não tem nome em português.
Os prisioneiros assistem estupefactos ao nosso diálogo. É a primeira vez
que testemunham dois negros comunicando em português. Zixaxa sacode a
cabeça e sorri. Um sorriso é, por vezes, a melhor acusação.

Álvaro Andrea chama Zeca Primoroso à torre de comando. Vemo-lo


recebendo instruções e acenando a cabeça com um misto de presunção e
deferência. Depois o tradutor regressa ao convés e desfila empertigado
perante os espantados prisioneiros. Para além da roupa europeia, usa sapatos
engraxados a rigor, cabelo repuxado ao longo de uma larga risca que
atravessa o crânio de uma ponta à outra. Em xizulu vai enumerando as
qualidades que, segundo ele, o tornam distinto dos da sua raça:
— Dizem que em Moçambique há reis negros e guerreiros vitoriosos.
Nada dessas balelas contam, pois obedeço a um rei distante, o rei D.
Carlos. Além disso, há muito que uso sapatos e peúgas, durmo numa cama
e as refeições são-me servidas numa mesa. Entendem?
O rebelde Zixaxa agita os braços numa excessiva vénia e proclama em
falsete:
— Si ya vuma!
É uma aprovação cínica, um irónico «amen». Zeca Primoroso reage
contrariado: que nunca mais acolhessem as suas palavras com exclamações
indígenas. Podiam concordar com ele, aliás, deviam concordar, mas não
esquecessem de que estavam perante uma autoridade lusitana. E foi
avisando que o capitão Álvaro Andrea logo viria interrogar os presos.
Temos duas orelhas e uma boca, declarou Zeca. Lembrem-se, meus
conterrâneos: as orelhas são nossas, mas a boca não nos pertence,
acrescentou.
O capitão foi descendo até ao convés onde, em silêncio, se perfilam os
presos. Álvaro Andrea manda que me junte aos prisioneiros. Já não és mais
tradutora, declara ao passar por mim
Ngungunyane é o primeiro a ser interrogado. Pretende o português que o
rei de Gaza confesse os maus tratos a que fora sujeito. De pouco vale que a
pergunta seja refeita em xizulu. O rei permanece calado. Repetem-se as
indagações em variados formatos. E o rei sem abrir a boca. O português
passa de inquiridor a delator. É por culpa desse que ele protegia com o seu
silêncio que os seus conselheiros suspeitavam da sua própria mãe. E
prossegue Andrea: sabia Ngungunyane onde estava a taça de prata que lhe
oferecera a rainha dos ingleses? Não adivinhava? Sabia ele quem, depois da
sua prisão, deu ordem para que matassem todo o seu gado?
Embatucado se mantém o rei de Gaza. Álvaro Andrea parece desistir.
Debruça-se sobre Ngungunyane para lhe soprar ao ouvido:
— O Mouzinho deve estar-te grato. Graças a ti ele se tornou um herói,
graças a ti recebeu elogios do rei D. Carlos. Graças a ti negros e brancos o
aplaudirão, aos milhares, nas ruas de Lourenço Marques. Se não fosses tu,
esse capitão não passava de um ilustre desconhecido.
Zeca Primoroso esmera-se na tradução mas é inesperadamente
interrompido por vozes que chegam do mar. Dezenas de embarcações
cercam, no escuro, o nosso barco. O português pede a Primoroso que lhe
explique o que se passa. De olhos fechados o intérprete recita de cor o
cantochão:
«É este o jovem, é o nosso jovem que eles querem matar.
É ele o glorioso, é o nosso motivo de glória.
Lutou contra os brancos, fugiu para Cossine.
Agora foi preso. E levam-no para longe...»
Primoroso pigarreia, atrapalhado:
— É esta a lengalenga que eles entoam na língua deles.
— É de Ngungunyane que falam? — indaga o comandante.
— Não, Excelência. Os homens cantam em louvor de Zixaxa.
O comandante corre ao longo da balaustrada, tentando discernir de onde
procede aquela exaltação. A noite está escura, não se vê um palmo à frente
do nariz. Alvoroçado, Andrea ordena que os sentinelas desfechem uns tiros
mesmo sem direção definida.
— Disparem! Disparem sobre as malditas canoas! — comanda Andrea.
— Mas quais canoas? — perguntam os soldados.
— Atirem para qualquer lado, mantenham-nos afastados!
A manobra resulta, as canoas afastam-se e o silêncio volta a cercar o
navio. Ngungunyane é enclausurado na cabine do piloto. À porta são
colocados dois sentinelas, um preto e um branco.
Naquela improvisada cela adormece, enroscado como um pangolim, o
vencido chefe dos vanguni. Lembro as palavras do meu pai: todo o
calabouço é pequeno; toda a prisão é perpétua.

As fantasmagóricas canoas deixaram atemorizado o comandante Andrea.


Suspeita que queiram matar o rei negro. Mas conjetura, com mais
convicção, que o alvo seja ele mesmo. E apressa-se a assumir o comando da
situação. Seja qual for a natureza da ameaça, é imperioso reforçar a
vigilância a bordo.
De emergência, eu e Zeca Primoroso somos enviados a Lourenço
Marques. A nossa missão é pedir apoio a um sargento chamado Duarte
Amaral que, além de experimentado militar, é um fiel amigo do capitão.
Devemos procurá-lo nas casas de pecado. Não partimos sem que Álvaro
Andrea nos advirta: Mouzinho não pode saber desta providência. Esse
pedido de socorro haveria, por certo, de ser motivo de chacota. Por essa
razão Andrea nos escolheu a nós, desconhecidos e civis, para cumprirmos
aquela delicada incumbência.
— Ide com cuidado — adverte-nos. — E trazei-me convosco o sargento
Amaral.
O olhar é alucinado, o suor escorre-lhe pelo rosto. Quase não reconheço o
homem tranquilo que venceu a fúria do vento xidezdze.

Em poucos minutos desembarcamos junto a um forte que Primoroso


identifica como sendo a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição. À pressa
atravessamos uma ampla praça cercada de vielas estreitas. É esta a rua, é
esta a Rua dos Mercadores! — proclama Primoroso. — Vamos com
cuidado! À noite a cidade é muito perigosa, até Deus fica à rasca, adverte.
Não se cala enquanto caminha: Trago a minha guia de marcha, mas tu,
sendo uma preta indígena, já não podes circular a esta hora. Vaidoso, agita
o documento que o autoriza a percorrer territórios que, depois do pôr-do-
sol, se tornam exclusivos dos europeus. Teremos que evitar os agentes
policiais que asseguram o cumprimento do recolher obrigatório. Zeca
Primoroso justifica essas rusgas:
— Os portugueses, coitados, não o fazem por mal. Mas não fica bem os
pretos andarem por aí quando já está escuro. Um branco pode-se assustar
pois só dá conta da presença de um negro quando já esbarrou com ele.

Vamos seguindo ao longo da Rua dos Mercadores. Posso falar português


como poucos portugueses, posso ter lido muitos livros, mas nunca estive
numa cidade, nunca andei sob a luz de candeeiros. Com orgulho, Zeca
Primoroso vai traduzindo a cidade que os meus olhos não sabem ler. À
porta dos bares exibem-se mulheres meio despidas. São às centenas os
boémios que por ali passam, quase todos bêbados, trocando piadas e
impropérios nos mais indecifráveis idiomas. A descoberta do ouro nas terras
vizinhas inundou Lourenço Marques de aventureiros. Vieram ingleses,
bóeres, sírios, libaneses, italianos, gregos e gente de nações tão distantes
que nenhum mapa lhes faz justiça.
Enquanto disserta sobre a cidade, Primoroso vai inspecionando a fachada
dos estabelecimentos. Vai espreitando do outro lado da rua, no passeio
menos iluminado. Depois eleva-me nos braços como se eu fosse uma
criança. Daquela posição vejo as salas cheias de fumo. As mulheres estão,
ao mesmo tempo, quase nuas e demasiadamente vestidas. Por pouco,
confesso em voz alta, não era uma dessas mulheres.
— Que história é essa? — pergunta Zeca, voltando a pousar-me no chão.
Falo-lhe da intenção de Bianca Vanzini de me contratar para uma das
suas casas noturnas. Para o Bohemian Girl?, espanta-se Zeca. Encolho os
ombros. Não sei, respondo. Sei que seria chamada de Black Lilly.
— É um lindíssimo nome — declara Zeca. —Devias usá-lo — recomenda.

É quase meia-noite quando Zeca Primoroso se detém frente a um


estabelecimento que ostenta o letreiro: «La Folia». É aqui, murmura,
excitado. Aborda um agente de segurança à porta do bordel. E logo ali se
cria um enorme alvoroço. Impedem Zeca Primoroso de entrar, proíbem-no
de se explicar. Seu preto de merda, gritam em coro enquanto agridem o
indefeso tradutor. Em desespero, procuro por entre a multidão: onde andará
o tal sargento Amaral?
Vou em socorro de Zeca, que jaz tombado no passeio. Arrasto-o para o
lado oposto da estrada. Limpo-lhe o sangue que escorre pelo rosto enquanto
ele se ocupa em acertar o penteado. Na briga soltou-se-lhe o tacão de um
sapato. Pede-me que o procure. Um sapato é mais importante do que
qualquer guia de marcha. É essa a sua prioridade: recuperar a compostura.
Enquanto de gatas vou farejando o pavimento, o tradutor desculpa os seus
agressores: eu que não interpretasse mal aquela violência, nas suas palavras
um «acidente» sem qualquer significado. Confundiram-me, certamente. Em
todo o lado sou tratado com o máximo respeito.
— Não fale mais, Zeca — ordeno enquanto lhe limpo o ensanguentado
rosto. — Se não ficar quieto essa ferida nunca mais fecha.
E volta ajeitar o penteado, o dedo sujo de sangue acertando o risco que
lhe divide a espessa cabeleira. Passo-lhe um pano a enxugar a mão, aquela
mesma mão que tantas cartas de recomendação forjou para safar os seus
irmãos. É disso que me fala enquanto cuido dele. Mil vezes vestiu a pele de
um branco assinando salvo-condutos com um nome falso, um nome bem
português. A sua escrita era tão perfeita que ninguém podia imaginar que
aqueles documentos tivessem sido redigidos por um negro.
— Está ver, Imani? — concluiu Zeca. — Dizem que traí os meus irmãos
negros. Ninguém os ajudou tanto quanto eu...
Do outro lado da rua alguém chama pelo meu nome. É Bianca Vanzini.
Abraçamo-nos com tal espalhafato que os transeuntes se entreolham
desconfiados. Não dou conta de que Zeca se esgueira entre os mirones, em
busca do sargento Amaral.
— Sabia que estavas em Lourenço Marques — revela Bianca. —
Germano escreveu-me. Já te enviou duas cartas. Não as recebeste? Andrea
não tas entregou?
Sacudo a cabeça. Andrea?, pergunto, a voz apagada, a cabeça vazia.
Alguém me puxa pelo braço. É Zeca Primoroso que me apressa a regressar
ao nosso navio. Foi assim que se expressou: o «nosso» navio.
— Vá você, Zeca. Aquele navio não é meu.
— Venha — insiste o homem. — O sargento Amaral já aqui está, não o
façamos esperar.
Crispo os dedos no vestido de Bianca, encosto-me ao seu peito e suplico:
— Deixe-me ficar consigo, Bianca. Esconda-me entre as suas mulheres.
Eu espero aqui por Germano.
Não era uma boa ideia, argumentou Bianca. Primeiro porque me viriam
buscar. Segundo porque ninguém sabia quando Germano passaria por
Lourenço Marques. Por fim, e mais importante que os anteriores motivos:
se eu perdesse este barco nunca mais viajaria para Lisboa. É em Portugal,
diz ela, que devo esperar pelo meu homem.
— Volta para o navio. Zeca tem razão: este é o teu navio, o teu único
navio.
Solto-me de Bianca, deixo que me arrastem em direção ao Neves
Ferreira. A italiana vai ficando distante, a luz do candeeiro ilumina os seus
cabelos quando subitamente a vejo esbracejar. Percebo que grita mas a
estridente música dos bordéis não deixa perceber o que me quer dizer. E
parece ser um envelope o que agita em suas mãos. Ou talvez seja um lenço
branco com que se despede.
Capítulo 11

Carta de Germano de Melo


para Bianca Vanzini

«Numa certa guerra, os soldados que haviam saído em


missão deram meia volta e retornaram ao quartel. O general,
espantado, viu o batalhão regressar. Não tinham encontrado a
fronteira que era suposto protegerem. Foi assim que se
justificaram.
— Não sabem da fronteira?
— E onde fica, meu general?
— Bom, a fronteira... quer dizer a fronteira... não me digam
que não a encontraram?
— É por isso que regressamos, meu general.
— Pois a fronteira fica onde acaba a terra.
Os soldados voltaram a partir. E nunca mais regressaram.»
(História anónima recolhida
por Germano de Melo)
Inhambane, 2 de janeiro de 1896

Querida Bianca

Escrevo-lhe em desespero. Enviei duas cartas a Imani e não me chegou


nenhuma resposta. Desconheço se ela as recebeu. Encaminhei essas
missivas através de Álvaro Andrea, um comandante da Marinha em quem
confio como um irmão. Não sei dele, nem de Imani.
As guerras provocam uma deformação na alma de quem espera:
mantemos um irresistível desejo de receber notícias, mesmo tendo a certeza
de que serão as piores possíveis. O inferno é preferível à ausência de tudo.
O desconhecimento do paradeiro de Imani despertou angústias que
pareciam esquecidas. E fico de novo sem mãos, sem corpo, sem vontade. Às
vezes penso que Imani encontrou outro homem. Ou mais grave: que ela,
sem nenhuma razão particular, tenha deixado de gostar de mim. São
fantasmas que me roubam o sossego mas não a esperança. Não tardarei a
encontrar Imani na minha própria terra. Irei com ela à aldeia para a
apresentar à minha mãe. E então proclamarei, apontando o ventre de Imani:
eis o seu neto! Eis-me a mim numa outra vida.
Tenho pensado muito em si, minha querida italiana, e nas circunstâncias
em que nos conhecemos. Lembro-me desse dia em que Zixaxa atacou
Lourenço Marques e como buscámos refúgio entre as ruínas. No meio dos
escombros esquecemos, por um momento, que havia um mundo desabando
lá fora.
Um destes dias voltarei a visitá-la. Não chegarei a tempo de assistir ao
desfile do Gungunhana. Seria esse o momento certo para reencontrar Imani.
Outras ausências, contudo, serão bem mais pesadas que a minha. E uma
delas, a maior, será a de António Enes. O comissário régio saberá das boas
novas a caminho de Lisboa. A maior parte das autoridades militares já se
encontra na Metrópole. À exceção de Mouzinho, os heróis estão todos de
férias, fatigados das três únicas batalhas que tiveram que enfrentar.
Desembarcarão em Lisboa com direito a uma receção triunfal, ovacionados
por uma façanha que tentaram evitar a todo o custo.
O seu herói, esse cavaleiro andante, não se poderá queixar de falta de
reconhecimento. Da Inglaterra, da França e da Alemanha enviaram
mensagens, medalhas e condecorações. Apenas Portugal se esqueceu de o
levar até Lisboa para recolher as honras que lhe são destinadas. As ordens
foram claras: Mouzinho permanecerá em Moçambique. A guerra está
terminada. Mas não tanto como querem fazer crer. Quem sabe esse
cavaleiro andante não a visitará em Lourenço Marques? Quem sabe não se
alojará no seu estabelecimento?
Peço desculpa, cara Bianca, mas não posso ficar indiferente perante o seu
afeto por Mouzinho. Tanto como eu, você é livre de escolher as suas
paixões. Mas, por amor de Deus, todos menos esse imbecil! Considere
apenas o pueril arrebatamento que esse capitão nutre pela Inglaterra. A
Bianca sabe a consideração que os ingleses têm por nós, portugueses e
italianos: pensam de nós aquilo que nós pensamos dos africanos.
E é assim, querida amiga: quanto mais acanhada uma nação, mais difícil é
escolher heróis. Não porque não os haja, pois se há uma criatura que grassa
nessas nações são os heróis. Há em Portugal mais heróis que habitantes. A
dificuldade de escolher está apenas no receio de desagradar.
Nesta ruidosa celebração da vitória a monarquia oculta um futuro que
sabe incerto e sombrio. Prenderam o Gungunhana, levam-no para um exílio
sem fim. Seria preciso um navio do tamanho de um continente para salvar
África da cobiça dos europeus e dos próprios africanos.
O régulo de Gaza sempre foi um empecilho para Portugal, não tanto pelo
que fazia mas por aquilo que não deixava fazer. Dias depois da sua captura,
já os nossos soldados corriam as aldeias a cobrar o chamado «imposto de
palhota». Cada família terá agora que pagar uma meia libra de ouro. Parece
pouca coisa, mas é uma fortuna para quem, sendo camponês, vive longe de
qualquer moeda. Choram as mulheres, lamentam-se os mais velhos: para
auferir um salário, os homens terão que migrar para as minas do Transvaal.
Na ausência de funcionários públicos, enviam de Lourenço Marques
soldados e sipaios. Conhecemos bem os seus modos: ameaçam, exigem
bebidas, mandam matar patos e galinhas. E levam as vacas que
sobreviveram à peste bovina.
Eu mesmo vi uma dessas brigadas chegar a uma povoação e o soldado
português sentar-se em cima de um almofariz, que curiosamente aqui
chamam de «pilão». Não faça isso, pediu um velho homem. Usar o
almofariz como assento constitui um grave sacrilégio, uma ofensa contra os
bons costumes locais. Foi isso que humildemente o camponês explicou ao
cobrador de impostos. Sem se mover, o soldado olhou demoradamente para
o queixoso e disse: Vou corrigir o mal que inadvertidamente pratiquei. E
lançou fogo à casa e a todos os haveres da pobre família. O fogo espalhou-
se, descontrolado, por toda a aldeia. Fosse este incidente um caso isolado.
Mas esta arrogância tornou-se tão generalizada que aqueles que viviam
sufocados pelo tirano de Gaza já dele sentem saudade.
Assim chego ao fim desta já longa carta. Alonguei-me, talvez, porque
sinto próximo o final da minha estada em África. Tenho pena, confesso, de
sair desta terra. A verdade é que Moçambique é que está saindo de mim.
Regresso à pátria sem a glória dos grandes feitos, volto sem ter grandes
histórias para narrar. A única compensação que uma guerra pode trazer a
um militar são os laços que nela se criam com os camaradas de armas. Nem
isso eu ganhei. Fui um soldado sem exército, fui o único ocupante de um
quartel morto e vazio. Ganhei um amor e um filho, dirá Bianca. E conheci-a
a si, acrescento eu.

Conto-lhe apenas a si — pois talvez nunca tenha coragem de partilhar


esta lembrança com Imani — um episódio da viagem que me trouxe de
Portugal para Moçambique. Na passagem pela Cidade do Cabo uma mulher
malaia, de pele tisnada e lábios carnudos, chamou-me para um vão de
escada e, puxando-me com violência de encontro ao seu corpo, ofereceu-se
num longo beijo na boca. «É um war kiss», murmurou ela e sumiu na
escuridão. Esse «beijo de guerra» deveria trazer-me boa fortuna nas
batalhas futuras. Não chegou a haver nenhuma batalha. Aquele beijo,
porém, ainda hoje me salva de mim mesmo nas longas noites de solidão.
Ganhei em África um inadiável desejo de dormir e um incurável medo de
adormecer. Cerro as pálpebras e os mortos abrem os seus grandes olhos
dentro de mim. E apenas a doçura desse infindável beijo me devolve o
sossego.
Despede-se o seu mais fiel amigo

Germano de Melo
PS. Pode suceder que, por um feliz acaso, a minha amiga encontre Imani
durante os festejos de Lourenço Marques. Se isso acontecer imploro que
fale de mim e das cartas que lhe enviei. Se não as recebeu, ela que insista
com o comandante para reaver o que lhe pertence. De qualquer modo — e
para prevenir qualquer dissabor — fiz cópias desses textos. Em anexo a esta
missiva seguem essas reproduções. Entregue-as a Imani, por amor de Deus.
Capítulo 12

Pegadas no orvalho

«… Os teus antepassados foram grandes senhores que


comandaram os exércitos contra o invasor zulu, há dezenas e
dezenas de anos. Mas foram obrigados a submeter-se e a pagar
imposto aos vencedores zulus que ocuparam o território. [...] O
nosso opressor zulu, o Gungunhana, que quis expulsar os
brancos, foi preso por eles e mandado para o Norte. Nunca
mais foi visto…»
(Palavras da mãe de Eduardo Mondlane, primeiro presidente da
Frente de Libertação de Moçambique, quando se lhe dirigia em
criança. In Khambane, Chitlango e André-Daniel, CLERC, 1990,
Chitlango: filho de chefe, Maputo, Cadernos Tempo.
Uma canoa leva-nos, a mim e a Zeca Primoroso, de volta ao Neves
Ferreira. É o próprio sargento Amaral que assume o controlo dos remos. O
silêncio parece tornar o percurso mais breve. A pequena piroga embate no
bojo do Neves Ferreira produzindo um som familiar, igual ao da velha lata
de água descendo ao poço da minha infância. Revejo-me, na minha aldeia,
recebendo o peso do céu sobre os ombros. Quantas nuvens as mulheres já
carregaram à cabeça?
Subo para o convés por uma escada de corda. Assalta-me a mesma
tontura que me atormentava quando caçava morcegos no topo das árvores.
Estou escalando o meu passado, penso. Se me faltarem os pés tombarei não
no mar mas no chão da minha meninice. Meu pai continua a estender os
braços para me amparar. Os seus braços cresceram e dão a volta ao mundo.
Despeço-me de Primoroso, vou avançando no escuro até tropeçar num
vulto. É Dabondi. Está sentada no meio do convés contemplando os seus
próprios pés. Veja!, exclama entusiasmada. Veja aqui no chão uma pegada!
Debruço-me, incrédula. O pavimento é feito de ferro. Dabondi insiste
apontando o que só ela é capaz de vislumbrar. O meu filho Mangueze viajou
neste mesmo barco. A rainha lê o chão como faz um caçador: Por ali
passou o meu menino, além se sentou e chorou. Estava triste e cheio de
fome quando se deitou.
Ajudo-a a erguer-se. Imagina no meu gesto não um apoio mas uma
reprimenda. Explica-se. Naquele momento deixou de ser vidente. É apenas
uma mãe com saudades do filho. E reconstitui o cenário: um menino negro
entrando sozinho num navio, sulcando o oceano sagrado e viajando na
companhia exclusiva de gente branca. Naquele convés restam intactas as
pegadas do medo.

Para a rainha não existem dúvidas: aquele navio, todo de ferro, foi
fabricado a partir de sobras de canhões e espingardas. Por fora cheira a
maresia, por dentro cheira a pólvora. Todas as outras mulheres da corte
perderam a conta aos filhos que pariram. Apenas ela teve um único menino.
Tão franzino tão diminuto, que aconchego encontraria num lugar feito de
restos de canhões?
Olho para Dabondi e penso: a jovem rainha está perdida. Se a vida fosse
justa bastaria ser mulher para se ser rainha. Esta rainha, porém, é a mais
triste e carente das criaturas. Para se sentir viva ela necessita de que o
marido a deseje. Por esta razão as mulheres da corte, todas elas, precisam de
ser belas. Dabondi é formosa mas sabe que a beleza, no desamparo em que
vive, dura pouco. Por isso imita as sombras: todos os dias desaparece. Uma
miragem não envelhece. E é assim que gostaria que o marido, o imperador,
a surpreendesse: uma miragem viajando sobre o mar.

O rei quer ver-te, diz Dabondi. A mim?, pergunto. Não há dia em que ele
não te veja nos sonhos, responde a rainha.
Dabondi conduz-me ao quarto do comandante. É lá que se encontra
Ngungunyane. Tinha acabado de ser interrogado. O interrogatório correra
bem. Só isso explica que Álvaro Andrea tenha deixado que o rei de Gaza
tome conta do seu compartimento. Pede Ngungunyane que Dabondi se
retire. Está preocupado, o soberano dos vanguni: o seu irmão, o rei D.
Carlos não respondeu aos seus pedidos: Zixaxa continua a partilhar o
mesmo espaço, dormindo e conspirando contra ele no escuro. Não
entregaram a minha carta a D. Carlos. Está convencido de que alguém o
traiu, desviando a mensagem para um outro destinatário. Não houve tempo
para que a carta chegasse a Lisboa, digo. Falo em vão. Ngungunyane
apenas a si mesmo se escuta.
— Quer que escreva uma nova carta? — pergunto.
Sorrindo, o rei de Gaza acena com um papel e declara: Já vais tarde,
minha filha. Andrea acabou de me ajudar. Contei-lhe segredos e, em troca,
ele redigiu esta carta. Quem serviu de tradutor foi Godido. Sabe menos
português, diz o rei, mas conhece melhor o que é a lealdade.
Se escolheu outro escrevente por que está aqui comigo? — indago com
inesperada fúria.
Surpreende-me o meu despeito por terem escolhido um outro escriba. A
escrita, percebo então, inverte as hierarquias: quem dita uma carta tem
menos poderes do que quem a escreve.
O rei encosta-se a mim. Esfrega-se voluptuoso. Mantenho-me imóvel à
espera que desista. Pede-me que lhe acaricie os joelhos. Estranha que não
lhe obedeça de imediato.
— Os joelhos — repete o rei. — Vou explicar-te por que um homem
precisa de bons joelhos.
Antes de partir para a guerra um pai de família ajoelha-se frente à sua
mulher e pede que ela pronuncie o nome dos seus amantes. O guerreiro
deve permanecer de joelhos até obter uma confissão de deslealdade. Se, por
acaso, um soldado morrer em combate fica provado que a esposa mentiu.
— Há algo de errado nessa história, meu rei. Nenhum homem se ajoelha
perante uma mulher.
Ngungunyane ri-se, divertido com a minha impertinência. Não entendeste
nada, diz. Não é às esposas que os chefes de família dirigem o pedido.
Seria tempo perdido, as mulheres mentem sempre. Os homens, diz
Ngungunyane, ajoelham-se para que as mulheres pensem que se
apresentam submissos.
Vou-me afastando lentamente enquanto o monarca continua divagando.
Quando dá conta estou no canto oposto do quarto.
— Não vou perder mais tempo — diz Ngungunyane. Quero apenas que
me leias uma carta que ditei a Andrea. — Quero ficar sem dúvidas sobre o
que ele escreveu.
Demoro a recolher a folha que me quer entregar. Dou-me importâncias,
como diria a minha mãe. E percebo, logo nas primeiras linhas, que Álvaro
Andrea foi longe no embelezamento do texto. Ambos aportuguesamos
demasiado as palavras do rei dos vanguni. Vou traduzindo lentamente para
que Ngungunyane me acompanhe:

«Meu irmão,
Rei de Portugal

Venho falar-lhe de traição. Não é este o assunto que mais ocupa os reis,
em todo o mundo? Foi sempre assim: o sangue da família real é o mesmo
que corre nas veias dos seus assassinos.
Desde o início desta viagem que trago um traidor amarrado aos pés.
Quem deu esse nó não foi uma mão branca. Por esta razão lhe agradeço ter
autorizado o meu leal ajudante de campo, o jovem Ngó, a viajar comigo.
Ambos sabemos que, sob a capa de cozinheiro, se esconde uma outra
função: a de provador do rei. E ambos temos que reconhecer: abusamos do
uso desta silenciosa arma. Envenenámos tantos poços que acabámos
matando a nossa própria gente. Guardemos esse segredo. Essa é outra
vantagem do veneno: a morte acontece longe, num tempo que não pertence
a ninguém.
Uma vez mais lhe peço, agora que vai começar a grande viagem: separe
Zixaxa de mim. Esse maldito mfumo que fique longe, onde não veja o meu
sono nem escute os meus sonhos. Os meus companheiros de cela já me
viram dormir, comer, urinar, defecar. Que autoridade posso ter diante deles?
Por favor, meu irmão D. Carlos, afaste de mim esse traidor. Elimine este
homem, ninguém notará, ninguém reclamará. Fica, como o veneno que
usamos em excesso, um segredo entre nós.

O rei de Gaza
Lourenço Marques, 4 de janeiro de 1896»

Terminada a leitura, Ngungunyane espreita o meu rosto, quer ler em mim


o que não é capaz de decifrar no papel. Acha que lhe menti, Nkosi?,
pergunto. Juro-lhe, não inventei uma linha, reafirmo com convicção.
— Eu sei — diz o rei. — Sei por que ficaste tão igual às brancas.
Tudo o que se conta sobre mim, Imani Nsambe, é mentira. As pessoas,
garante o rei, sabem do meu passado. E não é verdade, diz Ngungunyane,
que eu tenha passado a minha infância numa missão católica, longe dos
meus pais e da minha aldeia. Tornei-me assim, tão igual aos brancos, por
obra de um feitiço.
Dabondi percebeu quem tu realmente és — prossegue Ngungunyane. —
Não há como uma feiticeira para reconhecer uma outra feiticeira.
E volta a aproximar-se, untuoso. Sinto os olhos predadores devorando-me
o corpo. És uma feiticeira, Imani Nsambe, é isso que tu és, afirma
Ngungunyane.
— E tu sabes o que fazemos a uma feiticeira: ou a matamos ou...
Encosta-se a mim, roça a mão no meu pescoço, não entendo se me
acaricia ou se me ameaça. Os dedos gordos vão descendo dos ombros até à
cintura. Depois resvalam até aos joelhos. E ali se demoram. Deixa tombar a
tua capulana, ordena ele.
Escuto dentro de mim a voz de uma outra mulher. Essa mulher diz que
devo fingir que obedeço. Este rei que sempre odiei é agora um aliado. Será
na sua companhia que viajarei para Lisboa onde reencontrarei o homem que
amo. Faço que desamarro a capulana e falo-lhe ao ouvido:
— A sua mãe, a rainha Impebekezane, disse-me que não é dos homens
rivais que um marido deve temer. Um homem rival pode roubar-nos a
esposa. Mas o álcool rouba o homem que está dentro do homem... percebe
o que eu digo, meu rei?
Escuta as minhas palavras e desfalecem-lhe subitamente as mãos. Com
fúria contida bate com os pés no chão. Empurra-me, ao levantar-se.
— Quem és tu — grita — para falar da minha mãe? Não passas de uma
mutxopi. A tua gente é dominada pelos brancos.
E passa à ameaça: iria escrever ao rei de Portugal a pedir que me
mandasse de volta para Moçambique. E que arranjassem um novo tradutor.
Aliás, os portugueses já mostraram preferir Zeca Primoroso. Porque deve
ser um homem a prestar estes serviços.
— O teu amigo comandante Andrea foi-se embora. Nesta altura já deve
estar em terra. Deixou-te esta carta — diz Ngungunyane, entregando-me
um sobrescrito.
Capítulo 13

Carta de Álvaro Andrea para Imani

«Gungunhana aceitou entregar-se ao comando do meu navio,


pedindo apenas para não lhe cortar a cabeça e garantia de vida
para os seus filhos e tios. Esse compromisso sagrado em
campanha foi para mim tomado solenemente e cobardemente
atraiçoado depois em Chaimite, sendo deslealmente fuzilados
os tios Queto e Manhune que acompanhavam o régulo
entregando-se».
(Excerto de «A Marinha de Guerra na campanha de Lourenço
Marques e contra o Gungunhana, 1894-1895», relatório da autoria
de Álvaro Soares Andrea publicado nos Anais do Clube Militar
Naval, 1897-1898)

«Morreram heroica e corajosamente os negros Manhune e


Queto e, ao caírem fuzilados, a cada um por sua vez foi-se a
eles o tenente de artilharia Aníbal Miranda e espetou-lhes uma
espada no coração, praticando assim em frente aos soldados
sevícias sobre moribundos indefesos, facto que constitui grave
infração das leis da guerra, punível com a pena de morte pelas
leis militares. […] Esses fuzilados mereciam ter uma estátua
erguida pelos partidários da causa por que lutaram sem virar a
casaca, vátuas de têmpera que souberam morrer no seu posto
de combate…»
(Comandante Álvaro Soares de Andrea, artigo publicado no jornal
O Liberal de 27 de dezembro de 1908)
Lourenço Marques, 5 de janeiro de 1896

Cara Imani

Quem te escreve é Álvaro Andrea. Esta carta é, ao mesmo tempo, uma


declaração de rendição e um pedido de desculpa. Rendo-me a ti com a
mesma verdade com que me envergonho por te ter usado. Fui levado por
um rancor cego contra Mouzinho. Talvez tenha exagerado nesse
ressentimento. Fiz com este adversário o que Portugal fez com
Gungunhana: engrandeci-o para dar sentido à minha vida, puxei lustro à sua
vitória para esquecer as minhas derrotas.
Há mil perguntas que não te cheguei a fazer. Por exemplo: é verdade que
Mouzinho se encontrava bêbado em Chaimite? É verdade que consultou
uma feiticeira para conhecer o desfecho da sua ousadia? Confirma-se que,
durante a caminhada até ao Limpopo, os prisioneiros foram continuamente
espancados?
Esqueçamos estas perguntas. Afinal, esta carta tem outra intenção, talvez
mais egoísta: quero-te mostrar as feridas que a guerra abriu na minha alma.
Talvez te conte tudo isto porque és mulher, porque és negra e o simples
facto de me leres me alivie dos meus tormentos.
Durante os últimos dois meses fui um dos comandantes da chamada
«esquadrilha do Limpopo». A nossa missão era bombardear as populações
de ambas as margens do rio. E foi assim que procedemos: não houve dia em
que as descargas não fizessem estremecer a corveta. No mesmo instante,
com a irrealidade de uma aguarela, o céu se cobria de gigantescos clarões.
Das margens emergiam fumos espessos que antecipavam o poente.
Terminadas as mortíferas bátegas, os meus soldados saltavam do barco e
espalhavam-se pela savana como crustáceos emergindo na maré baixa. A
gente negra contemplava aqueles vultos avançando na neblina. E o que
viam era gigantescos caranguejos trazendo nas garras tochas a arder. Com
esses archotes incendiavam casas e plantações. Dezenas de aldeias foram
arrasadas e as canoas dos pescadores foram afundadas.
Da corveta observava as nuvens de fumo, os dedos entreabertos
protegendo o rosto. Receava ser atingido por uma fagulha e voltar cego a
Portugal. Contudo, sem o saber, eu já estava cego. Os marinheiros traziam-
me notícias da devastação. Não falavam de bases militares destruídas ou de
soldados abatidos. Os que morriam eram civis indefesos. Terminados os
relatos não havia senão escuro em meu redor. Sou um comandante da
Marinha de Guerra. O meu dever seria percorrer as aldeias para avaliar os
estragos. Devia ter tido coragem para enterrar os mortos e socorrer os
sobreviventes. Nada disso fiz. Ficava ali, indolente e trémulo, até que um
soldado me conduzia por um braço até à tenda. Tombava sobre a tarimba,
como quem se afunda no último abismo.
A culpa pesou-me de tal modo que, mesmo quando Gungunhana aceitou a
rendição, não me apercebi do alcance dessa reviravolta. Podia haver
reservas quanto à seriedade do chefes nguni. Mas a mensagem era clara: o
imperador apresentar-se-ia no meu navio desde que nenhum mal fosse
infligido a ele ou a qualquer dos seus parentes. Dei a minha palavra de
honra de que assim procederia. Era essa a minha promessa. Por culpa de
Mouzinho, nada correu como estava previsto.
É este o peso que trago dentro de mim, minha querida Imani. Há poucos
dias um marinheiro tentou confortar-me, convencido de que o meu
abatimento se devia a um desgosto de amor. Antes fosse. A minha vida
sentimental sempre foi um deserto. Lembro-me de uma lindíssima e
misteriosa mulher que, em Lisboa, invariavelmente se fazia presente no
cais. Ainda pensei que se vinha despedir de um dos tripulantes. Soube
depois que procedia assim com todos os navios que partiam. Vestida de
negro, como manda a tristeza, a mulher permanecia no cais até todos terem
regressado a casa. Não arredava do porto até que o navio se dissolvesse nos
seus olhos. Um dos meus adjuntos assegurou que se tratava da esposa de um
marinheiro há muito falecido em terras africanas. Aos poucos a mulher
ganhou o olhar dos cegos: o horizonte era a única terra que conhecia. O
mesmo marinheiro confirmou depois que a «esperadeira» — foi assim que a
nomeou — vinha despedir-se de mim. A mulher confidenciara-lhe as
circunstâncias em que nos havíamos encontrado, eu e ela. Pedi ao
marinheiro que guardasse segredo porque eu mesmo a iria procurar. A
enigmática personagem, porém, nunca mais compareceu no cais. Dizem que
a internaram, enlouquecida. Nunca a visitei, nem sequer procurei saber onde
lhe deram asilo. Tive medo de a reconhecer, tive medo que ela me
reconhecesse. A bravura, minha querida, não nasce de ser pensada. A
coragem não mora no cérebro. Emerge das entranhas.
Confesso agora: essa mulher nunca existiu. Criei essa personagem,
durante anos sustentei essa encenação. Inventei essa história e contei-a
tantas vezes que acabei acreditando que tudo aquilo acontecera. Sendo
mentira, o consolo de ter alguém à minha espera foi sempre verdadeiro.
As únicas histórias que merecem ser contadas são as de amores
desencontrados. Como esta paixão que sinto por ti e que me faz, vezes sem
conta, imaginar que és tu que me esperas num cais qualquer de uma
improvável viagem.
Ainda hoje relato aos meus companheiros o caso dessa mulher que viveu
um amor feito de esperas. Da última vez que o fiz, navegava no Limpopo e
um marinheiro preto declarou: Também tenho uma história para contar.
Começou por relatar uma lenda da sua aldeia, que ficava por ali, na margem
do rio. Antigamente, começou ele por narrar, o firmamento era todo negro,
sem nenhuma estrela. Certa vez uma moça, louca de saudade, decidiu
caminhar pela escuridão em busca do seu amado. No meio da jornada
preparou uma fogueira de uma altura jamais vista. Quando não havia mais
lenha no mundo ela atirou para o topo da pilha os panos com que se cobria.
Assim despida, ateou o fogo e ficou a ver as faúlhas subirem pela noite.
Desse modo nasceram as estrelas.
Por que me contas essa história, rapaz?, perguntei. Apontando a margem
mais próxima, o marinheiro respondeu: Uma noite, deste mesmo barco
dispararam balas de canhão que, como estrelas, iluminaram a minha
aldeia. Essas estrelas, continuou ele, atiçaram a curiosidade das crianças
que, extasiadas, acorreram para o pátio. Nenhuma sobreviveu. Fez uma
pausa e concluiu: Por causa dessas estrelas nunca mais poderei sair deste
navio.
A intenção do marinheiro era clara: queria cravar em mim a lâmina do
remorso. Sucedeu, contudo, o inverso. As suas palavras sugeriam-me uma
saída: não podendo reparar os meus crimes, cabia-me o dever de castigar os
culpados. Decidi não apenas confessar as minhas culpas mas denunciar as
sevícias cometidas pela nossa Marinha de Guerra. Enviei uma primeira
versão desse documento ao Comissário Régio, sem esperança de resposta.
Grande foi a surpresa quando um mensageiro me trouxe uma réplica de
António Enes. Transcrevo aqui uma parte dessa resposta:

«Em qualquer país civilizado atos de guerra como estes praticados pela
nossa esquadrilha do Limpopo, além de serem condenados pelos princípios
humanitários e parecerem repugnantes a briosos cavaleiros, provocariam
reações violentas, reações de ódio e vingança dos povos castigados pelas
culpas do soberano; em África, porém, não se manifestam tais reações,
porque só podem produzi-las noções elevadas de moral e sentimentos de
justiça e de dignidade que falecem aos negros.»

Devia poupar-te a estas ofensas à tua raça. Mas quero que saibas como
pensam aqueles que me comandam. Depois da resposta de António Enes
abandonei a minha lamentação epistolar. Concentrei-me na redação de um
relatório sobre as imoralidades cometidas por Mouzinho de Albuquerque.
Sou ingénuo mas não sou estúpido: ninguém quer saber dessas denúncias. A
aventura em Chaimite, a «Chaimitada» — é assim que lhe chamo — é uma
boia de salvação da monarquia. Será preciso que os festejos esfriem para
que se aceite uma outra versão dessa inventada epopeia.
Talvez Mouzinho te tenha relatado como me encontrou no posto de
Languene. Era Natal e o heroico capitão fez questão de ridicularizar a festa
que eu, com tanto zelo, preparara para os nossos soldados. Pediu-me
emprestada uma espada e, num acometimento absurdo, espetou-a no meio
do pântano. Quem a apanhou foi o tenente Miranda e, por lapso, levou-a
consigo para Chaimite. E o impensável sucedeu, minha cara Imani: foi
exatamente essa minha espada que usaram para trespassar o coração dos
dois fuzilados. Fecho os olhos e vejo sangue. Essa espada golpeia-me o
sono, todas as noites.
Não me verás amanhã no desfile. Estarei longe, de volta ao rio Limpopo.
Não seria capaz de suportar essas exibições circenses. Na verdade, não
diferem muito das encenações dos outros pavões europeus. Grande ilusão!
Reivindicamo-nos donos de um continente que desconhecemos. É mentira
que a Europa tenha conquistado África. Tomam o desejo por realidade.
Apenas comandamos pequenas e dispersas feitorias junto à costa. Essas
feitorias conheço-as eu e elas contam-se pelos dedos. Todo o resto do
continente continua a ser governado por reis e imperadores africanos. Duas
Áfricas se revezam como misteriosas mulheres: uma noturna, outra diurna.
Não conhecemos nenhuma das duas. Para manter a aparência do nosso
poderio, precisamos de exibir o rei de Gaza pelas ruas de Lisboa. Não se
trata de uma deportação. É uma feira.

Saudades.
Álvaro Andrea
Capítulo 14

Desfiles e delírios

Ao atravessar uma floresta um homem foi atacado por


ladrões. Bateram-lhe, despiram-no, arrancaram-lhe os olhos e
amarraram-no a uma árvore. A meio da noite, os olhos do
infeliz começaram a subir-lhe pelas pernas. Queriam regressar
ao rosto. O homem sentiu que os olhos lhe trepavam pelo corpo
e pediu-lhes que o deixassem tranquilo. Por favor não voltem,
implorou. Não me quero ver mais, não quero ver o mundo
nunca mais.
No final desta súplica escutou o rosnar de animais
aproximando-se. Em segundos foi devorado. E nem ossos lhe
sobraram. Umas cordas abraçando o tronco da árvore, foi tudo
o que restou. Não tendo corpo onde morar, os olhos ficaram
errando pelos bosques. É com esses olhos que os viajantes da
floresta veem os seus próprios sonhos.
(Relatos de Dabondi)
Há muito que me esqueci da minha raça, há muito que me distanciei dos
costumes do meu povo. Continuo, porém, a sentar-me como uma mulher
negra: apoio-me sobre as pernas encolhidas lado a lado, um joelho em cima
do outro. O imperador tem os olhos fixos em mim, avalia como sou fiel a
antigos temores, vigia-me as mãos que se conservam respeitosamente
cruzadas.
É manhã. Há poucas horas ainda estávamos no barco. Quando os detidos
entraram na cidade respiraram de alívio. E as rainhas até sorriram. Mas foi
breve a alegria. Apenas transitavam de presídio. E agora, nas traseiras da
prisão de Lourenço Marques, os prisioneiros são divididos em dois grupos.
Um militar angolano empurra-os aos berros:
— Landins para um lado, vátuas para o outro!
— Não existem aqui essas pessoas — murmura Zixaxa entredentes.
Na sombra de uma mangueira encontram-se Ngungunyane e os seus
familiares. Sob uma outra árvore sentam-se Nwamatibjane Zixaxa e as suas
três esposas.
Zixaxa ironiza: em vez de se preocupar em recuperar a coroa real,
Ngungunyane devia pedir às mulheres que o vestissem com o fardamento
dos brancos. É isso que diz Zixaxa. Ou será, pergunta ele, que o soberano
de Gaza já deixou de ser sargento do exército português?
Quer humilhar o rei, quer despromover as rainhas. O que Zixaxa
desconhece é que ele mesmo, o emblemático e orgulhoso rebelde, tinha sido
naquele mesmo dia incorporado no exército português. Todos aqueles
prisioneiros são, desde hoje, membros de um exército contra o qual sempre
combateram. Em rigor, todos eles deveriam desfilar de botas e uniforme na
parada militar que se avizinha. Em vez disso, marcharão descalços e quase
despidos. A raça será a sua farda, a única que os colonos reconhecem.
Aproximo-me de Ngungunyane. Leva tempo para que um rei note a
presença de quem chega. Mais tempo leva se o visitante for uma mulher.
Estou avisada desses caprichos e, por isso, não me dói a espera. Finalmente,
com um singelo meneio de cabeça Ngungunyane autoriza-me a tomar a
palavra.
— Mandaram-me que lhe explicasse o modo como vai decorrer a
cerimónia.
— Vão levar-me amarrado? — indaga o rei.
Devia ser eu a fazer perguntas e a arrancar-lhe segredos. Por isso me
mandaram: para garantir que nenhuma conspiração mancharia a festa.
Decididamente, não tenho competência para vigiar os outros. Rosto
franzido, o imperador vasculha o horizonte. Procura currais, manadas de
bois. E não se depara com nenhum bicho de chifre. Que raio de lugar era
aquele em que só se viam pessoas?
Ocupadas em entrançar a coroa na cabeleira do monarca, as sete esposas
não partilham das inquietações do esposo. Poderá Ngungunyane desfilar
amarrado, mas jamais desprovido do seu chidlodlo. Nenhum cabeleireiro
deste mundo compete com os dotes destas mulheres. Os fios que abraçam a
coroa são feitos de raríssimos materiais: finos tendões retirados do lombo
dos bois. Várias são as cabeças que é preciso sacrificar para obter uma
dezena destas nervuras que são entrelaçadas, uma por uma, com os cabelos
do imperador. Não há nobre nguni que não use uma coroa de cera. Mas
nenhuma delas é entrançada com estes delicados cordões.
Dabondi sai da roda e oferece-me uma cabaça com ukanyu. Recuso,
primeiro. Conheço a minha reação àquela que dizem ser a mais afrodisíaca
das bebidas. Mas acabo cedendo.
— Mandaram vir os ingleses? — indaga o rei.
A pergunta era previsível: o principal destinatário daquela cerimónia são
os ingleses, esses que cobiçam a colónia de Moçambique e que, conforme
se diz em Lisboa, sempre estiveram por detrás do rei de Gaza.
Sabes que dia é hoje? — interroga-se Ngungunyane. Sem aguardar
resposta vai perorando. — Celebra-se hoje o umnkosi nkwayo, a festa dos
primeiros frutos.
Esta festa não pertence aos portugueses. É dele, fazem-na em sua
homenagem. Os brancos apenas a autorizaram. Não a podiam proibir. Os
portugueses pagaram as despesas, mas a festa é contra eles. Assim pensa o
deposto rei de Gaza. E ordena, de braço elevado:
—Vai dizer o seguinte aos teus patrões: os portugueses venceram os meus
soldados mas não desarmaram os nossos deuses.
Penso: o rei está embriagado. As mãos tremem-lhe quando se serve de
uma nova rodada. Aproveita, minha filha, incita-me ele. Esta será a última
vez que nos deliciaremos com as nossas bebidas.
Está empolgado, Ngungunyane. O penteado deixado a meio confere-lhe
um ar ridículo, com um eriçado tufo de cabelos hasteado no alto do crânio.
Deambula o desgrenhado imperador e vai imaginando em voz alta como
seria a cerimónia festiva se estivéssemos na sua corte, em Mandlhakazi.
Seria ele a escolher os bois a serem sacrificados. Escolheria fêmeas como
manda a tradição. Teriam que as cegar antes de lhes cortar o pescoço. Não
podem ver a morte porque se lhes endurece a carne. É assim que me pede,
em segredo, que procedam com ele, quando estiverem para o matar: que lhe
arranquem os olhos. A cegueira, diz Ngungunyane, é uma prenda em tempo
de horrores.
Não me surpreende o enlevo com que as esposas o escutam. Espanta-me,
sim, quanto o destronado rei está a par dos preparativos do desfile. Sabe,
por exemplo, que o seu adversário de eleição, o guerreiro Xiperenyane, se
encontra, naquele preciso momento, a varrer as ruas da cidade.
— Esse grande herói da tua gente, esse tal Xiperenyane, aceitou aliar-se
com os portugueses — comenta o rei. Agora é um escravo dos brancos.
Puseram-no a trabalhar para a minha festa. É um escravo meu. Esse é o
destino dos que ousam enfrentar-me.
Podem manter o imperador amarrado, longe do seu exército, afastado da
sua corte. A verdade é que ele ainda detém uma arma mais poderosa que a
pólvora: as redes de notícias e os boatos. Quem lhe falou do chefe dos
vatxopi não faltou à verdade. Eu mesmo acabara de me cruzar com
Xiperenyane. Frente à casa do Governador lá estava ele de vassoura e balde
nas mãos. Aquele que fora o guia do meu povo, aquele que mais ajudara os
portugueses a derrotar o Ngungunyane, era agora um serviçal anónimo.
Quando o saudei, surpresa e magoada, não me pareceu vexado:
— Ajudo a festejar a prisão do meu maior inimigo. Não é uma alegria
para qualquer combatente?
Realizava-se, afinal, a profecia de Bibliana: Xiperenyane ficara cego com
o falso respeito que antes lhe dedicavam os portugueses. Ali estava, como
ela bem antecipara, o retrato de todos nós, negros pobres, varrendo o mundo
para a festa dos outros.

*
Nunca pensei que houvesse tantos brancos no mundo. Nem pretos, para
dizer a verdade. Mas agora vejo-os, uns e outros, a aplaudir freneticamente
as tropas portuguesas que desfilam na única avenida da cidade. Soldados de
todas as raças fazem continência perante uma tribuna repleta de
individualidades coloniais. No centro do palanque encontra-se o governador
interino, Correia Lança, rodeado por diplomatas de várias nações. Os
lugares de honra foram reservados para os comandantes dos cruzadores
alemão e inglês estacionados no porto. Em redor do estrado aglomeram-se
jornalistas portugueses e ingleses. Naquela tribuna estão, enfim, todos
menos quem mais direito tem de ali estar: o capitão Mouzinho de
Albuquerque. Aquela ausência enerva o governador que, entredentes, vai
repetindo a ordem:
— Chamem Mouzinho! Chamem-no, rápido. Todos o querem aclamar.
Um diligente emissário sai à procura do herói. Sei onde o irão encontrar:
sentado junto ao leito de morte do major Caldas Xavier. Mouzinho
confessou-me no dia anterior: aquele era o pior momento para se festejar.
Vítima de doença tropical, agonizava o grande obreiro da ofensiva militar
portuguesa em Moçambique. E passou pela cabeça de Mouzinho que a vida
era feita de desencontros. Durante meses Caldas Xavier tinha sido
administrador da Companhia de Ópio da Zambézia. Um campo de papoilas
a perder de vista embalou, durante meses, o sono do major português. Esse
mar de flores vermelhas desvanece agora sob as suas pálpebras.
Para os brancos, Caldas Xavier era vencido por uma doença. Para nós, os
negros, o homem era vítima de um serviço encomendado. Na nossa terra
não se morre de um «quê». Morre-se de um «quem». A morte não tem
causa. Apenas culpado.

Mouzinho de Albuquerque finalmente comparece em público e, sem


saudar os dignitários, atravessa a tribuna para se dirigir à multidão. Numa
fração de segundo, os seus olhos cruzam-se com os meus. Saúdo-o,
baixando o rosto. Agradeço assim o lugar que me reservou bem junto à
tribuna. Corpo hirto no limiar do estrado, a voz trémula e enredada no peito,
o capitão Mouzinho faz-se ouvir:
— Não mereço esta manifestação — começa por dizer. A voz lhe vai
crescendo. — Não se homenageia um soldado quando um outro está
agonizando. — E anuncia, comovido. — Meus senhores, Caldas Xavier, o
mais valente dos portugueses, está morrendo.
Faz uma pausa, limpa discretamente o suor no rosto. Suspira fundo e
balbucia:
— Invejo-lhe a sorte, porque morre pela pátria.
Escuta-se então a multidão em clamor: Ainda somos portugueses!
Observo o rosto congestionado dos que gritam, possessos, de tal modo
afogueados que parecem ter mudado de raça. Está demasiado calor para tão
exaltado patriotismo. E então percebo: o que ali se celebra não é apenas
uma vitória militar. O que o capitão trouxe foi um miraculoso remédio para
a acabrunhada existência daquela gente.
De repente, não sei se por causa do calor ou da bebida, uma tontura quase
me atira ao chão. Não tenho em quem me amparar. Estou rodeada de
pessoas intocáveis. Cerro os olhos. As vertigens não param. Devia ter
recusado beber tanto ukanyu. É tarde para voltar atrás.

Terminados os discursos, permitem que os africanos se manifestem desde


que se mantenham no passeio oposto. Estou amparada numa das traves do
palanque, as tonturas agravaram-se e o mundo ficou nublado e longínquo.
Escutam-se tambores, dançam as mulheres enlouquecidas, entoam-se
canções nos mais variados idiomas. A algazarra dos negros torna-se tão
ensurdecedora que os prisioneiros, mais do que os brancos, se encolhem
atemorizados. Permanecem prostrados mesmo depois de Ngungunyane se
levantar em bicos de pés e desatar aos berros. O rei está possuído por um
exaltado espírito. Ninguém entre os brancos percebe uma palavra do que ele
diz. Anuncia o alucinado rei: naquela avenida não está a decorrer um desfile
militar mas a festa dos primeiros frutos. Este é o Nkosi Nkwayo, proclama,
eufórico.
Apontando na minha direção, o rei de Gaza pede que explique aos
brancos as razões da sua exaltação. Os negros prestam-lhe homenagem
como manda a tradição: insultam-no no dia em que nada é sagrado. Esses
nomes feios, intraduzíveis, apenas confirmam a sua divina autoridade.
O som dos tambores faz-me dançar e o chão balança com a embriaguez
do mar. Num ápice, estou aos pulos no meio da avenida. O coração é agora
um tambor e o meu corpo já não me pertence. Olho em redor e tudo é
nevoeiro. Não consigo destrinçar os prisioneiros dos milhares de negros que
assistem ao desfile. Estão todos misturados, os que choram e os que
festejam. E dançam juntos os tiranos e os escravos. Os que antes se
guerreavam estão abraçados na cidade dos brancos. Na mão direita trazem a
azagaia dos zulus. Na esquerda exibem o machado de meia lua dos vandau.
Dos ombros pendem os arcos com que nós, os vatxopi, resistimos à
ocupação dos vanguni. E todos acenam com as mesmas armas com que
foram mortos como se fossem vitoriosas bandeiras. Unidos pelo fracasso, os
vencidos tomam posse da cidade. África conquistou a fortaleza dos
europeus. Xilunguíne engoliu Lourenço Marques.
Aterrorizadas, as autoridades coloniais retiram-se em debandada,
protegendo os chapéus como se tivesse desabado uma tempestade. As
mulheres brancas tiram os sapatos para acompanhar a correria dos maridos
e todos buscam refúgio no palácio do governador.
Estou colada ao rebordo do palanque quando Xiperenyane passa por mim
dançando. Atrás do guerreiro seguem Bibliana — que caminha rezando — e
Chikazi, a minha falecida mãe, que arrasta a corda com que se enforcou. As
duas mulheres atravessam a avenida e aproximam-se de mim. Abraçam-me.
A profetisa Bibliana sussurra-me ao ouvido: Estes que dançam são os
guerreiros que tombaram em Marracuene, em Magul e Coolela. Estão
todos juntos agora. Este é o exército dos mortos, aqueles que não serão
nunca desarmados.
Retenho a mão da minha mãe sobre a minha barriga enquanto suplico em
prantos:
— Mãe, ajude-me. Leve-me para nossa casa.
— Não tens regresso, minha filha. Quando terminar a festa serás
perseguida pelos negros como traidora. E serás repudiada pelos brancos
por causa da incurável deficiência que trazes na pele. Esse é o destino que
escolheste, Imani.
Dançando, as duas mulheres desaparecem entre a massa de gente.
Desvairada, subo ao palco, aos brados:
— Salvem-me, por amor de Deus. Salvem-me!
Aquele lancinante apelo é mais que um grito. É uma alma que expulso
com a violência de um parto. De súbito, todos se calam e aquele imenso
alarido se recolhe como um caracol na concha. Sacudo a cabeça como se me
limpasse por dentro. Regresso, enfim, a mim mesma.
À minha frente estão sentados os dignitários brancos que me fitam
atónitos e de olhos esbugalhados. Em redor, a multidão aguarda, suspensa, o
que se vai seguir. Tal se diz na minha terra, deu-se um nó no silêncio. Devo
estar de tal modo irreconhecível que o próprio Mouzinho se mantém
impávido e distante.
— Quem é esta preta? — pergunta o governador. E ordena aos polícias
que me prendam. É então que Bianca Vanzini irrompe pela tribuna. A
italiana inclina-se numa apressada vénia e declara: Excelências, esta moça
está doente, vou levá-la comigo.
Sem dizer palavra, Mouzinho ergue os braços para os deixar tombar num
gesto de complacência. Sou conduzida pela italiana por entre a massa dos
curiosos que abrem alas fugindo de uma doença contagiosa. Encaminha-me
Bianca pelas ruas desertas da cidade, apressada em se distanciar dos
festejos. A meio do caminho a italiana suspende a marcha e pousa as mãos
sobre os meus ombros. Parece exausta. A voz roça o choro quando me
pergunta:
— O que se passa contigo, minha filha?

Não há vivalma no bordel de Bianca. Passeio pelos corredores, percorro


os quartos forrados a papel cor de rosa. A italiana permite-me que
experimente um vestido de seda vermelha. Enfeita-me as mãos com longas
luvas negras. Elogia-me a figura, lamentando que não tenha aceite o convite
para ser uma das suas damas noturnas. Aceno com a mão enluvada:
— Estou grávida, não tarda que o meu corpo seja apenas uma barriga.
Retira de uma gaveta umas folhas amarfanhadas. São as cartas de
Germano. A italiana faz tenção em clarificar: Estas são as cópias que
Germano fez com o seu próprio pulso.
Não tenho mãos para segurar as folhas que ela me entrega, de tal modo o
coração me sacode o corpo. Quis entregar-tas ontem à noite, diz a italiana,
mas arrastaram-te pela rua e levaram-te para um barco. Algo goteja sobre
os meus sapatos. Os papéis estão encharcados. Pendem-me das mãos com o
peso de uma coisa morta.
— Por que é que as guarda todas molhadas? — pergunto. — Como quer
que as leia, se escorrem água?
O olhar angustiado de Bianca é de quem não me reconhece. Não há,
garante, uma gota de água nesses papéis. Quer tocar-me o rosto, hesita.
Quer acariciar-me os cabelos, a mão recua. Por fim, pede-me com doçura:
— Devolve-me as cartas, Imani. Deixa que as leia para ti.
Passo-lhe os papéis, que gotejam. A italiana demora a examinar-me,
incrédula. Meneia a cabeça e começa a ler. Vai movendo os lábios mas não
escuto senão o rumor de um rio, esse mesmo rio em que eu e Germano
fizemos amor.
Terminada a leitura, estou vazia. O que sobra em mim não é mais do que
uma raiva surda contra Álvaro Andrea. Como ousou guardar o que não lhe
pertencia? Rodopio pelo quarto amaldiçoando o comandante dos olhos
rasgados: Eu mato aquele branco!
— Acalma-te, rapariga — ordena Bianca. E manda que me sente e
escreva a Germano. Eu entrego-lhe a carta — diz ela —, quando ele por
aqui passar.
Demoro a libertar-me das luvas, com a arrastada tristeza da serpente
largando a pele. Quero escrever. Não sei como começar. O ódio a Andrea
pesa mais que a saudade de Germano. Escreverei mais tarde, prometo à
italiana. A mão dela enrosca-se nos meus cabelos crespos e, como
aconteceu no nosso primeiro encontro, dissolvo-me nessa carícia.
— Ainda este ano vou visitar-te a Lisboa — declara Bianca. — Porque
também me vou embora. Volto para Itália.
Bianca abre as janelas e o suspiro dela confunde-se com a poeira que se
solta dos cortinados: Mouzinho quer sair da vida; eu apenas anseio sair de
África.
Faz de conta que espreita pela janela. A mão acaricia o pano da cortina
como se buscasse um amparo.
— Não é a morte — diz ela — que esse capitão deseja.
Mouzinho espera por um amor que não pode nunca acontecer. Todos
falam da sua impossível paixão por Dona Amélia, a distante rainha de
Portugal: Ao menos, ele ainda espera, suspira a italiana.
E Bianca culpa a vida, culpa a cidade que antes a tinha salvado. Espreita o
movimento da rua que fervilha de gente. Àquela hora, negros e brancos
ainda partilham o mesmo espaço.
— Sabes o que mais me cansa na tua terra, Imani? É o choro das
crianças.
Noutros lugares, declara Bianca, as crianças choram como quem aprende
a rezar: esperam que as coisas melhorem. As crianças africanas não.
Choram sem voz, choram para si mesmas, como se vivessem o seu último
dia. As lágrimas imitam-lhes as barrigas: inchadas mas sem nada dentro.
— Volto para Itália, a gente volta sempre a casa. — E sorri, com tristeza.
— Da primeira vez que regressei ninguém me reconheceu na minha aldeia.
— Tinha ficado fora muito tempo — sugiro como explicação.
— Não foi por causa do tempo. Não me reconheceram porque voltei feliz.
A italiana dobra as cartas de Germano e mete-as no bolso. Uma mancha
de tinta desponta no seu vestido.
Capítulo 15

Uma submissa desobediência

Dizem os padres que depois de morrermos vamos para o céu.


O meu céu está no chão, Imani. Todos os dias vou pisando a
minha futura morada. Há muito que vivo no céu. Quando
morrer gostaria de ir viver para outro lugar.
(Zixaxa)

«Você é um idiota, meu caro Álvaro. Podia simplesmente


ignorá-lo. A vida, porém, ensinou-me que são os idiotas quem
mais devemos temer.»
(Extrato de mensagem de Mouzinho de Albuquerque para Álvaro
Andrea)
Passei a noite numa cama de bordel, em lençóis que nunca acolheram o
sono de ninguém. Há muito que me esqueci do que era um leito. Talvez por
isso tenha dormido tanto e tão profundamente.
Manhã cedo, desperto com a suave voz de Álvaro Andrea. O português
esperou pelo fim do desfile para desembarcar.
— O que faz no meu quarto?
— Trouxe-lhe um agrado.
— Trouxe-me as cartas?
— As cartas?
— As cartas de Germano.
— Devo confessar uma coisa — diz Andrea. — Essas cartas já não estão
comigo. Mouzinho levou-as.
O capitão Andrea parece abatido. Não me tinha entregue as cartas,
admite, porque as usou como moeda de troca para que eu lhe prestasse
declarações. Aos poucos, foi percebendo que a razão dessa demora era
outra. Mantinha, confessa, a esperança de que eu esquecesse Germano.
— Peço perdão, Imani. Traí um companheiro, desiludi uma amiga.
E prossegue sem levantar o rosto. O desespero de não ser amado
envenenou-lhe a alma. O amor move montanhas. Mas o desamor cria
abismos. Assim se lamenta Germano.
— Vá-se embora, comandante — murmuro.
Ergue o braço. O gesto é autoritário. Já não me pede. Exige que o escute.
E relembra o que lhe sucedeu: há dias Mouzinho surpreendeu-o escondendo
papéis na algibeira. Acreditando tratar-se do relatório que o denunciava,
ordenou que lhe revistassem os bolsos da farda e as gavetas do quarto.
Deste modo, Mouzinho se apoderou das cartas de Germano. E não mais as
devolveu.
— E por que não as pediu de volta?
— Morrerei sem ficar a dever um favor a esse impostor, diz Andrea! Eu
sei que Germano não me perdoará. E tu passarás a odiar-me. Mas eu não
poderia ter agido de outra maneira.
— Vá-se embora, comandante — peço, impaciente. — Por favor, deixe-
me sozinha.
O português permanece impassível. Depois de um tempo, estende-me o
braço com a amabilidade de um noivo:
— Venha, vou-lhe mostrar a cidade.
Recuso, delicada mas firme: Não o quero ver, digo, não quero falar
consigo.

Da janela vejo Álvaro Andrea afastando-se. E admito: é um homem muito


belo. Há nele um desamparo e uma delicadeza que não se coadunam com o
seu estatuto militar. Estes atributos deixam-me confusa.
Dou um tempo e depois saio de casa sem reparar como é inapropriado o
meu modo de vestir. O mesmo lugar que ontem me pareceu resplandecente
surge agora cinzento e acabrunhado. As ruas estão ainda molhadas do
chuvisco noturno. Arrasto pelos lamacentos passeios o vestido que Bianca
me emprestou.
Tabuletas em português assinalam os nomes das ruas. Todos os outros
letreiros estão escritos em inglês. A própria cidade é designada por
«Delagoa Bay». Sigo pela Rua dos Mercadores que, à luz do dia, parece
murcha e vazia. Mais além tomo a Rua da Gávea e cruzo com vendedores
indianos que, no passeio, me chamam com o seu curioso sotaque:
— Entre na loja, minhe filhe! Podi ver, não cussste nada!
Detenho-me no último arruamento, a chamada Rua da Linha. Ali se
alinham velhos candeeiros de ferro onde se queimava óleo de baleia. Tudo
isso é agora apenas uma lembrança. Os postes evocam-me uma terrível
lembrança: o corpo da minha mãe balançando na árvore onde se enforcou.
Viro costas ao tempo, afasto-me do pântano que ali começa. Os candeeiros
são sentinelas da fronteira que separa dois mundos em guerra.
De repente, da ombreira de uma porta irrompem três marinheiros.
Rodeiam-me, ameaçadores. Um deles comenta: É a primeira vez que vejo
uma puta preta assim tão fina! Empurram-me para um vão de escada.
Dividem tarefas, em silêncio, como se violar uma mulher fosse uma
habilidade congénita. Um deles segura-me as pernas, o outro prende-me os
braços. Um terceiro, deitado sobre mim, rasga-me a roupa e baba-se no meu
peito. Grito por ajuda. Parece que os meus berros os excitam ainda mais. Sei
que desisti quando, mais do que qualquer outra dor, sinto uma lágrima
escorrendo pelo rosto. Sucede então o que não poderei nunca descrever.
Porque, de repente, estou envolta em sombras que esbracejam, desabam e
depois se reerguem e fogem. Sinto o alívio dos desenterrados. Reabro por
completo os olhos para deparar com o rosto de Álvaro Andrea. Ajuda-me a
levantar. Espera em silêncio que me recomponha.
Em silêncio, regressamos ao bar de Bianca. O português estende a mão
para me ajudar a vencer os charcos de água. Demoro a corresponder à
simpatia. Finalmente os nossos dedos tocam-se. Mas logo me solto com
vigor. Pronto, já chegámos, defendo-me apressadamente. Bianca — que já
ouvira falar do incidente — espera-nos à porta. Acolhe-me nos braços e
reconforta-me: Pronto, já estás em casa. Nunca uma casa alheia me pareceu
tão minha.
Por alguma razão, Bianca recorda o falecido marido chegando a casa a
meio da noite. Embriagado, o homem anichava-se num recanto protegendo-
se das embaraçosas perguntas. Não sei, mulher, a que horas cheguei a casa,
dizia ele. Quando entro em casa deixa de haver tempo.
— Os homens — ri-se Bianca, servindo-se de um licor feito de limão. —
São como este licor, os homens: doces quando os queremos amargos, rudes
quando os esperamos amáveis.
— Dona Bianca, peço-lhe: devolva-me as cartas de Germano. Sei que são
cópias. Mas valem mais do que as originais.
A italiana vacila como se vasculhasse nos confins da memória. Faço-a
lembrar que no dia anterior me tinha lido as duas cartas.
— Arrumei-as no meio da roupa. Terei que as procurar.
— Lembra-se do que diziam? — pergunto.
— Minha querida, as cartas de amor nunca dizem nada.

Almoço com a italiana. A mulher partilha mais a palavra que a comida.


Conta-me histórias. Sabe tudo de todos os clientes, desde os militares aos
missionários. Um dia escreverá um livro divulgando segredos que
comprometam os mais notáveis.
— Chamam-me a dama das mãos de ouro. Mas nada se vende tão caro
como o silêncio.
Passam por nós prostitutas que acabam de acordar. Têm o olhar
arrelampado das aves noturnas.
— Lembro-me perfeitamente do nosso primeiro encontro. A senhora foi a
primeira mulher branca que vi na vida.
Lembro esse momento, acontecido há meses na minha aldeia. Recordo o
perfume adocicado da italiana e o seu sotaque ainda mais doce. E volto a
sentir as suas mãos penteando-me os cabelos. Parecia um simples gesto mas
poucos instantes perduraram tanto em mim. Estava ali uma mulher branca
dizendo que os meus cabelos eram lindos, assegurando que não precisava
escondê-los sob um lenço. Impossível esquecer a sua triste confissão: que
tinha vindo para África para deixar de viver. E que Lourenço Marques lhe
tinha parecido, então, um bom sítio para se morrer.
— E o seu príncipe encantado? — pergunto.
— Que príncipe? — retorquiu a italiana.
— A sua louca paixão por Mouzinho?
— Isso são águas passadas — afirmou, sorrindo.
O amor, acrescenta Bianca, é a mais passageira de todas as doenças
mortais.

Ao fim da tarde vou visitar Ngungunyane à prisão. Recebi essa instrução


do diretor do presídio. Está preocupado com o estado de abatimento do
prisioneiro. Passou a noite sob vigilância reforçada. Logo a seguir ao desfile
encafuaram-no numa cela isolada. Temem a companhia dos outros
prisioneiros. Mas receiam, ao mesmo tempo, que o isolamento agrave o seu
já debilitado estado de espírito. É por isso que reclamam os meus préstimos.
Os guardas fazem girar ruidosamente a chave despertando o sonolento
prisioneiro. Ngungunyane olha-me com surpresa: sabe da interdição das
visitas. Sentado com uma garrafa no colo o rei é a imagem do desânimo.
Peço licença para lhe fazer companhia.
— Tu que és branca quase de nascença: sabes quando é que eles me vão
matar?
Calada, deixo-o sofrer. Cada segundo do meu silêncio é uma lâmina que
lhe rasga a alma. Sei que me contempla, perplexo. Admira, como já
confessou, a minha beleza. Mas não concebe a minha desobediência. Por
isso, volta à fala.
— Tenho uma proposta para ti: vamos fazer uma aliança.
Começa por admitir que tenho poderes. E que os meus poderes são
maiores do que os que ele alguma vez deteve. Sou, diz ele, a única preta que
os portugueses escutam. Propõe que invente uma diferente versão para os
acontecimentos. Uma versão que lance as culpas sobre Nwamatibjane
Zixaxa.
— Protegi Zixaxa com riscos que ninguém pode avaliar. Os portugueses
fizeram-me guerra por causa de Zixaxa. E agora esse tipo culpa-me por o
ter entregue aos portugueses?
Resistiu para além do que todos esperavam. Só entregou o refugiado dos
mfumos quando já não tinha escolha. A vida é ingrata, lamenta
Ngungunyane.
— Zixaxa anda por aí a propalar que sou igual aos brancos e que
atormento os meus irmãos negros. Diz que molesto os mais desgraçados,
que maltrato os meus escravos. Mas eu pergunto: o que é que ele faz com a
sua gente?
O imperador de Gaza tem razão, apetece-me dizer. Sucede sempre assim:
os humilhados acabam por ficar iguais aos opressores.
— Estou muito triste, preciso de um consolo — queixa-se o rei. —
Levanta os teus panos, quero ver as tuas pernas.
Fecho os olhos, inspiro fundo. O simples pedido já me agride. O rei
percebe o meu mal-estar. E murmura: Está certo, então traz-me mais uma
garrafa de vinho doce.
Retiro-me. Ngungunyane ainda resmunga antes que fechem as portadas.
Quando ele se encontrar com o rei de Portugal não terá nada para lhe dar.
— Vou oferecer-te a ti — ainda o escuto gritar. — Mas primeiro tenho
que provar a qualidade da prenda.

No dia seguinte Álvaro Andrea volta a passar pelo estabelecimento de


Bianca. Uma vez mais convida-me a passear pela cidade. Ante a minha
recusa, o português argumenta:
— Este será o nosso último encontro. O teu barco sai amanhã.
Acabo por ceder. O português leva-me para uma encosta coberta de
hortas. Aqui e ali, mulheres indianas laboram nesses campos com os seus
coloridos saris. Ali nos sentamos a olhar a azáfama que começa a agitar a
cidade. Carroças puxadas a burros trazem bóeres do Transvaal e ingleses do
Natal. Viajam estes desgraçados — comenta o português — atraídos como
mariposas pela boémia noturna que, nas suas terras, foi proibida pelo
puritanismo.
Os primeiros edifícios de pedra e cal foram construídos por negros. Um
pedreiro, um carpinteiro e um ferreiro vieram de Inhambane para fazer as
obras. A eles se juntou um calafate local. De tanto trabalhar com estopa
alcatroada, o calafate tinha os dedos completamente negros. Levantava-os
com orgulho e proclamava: Eu é que sou o verdadeiro negro.
Rimo-nos. E de novo os nossos dedos se entrelaçam até que, suave mas
resolutamente, me afasto de Andrea. E interrogo-me sobre o que faço ali, de
mão dada com um homem tão inesperado e diferente? Em algum lugar
Germano espera por mim. E eu espero por ele com igual devoção. Esse
lugar, contudo, vai-se esbatendo como as pegadas que juntos, eu e Andrea,
vamos deixando na estrada de areia molhada.

A um certo ponto, cruzamo-nos com um velho curandeiro. Andrea saúda-


o com «senhor doutor». E não há ironia. Até há pouco tempo não havia
médico em toda aquela povoação. Os brancos eram tratados por este
nyamussoro da etnia dos mfumos. O velho curandeiro ri-se quando Andrea
evoca esses tempos. Por cada soldado que curava, recorda num improvisado
português, ele recebia uma capulana. E como os brancos não parassem de
adoecer, o homem acumulou panos até não ter casa para os guardar. Perdeu
a conta aos casamentos que contraiu para dar destino a tanto tecido.
— Cuidado com as mulheres — avisa o velho curandeiro apontando para
mim. — Não há melhor doença.
É então que surge, afobado, o tradutor Zeca Primoroso. Está
irreconhecível, olhos arregalados, cabelos desgrenhados. Pede ao curandeiro
que se afaste. O que nos quer dizer é confidencial.
— Fui mobilizado, capitão. Vão enviar-me para a frente de guerra.
Primoroso vem de uma reunião de emergência no Comando Militar do
Sul, onde atuou como tradutor. Chegaram à cidade informações
preocupantes sobre a situação que se vive em Gaza desde a prisão do rei. Há
sinais de que o exército dos vanguni se reorganiza.
— Ouviste o Ngungunyane comentar sobre este assunto? — pergunta-me
o português.
Encolho os ombros. Faço por esquecer o que, nos últimos dias, o rei
deposto não parava de repetir: Esta guerra não está a voltar. Ela nunca
chegou a sair.

Até há momentos eu era o centro do mundo. Num instante, torno-me


invisível. As novidades de Gaza ocupam totalmente Andrea e Primoroso.
Quem tomou conta das terras do imperador foi uma elite composta por
soldados brancos ou africanos de origem angolana, para além dos sipaios
locais. Colocaram-nos em funções mas não lhes deram meios de
subsistência. Vivem de violar as mulheres e saquear os bens da população.
— E Maguiguane? — pergunta Andrea.
— Maguiguane anda de aldeia em aldeia a mobilizar a gente para a
revolta — responde Zeca. Por onde passa o guerreiro nguni vai
proclamando aos berros: «Vambuyisa inkosi», Devolvam-nos o rei, é o seu
clamor.
— Lá volto eu para o inferno do Limpopo — queixa-se Andrea.
Se a guerra vai recomeçar, então novos contingentes serão enviados para
Gaza. O mais provável é que o transfiram para voltar a comandar a corveta
Capello.
Despedem-se Zeca e Álvaro. A magra figura do tradutor desaparece entre
os edifícios. O regresso a casa de Bianca é feito em silêncio. À porta do
bordel pergunto ao capitão:
— E Germano? Acha que também o irão mobilizar?
Álvaro Andrea encolhe os ombros e começa por dizer: Quero lá saber... E
logo muda de tom, envergonhado: Germano vai-se safar, basta que invoque
os ferimentos de guerra. Eu é que não tenho ferida que me salve...
Penso nas mãos de Germano. Mas são as mãos de outro homem que
apertam as minhas em atabalhoada despedida.
Capítulo 16

Nem juba nem coroa

No início do tempo,
havia apenas uma aldeia e um poço.

A isso se resumia o mundo:


uma aldeia e um poço.

Certa vez, ao encher o cântaro,


o homem deixou cair os olhos dentro do poço.

Mergulhou os braços cegos no escuro


e percebeu que o poço não tinha paredes.

E o homem sentiu
que era chamado pelas águas sem fundo.

Quando encontrou os olhos


tinha nascido o mar.
(Lenda contada por Dabondi)
Não me deixam sair da prisão onde acabei de conversar com
Ngungunyane. Por um momento sou apenas mais um dos prisioneiros. Os
militares dizem que dali partiremos todos diretamente para o cais. É noite
cerrada quando nos fazem seguir silenciosos e em fila indiana para o porto
de Lourenço Marques. Conduzem-nos assim pelo escuro com medo de uma
emboscada. Até que vislumbramos as longínquas luzes de um navio que nos
espera na baía. Com receio de cair, apoio-me no ombro de Dabondi que
segue a meu lado. Ela repele o meu gesto. Deixe-me tropeçar, o que mais
quero é cair, declara. E acrescenta em surdina: É a última vez que pisamos
a nossa terra. É pena que caminhes calçada, Imani. Todas nós, diz ela,
vamos partir acompanhadas: a poeira dos mortos agarra-se para sempre aos
pés.
Se já era grande o barco em que viajáramos, este outro parece maior que a
cidade de Lourenço Marques. O África é tão imenso que não pode atracar
no cais. Se o fizesse, ao encostar em terra todo o continente se quebraria. É
por isso que somos transportados em barcaças para bordo. Durante a breve
viagem as mulheres mantêm-se cabisbaixas. Apenas eu contemplo o céu
estrelado. Dabondi manda-me que baixe os olhos. Vou ser mãe, não devo
encarar as estrelas.
O comandante está à nossa espera como se nos recebesse à porta de casa.
É um homem calvo, rosto largo e um sorriso bondoso. Está fardado a rigor,
o casacão azul-escuro contrastando com quatro barras douradas sobre os
ombros e as mangas. As medalhas que traz ao peito são tantas que parece
envergar uma armadura.
— Sou capitão de fragata e o meu nome é António Sérgio de Sousa —
anuncia o comandante. Aponta para uma atarracada criatura perfilada a seu
lado: — Este é o meu adjunto, o sargento Júlio Araújo.
O sargento é a imagem invertida do comandante: estatura baixa, face
escavada, cabelos negros juntando-se a uma barba cerrada, olhos fundos
quase ocultos pelas sobrancelhas espessas.
Ngungunyane é o primeiro prisioneiro a entrar. Fica especado perante o
comandante, impedindo a passagem dos que o seguem. De repente verga-se
numa pronunciada vénia. Apoiando-se no meu braço, declara:
— Diz-lhe que sou filho dele.
O comandante sorri, incapaz de entender. Pede ao rei de Gaza que se
levante mas este insiste em se manter ajoelhado. Repuxando-me a capulana,
Ngungunyane pergunta em xizulu:
— Este não é o rei D. Carlos?
Custa-me, admito, ver humilhado aquele que tanto obrigou os outros a se
ajoelharem. Traduz, Imani!, volta a pedir Ngungunyane. Diz-lhe que sou
seu filho, sou filho do rei de Portugal! Tomando as mãos do comandante, o
prisioneiro passa da bajulação à súplica: Não me leve, por favor, eu já estou
morto, estou muitíssimo morto. A mando do sargento Araújo arrastam
Ngungunyane enquanto ele continua proclamando o seu próprio óbito.
Findo o desfile dos primeiros prisioneiros, passam por nós mais trinta
detidos, encabeçados pelo missionário protestante Roberto Machava. Estes
outros negros, capturados em Lourenço Marques, têm um destino diverso:
serão exilados em Cabo Verde, acusados de conspiração contra a pátria
lusitana. Nenhum deles sabe dessa acusação, nenhum deles sabe que pátria
é essa que tanto ofenderam.
Aos berros, o sargento Júlio Araújo toma conta das operações: Separem
já os presos em dois grupos, senão nunca mais conseguimos! Esses gajos
são todos iguais. E ordena que sejam inspecionados. Não vá suceder algum
deles suicidar-se pelo caminho. Ele próprio procede à revista de cada um
dos prisioneiros. Demora-se acintosamente na inspeção das mulheres.
— Deus nos proteja, comandante, que levamos demónios no porão —
declara Júlio Araújo.
E todos os brancos se benzem, ao escutar as palavras do sargento.

Sob escolta, fazem-nos descer por uma escada de ferro. Conduzem-nos


depois por um corredor iluminado por trémulos candeeiros de teto. Escuto
Ngungunyane balbuciar: Este barco é o meu caixão de ferro. As rainhas
desabam em pranto quando encaram o escuro cubículo onde serão alojadas.
— Explica-lhes como serão distribuídos — ordena-me o sargento.
É um milagre que dezasseis pessoas caibam em tão minúsculo
compartimento. Dois tabuleiros suspensos um sobre o outro servirão de
cama para todos os presos, homens e mulheres. Vou traduzindo as
instruções: no tabuleiro superior repousarão o rei e todas as suas mulheres.
Em baixo e à entrada, deitar-se-ão Godido, o cozinheiro Ngó e Mulungo.
No mesmo tabuleiro, mas mais ao fundo, dormirão Zixaxa e as suas três
mulheres.
Os dezasseis prisioneiros de Gaza são encafuados no cubículo e a porta é
trancada à chave. Destinam-me uma cela separada, uma espécie de despensa
localizada mesmo em frente ao compartimento da gente de Ngungunyane.
Roberto Machava e os trinta presos de Lourenço Marques são
encaminhados para um porão de carga. Quando se abre o alçapão, o pastor e
os seus comparsas recuam aterrorizados. Reina entre eles a ideia de que o
porão dos navios é um buraco escuro que se abre para o fundo do mar. É ali,
nessas profundezas, que queimam os escravos e, depois, com as cinzas dos
ossos fabricam a pólvora.
— Não acredito nisso — digo.
— Não acredita? — pergunta um dos presos. — O que aconteceu aos
nossos irmãos que foram levados? Algum voltou? — e remata, com
absoluta certeza: — Comem-nos.
Um outro prisioneiro alerta: Nesta viagem ninguém aceite comer carne!
Estaremos a comer a nossa gente.
— Façam como quiserem — concedo.
— Querem que engordemos. É o que eles querem.

Antes de o navio levantar âncora peço ao sentinela que me deixe subir ao


convés. Preciso de um pouco de ar, argumento. Só então reparo: o soldado
é mulato. Observo, absorta, a cor de bronze da sua pele, os cabelos de largos
caracóis. E penso: o meu filho será assim.
— De onde vens? — pergunto.
— Venho da casa das máquinas — responde. —Estou sujo, coberto de
poeira.
Não entendeu a minha pergunta, não entende o meu sorriso. Subimos as
escadas em silêncio. À entrada do convés faz um gesto como se me abrisse
um invisível cortinado. E regressa ao posto de vigília.
O convés está repleto de passageiros que assistem à largada do navio. Não
deixa de haver ironia nesta triste fatalidade: um navio chamado África
afasta-me do continente africano, com um filho mulato na barriga e
deixando o meu homem branco em terra de negros.
— Não podes estar aqui — avisa-me.
Mas logo escuto António de Sousa corrigindo a anterior interdição:
— Deixa-a comigo, marinheiro.
— Estou grávida, capitão — desabafo, envergonhada da minha triste
figura.
Aponta para os meus pés e sacode a cabeça em desagrado.
— Peço desculpa, senhor capitão — murmuro. — Os pés já não me
cabem nos sapatos.
Somos cercados por outros passageiros, civis e militares, que querem
assistir à largado o barco.
— O soldado tinha razão, tens que ir lá para dentro.
— Deixe-me ficar, por favor. Eu volto a calçar-me...
A questão não era os meus pés. O comandante demora-se nos números,
não me quer magoar. Tinha a bordo duzentos e sessenta civis e mais de
duzentos militares. Cerca de quinhentos passageiros queriam assistir à
partida e nenhum deles gostaria de se cruzar com uma mulher da minha
raça.
Os sapatos pendendo na mão, inicio o caminho de regresso quando
António de Sousa revê as suas intenções.
— Podes ficar além, naquele canto escuro, ninguém dará pela tua
presença.
Com esforço volto a calçar-me. E lembro o meu irmão Mwanatu, com
aquele juízo toldado, que tanta felicidade lhe trazia, rezando a Deus para
parar de crescer e, assim, os pés lhe coubessem para sempre no seu único
par de sapatos.

Autorizaram que Dabondi se juntasse a mim na amurada. A rainha senta-


se de costas voltadas para terra. Encorajo-a a contemplar as luzes da cidade.
— Quem quer fugir olha apenas para a frente — afirma ela.
Passa por nós um casal que se espanta com a nossa presença. O marido
comenta, não imaginando que percebo português: Aposto que fazem parte
de um grupo folclórico de dança para entreter os da primeira classe. E a
mulher remata: É o que eles sabem fazer, é dançar.
E afastam-se rindo. A rainha contempla o casal e, quando as vozes e os
risos se dissipam, confessa que não esperou por mim para começar com as
lições de português. Quem a está a ensinar é Godido. Quando me vê sorrir,
reage: apenas precisa de noções básicas.
Prometo que lhe darei aulas. Sugiro que partilhemos o mesmo quarto.
Dabondi recusa: até ao fim dos seus dias dormirá junto do marido.
— Mas o rei dorme entre Muzamussi e Tuka.
— Não me interessa com quem se deita — argumenta Dabondi. — É só
comigo que ele sonha.
A rainha revê os nomes das restantes esposas. Conta-as pelos dedos,
como se conferisse as pedras de um rosário. E volta a enunciar os nomes:
Muzamussi, Namatuco, Patihina, Machacha, Xesipe e Fusi. São sete
esposas, diz ela. Mas apenas eu protejo os sonhos do rei.

Naquela noite Dabondi não protegeu o esposo dos pesadelos. De


madrugada, Ngungunyane acorda aos berros: Não fui eu, não fui eu! O
alvoroço instala-se no quarto, os pontapés na porta de ferro ecoam pelo
corredor e alarmam o sentinela de serviço. Abrem a porta de ferro, amarram
os pulsos a Ngungunyane e mandam que os presos se juntem no corredor.
No cubículo apenas resto eu, o rei e o furibundo sargento Araújo.
O rei demora a retomar a respiração. Está completamente nu, a coroa de
cera amolgada, uma baba escorre-lhe pelo queixo. A medo vai revelando os
demónios que lhe roubaram o sono. O pesadelo ainda não lhe saiu da
cabeça: uma canoa aproxima-se da praia, trazendo um corpo. A uma certa
distância apercebe-se de que é o seu irmão Mafemane que vem dentro da
embarcação. O rei mantém-se afastado da água: o mar é um território
interdito. Quando a canoa toca a areia ele constata que, na realidade, se trata
de um caixão. Nesse esquife aberto o irmão vai falando como fazem os
mortos: sem mover os lábios.
— Meu irmão Mundungazi — pede-lhe o falecido —, tens que fechar este
caixão.
Ngungunyane fica preso ao chão: para colocar a última tábua sobre a
canoa precisa de entrar pelo mar adentro, impensável heresia. Mas se não
fechar o caixão será visitado pelo morto a vida inteira. Com horror vai
avançando de encontro às ondas enquanto tenta, em vão, puxar a canoa para
terra. A embarcação fúnebre está temporariamente encalhada num banco de
areia. Mafemane volta a falar: Entra no caixão e rememos os dois para
terra. As ondas são agora mais altas, os pés do rei deixam de tocar o fundo.
Não lhe resta alternativa senão saltar para dentro da improvisada
embarcação. Assim que o faz, a tampa do caixão cai sobre ele. O escuro que
se instala é o mesmo que reina no cubículo onde os portugueses o
encarceraram. O navio é o caixão onde viajam ele e Mafemane, o seu
efémero irmão, esse eterno moribundo.
O sargento manda-me que ajude o imperador a recompor-se. Para isso
levam-no a passear pelo convés. Enroscado numa manta, Ngungunyane
caminha com pequenos e arrastados passos.
— É o rei dos pretos — declara um dos passageiros.
Traduzo para que Ngungunyane perceba que há quem o reconheça.
Parece sorrir mas é um esgar triste o que se lhe desenha no rosto. O
imperador sabe dos poderes que acabou de perder.
— Diga-me uma coisa, Imani: não há, em todo este navio, um pedaço de
terra que possa ser escavada?
Mais do que ignorância, reina a ilusão em Ngungunyane. Todos, afinal,
sabemos: não é em terra que sepultamos os mortos. Os que partiram apenas
no nosso peito encontram sossego. O irmão que mandara matar, o
Mafemane, saiu da vida mais vivo do que entrou.
Ngungunyane procura com os pés descalços uma impossível fenda no
chão de metal. Sente saudade da areia onde se adentram a chuva, o orvalho
e o sangue. Fecha os olhos e vê um rio vermelho escorrendo entre as áridas
paisagens do seu reino.

O pesadelo de Ngungunyane perturbou a falsa harmonia entre os presos.


Quando o rei regressa à cela, os detidos estão concentrados no corredor.
Zixaxa encontra-se algemado a uma trave e, assim que vê chegar o rei de
Gaza, desata a vociferar:
«Não te iludas, Ngungunyane. Os portugueses não te levam porque sejas
grande. Levam-te por causa dos ingleses. Não penses que te estão a matar.
Pelo contrário, salvam-te de seres morto pela tua gente, no teu próprio
reino. Os vatsonga não te respeitam, os vatxopi odeiam-te, os vandau não
te reconhecem autoridade. Os mabuiendjela, esses que antes te veneravam,
cuspiram nas tuas pernas quando foste preso. Já não és nada, não tens
amigos, não tens irmãos, estás só com as tuas mulheres. És apenas mais
uma delas, és uma rainha viúva. Para os portugueses deixaste de servir
como inimigo. No final desta viagem já nem como troféu de guerra terás
utilidade.»
Godido e o cozinheiro Ngó esperam por um sinal para fazer calar Zixaxa.
As rainhas olham ansiosas para o marido. Ngungunyane limita-se a
praguejar em surdina:
— Não chegaste a pronunciar uma palavra. Tudo o que fizeste não foi
mais do que latir. Não passas de um cão.
Os soldados repõem a ordem, os presos voltam a ser encafuados na cela
escura. De regresso ao meu cubículo vou forçando passagem por entre os
militares que se juntaram no corredor. Os olhos dos homens dizem que sou
uma mulher. Escuto-lhes os desejos. Mas não me tocam. A curva no meu
ventre anuncia que, em breve, serei mãe. Abro a porta com uma certeza: não
passo de uma menina. Talvez menos que isso. Porque adormeço enroscada,
os joelhos tocando o rosto. Na mesma posição em que, dentro de mim, vai
dormindo o meu filho.
Capítulo 17

Bartolomeu
e o caminho marítimo para o céu

«... Tem razão Dabondi quando diz que o navio é uma prisão.
O oceano é tão infinito que cria um sentimento de clausura. O
ruído da quilha rasgando as ondas, o subterrâneo vibrar das
hélices, o lúgubre lamento das chaminés, o metálico correr da
âncora: tudo isso me traz uma fadiga milenar.
O Gungunhana está certo quando se lamenta que não existe
neste navio uma pedra onde se possa sentar. Já quase não há
madeira nos barcos de hoje. Agora as embarcações pedem
pouco ao vento. Tal como essas mulheres, que pararam de
sonhar e se deixam engordar, estes navios deram-se ao luxo de
ser pesados.
Não posso dizer quanto me cansam estas ambulantes prisões.
Apesar de tudo, sempre que me demoro em terra volto a ser
tentado pelo chamamento de um mar longínquo. E, de novo,
me faço ao cais, de novo sigo viagem.
Essa é a indecifrável sedução do mar: nenhuma voz é tão
humana, nenhum silêncio é tão cheio de histórias.»
(Excerto do diário do comandante
António Sérgio de Sousa)
À saída de Lourenço Marques a rainha Dabondi vaticinou que ia chover.
Uma água lê-se noutra água, disse ela fixando-me demoradamente os
olhos. Tinha razão a rainha: desde ontem que chove tão intensamente que se
deixou de ver o mar.
Atravesso lentamente o convés como se marchasse por dentro de uma
nuvem. Fui chamada pelo capitão António Sérgio de Sousa.
Sacudo as vestes e a medo entro no camarote do capitão. O aposento é
espaçoso e iluminado. A primeira coisa que vejo é um pássaro pousado no
ombro do português. O bicho espreita-me, curioso, numa postura híbrida
entre príncipe e palhaço. Depois assusta-se e bate as asas para se refugiar
numa gaiola pendurada no teto. O comandante chama-o: «Bartolomeu!» E o
pássaro, um papagaio do Congo, responde: «Pronto, meu capitão!» Salta
para a mesa e caminha com o andar oscilante dos anões.
— De vez em quando suja-me os mapas — lastima-se o comandante.
O papagaio ensaia um desajeitado voo que faz sobressair a cauda
vermelha por entre a plumagem cinzenta. Pergunto se devo fechar a porta.
Deixe-a aberta, recomenda Sousa. Bartolomeu criou as suas rotinas:
esvoaça pelo convés, em pleno mar alto; em terra não sai do camarote, com
medo das gaivotas.
— Quanto ao pássaro estou tranquilo. Não estou certo é se não devemos
separar esse Zixaxa do rei de Gaza.
— Zixaxa não vai molestar Ngungunyane.
— Como podes estar tão certa?
— Zixaxa acredita que se Ngungunyane morrer vocês, os portugueses, o
atiram ao mar. Sem o rei, nenhum dos prisioneiros tem mais valor.
A intenção de António de Sousa é oferecer o papagaio ao filho, que vai
completar oito anos. O menino nasceu na Índia mas cresceu em África.
Agora está em Lisboa e sofre de asma. Acredita o capitão que o filho sente
falta dos céus africanos. Não é no chão, é nos céus que ele mais encontra
África.

*
— Não foi por causa de um papagaio que te chamei — diz o capitão
sacudindo as mãos, como se lhe ardessem os dedos. Está a enxotar-me. A
minha visita não se pode prolongar. Sou o comandante, diz ele, não me
podem ver fechado contigo nos meus aposentos.
Chamou-me porque está preocupado. Um dos presos do porão, desses do
grupo de Machava, suicidara-se na noite anterior. O capitão receia que mais
presos lhe sigam o exemplo. Mandou que lhes melhorassem a dieta. Não
resultou. Aquela gente carecia de um conforto espiritual. O que falta em
bem-estar pode ser compensado pela crença.
— Esta gente — diz ele — é muito crente.
Seria de toda a conveniência que os presos acreditassem que os deuses
protegiam o barco e abençoavam a viagem.
No dia anterior tinha convocado Roberto Machava. Sabia da influência do
pastor junto dos restantes negros. O encontro aconteceu naquele mesmo
camarote. Sousa explicou a sua intenção. Iria juntar os presos numa grande
assembleia para que o pastor conduzisse uma bênção africana e, assim,
garantisse que o barco chegaria a bom porto. Uma benção africana?,
perguntou o pastor Machava. Peço perdão, mas há aqui um engano,
acrescentou ele. Sou um missionário cristão. Não tenho crenças africanas.
Eu e o senhor partilhamos o mesmo Deus, o único que pode abençoar este
barco.
Sem uma palavra, António Sérgio de Sousa deixou que o pastor se
retirasse. Mas não desistiu. Foi por isso que me chamou esta manhã e me
transmitiu com estranha pressa:
— Não resultou com o pastor. Mas vai resultar com a rainha feiticeira.
Vais trazê-la ao meu camarote. E quero que os presos saibam que a vou
receber. E saibam que, aqui, no meu camarote, ela vai abençoar a nossa
viagem.

Acompanho a rainha ao camarote do capitão. Dabondi resiste, no início.


Não quer que os demais prisioneiros saibam que atira os búzios no quarto
do capitão. Vão dizer dela o que já dizem de mim: que se vendeu aos
brancos. À entrada a rainha reage, de modo ríspido:
— Só entro nesse quarto se esse branco me der notícias do meu filho.
O capitão reage, solícito. Anota o nome que a rainha lhe dita ao mesmo
tempo que vai soletrando: «Man-gue-ze». Por que razão, pergunto-me, os
nossos nomes se enovelam tanto na boca dos portugueses?
— Envio já uma mensagem para Lisboa! — promete António de Sousa.
— Amanhã saberemos do paradeiro desse rapaz.
Ainda assim, a rainha hesita em entrar. Esse pássaro, diz ela apontando
para Bartolomeu. E o comandante apressa-se a engaiolar o papagaio.
Por fim a adivinhadeira senta-se na alcatifa e retira de uma sacola os
ossinhos mágicos. As instruções do comandante são claras: Diz-lhe que se
demore o tempo que for preciso. É bom que todos saibam que ela esteve
aqui. A rainha vai invocando os nomes dos defuntos que o português lhe vai
ditando. A seu modo pronuncia aqueles nomes e a maior parte deles torna-
se irreconhecível para António de Sousa. Os tinhlolo espalham-se pelo
chão: mais que búzios são ossículos, sementes, conchas. Cuidado com as
sementes, adverte o português. O Bartolomeu chama-lhes um figo!
Dabondi vai balançando, fungando, espirrando, tossindo e, por fim, entra
num convulsivo transe. Com os olhos revirados e a voz desfigurada ela
anuncia: Há um homem descalço atravessando um rio que desce dos céus.
Nessa terra chove tanto que ninguém precisa de abrir um poço...
— É o Congo! Só pode ser o rio Congo! — exclama o capitão Sousa.
— O comandante acha que nos transporta como prisioneiros — declara a
rainha. — Mas o único prisioneiro é o senhor. Este barco é a sua prisão.
Olhos cerrados a rainha sublinha cada palavra com um embalo do corpo.
Vou-lhe seguindo as palavras e os gestos com tal entrega que o comandante
me pergunta:
— Por que gesticulas tanto quando traduzes?
— Porque quando traduzo eu sou ela.

Sonho que viajo num navio comandado por um capitão negro. O navio
chama-se Europa e tem o casco pintado de cores garridas como os panos
africanos. Os mastros são árvores e dão sombra ao convés. O vento espalha
folhas sobre o mar.
Um roçar de dedos na porta interrompe-me o sonho. Deve ser Dabondi,
penso estremunhada. Dou um jeito ao cabelo e, com inesperada dificuldade,
amarro uma capulana à cintura. Estou de cinco meses, não tarda que seja
devorada pela minha própria barriga.
Voltam a bater. Entreabro a porta. É o missionário Roberto Machava.
Mãos apressadas antecipam-se ao rosto do visitante:
— Vê este desenho — pede-me.
Estremeço. É um desenho a cores que, em criança, fiz para o meu pai.
Nele se via uma aldeia queimada e corpos jazendo no chão. Sob as figuras
está escrita uma legenda, uma jura de vingança contra as tropas de
Ngungunyane.
— Como conseguiu este papel? — pergunto, alarmada.
Deixa-me entrar. Não posso falar aqui no corredor.
Venha noutra altura.
Este é o melhor momento. Estão todos distraídos com a chegada à
próxima cidade.
O pastor entra e fica encostado à porta como se a quisesse duplicar. Deixa
de falar português e explica-se na sua língua materna. Machava tinha
passado pelo Save e visitara o meu pai, Katini Nsambe, e a sua atual esposa,
a profetisa Bibliana. O meu pai estava certo de que o missionário me
encontraria em Lourenço Marques. Quando lhe entregou o desenho, o meu
velhote foi categórico: «Entregue a Imani para que ela não se esqueça do
que prometeu.»
— Fiz a mesma promessa — afirma Machava. — Também busco a mesma
vingança e preciso da tua ajuda.
— Peça ajuda a Zixaxa.
— A todos menos esse. Estou preso, junto com os meus companheiros,
graças a esse traidor.
Reabre a porta e espreita o corredor, a confirmar que ninguém nos
escutava. Depois volta a trancar a porta. O seu rosto está perto do meu
quando confessa: Estou a preparar uma revolta. Sacudo a cabeça e ele
repete: É o que estou a preparar, uma sangrenta rebelião. O plano é
simples, mas de uma lógica arrepiante: vai matar o rei de Gaza. Sem
Ngungunyane, os portugueses chegariam a Lisboa de mãos vazias, sem
prova da arrebatadora vitória que tanto proclamavam. Se o matássemos
agora, argumenta Machava, seria impossível preservar o cadáver até
chegarmos a Lisboa. As nações europeias pensariam que Portugal tinha
forjado uma desajeitada encenação. O plano do missionário fechava com
chave de ouro: no interior de Moçambique os religiosos protestantes
clamariam que Ngungunyane continuava vivo, errando pelas montanhas do
Transvaal. E quem, neste mundo, poderia provar o contrário?
— Vou dizer-te o que deves fazer — declara o missionário.
— Não! Não me diga nada. Não estou preparada.
Uma terrível dúvida me assalta: se Ngungunyane morrer na viagem, por
que motivo continuariam a levar-nos até Lisboa? Seríamos certamente
abandonados em Luanda ou em Cabo Verde. Nunca mais veria Germano,
nunca mais o meu filho conheceria o pai. Fiz uma promessa de vingança, é
verdade. Mas não tenho que a cumprir agora.
— Escuta, minha filha.
— Vá-se embora, pastor Machava. Vá-se embora ou eu grito!
— Pensa no que te pedi — murmura o pastor à saída.
Passa pelo sentinela, que dorme. Vejo-o desaparecer no porão. Tranco a
porta e suspiro. Várias angústias me roubam o peito: a minha recusa em ser
cúmplice de um assassinato não basta. É imperioso fazer abortar aquele
plano. Há que denunciar, sem demora, as intenções do missionário. Não é
difícil, porém, adivinhar as consequências dessa denúncia: lançarão ao mar
o Machava e os seus correligionários. Resta-me a impossível escolha entre
dois crimes.

O África aproxima-se agora de uma terra que não é igual a nenhuma


outra. No horizonte se adivinha a Cidade do Cabo. Um maciço de
montanhas cinzentas emoldura a cidade. Contemplo aquelas montanhas
como, na prisão, o condenado espreita uma nesga de céu.
Vigiados por militares, os presos são autorizados a disfrutar da paisagem.
Dabondi junta-se a mim e ao capitão. Aperta-me as mãos, fascinada pela
visão de um continente que parece acabado de nascer. E profetiza:
— Virá o dia em que um negro conduzirá um navio como este. Depois
dirige-se a mim para ordenar: Traduza, Imani. Esse português deve saber
desse futuro.
— Só se o mar se tornar um rio — contesta António de Sousa, assim que
lhe traduzo o presságio.
— O mar sempre foi um rio — afirma Dabondi.
Rimo-nos eu e o comandante. No rosto da rainha se esboça um vago
sorriso. O português olha em redor com receio de que alguém nos
surpreenda naquela animação. Inclinado sobre a rainha pergunta: É bom ver
terra, não é?
Não espera resposta. Quer apenas ser escutado. A noite passada não tinha
pregado olho pensando nas palavras de Dabondi. A rainha tinha razão:
aquele barco era uma prisão. Durante a insónia pensou nos colegas que
abandonaram a Marinha e se puseram a deambular por terras africanas. Não
escolheram tornar-se pioneiros. Estavam apenas cansados da clausura do
mar. As feras, a selva e as tribos primitivas, tudo isso era preferível à eterna
solidão do oceano.
É bom ver terra, repete para si mesmo. Antes de se retirar, o comandante
transmite ordens ao sargento Araújo:
— Vá lá abaixo com estas duas mulheres e prepare o régulo para receber
as visitas. Dê-lhe vinho e uma roupa apresentável. Quero o homem num
brinco.

Vestido com trajes europeus, o rei de Gaza é deixado sozinho no seu


aposento. Todos os restantes prisioneiros são transferidos para o porão.
Com exceção de Dabondi, que permanece a meu lado.
— Vocês as duas vão para o quarto e esperem lá por mim — ordena
Araújo.
O navio está imobilizado, desligaram as caldeiras. Procederão assim
sempre que o África chegar a um porto. Há que poupar no carvão. Sem o
aquecimento a funcionar, o frio toma conta do navio. Na penumbra do meu
cubículo encosto-me a Dabondi como se fôssemos um só corpo. Com as
mãos a rainha faz uma concha com que me aquece o ventre.
A porta abre-se bruscamente para dar passagem ao sargento Araújo. Um
estranho brilho se acende nos olhos ao surpreender o gesto de ternura de
Dabondi. O compartimento é exíguo, mas o militar considera que há espaço
para três. E incentiva-nos: Continuem, continuem, quero ver essas carícias!
Não é a mim que ele deseja. Sou demasiado próxima, demasiado europeia.
Os seus devaneios são com as esposas do rei, cujos nomes não saberá nunca
pronunciar. O temor de contrair doenças é, no entanto, maior do que o
desejo que sente por elas. Limita-se a violá-las em sonhos, sem ter que as
olhar nos olhos e sem o incómodo de lhes cheirar o suor ou o risco de
apanhar doenças.
Deve imaginar que eu e Dabondi nos acariciamos com despudor. E que o
fazemos para o excitar.
— Encostem-se mais. Quero ver-vos como marido e mulher — ordena o
sargento.
A mão de Araújo esgueira-se por dentro das calças, os olhos babados
antecipando-se à própria visão. Como nos mantivéssemos estáticas, o
militar ergue o tom de voz e exige:
— Mostrem as mamas!
Não é dos que gritam que deves ter medo: era o conselho da minha mãe.
Os verdadeiros malvados, dizia ela, nunca elevam a voz. Se o aviso é
verdadeiro, os berros deste homem não me deveriam atemorizar. E,
contudo, há nele algo que me provoca um calafrio.
— Estamos grávidas — advirto.
— Não estão — diz o sargento — mas vão engravidar não tarda nada.
A rainha levanta-se e deixa tombar a capulana. O sargento dá um passo
atrás, surpreso ao ver a mulher despida, o pano rendido junto aos pés. Mais
estupefacta fico quando a rainha pede que me dispa também. Sacudo a
cabeça, receosa de que lhe tenha escapado o que ali se passa. De um puxão
Dabondi arranca-me o vestido. Estamos ambas nuas, indefesas perante o
desaustinado português.
As mãos de Dabondi avançam, provocantes, na direção do sargento, que
já vai fechando os olhos. Mas o gesto tem outra intenção. De um puxão, a
rainha abre a porta e apressadamente me empurra para o corredor. Ele que
nos siga, como fazem os bois no cio, declara a rainha enquanto, despidas e
de mãos dadas, avançamos pelos subterrâneos do navio. Subimos a escada
que desemboca no convés. Até onde irá este branco?, indaga Dabondi. Só
então entendo o estratagema de Dabondi: a nudez que tanto nos fragiliza
era, naquele caso, a nossa melhor defesa. Num lugar aberto como o convés
estaríamos defendidas dos avanços de Araújo. Atrás, muito atrás, escuta-se
o sargento pontapeando as paredes do navio.
Capítulo 18

Um involuntário suicídio

Através do teu coração passou um barco


Que não para de seguir sem ti o seu caminho
(Sophia de Mello Breyner, in Navegações)

«Oh Daude! Daude!, vai dizer ao administrador Madekhise


que chegaram uns brancos e prenderam o carrasco. Oxalá o
encontre!»
Extrato de uma canção dedicada à prisão de Ngungunyane. A
canção foi composta pelo maestro Katine Nyamombe e
apresentada pela sua orquestra de timbilas durante a visita do
presidente Óscar Carmona a Magul, no Sul de Moçambique, em
1939. Daude era um funcionário da administração de Zavala.
Fomos avisados nós, os negros: estamos interditos de sair do navio. Esta é
a regra na Cidade do Cabo. Permite o comandante que ocupemos o convés e
nos deleitemos a observar a permanente azáfama de cargas e descargas que
reina no cais. Os prisioneiros apontam para as maquinarias do porto à
procura de nomes que não existem nas suas línguas. Depois, riem-se,
divertidos, por verem tantos mulatos carregando pesados fardos. Não são
como os mestiços da nossa terra, que se mantêm afastados do trabalho
penoso. E riem-se os meus irmãos destes mestiços, que transpiram como
mineiros escavando no chão do inferno. Só eu não me rio. E penso no meu
futuro filho. Será um eterno estivador carregando o peso da sua própria
pele.
Durante horas consecutivas, jornalistas, diplomatas e missionários sobem
a bordo para entrevistar Ngungunyane. A Cidade do Cabo era a primeira
montra fora de Moçambique onde se expunha o rei africano. Num recanto
do convés, os portugueses prepararam um cenário à altura: sentaram o rei
numa poltrona de cabedal, com vestes emprestadas e umas botas militares
que lhe pesam como chumbo nos pés. Não imaginam os estrangeiros as
desumanas condições em que viaja o entrevistado. O rei sorri e acena para
cada um dos visitantes. Nenhum deles lhe devolve a simpatia.
Ao meio dia, já sem visitas, o cozinheiro Ngó traz-nos de comer.
Ngungunyane está feliz e serve-se com os dedos curtos e gordos. O
imperador está longe de imaginar que, naquele navio, gente da sua raça
congemina planos para o eliminar.

Sentada no meu leito, Dabondi arregala os olhos escutando os ruídos que


chegam do cais da Cidade do Cabo. Quantos dias faltam para chegarmos a
Lisboa?, pergunta ela.
— Não chegámos sequer a metade da viagem — respondo.
A rainha retira um guarda-sol do meio da tralha que se acumula no
pequeno quarto. Quer passear pelo convés mas não se quer bronzear. As
mulheres escurecem e deixam de ser desejadas, declara. Os homens negros,
diz ela, aprenderam a achar feia uma mulher de pele escura.
Dabondi recusa a oferta da minha companhia. Ela não está só. Godido
espera por ela ao fundo do corredor, com um par de sandálias pendendo na
mão direita. O príncipe tinha desfeito a sua própria coroa real para com ela
fabricar uma espécie de sandálias. Converteu o diadema numa pasta escura,
separou-a em dois pedaços que cobriu com tiras de lona. Dos tirantes que
sobraram fez um par de atacadores. A rainha sabe que as improvisadas
sandálias serão de pouca utilidade. A chapa metálica do convés é uma
panela fervendo. Uns breves passos e nada restará da intenção do generoso
enteado. E, contudo, aquelas sandálias são a melhor prenda que recebeu em
toda a sua vida.
Vejo-a afastar-se pelo corredor, empunhando o guarda-sol como se fosse
a mais luminosa das bandeiras. Apoiada no braço de Godido, ela sobe
lentamente a escada cuidando mais em preservar o calçado do que em
acertar nos degraus. No topo da escadaria é abraçada pela luz. A rainha e o
seu enteado entram na infinita roda do Sol.

Momentos depois, Dabondi irrompe pelo quarto. Vem alterada do passeio


com Godido. Encosta-se a mim para exibir um golpe fundo no pulso.
— Lutámos — suspira a rainha.
Na tradição do seu povo, amarram duas longas varas ao corpo das esposas
infiéis. Depois, em cerimónia pública, furam-lhes os olhos com um ferro
pontiagudo. Não é, contudo, a ideia da punição que a perturba. Não é sequer
a briga que teve com o enteado Godido. É o ferimento que abriu no pulso.
Cortou-se e não sangra, é isso que a assusta.
— O meu sangue parou. Secaram-se-me as veias.
Estende os braços exibindo a mais fatal das doenças. Toda ela estremece,
subitamente frágil. Pela primeira vez sou eu que a devo consolar. Não sei o
que fazer. De modo tímido, quase absurdo, sento-me a seu lado e abro o
guarda-sol. Dentro do quarto encostamos os ombros como se fôssemos
feitas de uma só sombra. E ficamos em silêncio até sermos surpreendidas
por berros vindos da cela de Ngungunyane. Vieram tirar-lhe as medidas e,
mais uma vez, pensa que o preparam como antecipado cadáver. Sou
chamada a intervir e a passar-lhe a tranquilizadora mensagem: na próxima
paragem, em Luanda, os portugueses vão comprar roupas para ele e para
todos os cativos. Não nos querem proteger do frio. Pretendem apenas que
desembarquemos com o mínimo de decoro em Lisboa.
A explicação não tranquiliza Ngungunyane. Por que motivo lhe vestiam e
tiravam roupas? Já tinha sido despido e vestido por mim. Aceitara, primeiro,
porque eram mãos de mulher. Desta vez são homens que lhe medem os
braços, as pernas, o pescoço, a barriga. E logo a barriga! Só pode haver uma
razão para tamanha humilhação: os carcereiros tinham-se tornado carrascos.
Por isso, o imperador tenta furiosamente escapar das malfadadas medições.
Não o medem a ele. Avaliam, sim, o tamanho do futuro caixão.
Ngungunyane chama por mim e pede que interceda. Faço de conta que não
escuto. Deixo-o sofrer. Às vezes, o único ato de coragem consiste em não
fazer nada.

As caldeiras voltam a ser aquecidas. Como uma serpente invisível, a


eletricidade circula de novo em todo o navio. Estamos de saída do posto do
Cabo quando o sargento Araújo entra no meu compartimento sem pedir
licença. Revolve o quarto com os modos de um marido desconfiado. Os
dedos lentos percorrem os panos que pendurei num varão. Arrasta o gesto
como se acariciasse um corpo. Depois, pergunta: Não tens nada para mim?
Nego com a cabeça. Ele insiste: Tens a certeza? Ante o meu obstinado
silêncio atira os meus panos para o chão.
— Então vamos embora — declara. — O comandante chama por ti.
Apressa-me para que saia daquele cubículo mas não se afasta da estreita
passagem, obrigando-me a espremer-me entre ele e a parede húmida.
Respiro o seu hálito azedo enquanto, com a mão felpuda, apalpa o meu seio:
— Não te armes em esperta — avisa. — Estou de olho em ti, minha
pretinha.
Ordena que siga à sua frente. Sei o que pretende: acariciar-me as nádegas
e as coxas enquanto caminho. O corredor é curto, os dedos dele trabalham
freneticamente até que, uma vez no convés, o pudor se sobrepõe ao desejo.
No camarote da ponte, sentado na sua secretária, o comandante Sousa
sacode um telegrama:
— Triste notícia! Morreu João Mangueze, o filho de Gungunhana que
vivia em Lisboa.
Escuto-o como se falasse de um desconhecido: o filho de Gungunhana? E
demora a fazer-se luz. Para mim, João Mangueze era apenas filho de
Dabondi.
— Já falei com Gungunhana — prossegue o capitão. — Pediu-me que
fosse eu a anunciar a triste nova à mãe.
Ngungunyane tinha recebido a notícia com mais medo que tristeza.
Estava receoso, como confessou, da reação de Dabondi. Teme ser acusado
de cumplicidade num eventual assassinato. Ou mais grave ainda: será
suspeito de feitiçaria.

Em criança — e muito antes de atravessar o mar — João Mangueze tinha


sido enviado para a Escola de Artes e Ofícios na Ilha de Moçambique.
Regressou meses depois com novas sabedorias mas com graves
esquecimentos. Esquecera-se, por exemplo, de que o destino de um jovem
nguni é a guerra. Da escola veio só metade da pessoa que Ngungunyane
tinha enviado. Diluíram-lhe o sangue guerreiro dos Mangueze e o rapaz
recusava-se a partir para o campo de batalha. A simples ideia de matar
alguém o fazia chorar. O imperador deu ordem aos guardas para que,
durante a noite, acompanhassem o filho ao curral, o obrigassem a degolar
um boi e depois o deixassem amarrado aos chifres do defunto. Essa
experiência iria endurecer o filho. Na manhã seguinte a mãe encontrou João
coberto de sangue e reconduziu-o a casa envolto num manto para que
ninguém o visse regressar naquele deplorável estado.
O comandante Sousa necessita agora da minha ajuda para dar a notícia à
mãe. Não apela para as minhas competências linguísticas. Sou chamada na
condição de mulher.
Foram buscar Dabondi, encontraram-na sobre o meu leito, sentada com o
guarda-sol aberto. À porta do comandante a rainha hesita. E pergunta-me,
de cabeça baixa, voz quase sumida:
— Foi João?
Dou um passo para o exterior, quero segurar-lhe as mãos, mas a rainha
evita o contato. Impotente, fico a ver os seus pés descalços a afastarem-se.
Tem razão Dabondi: há pegadas que se imprimem sobre o ferro.
*

Foi há instantes que Dabondi recebeu a mais grave das notícias mas
parece ter passado um século desde que ela desapareceu. Sozinha no meu
cubículo temo que, desesperada, se tenha lançado ao mar. E eis que, de
rompante, se abre a porta da minha cela e surge Dabondi escoltada por dois
militares. Vem desgrenhada e coberta de cinza. Empurram-na para cima do
leito enquanto lhe ordenam, aos gritos:
— Vais ficar aqui quietinha!
E mandam que traduza: a partir daquele momento, a rainha ficará
enclausurada no quarto com um guarda à porta.
— O que aconteceu? — pergunto.
— A tua amiga tentou suicidar-se. Desceu à casa das máquinas e tentou
atirar-se para o forno. Se não fôssemos nós seria agora um pedaço de
carvão.
— Pedaço de carvão é o que ela sempre foi — ironiza o outro militar.
Suspendem as gargalhadas para me advertirem de que, a partir de agora, me
compete cuidar de Dabondi. A rainha não tem qualquer importância para os
portugueses. Convém, todavia, que o número das prisioneiras negras se
mantenha intacto. Quanto mais mulheres forem exibidas em Lisboa mais o
rei se apresenta como autenticamente africano. É o que dizem os soldados.
Toma conta dela, repetem ao se retirarem. Do lado de fora escuto a chave a
rodar. E percebo então que, doravante, faço parte dos prisioneiros.
Fico um tempo a contemplar a rainha. Falta-lhe corpo, falta-lhe vida.
Mais do que nunca estou desvalida. Perante o tamanho daquela dor qualquer
tentativa de conforto se torna ridícula. De repente, Dabondi ergue-se como
se a alma tivesse deixado de lhe pesar:
— Abram a porta. Quero falar com Ngungunyane.
Negoceio com os guardas. São irredutíveis, a rainha não pode sair. Em
contrapartida, autorizam que o rei se desloque até ao nosso quarto. Minutos
depois, apresenta-se Ngungunyane. Dabondi não espera que ele cruze o vão
da porta para declarar:
— Todos pensam que Mangueze era o teu filho preferido. Todos acham
que foi por amor que o enviaste para Lisboa. Foi o contrário: querias
afastá-lo. Esperavas que ele fosse devorado pelo mar.
— Dabondi, minha esposa — apela o rei. — Queres acusar-me porque
estás a sofrer.
— Não sou tua esposa — responde Dabondi. — Nunca fui mulher de
ninguém. Saberás o que é o peso da culpa. E não haverá bebida que te
alivie.
Seguem-se as ameaças. O imperador sofria de maus sonhos? A partir de
agora teria pesadelos mesmo quando não sonhasse. E de pouco lhe valeria o
suicídio. Mesmo depois de morrer esses fantasmas não deixariam de o
consumir. E Dabondi termina, rainha em exercício, dando ordem aos
portugueses: Levem-no, não o quero ver mais.
Ngungunyane retira-se, em silêncio. A porta fecha-se. Só então Dabondi
desaba em pranto.

A notícia de uma morte espalha-se sempre mais célere que o vento. No


ambiente enclausurado do navio, a novidade do falecimento de Mangueze
difunde-se num piscar de olhos. Alertado pelo luto que atingiu a família
real, Roberto Machava solicita permissão para falar com o comandante. Na
presença de António de Sousa o missionário faz uma vénia e, em português,
expressa-se com uma eloquência que a todos surpreende:
— O presos querem rezar uma missa por alma de João Mangueze. Peço-
lhe autorização para usarmos a capela.
— Não sei se posso — responde o comandante. — Quem manda na
capela é o padre Martinho, que adoeceu e teve que ficar na Cidade do
Cabo.
O sargento Araújo intromete-se na conversa. Sabe das fragilidades de
António de Sousa, receia que ele reincida nas condescendências com os
negros.
— Desconfie deste preto que aqui se apresenta falsamente humilde —
declara Araújo —, este preto que se diz missionário não passa de um
subversivo que obedece aos interesses dos protestantes. Pergunte-lhe,
senhor comandante, se ele sabe que a capela é um lugar de culto católico.
— Ensinaram-me que temos um único Deus — alega o pastor.
— O Deus é único, mas tem diferentes rebanhos — riposta o sargento.
O missionário afasta-se. Quando passa por mim pergunta se pensei no
«seu assunto».
Capítulo 19

Os amnésicos defuntos

Certa vez viram um pescador abrindo uma cova enorme na


praia. Perguntaram-lhe o que fazia. Apontou para uma canoa
velha, na duna, já meio despedaçada. Tinha sido a embarcação
com que, durante anos, se fizera ao mar, bem para além da
rebentação. De tanto cavalgarem juntos sobre as ondas, homem
e barco se afeiçoaram a ponto de o pescador apenas adormecer
aconchegado no fundo da embarcação.
— Quando os barcos morrem é preciso dar-lhes enterro.
No final, espetou um remo junto à campa. Quando fez o sinal
da cruz ecoou-lhe no peito o som de madeira ao ser percutida.
(Diário do capitão António Sérgio de Sousa)

Na arte de matar não evoluímos muito desde os tempos


primitivos. A bala o que é senão uma pequena pedra que
aprendeu a voar?
(Roberto Machava)
Durante toda a noite o imperador Ngungunyane clamou aos berros que
era «filho do rei de Portugal». A lancinante reclamação reverberou com
nitidez no nosso quarto.
À força de tanto gritar pelo pai português, o imperador esqueceu-se de
que acabara de chegar a notícia de que um filho falecera. Varreu-se-lhe da
ideia o nome desse rapaz. Quer invocar os antepassados e nenhum lhe
comparece. Em pânico, manda que os parentes se aproximem e murmura:
Os brancos querem matar-me. Mas eu adiantei-me. Já embarquei morto.
Apreensivas, as esposas entreolham-se. Todas sabem que não existe neste
mundo mais grave transtorno que essa súbita amnésia. Mais grave que o rei
esquecer-se dos seus mortos é que estes deixem de se lembrar dele. Inúteis
se revelam os esforços para reabilitar o esposo.
— Dabondi, faça alguma coisa — implora uma das rainhas.
Muzamussi, a esposa predileta, ergue o braço em silenciosa proclamação.
Apenas a ela compete apaziguar aquele caos. Faz soar as vinte e quatro
anilhas de latão que lhe envolvem o braço. Procura caminho entre as demais
mulheres, erguendo o roupão que lhe cai até aos pés. O desmesurado robe
faz parte das roupas que foram compradas em Luanda.
— Afastem-se, eu sou a Nkosikasi.
A «mulher grande», como lhe chamam, faz justiça ao nome. É subida e
volumosa, exibe um penteado cónico que a faz parecer ainda mais alta.
Ajoelha-se à frente do assarapantado esposo. A luz que entra pela vigia
brilha sobre os ombros.
— Buia, Nkosi wa mina! — a rainha chama pelo esposo. Em voz baixa,
como se rezasse, convida-o a descansar no seu colo.
As outras mulheres comprimem-se de encontro às paredes e o rei enrosca-
se no regaço de Muzamussi. Ngungunyane desaba sem substância, adoecido
pela carência do álcool. Engana-se e trata Muzamussi pelo nome de Vuiaze,
a sua antiga e única paixão. Obrigado, querida Vuiaze, balbucia o rei.
Muzamussi faz de conta que não dá pelo descuido. O marido está
derramado no seu colo e, naquele momento, ela volta a ser rainha. E faz um
sinal para que todos os outros se retirem. Os prisioneiros obedecem e
acumulam-se no corredor. As mulheres contemplam as luzes do teto e
esticam os dedos para sentir o fogo que se esconde nos candeeiros.

Restabelecido, o rei de Gaza avança pelo corredor escoltado por dois


vigilantes. Passa pelo pátio que antecede o porão. Os presos de Machava
estão de pé nesse recinto, à espera que desinfetem o improvisado cárcere. O
rei de Gaza apresenta-se e todos se ajoelham. Conspiram matar aquele
tirano. E, no entanto, não hesitam em lhe prestar homenagem.
— Levantem-se, meus irmãos! — ordena Machava, furioso.
Não há, todavia, nada a fazer. Os prisioneiros exibem perante o soberano
de Gaza o mesmo respeito com que se prostram perante a cruz de Cristo.
Ngungunyane abre os braços diante do submisso ajuntamento e proclama
quase sem voz: Sou filho do rei de Portugal! Machava sacode a cabeça,
pesaroso: o imperador perdeu o bom senso. Não porque tenha consumido
álcool. É o oposto. Está embriagado pela abstinência. É por isso que lhe
tremem descontroladamente as mãos. Um pensamento assalta o
missionário: quem sabe o rei morra sem que se tenha que consumar um
crime? Será essa a súplica que, nos próximos dias, endereçará a Deus.
Machava não volta a apelar para o bom-senso do seu rebanho.
Vigorosamente afasta o rei de Gaza. Ngungunyane não tem força para
resistir. E desaba aparatosamente. De súbito, para minha surpresa, Zixaxa
sai em socorro de Ngungunyane. Deixem-no!, grita, enquanto ajuda o rei a
recompor-se. E depois, apontando para mim, clama:
— Pede aos soldados que levem daqui esse padre preto! Não o queremos
ver. E diz-lhes que tragam vinho para o rei de Gaza.
À porta da cela os guardas estão sentados sobre caixas de garrafas de
vinho do Porto. Aquela reserva de álcool faz parte do tratamento reservado
ao prisioneiro real. Querem-no risonho, mas sem alma. É esse o exílio que
lhe destinam, emigrado de si mesmo, sem memória nem destino. Um dos
soldados entrega uma garrafa ao imperador, que se serve com sofreguidão.
Escorre-lhe vinho pelo queixo quando, fitando-me demoradamente Imani,
ele repete: Vou-te oferecer ao rei de Portugal.
— Vá-se embora, pastor Machava — pede Zixaxa. — Ngungunyane
entregou-se à bebida dos brancos, você entregou-se ao Deus deles.
O vinho e os padres, diz Zixaxa, irão completar o que os portugueses
começaram com as armas. Daqui a um tempo não teremos lugar a que
chamemos casa, não teremos ninguém a quem chamar irmão.
— A minha presença incomoda-o? — reage Machava. — Faço-o sentir
culpado?
— Não o denunciei — defende-se Zixaxa. — Esta é a pura verdade. Ou
será que acredita mais nos portugueses do que em mim?
O missionário faz-me sinal para nos afastarmos daquele ajuntamento.
— Vamos rezar — incita.
— Aqui no corredor? — pergunto.
— Vem comigo, o comandante já autorizou o uso da capela — afirma
Machava.
Sigo o missionário em silêncio. Ao chegar ao convés é meticulosamente
revistado e um par de soldados acompanha-nos até à entrada da capela, que
se encontra vazia. Não tirando os olhos da cruz, Machava finge rezar. De
joelhos, olhos cerrados e mãos juntas entoa um cantochão na sua língua
natal. Mas não há reza. O que ele anuncia são os planos para a consumação
de um crime: os brancos organizam uma festa dentro de dois dias. É uma
tradição ao passarem a linha do Equador. Disseram a Machava que parece
uma celebração africana, com bebidas, danças e máscaras. Permitirão que
os presos assistam à festa. A tua tarefa, anuncia Machava, será distrair o
sargento enquanto nós tratamos do Ngungunyane.
— Tenho medo, pastor.
— Confia em mim — afirma o missionário. — Eu tenho visões. Vou-te
contar como encontrei Deus.

A vocação religiosa de Roberto Machava revelou-se quando, ainda


jovem, atravessou a pé a distância que separa Lourenço Marques das terras
do Rand. Viajava à procura de melhor vida. Sabia o que queria mas
desconhecia o caminho. No terceiro dia, louco de calor e sede, tombou
desamparado no meio da savana. Quando acordou estava em casa de um
camponês. Quem o salvou foi um desses vatsonga catequisados nas
plantações dos ingleses. Ajoelharam-se os dois e Machava — sem nunca o
ter feito antes — rezou como se a oração fosse na sua língua natal. O
anfitrião suspirou e disse: Ninguém chega nunca por acaso.
Depois sentou-se no quintal a contemplar as terras queimadas pela falta
de chuva. E assim se deixou adormecer com a mão pousada sobre um ramo
de uma acácia. Durante a noite os dedos tornaram-se galhos da árvore e
apontavam o céu com o desespero de um desenterrado. Com o mais longo
dos dedos o homem espetou a barriga da nuvem. E choveu.
Nessa manhã Roberto Machava cruzou a fronteira de Moçambique com a
cabeça enevoada, surpreso com as suas recentes faculdades. Em Lydenburg
juntou-se à Igreja Metodista e tornou-se pastor. Regressado a Moçambique,
anos depois, abriu uma escola na baía de Lourenço Marques. A Igreja
Católica Romana impôs que se juntasse àquela que chamaram de «única
igreja verdadeira». Machava recusou. Interditaram-lhe a escola. E foi o
início de outras interdições. No final, entendeu que era ele o interditado.

O pastor pede que o ajude a erguer-se. Tinham-no maltratado na prisão.


Agora é capaz de se ajoelhar, mas não se levanta sem apoio. No cárcere
disseram-lhe que Zixaxa o denunciara. Colocaram o guerreiro dos mfumos
perante uma lista de nomes que lhe foram lendo num indecifrável sotaque.
Quando mencionaram o nome do religioso, Zixaxa acenou com a cabeça.
«Foi esse o homem que te mandou lutar contra o governo?», perguntaram.
E Zixaxa voltou a confirmar. Horas depois o pastor era detido. Durante o
interrogatório foi de tal modo espancado que aceitou tudo o que lhe era
imputado. No dia seguinte foi embarcado no África, pronto para ser
deportado para as ilhas de Cabo Verde.
— Há coisas que deves saber — declara o pastor. — O porão onde me
prenderam é um paiol.
— Um paiol?
— Todos os meus crentes estão armados.
— Com que armas? — pergunto.
O pastor responde entreabrindo as mãos: Estas! Não vejo nada, de início.
Depois reparo que há um pedaço de vidro faiscando entre os seus dedos. É
um estilhaço de garrafa. Dessas que todos os dias se quebram à porta do
Ngungunyane.
— Com estas armas mataremos Ngungunyane — proclama Machava
apertando o vidro, sem dar conta do sangue que lhe escorre entre os dedos.

Uma surpresa me espera no escorregadio convés: Ngungunyane está


sentado à chuva num solitário banco de madeira. Escorre água pelo tronco
nu, goteja o pano que traz amarrado à cintura. Os soldados que o vigiam à
distância explicam: Pediu-nos para ficar assim, disse que queria sentir a
chuva. Replico em tom maternal: É melhor que ele se resguarde, vai ficar
doente. E os soldados condescendem: Vai lá falar com ele. E leva-lhe esta
capa.
Ajeito o capote sobre os ombros do rei. O corpo estremece-lhe mais do
que a voz quando, em murmúrio, confessa que tinha saudade de ser
chovido. Ergue-se e caminha a meu lado como se fosse um sonâmbulo, os
pés descalços chapinhando no chão de metal. Ao descer a escadaria que
conduz aos nossos quartos apoia um braço em mim e outro em Dabondi,
que acabou de chegar. Mas é sobre o meu rosto que lança o seu azedo
hálito:
— Como se diz ouro na tua língua, em txixopi?
Não espera resposta e vai desfiando uma desarrumada conversa. Os
brancos, diz ele, medem a sua fortuna em ouro, palavra que não temos nas
nossas línguas. Quando pensa em riqueza, o rei de Gaza vê manadas de bois
a perder de vista, cascos e chifres riscando o sol e a terra. E vê chuva, gotas
de chuva, como estas que lhe escorrem pelo corpo.
O rei aperta-me as mãos e suplica que interfira a seu favor. Precisa com
urgência que Dabondi volte a dormir com ele. Que a deixem regressar ao
quarto dos presos. Fala como se Dabondi não estivesse presente. Tive tantas
mulheres que me tornei no mais solitário dos homens, lamenta-se. Agora
que o afastaram de Dabondi deixou de ser homem. Demora um tempo,
absorto, até que se dirige à esposa, implorando-lhe: Quero que me
adormeça, Dabondi.
— Para quê tanta pressa, meu rei — pergunta Dabondi. — Não receia
voltar a ser visitado por pesadelos?
— Às vezes — responde o rei — os pesadelos são o único modo de
guardar o passado.
Capítulo 20

Quanto pesa uma lágrima?

Olho o mar e vejo a vida.


(Diário do comandante
António Sérgio de Sousa)
Manhã cedo estou à porta do comandante. Saúdo-o à entrada do camarote
e ele permanece alheio, debruçado sobre uma mesa coberta de mapas. A
gaiola vazia está tombada no meio do quarto. Não há vestígio do papagaio.
— Libertei-o à saída de Luanda — comenta o capitão sem erguer a
cabeça. — Não podia oferecer ao meu filho um pássaro enjaulado. — E
alterando subitamente o tom de voz: — Estou ocupado, que queres?
O meu propósito é firme: venho denunciar os ardilosos planos de
Machava. Não refiro nomes nem me espraio sobre detalhes mas sou
categórica quando revelo a existência de conspirações para assassinar
Ngungunyane. Devo ter sido tão vaga que o português, completamente
absorto, continua a deslocar uma pequena régua sobre os mapas náuticos.
Repito o alerta, agora de modo mais claro.
— É urgente — declaro enfática —, reforçar a vigilância junto do porão.
Querem matar Ngungunyane e os matadores vêm de lá.
— Sonhaste com tudo isso, Imani? — pergunta, irónico, António de
Sousa.
O comandante Sousa fixa em mim uns olhos cansados e incrédulos. Não
entendeu a urgência e a gravidade da situação. Com a régua desenha no ar
um arco, a sugerir que o deixe em paz.
Antes de me retirar ainda pergunto por Germano. Quem sabe, por via
telegráfica, tivessem chegado notícias de Moçambique? António de Sousa
sacode a cabeça, em negação. Pergunto depois por novidades de Álvaro
Andrea. O comandante pousa a régua e suspira: Peço-te, Imani, não me
perguntes por ninguém. Cansam-me tanto as pessoas...
Sempre fora um homem arredado, admite. Muitos dos seus colegas
queixavam-se do isolamento no Ultramar. Para ele, a solidão constituía a
melhor das dádivas. Conhecer pessoas era, conforme confessou, a mais
fatigante das atividades. Em África estava dispensado desse encargo. Os
brancos estavam ali de passagem. E os pretos, sem ofensa, eram todos uma
única pessoa. Deste modo, não havia nunca ninguém. Assim se explica
António de Sousa.
Quando faço tenção de regressar ao meu quarto ele sugere, com um
rodopio da régua, que me deixe ficar.
— Sei dele — anuncia o capitão.
— De Germano?
— De Álvaro Andrea — responde. — Dizem que esse tal Andrea voltou
para a frente de combate, no estuário do Limpopo.
António de Sousa tem pena do capitão Andrea para quem o Limpopo é o
pior dos lugares neste atribulado mundo. Ele sabe dos remorsos que
martirizam o seu compatriota pelo massacre de civis inocentes. Essa culpa
— garante Sousa — foi inventada pelos adversários que ele criou dentro do
exército. Está equivocado esse Andrea: a maior parte dos alvos que
bombardeou não eram povoações. Era mato desabitado.
— Andrea está convicto de que matou muita gente... alguma vez viu os
corpos? — pergunta Sousa.
Não viu, apetece-me responder. Nenhum militar português nos vê, a nós,
negros, nem quando estamos vivos.
— Álvaro é um homem bom — diz a rematar. — Querem que ele desista
das suas causas.
Volta a debruçar-se sobre os mapas e, displicente, murmura: Foi bom
teres-me alertado. Vou transmitir a tua denúncia ao sargento Araújo.
Vamos reforçar a segurança do rei.
— Por favor, não meta o sargento neste assunto — imploro, angustiada.
— Não me disseste nada de novo, minha filha — tranquiliza-me. — Há
muito que sei dos planos de Roberto Machava. Tenho as minhas fontes.
Ergue-se arrastando a cadeira e espreita-me o rosto como se tivesse
deixado de me reconhecer. Recuo, receosa.
— Por que tens tanto medo de Araújo? — pergunta, desconfiado.
Inspeciona-me os olhos à procura de uma queixa. O que te fez o meu
sargento?, insiste o comandante. Perante o meu silêncio esfrega as mãos e
concluiu, em sussurro: Já percebi.

Escureceu e o convés do navio tornou-se irreconhecível. Centenas de


passageiros cantam e dançam fantasiados. Não tarda passaremos a linha do
Equador, o «espinhaço» do mundo, que é como lhe chamam os marinheiros.
No centro da multidão, sobre um improvisado estrado, está sentado um
homem mascarado. Coberto com manto dourado, exibe barbas e coroa
postiças. Ngungunyane exclama, entusiasmado: Vejam, é o rei D. Carlos! E
chama, em altos berros, pelo monarca português. Os soldados riem-se,
jocosos.
Os tripulantes são aspergidos com óleos e, depois, banhados e
purificados. Chamam a isso um novo batismo. Incrível como somos
semelhantes nas nossas cerimónias, brancos e pretos. E como se
assemelham os rituais que usamos para limpar a alma! Afinal, os anjos dos
brancos não são os austeros vigilantes que nos fizeram crer. São, como os
nossos, bêbados e foliões.
O caótico fulgor daquela celebração faz-me lembrar as celebrações da
minha infância, junto ao rio Inharrime. De repente, revejo Bibliana a
emergir da multidão. Com a sua túnica vermelha e os panos brancos atados
à cintura, a profetisa proclama: «Os mares são como o sangue: parecem
muitos mas são todos um só.»

E faço como sempre fiz: perante um festejo guardo-me na margem, longe


das luzes e do ruído. António Sérgio de Sousa junta-se a mim, as mãos
afundadas nos bolsos do casaco. Passam por nós dois soldados arrastando o
velho Mulungo, tio de Ngungunyane. E levam-no até ao sargento Araújo.
Este cabrão fugiu do porão, dizem, batendo continência. Mulungo é magro,
digno e distante. Não quer aprender uma palavra de português e
envergonha-se dos ataques de pavor do rei de Gaza. O comandante Sousa
reconhece-o. E ordena que o soltem: Esse velho é o tio do Gungunhana.
Está autorizado a assistir aos festejos. Os outros é que não.
Os «outros» são os correligionários de Roberto Machava. Ficaram no
porão, com reforçada vigilância. O meu alerta funcionou, penso, não sem
alguma dose de culpa.
— Toda esta viagem é uma farsa — suspira Sousa. — Andamos a inventar
um rei que nunca existiu.

O ritual da passagem do Equador tem uma história, diz António de Sousa.


Os que festejam desconhecem-na. Mas o comandante está decidido a
contar-ma. No tempo das caravelas, começa ele, não eram as tempestades
mas as calmarias o que os marinheiros mais temiam. A região do Equador
era rica em sol, mas pobre em ventos. Sempre que um navio se imobilizava,
não eram apenas os alimentos que se deterioravam: a disciplina e o sentido
de hierarquia também se degradavam. Havia que criar uma válvula de
escape, uma espécie de carnaval em que todos podiam ser todos. Foi assim
que nasceu o ritual da travessia do «espinhaço do mundo». O oceano era
uma mulher e a unha dos marinheiros, como uma afiada lâmina, desenhava
uma linha nas costas dessa mulher. O Atlântico sorria e esse riso era a
licença que de precisavam. A fronteira entre Norte e Sul, como um vestido
rasgado, tombava aos pés dos marinheiros.
As igrejas católica e protestante proibiram o ritual. Viam nele uma
sobrevivência pagã. Não foram, porém, as interdições das igrejas que
enfraqueceram aquela velha prática. Foram os avanços da técnica. Ao se
libertar do capricho dos ventos, o navio a vapor veio em socorro dos
esforços cristãos. Apesar de enfraquecido, o ritual resistiu. Enquanto
sobreviver o medo, os deuses não serão destruídos pelas máquinas.

Despeço-me do comandante e, de regresso ao meu quarto, sou abordada


pelo sargento Araújo. Vem acompanhado de meia dúzia de militares.
— Preciso de ti — avisa o sargento. — Vou falar com o patife do
Machava.
— Permita-me uma opinião, meu sargento — digo, a medo. — É que,
neste caso, sou dispensável. O pastor fala perfeitamente português.
— Estou-me nas tintas para o que Machava tenha para dizer — declara o
militar. — O que me importa é que os outros mafarricos me entendam bem.
Nunca antes havia entrado no porão. Agora sinto a vertigem de um
inferno apagado, bafiento e frio. O escuro é tanto que deixo de saber
respirar. E ainda bem: salvo-me assim dos pestilentos cheiros. Um dos
militares decide levantar a tampa da entrada e somos bafejados por uma
fresta de luz e por uma tímida aragem. Adivinham-se os vultos dos presos
acumulados num mesmo recanto. A eles o sargento se dirige aos berros.
Anuncia que está a par das graves conspirações que se urdem naquele
recinto. Exige que os detidos falem. Os presos obedecem de modo estranho:
em vez de falar, rezam em coro.
— O que estais a fazer? Rezais para afastar os demónios? Vou-vos
mostrar o que é o inferno.
Os berros reverberam no recinto e o sargento mantém-se inclinado sobre
mim como se fosse conferir a minha tradução.
— Há aqui uma dificuldade, senhor sargento — declaro timidamente. —
É que não temos palavra para dizer «inferno».
Araújo não me escuta. Está decidido a exibir a sua raiva, com largas
passadas que ecoam pelo recinto. Detém-se, por fim, em frente de Roberto
Machava e ordena-lhe:
— Escolhe um deles para morrer.
O pastor permanece impávido. Procede como fazíamos na nossa aldeia
quando éramos visitados por brancos ou pelos vanguni: deixa de ter rosto.
Resta-lhe uma máscara, feita de pedra escura.
— Se não escolheres um, nós matamos três — ameaça Araújo.
Nem um músculo se move no corpo de Machava. E assim se mantém
mesmo quando deitam mão a três dos seus companheiros.
— Levo comigo estes que devem ser os mais novos — declara Araújo. —
A ter que vos matar, mais vale começar pelos que ainda têm muito que
viver.
O missionário dá um passo em frente com os braços abertos e anuncia:
— Já escolhi um!
— E quem é? — indaga Araújo.
— Sou eu — declara Machava. — Escolhi-me a mim.
— Pois então — diz o português dirigindo-se aos seus soldados — matem
esses três.
— Mas eu escolhi... — gagueja o missionário.
— Escolheste-te a ti. E tu não és ninguém.
Arrastam os aterrorizados jovens para o corredor. Eu e o sargento
fechamos o improvisado cortejo. Um soldado fechou atrás de nós a tampa
do porão. A seguir, timidamente, pergunta:
— Desculpe, meu comandante, mas é para matá-los de verdade?
— Existe um outro modo de matar?
— É que nos disseram para proteger os presos...
— Esses são os outros — afirma, impaciente Araújo. — Estes, do porão,
ninguém sabe deles. Quantos menos chegarem ao destino melhor. Matem-
nos junto à casa das máquinas que, assim, ninguém ouve os tiros.
Lá fora a festa prossegue. Não chego a escutar os disparos. Melhor seria
se os tivesse ouvido. Uma memória truncada é uma ferida que não sara. Nas
noites seguintes sou visitada pelo rosto estarrecido dos fuzilados. E choro
tudo o que não chorei pelos meus mortos. Depois adormeço. E as lágrimas,
sem peso, ficam-me presas aos olhos.

— Por que os matou, sargento? — pergunta Sousa.


Araújo está perfilado em sentido, à porta do camarote de António de
Sousa. O olhar do sargento é tenso mas há uma serena confiança nas suas
palavras.
— O meu comandante quer que responda agora, nesta circunstância? —
pergunta Araújo, apontando para mim.
Sou eu a «circunstância» a que se refere. Fui eu que trouxe a notícia do
fuzilamento. O silêncio de António de Sousa é uma acusação que obriga o
subordinado a defender-se.
— O meu comandante deu-me ordem para resolver um problema —
declara Araújo. — Pois eu resolvi-lhe dois: o que tinha em mãos e um outro
que ia causar em Cabo Verde, transferindo pretos insubordinados para
uma terra que, sendo nossa, controlamos muito pouco.
— De que crime foram acusados para tão sumária execução? —
pergunta António de Sousa.
— Que crime? Por amor de Deus, comandante, estes patifes queriam
matar Gungunhana, um português, um sargento do nosso exército.
— E os corpos? — indaga o comandante. Não é uma pergunta. É uma
declaração de resignação. Os fuzilados, informa o sargento, foram deitados
ao mar.
Na verdade, não há dia em que não atirem um corpo fora de bordo.
Muitos dos soldados portugueses embarcam moribundos, enfraquecidos
pelas chagas e pelas febres. A maior parte deles sabe desse eventual destino:
morrerem sem túmulo, apodrecerem ao sabor das correntes e dos monstros
marinhos. Preferem isso a ficarem sepultados em terras africanas.
António de Sousa fixa o olhar no horizonte, o que é um modo de deixar
de ver. O sargento percebe que aquele silêncio é uma ordem para se retirar.
Capítulo 21

Véspera da terra

Quem tem medo da água acaba por se afogar em terra.


(Provérbio de Nkokolani)
Manhã cedo, um marinheiro esquálido bate-me à porta. Vem da parte de
António Sérgio de Sousa e é portador de dois envelopes. Pretende o capitão
que lhe leia aquelas cartas e depois as devolva pelo mesmo mensageiro.
Deves começar por esta, diz o marinheiro agitando o envelope da mão
direita. Estende o braço e hesita, como se avaliasse o peso das duas
encomendas. Enganei-me, admite, corrigindo o gesto. Estende-me o outro
sobrescrito e retira-se. Esperará no corredor até que eu tenha terminado a
leitura.
A primeira carta é da autoria do comandante Sousa e está endereçada ao
sargento Júlio Araújo. Dabondi pede-me que lhe traduza enquanto vou
lendo. Fecha os olhos como se assim escutasse melhor.

Caro sargento Araújo

Amanhã chegaremos a Lisboa e terei cumprido a minha última viagem.


Sei o que se passou com os meus colegas que se reformaram. Em poucos
anos definharei, como eles, saudoso do que sempre me queixei. Em
contrapartida, o meu sargento prosseguirá a sua carreira na Marinha de
Guerra. O mais provável será que não mais nos voltemos a encontrar.
Tantos meses vivemos confinados no mesmo exíguo espaço e, apesar disso
— ou será exatamente por isso? — nunca chegámos a manter aquilo que se
possa chamar uma «conversa».
Sei o que pensa de mim. Não pretendo alterar essa perceção. Você acha
que sou um homem fraco, que sou demasiado condescendente com os
africanos. Contra essa impressão não tenho, nem quero ter, nenhuma defesa.
Essas suas palavras, esgrimidas como uma denúncia, são para mim o maior
dos elogios. Bem haja por esses pequenos ódios.
Venho falar-lhe de mim. A escrita permite confissões que, noutras
circunstâncias, não teríamos coragem de fazer. Nasci em África, em terras
onde as árvores superam os céus. A minha mãe, que Deus a tenha, ensinou-
me a amar essas criaturas como se adivinhasse que me iriam faltar mais que
a própria terra. As árvores são como as pessoas, dizia. Não nos damos conta
de que o que nelas vemos é apenas o que está à superfície. O que nos falta
ver, nas árvores e nas pessoas, é o próprio tempo, esse infinito tecelão. As
raízes, garantia a minha mãe, são como as histórias das nossas vidas. Quem
as vê? Pois nós, meu sargento, passamos um pelo outro como quem passa
por uma árvore e não vê senão sombras. Não nos conhecemos, meu caro
Araújo. E talvez seja melhor assim. Não temos de fingir que nos
despedimos.
O meu pai morreu em terras da Índia. Cumpria, assim, o que para si
mesmo destinara. Tantas vezes nos disse: ninguém sabe morrer no lugar
onde nasceu. Não podia ter morrido mais longe. Depois do enterro fui
recolher a papelada que, durante anos, ele deixara acumular no seu gabinete
de trabalho. Não foram papéis, foi a sua vida que me passou lentamente
pelos dedos.
Numa pasta rotulada «documentos do Congo» descobri uma fotografia de
três escravos ladeados por dois brancos. Era uma imagem captada no Congo
Belga. Os negros exibiam as mãos decepadas de outros escravos. Quase não
se distinguiam os dedos dos vivos e dos mortos. Como se as mãos
decepadas ainda se agarrassem a um corpo vivo. Como se não soubessem
morrer.
Não foi apenas aquela macabra visão que para sempre me roubou o sono.
Foi o olhar dos escravos, foi a sua expressão mortificada. Aqueles olhos
tinham sido amputados das suas almas. O rosto desses homens era uma
máscara vazia, como se aquilo que fosse mais humano — isso a que chamo
a «voz do rosto» — tivesse que ser resguardado da indiscrição do fotógrafo.
Protegiam assim a sua última réstia de dignidade.
Não fomos nós, portugueses, que cometemos aquela barbaridade. É isso
que você dirá. Não fomos, é verdade. Mas tecemos todos nós, europeus, um
manto de silêncio em redor desse enorme crime que foi a escravatura. Os
jovens que você fuzilou — num barco que eu comandava — serão o seu
inferno. Até ao final da sua vida, meu caro sargento, você será alvejado por
essa lembrança.
Mil vezes o escutei proclamando que o fim do mundo já aconteceu.
Nenhum de nós — nem sequer Deus — deu conta dessa fatalidade. A
verdade é outra, meu caro. Quem tem razões para acreditar no apocalipse
não somos nós, meu sargento. São os negros que veem assaltadas as suas
terras, decepadas as mãos e sangrados os sonhos. Enquanto filosofamos
sobre o apocalipse essa gente vive o mais real dos fins do mundo. E é bem
conveniente essa sua teoria de uma hecatombe: se não há futuro tornamo-
nos iguais aos bichos. E não há melhor para as guerras que um bicho
fardado de soldado.
Junto lhe envio a fotografia que tanta alma me roubou. Não se limite a
olhar para ela. Deixe-se ser olhado pela imagem. Ao ser atravessado pelos
olhos desses negros talvez você entenda que a fraqueza de que me acusa é
bem menos grave que a coragem que lhe serve de bandeira.
Espero, caro sargento, que não nos voltemos a encontrar. Não lhe desejo
mal. Quero somente esquecer-me. É isso que eu quero. Esquecer-me de
mim, esquecer-me de si e de todos os outros. Desejo talvez um pouco mais
do que isso: rezo para que o sargento não tenha nunca existido na minha
vida. E esta carta não tenha sido escrita para ninguém.

12 de março de 1896
António Sérgio de Sousa

Talvez a minha tradução tenha sido deficiente porque, no final da leitura,


Dabondi parece completamente indiferente. Ocorreu-me, primeiro, que
tinha adormecido. Surpreendo-me a vê-la sacudir os braços fazendo soar as
pulseiras. Afugenta os espíritos que emergiram das cartas.
— Disseste ao branco — adverte a rainha — que eu rezava aos meus
deuses. Fizeste mal. Não há deuses dos outros, minha filha. São sempre
nossos.
O soldado bate à porta. Quer saber se pode recolher as cartas. Peço-lhe
um tempo. Dabondi volta a fechar os olhos, aguardando pela leitura da
segunda carta.

Excelentíssimo capitão
António Sérgio de Sousa
Despedimo-nos desta curiosa maneira, trocando cartas como se
tivéssemos perdido o dom da fala. E é bom que assim seja. Esta é, meu
capitão, a sua derradeira viagem. O meu percurso, porém, não termina aqui.
Morrerei no mar e serei sepultado em incógnitas águas. Sem chão, dizem os
seus africanos, o morto não encontra nunca a morte. Pareço um preto a
falar, Deus me perdoe.
Para começo de conversa, tenho que reconhecer que o meu capitão é um
homem bom. Interrogo-me, porém, sobre o valor da bondade neste mundo.
De uma coisa estou certo: não tenho o menor desejo de ser bom. A minha
única intenção é ser justo. E a justiça pede homens que não tenham medo de
ser cruéis.
Tem razão, o meu capitão: vivo obcecado com o fim do mundo. Não é
apenas o século dezanove que termina, não é apenas a monarquia que
agoniza. É o inteiro universo que se esvai como areia entre os dedos. Está
escrito nos livros, meu capitão. Houve vezes que perguntei aos negros que
ideia possuíam sobre a criação do mundo. Todos me deram a mesma
resposta, espantados com o absurdo da minha pergunta: ora, o mundo não
começa nem acaba. A matéria do mundo é o próprio tempo, diziam, não há
palavras para distinguir uma coisa da outra. Foi isso que responderam os
pretos, nas suas humildes palavras. O senhor dirá, com o seu incurável
paternalismo, que essa resposta traduz uma profunda sabedoria. Eu direi que
é uma total falta de discernimento.
Por que lhe falo disto agora? A verdade é esta: não pode haver justiça se
não houver a ideia de um juízo final. Não tendo ideia de um julgamento
divino, os africanos estão-se marimbando para os outros. Um povo assim
desprovido de civismo deve ser guiado por gente civilizada. Não
assumirmos essa missão é que é falta de coragem e de bondade.
Se o mundo está em pleno apocalipse então prefiro ir ao fundo às costas
de demónios. Essa é a única vantagem de viajar pelos mares do Sul: estão
povoados de diabos. Essas criaturas malignas são hoje os meus únicos
conselheiros e protegem-me mais do que todos os anjos. Dizem que
trazemos os barcos cheios de «casacos de zinco», que é o nome polido que
damos aos caixões. Comigo sucede o oposto: há uma parte de mim que já
não volta a Portugal. Parte de mim fica entre pretos e, sobretudo, entre as
pretas.
Deus Nosso Senhor foi precavido: europeus e africanos não foram feitos
no mesmo molde. E é bom que assim seja. Porque não tenho tempo nem
paciência para destrinçar os bons dos maus. Queria que tivesse tratado os
presos como pessoas? Se fosse o inverso, se os presos fôssemos nós, diga-
me, meu capitão, dar-nos-iam os negros igual oportunidade? Conhece
algum branco que tenha ficado cativo na selva africana? E sabe por que não
conhece? Porque os mataram a todos.
Certa vez, em plena batalha, escutei a voz do comandante gritando: «Não
matem mulheres nem crianças!» Pensei para mim: este tipo é um ingénuo
estreante. Em terra africana não há mulheres, não há crianças. Aqui todos
são inimigos, todos nos querem matar. É por isso que digo: quanto mais
felizes eles se apresentam, mais eu os odeio. Não suporto quando riem, não
aguento quando falam alto, cantam ou dançam. Diga-me com verdade, meu
capitão: que há de tão importante nesta vida para ser tão festejado?
Não vale a pena perdemos mais tempo. Sou um homem de ação e o
assunto para mim é bem simples: o senhor foi envenenado por essa Imani. É
assim que elas fazem: inoculam-nos um veneno doce, de que só damos
conta quando já estamos mortos. Imagino as falsidades que essa rapariga
contou a meu respeito. Nunca lhe toquei. Vontade não me faltou. Essa cabra
— desculpe, mas o termo é este — não passa de uma sonsa. E deixe-me
dizer o seguinte: há rumores que se escutam entre a tripulação. São boatos,
dirá o senhor. E em sua defesa argumentará que, neste caso, não há fumo
nem fogo. Várias vezes, contudo, viram entrar Imani para o seu camarote.
Que lhe tivesse feito proveito. Porque, confesso, essa rapariga não faz o
meu género. Não quero cá pretas a falar português tão bem como eu e a
olharem-me com altivez nos olhos. Quem me atrai são as outras, as pretas
verdadeiras, mais autênticas, mais selvagens. Essas, sim. Ainda as espreitei
quando faziam a higiene. E se a faziam: banhavam-se duas vezes por dia!
Mas nunca as vi nas poucas-vergonhices com os maridos. Explicou-me o
cozinheiro que o sexo lhes é interdito quando em viagem ou em guerra.
Quem se esqueceu dessa proibição foi a Dabondi e o Godido. Ainda os
apanhei, no depósito de carvão. Era ali que se deitavam e fornicavam no
meio das cinzas.
Regresso à fotografia que me enviou para lhe dizer o seguinte: essa
imagem não prova coisa alguma. As fotos são como nós, os sargentos:
dizem o que lhes mandam dizer. São as legendas que lhes dão sentido. E
não vejo aqui nenhuma inscrição. Não nego. Houve ali, sem dúvida, uma
barbaridade. Mas quem a praticou foram os belgas, que são mais
estrangeiros do que quaisquer outros europeus. Ou quem sabe não terão sido
os próprios pretos? Nunca ouviu falar das cenas de canibalismo, das práticas
feiticeiras, das vinganças tribais?
De todo o modo, nós, portugueses, não somos capazes de tão gratuita
crueldade. Não somos como os europeus do Norte que, de manhã, caçam
borboletas e, à noite, matam pretos. Nós, lusitanos, somos diferentes.
Mesmo quando punimos fazemo-lo como pais zelosos. Os castigados — por
mais severa que seja a punição — não deixam nunca de ser nossos filhos.
Odiamos com amor, e o senhor sabe bem disso. Ninguém mais do que nós
se misturou e criou tanto filho mulato. Veja o caso da Imani. O filho que ela
traz no ventre não é de um dos nossos? Vai ser, estou certo, um belo
rapazola. Pode ter a certeza, os outros europeus raramente fazem filhos
mestiços, e quando os fazem não os concebem com tanto aprumo.
Com o devido respeito, meu capitão, tenha cuidado com essa fotografia
que é uma lâmina de dois gumes. Porque testemunhei, com estes olhos que
a terra irá comer, gente branca a ser chacinada pela fúria dos pretos. Não
havia ali fotógrafo para registar aquele horror. O que lhe posso dizer é que a
verdade não é coisa que se fotografe. A verdade está nos olhos de quem vê.
Por tudo isso lhe peço: deite fora essa fotografia. Porque essa imagem, Deus
me perdoe, apenas fabrica desejos de vingança contra os brancos.
É fácil ser-se bom quando já se foi feliz. A vida foi para mim uma esposa
adúltera. Mais valia ser viúvo, meu caro capitão. Um viúvo fecha as
pálpebras e sonha. Um homem que foi traído pela vida perde para sempre o
dom de sonhar.
Devolvo-lhe a sua carta e a maldita fotografia. Não me dou ao trabalho de
as rasgar. Talvez o senhor as queira guardar. Serão um bom alimento para a
sua má consciência.

O sargento
Júlio Araújo
Capítulo 22

A luz de Lisboa

Dei-me ao mar
num perpétuo sonho de navio
e tive das ilhas
a redonda ilusão de um infinito.

E não encontrei praia


em que não escutasse a voz materna:
onde houver mar, dizia,
terás um cais e serás saudade, distância e espera.

Depois,
quebraram-se os remos
e rasgou-se o fundo de todos os navios.

Dizem que foi obra do diabo.


Mas foi o Tempo
que quebrou os remos
e extinguiu o desejo da viagem.

O meu naufrágio
aconteceu sem nenhuma grandeza,
foi um simples vazar de maré.
E na areia da praia
para sempre se apagou a lembrança
de alguma vez ter havido mar.
(Versos do diário de bordo de
António Sérgio de Sousa)
Eis Lisboa, o último porto, o fim da viagem. No navio, os soldados, em
lágrimas, acenam com os bivaques aos que esperam no cais. Algo de
inesperado nos une na guerra, africanos e europeus: do outro lado do mar,
na terra distante em que nascemos, todos nos julgam mortos.
Passos vigorosos e rosto tenso, a rainha Dabondi atravessa o convés
abrindo alas entre os tripulantes. Da casa das máquinas trouxe uma pá que
arrasta ruidosamente atrás de si. Sente a areia a crescer dentro da boca,
cospe para poder respirar. Procura o capitão do barco, quer saber onde está
enterrado o filho, João Mangueze. A primeira coisa que fará depois do
desembarque é visitar essa sepultura. Se assim não proceder, a terra que
sobrou da cova crescerá dentro dela. Todas as mães que perderam os filhos
são sepultadas por dentro, diz Dabondi. E volta a cuspir areia.
O capitão explica que será difícil alguém saber daquela sepultura. A
cidade é muito grande, argumenta. Dabondi estranha: que grandeza tem
uma terra que não sabe onde foram semeados os seus mortos?
— Pior que ver um filho morrer — diz ela — é aprender a esquecê-lo
ainda vivo.
O capitão Sousa sacode a cabeça confuso. E pergunta-me, em surdina:
Mas o filho dela não morreu? E eu respondo: Depois de mortos, os filhos
tornam-se ainda mais vivos. A rainha tosse e o chão fica coberto de areia. O
português dá um passo atrás, receoso. Quando recupera a respiração,
Dabondi afirma: A mulher e a terra têm a mesma boca. E entrega a pá ao
português. Desenterre-me, capitão, pede a rainha. Desenterre-me, antes que
eu sufoque.
Um soldado segreda ao ouvido de António de Sousa: Prenda-lhe as mãos,
há em África mulheres que se suicidam comendo terra. O capitão está
sentado com a pá sobre os pés. Não sabe o que fazer. Ocorre-lhe apenas
escutar uma mãe lamentando-se.
— Todos os dias parimos o mesmo filho — diz Dabondi. Todos os dias o
cordão umbilical renasce para voltar a ser decepado. Durante a vida inteira a
mãe recomeça o parto, escuta o primeiro choro, sente o primeiro riso. Todo
o parto infinitamente se reparte.
Dabondi faz o que desde o princípio do tempo todas as mães fizeram:
recolhem as pegadas dos filhos que partiram. Assim o chão se torna mais
vivo. E a terra ganha a curvatura de um ventre.

Um soldado traz um pedido de audiência da parte de Ngungunyane. O rei


quer uma pequena atenção, em véspera do desembarque. Pois concedo-lhe
uns minutos, admite António de Sousa. E lá desço eu também, eterna
tradutora, ao quarto dos prisioneiros vanguni. Esperei até ao fim da viagem
que o senhor me viesse visitar, começa por declarar Ngungunyane. E
prossegue, pausadamente: Posso ser um preso, mas ainda sou um rei.
Durante mais de uma década tinha tratado com respeito todos os
embaixadores de Portugal. Mantinha a esperança de que o levassem, enfim,
à presença do seu homólogo, o rei de Portugal. António de Sousa escutou
aquilo tudo em silêncio.
— Hoje é sexta-feira — dia treze — declara o capitão. — Não tens
receio?
O rei estranha. Este branco tem medo de um feitiço?, pergunta. Porque a
ele, soberano de Gaza, aquele dia até lhe traz um certo alívio. É
interrompido por um violento ataque de tosse. O hálito de Ngungunyane
cheira a ferrugem. O rei treme. Não é de frio. É de febre.
— Faz-me falta o Doutor Liengme — queixa-se, quase sem voz.
— Temos cá melhores médicos — tranquiliza Sousa. — Não morras
agora, Gungunhana!
E riem-se os dois. Novo ataque de tosse e o português despede-se à pressa
com receio de ser contaminado. Ngungunyane estende-lhe o braço. Pela
primeira vez em toda a sua vida, o capitão cumprimenta um negro com um
aperto de mão. A saudação prolonga-se mais do que esperava.
Delicadamente, vai-se soltando da mão do outro. Ngungunyane volta a
segurar-lhe o braço. E murmura: Estou cheio de medo, meu amigo. De novo
o português se senta junto ao prisioneiro, hesitando na escolha das palavras.
Por fim, retira do bolso do casaco uma garrafa e recomenda: Bebe este
vinho. É melhor não estares sóbrio neste dia.
Retira-se, por fim, para a torre de comando. Ngungunyane estende a
bebida na minha direção. Agradeço, sacudindo a cabeça. O imperador leva a
garrafa à boca e escuto o lento gorgolejar. O apito do vapor soa como o
mugido de um boi gigante. Ngungunyane ergue o rosto e percorre os céus
com olhos de criança.
— É isso mesmo que o senhor pensa, meu rei — declaro. — Estão a
sacrificar uma cabeça para festejar a sua chegada.
O sorriso do rei é débil. Mas ilumina-lhe a alma inteira. Por um instante
os deuses regressam e Ngungunyane deixa de ver o medo.
— Este boi que agora escutamos é o mesmo que mugiu no funeral do meu
pai.
Sugere a esposa Muzamussi que não recorde tão tristes assuntos. Agora
tenho que falar, diz Ngungunyane. E relembra o enterro do seu pai, o rei
Muzila. O corpo do falecido foi metido numa pele de vaca e pendurado do
teto da casa grande. Ali permaneceu para receber as devidas honrarias.
Quem abriu o desfile não foram os conselheiros reais. Não foram os chefes
militares. Foi o inkomo ya mdlozi, o touro das grandes sombras. É este
grande bovino que agora se faz ouvir nos céus de Lisboa.

Deve haver um sol dentro deste rio. Só assim se explica a luz de Lisboa. É
o que digo ao capitão enquanto contemplamos as colinas da cidade. António
de Sousa admite, sorrindo: a cidade deveria chamar-se «Luzboa».
É manhã do dia treze de março de mil oitocentos e noventa e seis. O
navio progride, lento e vaidoso, pelo estuário do Tejo. À nossa volta há
mais barcos que gaivotas. E são de todos os tamanhos e feitios: lanchas,
canoas, fragatas, botes a motor, à vela e a remos, todos carregados de gente
que acena num infinito alarido. Para os portugueses é uma festa. Para os
prisioneiros é um prenúncio de fim do mundo.
Mais perto do cais percebemos como a multidão se estende e ondula ao
jeito de um outro mar. Escutam-se os gritos:
— Já chegou! Já chegou o Gungunhana!
Os motores são desligados, ao longe a terra balança, informe e ébria.
Desço ao quarto para escapar das náuseas. Espreito os degraus para além do
ventre. Estou no sexto mês de gravidez.
Ainda não atracámos e começa a invasão dos jornalistas, que chegam
transportados em barcaças. Sobem a bordo com tal entusiasmo que ninguém
os impede de visitar o cubículo que, durante dois meses, serviu de prisão
aos meus conterrâneos. O sargento apressa-me a que siga os jornalistas.
Naquele momento, adverte-me Araújo, convém que eu apareça como sendo
uma das esposas. Na tradução terei que adotar um sotaque mais africano. A
gente da imprensa, diz o sargento, é perita em forjar histórias e fabricar
escândalos. E logo, dirigindo-se aos visitantes, deixa-se tomar pela vaidade.
Com modos circenses, anuncia à porta do quarto: Eis os pretos, caros
senhores!
Usando lenços sobre o rosto, os jornalistas espreitam o exíguo espaço.
Escuta-se a voz de Zixaxa comentando na sua língua: Ainda bem que
cheiramos mal. Assim não se aproximam de nós.
— É aquele o Gungunhana? — interrogam-se os jornalistas apontando
Zixaxa. Não entendem uma palavra do que foi dito, mas o simples facto de
aquele homem ter ousado falar sugere que seja distinto dos demais.
O sargento Araújo levanta o pano com que Ngungunyane se tinha
coberto. Não precisava de se esconder. O imperador deixara de ter rosto.
Restam-lhe uns olhos redondos de recém-nascido. Não entende a
voracidade dos repórteres. Só podem querer a sua alma. E a alma do rei
ficou do outro lado do oceano.
Ngungunyane chora e os repórteres estranham. Estavam à espera de uma
postura mais digna. E adiam os fotógrafos o tão ansiado retrato. O espaço
torna-se exíguo, há uma mulher negra que tosse nuvens de poeira e há um
rei debulhado em lágrimas. Urge sair dali. Araújo lidera eufórico o pelotão
dos escribas: Venham comigo, vamos levar esta gandulagem para a tolda.
Ngungunyane segue cambaleando à frente dos presos. Tinha obedecido
ao conselho do capitão: bebera tão rapidamente que o álcool lhe fez do
cérebro uma deslaçada nuvem. Os bêbados não se contentam com tristezas.
Querem tragédias. E ele está certo do seu desfecho: vai ser fuzilado como
aconteceu com os seus conselheiros em Chaimite. Chora, implora, esconde
o rosto com as mãos, oferece tudo o que já não tem para obter a sua
redenção: libras, gado, ouro, marfim, escravos, terras. E suplica para ser
recebido por D. Carlos. Quer provar que lhe estão a mentir, quer jurar
fidelidade ao seu homólogo lusitano.
Espera que eu lhe traduza as súplicas. Peço a Godido que me substitua
nessa incumbência. O filho do imperador não se faz rogado: o seu porte
emproado e o domínio da língua portuguesa tornam-no o centro das
atenções. Os filhos dos chefes são quase sempre insuportáveis: o que lhes
falta em maturidade sobra-lhes em arrogância. Mais tarde, quando constar
que este Godido sabe assinar o nome, distintas damas irão assediá-lo para
obter um autógrafo.
Xailes às riscas vermelhas e brancas são distribuídos pelas rainhas. São as
cores que elas usam para convocar as chuvas. Não fui prevista, não recebo
agasalho. Até àquele dia o inverno era, para mim, uma palavra dos livros.
Agora é uma flecha branca que me atravessa o corpo. Tenho medo que
trespasse o meu filho. O capitão Sousa coloca-me sobre os ombros um
manto preto. E diz: Fica-te bem, é teu, leva-o contigo.

Inesperadamente, junta-se aos jornalistas uma distinta personagem:


António Enes, o comissário régio. Veio numa lancha especial e, no convés,
todos lhe abrem alas e lhe prestam vénias. Pede para ver os presos. Sacode a
cabeça ao encarar o choroso imperador.
— Não é boa ideia exibi-lo em público — lamenta António Enes. — Vai
inspirar simpatia e compaixão. Certa imprensa vai adorar assumir a defesa
de um pobre negro.
— Não podemos apresentar Zixaxa em vez dele? — pergunta António
Sérgio de Sousa.
Um sorriso triste é a resignada resposta de Enes. É tentador, admite Enes,
mas é um risco a evitar. O pior que poderia acontecer a Portugal seria que
esta operação de propaganda fracassasse.
— O Gungunhana está murcho — diz o comissário régio. — Há que
animá-lo. Digam-lhe que vai ser recebido pelo rei de Portugal.
— E é verdade, comissário? — indaga o sargento Araújo.
— Deixemo-lo pensar que sim. Mentimos. Foi o que ele fez connosco
durante anos.
O sargento Araújo dá uma volta em redor da cadeira do comissário. Está
tenso, usa os pés para agredir o chão. Quando ganha coragem, a voz sai-lhe
aflautada:
— Com todo o respeito, Excelência, mas não falta aqui alguém?
— Não percebo.
— Não falta aqui o nosso capitão Mouzinho de Albuquerque?
António Enes ajeita os óculos. Não escutou. É sexta-feira, dia treze. Num
dia assim há coisas que não se deve escutar. E retira-se. Pede licença
dizendo que em Lisboa esperam por ele graves urgências.
Resta no convés um incómodo silêncio. O sargento Araújo insiste,
dirigindo-se a António de Sousa: Responda o meu comandante: Mouzinho
não devia estar aqui?
Sousa não tira os olhos do mar enquanto responde. O sargento, diz ele, já
devia saber a diferença entre um político e um militar. O político sabe — ou
julga saber — quando deve falar. O militar aprendeu a ficar calado. E, assim
calado, tem sempre razão.

Enfim, somos conduzidos para o cais. Desembarcam primeiro as


mulheres, carregando as trouxas à cabeça. Depois são os homens que
desfilam rodeados por um cordão de soldados que mantém afastada a
multidão. Albergam-nos primeiro num enorme armazém a que chamam de
Arsenal. Nesse amplo recinto esperam-nos governantes, jornalistas,
cavalheiros e damas. Lá fora o alarido é ensurdecedor. Onde estamos,
capitão?, pergunto a António de Sousa. Estamos num fábrica de material
de guerra, responde. É uma boa maneira de entrar neste país, diz ele. As
nossas fábricas, acrescenta, não são fábricas nem são nossas. O que fazem
já vem feito do estrangeiro.
Ngungunyane senta-se num banco de madeira. O assento é alto, os pés do
rei balançam no ar. Chama por mim, pede que me mantenha por perto.
Precisa de saber o que dizem os brancos. Dabondi senta-se do outro lado do
assento. As tábuas rangem. A mão magra da rainha afaga a madeira. Já
estamos em Portugal, Nkosi, afirmo. Eu não estou em nenhuma terra,
declara Ngungunyane. Faço companhia ao meu filho João, estou por baixo
do chão.
Vejam as árvores, exorta Dabondi. Estão mortas, tão mortas que os
corvos nelas receiam pousar. As árvores foram chupadas por um bicho que
tem um dono. Nas ruas e nos passeios, as folhas secas encolhem-se como
friorentas viúvas. Assim fala a rainha feiticeira. E indaga: Respondam-me,
sem medo: alguma vez viram tal desolação? Eu vi, responde Ngungunyane.
Quando se sentiu morrer, o seu pai, o rei Muzila, disparou uma flecha
contra o céu. Num segundo as nuvens se desplumaram e, aos pedaços,
desabaram sobre o chão.
Cinco carruagens puxadas a cavalos estacionam à nossa frente. Vai
começar o desfile. Os soldados empurram-nos para junto das carroças.
Estão a ver?, pergunta Ngungunyane. Não sou um preso, sou um visitante.
Levam-me de carruagem, como me disseram que fazem aos reis.
Dabondi separa-se dos restantes presos. O frio é tanto que as sombras não
se soltam dos corpos. Ajoelha-se em frente dos cavalos e usa os dedos para
escavar entre as pedras da calçada. O que faz essa mulher?, pergunta
Araújo. Estamos pisando um cemitério, declara a rainha. Os brancos
colocam pedras sobre os mortos para que estes não regressem. Onde se
dizia haver uma rua, ela via um cemitério.
Os cavalos percutem as pedras da calçada como fazem os tingoma, os
tocadores de tambores da minha terra. Os cavalos, diz Dabondi, têm medo
da sua própria sombra. É por isso que não dão descanso aos cascos. Uma
banda militar instala-se no pátio. Os tambores batem agora com o mesmo
ritmo dos cavalos. Os bichos sacodem as patas como os ikanyamba, essas
criaturas que habitam as águas e os sonhos dos zulus. E há um fogo que
brota das suas narinas. Os olhos deles estão cheios de rios e de escuras
planícies. Os olhos dos cavalos são bons para chorar, diz Dabondi. As
folhas mortas levantam voo e o imperador segue-as com o olhar acreditando
serem andorinhas. Mandou que fossem exterminadas. Mas elas ressuscitam
e emergem do chão onde o filho foi enterrado. O solo português também é
seu. Aquela terra pertence-lhe desde que recebeu o seu sangue.

Começam a distribuir os prisioneiros pelas carruagens. Nas três primeiras


fazem sentar as dez esposas. A quarta carroça é ocupada pelo cozinheiro
Ngó, que se instala sobre as trouxas e as esteiras, as nossas únicas bagagens.
Na última carruagem seguem Ngungunyane, Godido, Zixaxa e Mulungo.
Por um momento, hesitam onde me colocar. A imprensa já tinha feito
saber que eram dez as mulheres. A minha presença seria questionada.
Decidem que viajarei, oculta, na carroça do cozinheiro Ngó.
E começa o desfile. Escoltadas por trinta soldados, as carroças forçam
caminho por entre a cerrada multidão. Milhares de pessoas comprimem-se
nos passeios e nas ruas, empoleiram-se nas árvores e nos postes, debruçam-
se das janelas e varandas. São todos uma só criatura que ondula como um
mar que ruge. Chovem insultos e ameaças. Cospem para o chão, atiram
objetos, pedem para que sejam degolados os que ousaram rebelar-se.
Aos solavancos, vou espreitando por entre as tralhas. Com exceção de
Dabondi todas as rainhas parecem curiosas e despreocupadas. Acreditam na
versão de Ngungunyane: toda aquela algazarra é uma manifestação de boas-
vindas. E os apupos das mulheres brancas são entendidos como o
«mukulungana», o ulular com que elas mesmas, na sua terra, saúdam os
visitantes. De vez em quando avistam negros no meio da multidão. E
acenam como se fosse um reencontro. Aos poucos, porém, a realidade
impõe-se e as mulheres fazem como o pangolim: encostam-se umas nas
outras, como se tivessem um só corpo, redondo e blindado.
Desde início os homens seguem acabrunhados, tolhidos de frio e medo.
Aos poucos, porém, Ngungunyane vai assumindo uma postura tranquila e
confiante. Não é dignidade que nele transpira. É indiferença. Se a intenção
era alhear-se da humilhação, o monarca excedeu-se na dose de vinho. E
adormece no embalo da carruagem. Essa sonolência é mal vista pelos
portugueses, que esperavam surpreender no rosto de Ngungunyane a
imagem da submissão de toda uma raça. O africano está ausente, absorto em
si mesmo como é próprio de um imperador. Insultam-no e ele não reage.
Lançam-lhe objetos e ele não se desvia. Dabondi sorri, ergue o punho
direito fazendo soar as pulseiras. As folhas secas erguem-se do chão e
rodopiam de regresso às árvores.
Capítulo 23

Um quarto debaixo da terra

Eis o que eles fazem: com a espada matam os viventes sem


deus; com a cruz matam os deuses dos sobreviventes.
(Nwamatibjane Zixaxa)
No Forte de Monsanto encaminham-nos por uma escadaria subterrânea,
como se visitássemos a nossa derradeira morada. Nem os mortos moram tão
fundo, suspira Ngungunyane. A masmorra é escura, húmida e fria. Escorre
água pelas paredes, sente-se o cheiro das coisas velhas. Enterram-nos vivos,
geme Godido.
Sentado no chão de pedra, o rei pede que o ajudem a tirar as botas. Não
preciso delas, diz. Já não tenho pés. O frio comeu-os, o frio tem grandes
fomes. O rei delira: caso o inverno se prolongue talvez se habitue a andar
sem pés. E se não o matarem quem sabe na próxima vez os pés lhe voltem a
crescer?
Acostumo os olhos à penumbra e vejo que a cela é mais ampla do que as
que nos havíamos habitado. No fundo da terra, porém, tudo parece estreito.
Dormimos aconchegados uns nos outros. Dabondi enrosca-se em mim. A
rainha será, nas próximas noites, a minha manta, o meu travesseiro, o meu
braseiro.
Não sabemos se o nosso despertar é precoce ou tardio. Porque há apenas
uma pequena janela rasgada no topo da parede. Por essa fresta chega-nos
uma fatia do céu de Lisboa. Godido empoleira-se para espreitar a multidão
que se aglomera no terreno baldio em volta. E será assim nos próximos dias:
nesse descampado frente ao forte centenas de curiosos instalaram uma feira
com barracas de comes-e-bebes. Ali se vendem postais do Gungunhana,
folhetos com relatos épicos da captura do rei africano. As bancas exibem
uns biscoitos chamados «Gungunhanas» com o recorte de um homem
anafado e cabeçudo. O próprio imperador se mostrará fã daquelas bolachas.
Não há dia, que não se devore a si mesmo.
Os portugueses festejam como fazem todos os infelizes, murmura
Dabondi. Porque eles não se dão conta de que a cidade está amaldiçoada. E
a rainha cospe para o chão. Nas mesmas ruas por onde hoje desfilámos se
derramará o sangue do rei D. Carlos. E cairá o corpo de Mouzinho de
Albuquerque. Tombará como uma folha morta sobre as pedras da cidade.

*
Vivemos como toupeiras, num buraco escavado em terra alheia. A rainha
Dabondi reconhece a nossa triste condição mas não parece lamentar-se, Um
dia destes, diz ela, a água brotará das pedras e subirá pelas paredes. O nosso
desafio é claro, vaticina: sobreviverão aqueles que se converterem em
peixes. Foi o que sucedeu aos portugueses.
Faz hoje uma semana que nos encarceraram dentro das trevas. Escuto
passos. Um sentinela chega carregado de jornais. Atira-os pelas grades da
porta. É para leres alto para os outros, diz-me. Mostro as fotografias ao
imperador de Gaza. Ele sorri, satisfeito. Foi o rei de Portugal que mandou
que me publicassem, proclama. Abstenho-me de traduzir os títulos. Tratam
Ngungunyane como a «fera cruel», o «régulo sanguinário», «o brutal tirano,
aliado dos ingleses».
Os jornais são depois distribuídos entre os presos. Retalham-nos como se
fossem panos à medida do corpo. Usarão essas folhas para se aquecerem.
Os que nunca souberam ler dormem agora cobertos de letras.
No oitavo dia vieram limpar os quartos e caiar as paredes. Diz-se em
surdina que D. Carlos visitará Monsanto. Para Ngungunyane a notícia não
causa espanto: «Sempre acolhi bem os emissários da realeza lusitana. Vão
receber-me, é o que fazem os reis.»
No dia seguinte suspendem as limpezas e as pinturas. O rei D. Carlos
anulou a visita. A decisão é política, explicam. Trouxeram Ngungunyane
para que fosse o centro das atenções. Mas a presença do Leão de Gaza
acabou tornando-se incómoda. Esse constrangimento tem um nome: as
mulheres. Ngungunyane pode ser africano, pode ser inimigo de Portugal.
Mas não pode exibir tão impunemente o pecado da poligamia. A igreja
protesta, os jornais reclamam, a sociedade faz eco desse desconforto. Os
conselheiros avisam D. Carlos: visitar Ngungunyane seria legitimar aquela
imoralidade.
Desiludido, Ngungunyane manda o filho tapar a única janela que ilumina
o calabouço. Se não me recebem também não quero a luz que eles, por
caridade, me enviam, declara. Questiona em voz alta como se, para além
das paredes, alguém mais o escutasse: Convidaram-me junto com as minhas
sete mulheres. Alguma vez andei a contar as esposas que os acompanhavam
nas visitas a Moçambique?

*
Não é tanto o sol que me falta. Do que tenho mais saudade é da lua. Já
não a vejo brilhar. Talvez seja por isso que penso tanto em Germano. A sua
lembrança chega-me como o luar que deixei de contemplar. Dabondi pede-
me que me afaste das recordações. Diz-me que cante. E que o faça na minha
língua. Que língua?, pergunto-lhe. Em silêncio, ela se afasta.
Nos dias seguintes somos visitadas por damas da corte. Falam por gestos
e logo se percebe que têm um propósito: civilizar, dizem elas, as suas
congéneres africanas.
E a primeira lição centra-se no adequado uso dos talheres. Podem as
negras dirigir-lhes insultos numa língua impercetível. Mas não se aceita que
elas comam com as mãos. Usar os dedos para comer é, como a poligamia,
uma inaceitável obscenidade.
Depois das visitas as portuguesas passam pela igreja para se confessarem.
Estiveram num antro pecaminoso. Deus não aceita que um homem tenha
várias mulheres, explica-nos uma delas. Os homens aqui só têm uma
esposa?, pergunta Dabondi. A portuguesa sorri, e não responde.
Acabaram proibindo a visita das damas da corte. A partir de então é no
jogo de cartas que as rainhas passam a maior parte do tempo. Enquanto
jogam vão-se penteando umas às outras. Não estranham aquele infinito
ócio: nunca na vida estiveram grandemente ocupadas. Havia na corte de
Gaza quem fizesse o trabalho por elas. Ngó, Godido e Mulungo fazem
cestas e colares de missangas. Zixaxa estuda português num caderninho que
lhe deram no barco. Ngungunyane bebe, tosse e dorme. O velho Mulungo
vai passeando de um lado para o outro. Faz como todos os prisioneiros:
conta os passos para que a cela deixe de ter dimensão. Está feliz por não
entender uma palavra de português. Tal como os guerreiros zulus — que se
untam com a seiva do impundu — também ele se tornou invisível. Essa sua
desistência torna as paredes inexistentes. O velho conselheiro é o único que
não chegou nunca a estar preso.
No meu canto na cela vou mantendo uma única ocupação: a gravidez. A
barriga é o meu relógio de areia: vai enchendo com o vazar do tempo. Estou
agora de sete meses. E faço como Dabondi me aconselhou: vou cantando.
Mas canto sem palavras. Não escolhemos o idioma em que nascemos. O
que se canta a um filho é um ventre que perdura para além do parto.
Todas as noites durmo abraçada a Dabondi. O frio pede um corpo
acrescido. Nesse duplicado ventre se anicha agora o meu filho. Antes de
nascer já ele tinha várias mães. De noite, quando todos já dormem, retiro o
pano que tapa a janela. Incapaz de dormir, vou espreitando a noite como um
afogado que emerge à superfície da água. Não existe insónia, diz Dabondi.
Existe apenas um outro modo de dormir. Nesse distinto sono, escuto o rei
gemendo e tossindo convulsivamente. Não é uma doença, garante Dabondi.
Alguém quer sair do corpo dele. O imperador está mais grávido do que eu.
Um maléfico espírito abrigou-se nele e consome-lhe o peito e tritura-lhe os
joelhos.
Desde ontem que não se escuta o ruído infernal das cercanias. Proibiram o
arraial. Os comerciantes levantaram as barracas e foram vender caricaturas
do Leão de Gaza num outro lugar. Estão com medo de mim, ironiza
Ngungunyane. Já estava a fazer concorrência ao rei deles.
Cada um dos presos pode ter o seu passatempo. Há, porém, uma ocupação
que nos é comum: o sono. A velhice e a prisão ensinam a mesma lição:
dormir anula o tempo. Ao meu lado ressona ininterruptamente aquele que os
portugueses chamam de «Leão de Gaza». O título concede-lhe a nobreza de
um rei. Aos leões os europeus reservam um de três destinos: serem caçados,
enjaulados num zoo ou domesticados num circo. O rei de Gaza reúne estes
destinos numa só pessoa.

Os dias passam sem história até que, numa tarde cinzenta, recebemos a
visita do médico do forte. Alertaram-no para as dores no tórax e para o
estado febril de Ngungunyane. Enquanto o paciente é auscultado, a rainha
Dabondi anuncia o seu diagnóstico: há um pássaro dentro do peito do
imperador. Escuta-se a ave piar durante a noite. É uma xikhova, uma coruja,
diz Dabondi. É preciso espantá-la, defende a rainha. O médico do forte
abana a cabeça. É uma doença, uma pleurisia, declara com superioridade.
No dia seguinte levam Ngungunyane estendido numa maca. Godido vai
com o pai, para as traduções. O choro lancinante das mulheres confunde-se
com as sirenes da viatura que transporta o rei para o hospital. As rainhas
entram de luto. Não sabem despedir-se do esposo em terra alheia. Pedem
uma lâmina e rapam o cabelo. Deixarão crescer o cabelo apenas quando o
marido regressar. Dabondi já não me abraça durante a noite. Não me pode
tocar enquanto o rei estiver ausente. Estou impura, justifica ela. Trago um
mulato dentro de mim.

Ngungunyane regressa do hospital com saúde no corpo e com um plano


na cabeça. Durante a sua estada na enfermaria o filho Godido escutou
conversas. E percebeu que havia um assunto que não deixava dormir a corte
lusitana: o relatório de Álvaro Andrea. Essa outra versão da epopeia de
Chaimite é uma bomba prestes a explodir. Os republicanos anseiam por
divulgar o documento. O feito heroico da monarquia corre o risco de se
desfazer como poeira.
Ngungunyane solicita a presença do comandante do forte. Quer negociar
com as autoridades prisionais: corroborará a versão de Mouzinho desde que,
em troca, lhe concedam melhores condições no cárcere. A exigência resulta:
no dia seguinte são-nos atribuídas duas celas amplas, arejadas e com roupas
à disposição. Para além disso, autorizaram-nos a passar as manhãs no pátio
exterior. Nesse mesmo dia estendo-me na relva, faço subir a blusa e deixo o
sol aquecer-me o ventre. O meu filho tem que saber que vem de outras
terras, cheias de calor e luz.
O sol não é apenas uma dádiva. É um remédio para mim, que tinha
deixado de rezar. Todas as manhãs estiro-me no pátio com os pés virados
para sul. A ponta dos dedos toca a minha aldeia natal. E assim me deixo até
a pele incendiar. Aos poucos, começo a gostar da cidade de Lisboa com as
suas manhã limpas e azuis. Pode alguém amar uma terra apenas pelo seu
céu?
Nessas ensolaradas horas vou pensando nas mulheres da minha terra. E
concluo: se há neste forte uma rainha sou eu. Todas estas mulheres que me
acompanham não diferem muito da gente humilde que habita o meu país.
Não fosse eu ter saído da minha aldeia e seria apenas mais uma dessas
criaturas que há séculos entram nas florestas e regressam carregadas de
ramos secos. Esse é um encargo que lhes cabe desde que aprendem a
caminhar. Os braços crescem-lhes mais rápido que o resto do corpo, que é
para melhor servirem os homens. Na aparência, trabalham para as suas
casas. Mas elas fazem mais do que isso: estão juntando lenha para incendiar
o mundo. Haverá um dia em que as meninas da minha terra entrarão numa
escola e carregarão livros nos seus braços. Era assim que eu sonhava nas
manhãs soalheiras de Lisboa.

Dias depois atribuem-me um quarto só para mim. Pensei que fosse um


privilégio. Era uma condenação. Nesse aposento recebo a visita do
comandante do forte. As suas instruções são claras: devo extrair
informações dos prisioneiros e denunciar falas e falantes. Ngungunyane e
Zixaxa são donos de segredos. É esta a certeza dos portugueses: de longe,
os presos ainda comandam as operações de resistência em Moçambique.
Será talvez uma ideia demasiado conspirativa. A verdade é que a guerra não
terminou com a detenção do rei de Gaza. Novos focos de rebeldia se
acenderam em redor de Maputo e em Magude.
Estas notícias são uma rasteira para a propaganda lusitana. Se as
novidades são más para os portugueses, para mim constituem uma
verdadeira calamidade: todas as noites transito de tradutora para delatora.
Não tenho escolha: ou denuncio os meus irmãos de raça ou, depois do parto,
enviam-me de volta para Moçambique. Viajarei sem o meu filho, sem
Germano, sem os meus sonhos.
Decido inventar para agradar aos meus algozes. A única diferença entre
ilusão e realidade é apenas uma questão de convicção. E é assim que, todas
as noites, há um secretário que transcreve imaginárias conspirações. O mais
grave é que vou criando prazer nessas falsas denúncias.

Até que nos chega a notícia vinda de Gaza: mataram Maguiguane, o


guerreiro que se convertia em pássaro. Assassinaram o homem que
mantinha viva a última centelha do império de Ngungunyane. Decapitaram-
no. Era preciso uma prova daquela morte: espetaram a sua cabeça num ferro
e exibiram-na de aldeia em aldeia. Ao fim de uns dias estava tão putrefacta
e coberta de moscas, que podia ser a cabeça de uma criatura qualquer. As
pessoas olhavam, baixavam o rosto e fugiam. Não precisavam daquela
prova. Sabiam da verdade por vias que os portugueses desconheciam.
O homem que nos fez chegar a notícia era um munguni que veio de
Moçambique. Trouxe com ele um ramo da árvore sagrada, a umphafa.
Cortaram aquele galho no lugar onde Maguiguane morreu e pediram ao
morto que migrasse para dentro daquela pequena estaca.
Entregaram o ramo a este mensageiro e fizeram-no viajar para Portugal.
Durante todo o caminho o homem conversou com o galho da árvore.
Quando fosse para se sentar o mensageiro pedia duas cadeiras, reservando
uma para pousar o ramo. Na sua mesa havia sempre um prato a mais. Na
amurada o mensageiro descrevia em voz alta os portos por onde paravam.
Os marinheiros riam-se dos desvarios do viajante. Não acreditavam que
traziam no navio o falecido Maguiguane Khossa, o temido chefe das tropas
inimigas.
Esse mesmo ramo é agora entregue ao imperador, que comprime as folhas
entre os dedos e os espinhos. Gotas de sangue tombam na pedra do quarto.
Quem o matou?, pergunta Ngungunyane. Foi Mouzinho, responde o
mensageiro em xizulu. O rei de Gaza manda que o estafeta se retire. Deita o
ramo da umphafa no seu leito, cobre-o com um pano. E dirige-se-lhe num
murmúrio: Vieste ter comigo, meu guerreiro. Não há na nossa terra uma
réstia de chão para te enterrar. É interrompido por um acesso de tosse.
Depois, prossegue: Disse aos portugueses que eras um traidor. Menti para
te proteger. E tu cumpriste as minhas ordens até ao fim.
Num rompante de fúria, Zixaxa arranca o ramo das mãos de
Ngungunyane, quebra-o em pedaços e lança esses fragmentos pela janela.
Ngungunyane está estupefacto, as rainhas choram. Nunca pensaram
testemunhar tamanha heresia, a casa de um morto ser tratada com tanta
desfaçatez. Tudo isto é mentira, clama Zixaxa. Ainda agora, pergunta ele,
acabáramos de chegar e já havia alguém trazendo notícias de Moçambique?
Em que barco viajou tal mensageiro? Só um bêbado, assegura Zixaxa, podia
acreditar naquela fantasia. Ou quem sabe o Ngungunyane queira, daquela
maneira, comprovar a morte do Maguiguane Khossa?

Anunciam uma nova benesse: os prisioneiros estão autorizados a preparar


as suas refeições. Dabondi está feliz mas não quer que seja o jovem Ngó a
cozinhar. Bate à porta do meu quarto carregada de potes e panelas.
— Esconda-as no seu quarto e só as entregue às rainhas — diz ela. —
Não podemos permitir que um homem prepare a comida do Nkosi.
— E por que não? — pergunto.
— Sempre foi assim: os homens acendem a fogueira, as mulheres dão uso
ao fogo.
Rigorosas são as tradições na cozinha: as cinzas são lançadas aos quatro
pontos cardeais. Só assim se purifica a aldeia. A prisão é agora a nossa
aldeia.
— Deixe Ngó cozinhar — peço-lhe. — Se o homem ficar sem serviço, os
brancos deitam-no ao mar.
Com um pedaço de carvão a rainha inscreve uma cruz no fundo de cada
uma das panelas. Pronto, estão abençoadas, suspira. Os brancos têm fortes
feitiços, diz ela. Cozinhar, minha filha, não é fazer comida. É sentar os
deuses à nossa mesa.
Esquecemo-nos, diz Dabondi, como se arrumavam as nossas casas para
receber esses invisíveis visitantes. Nos nossos pátios, os homens sentam-se
virados para sul. As esposas ocupam o lado oposto. Ao vento norte dá-se o
nome de «nwalungo», o «homem». O vento sul é chamado de «dzonga», a
mesma palavra que designa as mulheres. Estes preceitos não são mais
respeitados. Nesta nova casa — que Dabondi diz ser um barco enterrado —
ninguém mais sabe dos pontos cardeais. Se um dia os espíritos nos vierem
resgatar não saberão como nos encontrar. Saberão atravessar o extenso
oceano mas ficarão à porta das nossas celas.
As minhas únicas visitas são os sonhos. Naquela noite sonhei com quem
não se pode sonhar: o meu filho que está por nascer. No sonho, o meu
menino vai ser batizado na igreja de Nkokholani. Estão presentes todos os
parentes, os vivos e os mortos: o meu pai com a sua orquestra de marimbas,
a minha mãe trazendo nos braços a corda com que se enforcou; o meu irmão
Dubula com suas vestes guerreiras e Mwanatu com a remendada farda do
exército lusitano. O último a chegar é o avô Sangatela, que se apresenta
todo coberto de poeira. Ao tossir contorce o corpo como se expelisse toda a
poeira das minas por onde passou. E anuncia com voz grave:
— Atravessei a terra para comparecer a este batizado. Esse meu neto sou
eu mesmo.
Em voz alta são invocados os que foram levados pelos navios negreiros e
os que foram mortos nas guerras. Sobre o nome de cada um se derrama
água do mar. A profetisa Bibliana chama pelos desaparecidos e as paredes
da igreja começam a ranger. Eleva o tom de voz e fendas se abrem nos
muros. Até que o telhado se solta e flutua brevemente para depois ganhar
altura. Por fim, perde-se nos céus como embriagada ave.
Bibliana traz a bilha com água do mar. Pede ao padre Rudolfo que verta
água sobre o corpo do meu filho. O menino chora e tosse engasgado. A
profetisa ergue a criança e declara: «Os mares são como o sangue: parecem
vastos e variados, mas todos cabem num único corpo.»
Bibliana coloca-se atrás de mim e abraça-me com convicção. Aperto os
seus braços reforçando esse aconchego.
É manhã. E surpreendo-me tocando as pulseiras de Dabondi.
Capítulo 24

Um corpo rasgado

Nem todos os selvagens são meus inimigos. Mas basta que


sejam inimigos para se tornarem selvagens.
(Sargento Araújo, citado por Zixaxa)
Certa noite Patihina e Xesipe irrompem pelo meu quarto quebrando-me o
sono. As rainhas apressam-me, o rei está a ter um ataque. A cela para onde
me levam encontra-se às escuras. Uma suspeita nasce dentro de mim: por
que razão apagaram todas as lamparinas? Há um vulto deitado sobre a
cama. De súbito sou rodeada por braços que me empurram. São as rainhas
que me atacam e me arrastam para o leito. A surpresa é tanta que me
esqueço de gritar. As mulheres prendem-me as pernas e os braços. A rainha
Muzamussi coloca um joelho sobre o meu peito e pergunta: Vê quem está
aqui connosco! A um gesto seu as três esposas de Zixaxa dão um passo em
frente.
O mesmo riso misterioso deforma o rosto de todas as mulheres. A rainha
mais velha acusa-me com veemência: Pensas que és uma branca? Andas
calçada e vestida sem respeito e, mesmo ainda não sendo mãe, falas com os
homens sem baixar os olhos. Nós sabemos porquê: és uma feiticeira, queres
enlouquecer os nossos homens. E já o fizeste. Nós vemos as pestanas dos
nossos maridos a arder durante a noite. Sonham contigo, foi Dabondi quem
nos disse.
Muzamussi prossegue, enfática: ali estão as mães mais veneradas de todo
o reino de Gaza. Mas não deixam de ser mulheres: em todo o lado serão
tratadas como intrusas.
A matriarca dirige-se ao esposo, pronunciando um veredito: Está aqui a
culpada, está aqui a mulher que não te respeita como homem, a mulher que
ofende a tua dignidade como pessoa. Castiga-a, mostra o teu poder!
— Dabondi! — chamo, em desespero.
A rainha não está no forte. É o que me dizem as outras esposas. Levaram-
na para a cidade. Estás sozinha, sem os teus patrões, sem a tua madrinha.
Ngungunyane arrasta-se como uma enorme lesma, pegajosa e escura.
Metade de mim submerge sob o seu peso. Há uma mão que me tapa a boca.
Espreito na penumbra. Vejo o rosto do rei pendendo sobre mim.
— Não magoe o meu filho, Nkosi — imploro, brigando contra a mão que
me amordaça.
O rei respeita o meu pedido: senta-se no leito, apoiando os pés na pedra
fria. Manda que as esposas se retirem. Quer ficar sozinho comigo.
Muzamussi ordena: Queremos ouvir a cabra gemer. E as mulheres
abandonam o quarto.
Estamos agora os dois sozinhos na cela. Sentado na berma do leito,
Ngungunyane fica um tempo contemplando os joelhos. Depois fala, sem
erguer a cabeça: Não passas de uma mutxope contratada para me espiar.
Não valia a pena negar. Godido tinha ouvido os guardas a conversar. Não
perceberam que o preso sabia português. Falavam de mim, Imani Nsambe, e
dos segredos que eu entregava ao comandante do forte. Já ninguém tinha
dúvida sobre a natureza dos meus serviços.
— Foi a minha espionagem que o salvou, Nkosi.
— Quando?
— Na viagem de barco. Fui eu que fiz abortar os planos de Machava.
Com um inesperado vigor Ngungunyane agarra-me pelos braços como se
me arrastasse para um abismo. No escuro sinto abater-se sobre mim todo o
peso do universo. O imperador de Gaza, todo nu, está irremediavelmente
desabado sobre as minhas coxas. Agonia-me o seu hálito empestado, enoja-
me o suor cheirando a bicho.
— Geme, luta, grita! — sussurra ao meu ouvido.
Não percebo. Faz de conta que te estou a violar, insiste o rei. E vai
sacudindo o corpo em espasmos que fazem ranger a cama. De repente tudo
se torna claro. Aceito participar naquela simulação. Grito por minha mãe,
grito com tal convicção que todo o corpo me dói e as lágrimas escorrem
pelo meu rosto. E nunca nenhum sofrimento real me havia magoado tanto.
O rei ergue-se e, no recanto dos banhos, finge que se lava. A água escorre
de um balde para outro enquanto vai falando. Elas sabem, diz ele, que estou
impotente. Agita as mãos dentro do balde, precisa do consolo daquele rumor
de água. Tinhas razão: há meses que não sou homem. O Doutor Liengme
atribuía a culpa ao álcool. Mas o rei não acredita. Os suíços não sabem dos
nossos feitiços, diz ele. Não foi o vinho, foram as minhas esposas que me
murcharam.
O que elas tinham acabado de fazer, colocando-me nas mãos do marido,
não passava de uma pérfida cilada. É o que garante Ngungunyane. As
rainhas estavam certas do seu fracasso assim como estavam seguras da
minha humilhação. Mas o rei tinha engendrado uma resposta à altura.
— Agora é a minha vez de castigar essas mulheres — declara o rei. —
Continua a fingir, Imani.
— Não preciso fingir, Nkosi. Eu fui violada.
Ngungunyane sacode a cabeça com um sorriso vago. Porque só agora ele
entende: os portugueses não o trouxeram para o matar. Quando embarcou
ele já estava morto. No momento em que, à frente dos seus súbditos,
Mouzinho lhe poupou a vida, nesse exato momento ele foi executado. Um
imperador morre quando se exibe mortal, quando se declara humano e
frágil, quando se ajoelha submisso aos pés de outro imperador. Não podes
ter sido violada, minha filha, declara com veemência. Porque não te
deitaste com uma pessoa viva.
Retiro-me do escuro recinto. De alma rasgada, olhos molhados, passo
pelas rainhas que, fazendo alas, esperam atónitas no corredor. Sinto os seus
olhos como facas cravando-me as costas. Fecho a porta do meu quarto,
cruzo os braços sobre o ventre e penso: é realmente triste o que as rainhas
acabaram de fazer comigo. Mais triste, porém, é o que a vida fez com estas
mulheres. A inveja que sentem de mim tem todo o sentido. Chamam-nas de
rainhas. Mas nenhuma delas sonhou tomar posse da sua própria vida.

Manhã cedo vêm-me buscar. Há alguém na sala de espera, dizem-me,


alguém que veio de longe para me ver. Só pode ser engano, penso enquanto
vou atravessando amplas salas e austeros corredores. Talvez seja Germano,
penso com o coração saltando-me do peito. Chegou a tempo de assistir ao
nascimento do nosso filho.
O soldado que me conduz aponta para os tetos altos e declara com
orgulho: «É tudo feito com betão reforçado, não há bomba neste mundo que
atire isto abaixo.» Desemboco num aposento estranho, com grandes tapetes
vermelhos. Numa poltrona igualmente vermelha está sentada uma mulher
magra, cabelos brancos emergindo de um lenço negro. Está tricotando uma
malha da cor do assento e dos tapetes. Por um momento parece que vai
tecendo todo aquele obscuro lugar. Balança os cotovelos para evitar que as
linhas se emaranhem nas agulhas.
— É para o meu neto — diz ela. — Vai nascer no dia em que eu terminar
este casaco.
Agora tenho a certeza: estou perante Laura de Melo, a mãe de Germano.
A senhora ergue-se com desenvoltura, fazendo rolar o rolo de lã pelo tapete.
O novelo segue-a como um obediente gato. Encosta a malha ao meu rosto e
sacode a cabeça em desaprovação: És mais preta do que eu pensava. Devia
ter escolhido uma cor mais clara.»
Rastejo atrás do novelo, quero ser prestável, mais do que prestável, quero
mostrar-me submissa. Sempre de joelhos, ergo o novelo de lã com as duas
mãos juntas. Laura de Melo parece não me ver. Não te aproximes, ordena-
me. De súbito suspende os braços e, num violento sacão, espeta as agulhas
por entre os fios da lã. O novelo encolhe-se num estertor de corpo vivo.
Como se retornasse a si mesma, Dona Laura benze-se e volta a enfrentar-
me: Não quero cá proximidades. Ainda começamos a gostar uma da outra e
não haverá pior coisa do que isso.
Contempla-me de alto a baixo. Tem nos olhos o mesmo azul de Germano.
— Estou aqui apenas por um motivo — diz ela. — Venho entregar-te
uma carta que chegou do meu filho.
Do bolso do vestido retira um envelope: Toma, é para ti. Estende o braço
na minha direção. Perante a minha passividade vai agitando nervosamente a
encomenda. E lamenta-se: Germano sempre foi dado à escrita. Espero que
perca esta mania. Escrever cartas é coisa de mulher.
Recolho finalmente o envelope. Não o abro. Levo-o ao rosto e inspiro
profundamente. Também já fiz o mesmo, diz Laura, sorrindo. Nas cartas
anteriores não encontrei o cheiro do meu filho. Agora, sim: Germano
voltou a ser meu filho.
A sua velha mãe, diz Laura, cheirava-lhe o cabelo para saber da sua
saúde. Já moribunda e incapaz de deglutir, a velha senhora alimentava-se de
aromas. De manhã deixavam-lhe cascas de laranja sobre a cabeceira. À
noite esfarelavam folhas de hortelã no travesseiro. E a velha mãe dormia
sorrindo. E concluiu a velha mãe:
— Não vale a pena — diz Laura — cheirares essa carta, minha filha: não
encontrarás o teu namorado.
Com o envelope nas mãos, encaminho-me para o corredor enquanto
escuto as terríveis palavras:
Ele não vem, minha filha. Vai ficar por África, o meu Germano.
Percorro de volta os corredores frios, seguindo o mesmo soldado que me
escoltou na ida. Contemplo os tetos de betão, desejando que o edifício
desabe sobre mim.
*

Acabo de me acomodar no quarto que nunca me pareceu tão estreito. A


porta escancara-se e eu não abro os olhos. Escuto os lamentos de Dabondi.
Não imagino quanto eu mesma estou destroçada.
Mataram-no, clama a rainha. Vem da cidade, onde visitou a campa do
filho. Foi Godido que a acompanhou ao cemitério.
Ele morreu e depois mataram-no, murmura a rainha. Foi o que constatou
naquela manhã. Enterraram-no conforme os preceitos dos brancos. Não
tiveram, contudo, o cuidado de fazer chegar a notícia a Moçambique. E
nunca aconteceram, nesse outro lado, as devidas rezas. O seu único filho,
João Mangueze, veio para Portugal como um príncipe e foi sepultado como
um deserdado, sem nome nem família. Agora deambula feito um xipoko,
uma dessas almas sem parentes.
— Sabes por que fui ao cemitério?
A pergunta é tão óbvia que me guardo calada. Dabondi está agora mais
tranquila, há mesmo um leve sorriso que lhe aflora o rosto.
— Fui ver o falecido, mas também fui apresentar-lhe o seu novo irmão.
Corro a abraçá-la. Desde o início da viagem que suspeitei que Dabondi
estava grávida. E aquele é um momento tão feliz que decido não falar sobre
a violação que acabou de me suceder. Há contudo qualquer coisa que não
sou capaz de esconder. A rainha dá um passo atrás para melhor me
contemplar. Por que estás tão triste, Imani?, pergunta. Germano não vem,
respondo. Ela diz que já sabia. É o que diz sempre a rainha, que já sabe. E
eu acredito.
Dabondi olha o infinito enquanto esgravata na parede. Depois, com um
dedo tingido de cal, desenha um círculo branco no meu peito.
— Quando deres à luz — diz ela — vais ficar vazia.
— Vazia? — pergunto com estranheza. — Não será o inverso?
— Não falemos disso agora — pede.
E como insisto, a rainha vai abrindo o jogo: os deuses dar-me-ão a
felicidade de ser mãe. Contudo, esses mesmos psikwembo pretendem
manifestar o seu desagrado: estão desapontados porque ignoro a sua
existência.
— Vão-te apagar por dentro.
— Apagar-me? O que quer dizer isso, Dabondi? — pergunto, ansiosa.
Terei o mesmo destino da figueira brava, a umbombe: serei devorada
pelas minhas próprias raízes. A rainha pronuncia estas palavras e sai do
quarto. A profecia rouba-me o sono. A noite é agora um poço sem fundo. E
mais fundo se torna quando decido ler a carta de Germano. Rasgo o
envelope e algo se rompe dentro de mim.

Querida Imani

Esta não é uma carta fácil. Começo, assim, sem rodeios: não vou para
Lisboa. Não haverá barco, não haverá viagem. Fico em Lourenço Marques.
Haveremos de nos reencontrar mais tarde, aqui em Moçambique ou quem
sabe por aí, em Portugal.
Não te quero magoar, não te quero perder. Todo o amor que senti — e
ainda sinto por ti — é absolutamente verdadeiro. Não é da minha lealdade
que podes duvidar. As razões desta separação são outras. Posso ser teu
marido. Mas não poderei ser pai dessa criança. Estive preso numa cela, em
Portugal. Estive preso em Moçambique sem parede, sem porta, sem grades.
Não quero ficar preso a uma rotina doméstica. Foi isso que aprendi com os
meus colegas casados. A vida em casal é a mais perpétua das prisões.
Talvez eu esteja doente, talvez me tivesse faltado uma família. O meu velho
professava uma espécie particular de ateísmo: era descrente da felicidade. E
dizia das pessoas da aldeia: «Quanto mais estúpidos, mais felizes se tornam.
Quanto mais burros, mais facilmente adormecem.»
Há um outro motivo para esta decisão: não posso voltar para Portugal
enquanto não for derrubada a monarquia. Seria imediatamente encafuado
num calabouço. Ficarias na mesma sem marido. E ficaria o nosso filho sem
conhecer o pai.
Não sintas pena de mim. Estou bem por aqui, Imani. Melhor do que
alguma vez estive na terra onde nasci. Chorou a minha mãe quando parti
para a guerra. Chorou como se eu saísse de um lugar de paz. Era um
engano. Encontrei mais sossego nas batalhas de África que alguma vez
encontrei na minha terra.
Desculpa a brevidade destas linhas. Mas esta é a mais crua das verdades:
a guerra despe os homens. A proximidade da morte expõe a alma humana
sem vestes, sem retoque, sem disfarce. E acredita, Imani, a alma dos
homens não é coisa que se queira ver. É por isso que o melhor, por agora, é
que me mantenha distante. O amor que tivemos, e tivemo-lo inteiro,
sobreviverá. Não há palavra para dizer o que o amor foi. E não há silêncio
para esquecer o que o amor nos deixou.
Não sabes quanto me custam estas derradeiras palavras.

Teu, sempre teu

Lourenço Marques, 21 de março de 1986


Germano de Melo

PS. Talvez não voltemos a falar. Tenho que ter coragem para dizer-te
tudo. Estamos perante governos e exércitos poderosos que matam, prendem
e dividem as pessoas. Todavia, há algo mais poderoso que qualquer governo
ou exército e é a viciada mentalidade que nos cerca. Contra a violência
deste insidioso cerco pouco podemos fazer. Não há ilha nem exílio que nos
salve desse reino da estupidez.
Fui sincero em tudo o que antes escrevi. É verdade que não me agrada a
ideia de sermos um casal com a sua vidinha rotineira. É verdade que pouco
me entusiasma ter filhos. A nossa relação não foi, contudo, destruída por
nenhuma das razões que antes invoquei. Foi destruída muito antes de nos
conhecermos, muito antes de termos nascido. O mesmo enredo que
propiciou o nosso encontro, tornou impossível o nosso amor. Estaremos
mais próximos assim separados, do que estaríamos vivendo juntos. Tu
serias culpada por seres negra. E eu seria odiado por ser o marido da negra.
Resistiríamos, no início. No final, porém, acabaríamos por ceder ante o
invisível exército do preconceito. O único modo de vencermos é recusar a
batalha. O nosso amor viverá como estas cartas: só os teus olhos
despertarão as palavras que deitámos a dormir.
Capítulo 25

O que foi dado à luz

Quem vive por metade ganha um duplo medo da vida.


(Provérbio de Nkokolani)
Na minha terra, quando uma mulher engravida, toda a família fica
grávida. Durante a gestação o corpo da mulher deixa uma vez mais de lhe
pertencer: foi simplesmente emprestado. Foi cedido ao marido, aos sogros,
à família do pai da criança. E nem as dores do parto lhe pertencem. Porque
é assim que reza a tradição: não é a mulher que dá à luz. São os
antepassados que insuflam uma vida nova naqueles que nascem. A mulher
existe como um luar: mero espelho de outros sóis.
Na noite de vinte e cinco de maio acordo com dores, as pernas molhadas,
os lençóis encharcados. Grito por Dabondi. Dabondi grita por Muzamussi.
E Muzamussi não grita por ninguém porque ela é a mulher grande, a
nkosikazi. E é ainda a parteira mais experiente. Todas as restantes mulheres
abandonam o quarto em silêncio. Ajoelho-me perante a mais velha das
rainhas, os braços postos em redor do seu pescoço. Muzamussi também está
de joelhos segurando-me pela cintura. As suas mãos escorregam: acabei de
ser untada com óleos que ajudarão o meu filho a sair de mim.
As dores do parto são punhais cravando-se nas costas. Vão e vêm como
marés. De súbito esqueço que tenho quinze anos, que ainda não deixei de
ser filha. O meu corpo tem outra idade e obedece ao mando de uma outra
vontade. E até a minha voz me é estranha quando pergunto:
— Vou bem, Muzamussi?
— Quem tem que ir bem não és tu. É esse que aí vem — declara a rainha.
Também ela me anula. Eu mesma me vou apagando à medida que o parto
se prolonga. O cansaço alia-se às dores e já não tenho costas nem braços
para me conservar de joelhos. Quem me sustenta é Muzamussi que está
mais suada do que eu própria. O meu filho, digo para buscar coragem,
lembra o avô Sangatela: teimoso mesmo antes de nascer. Muzamussi não
acha graça. Para ela esta demora é prova de que não fui fiel. Devo
pronunciar o nome desse homem com quem traí. Diz quem foi, insiste a
rainha. Germano, murmuro de modo quase inaudível. Não esse, diz o nome
do outro!, teima a parteira. E são tantas as dores, é tanta a exaustão que me
ocorre inventar uma traição. Nesse mesmo momento, porém, o meu filho
decide sair de mim. E é como se eu voltasse a nascer. Os meus olhos estão
tão rasos de lágrimas que vejo Germano segurando-me as mãos.
Não sinto que me cortam o cordão. Não sinto que nos separam, não há
golpe que nos impeça de continuarmos a ser uma única criatura. E
transportam o menino por cima do meu rosto, ele voa sobre mim com sua
pele amarelada, as suas mãos pequenas esgravatam o ar. Os caracóis claros
e largos são os dos anjos que vi pintados na igreja. Escuto o seu vigoroso
protesto. Choro junto dele. Muzamussi pede-me que não o faça. Estou a
chamar os maus espíritos.
Fecho os olhos e convoco Germano. Não sei viver sozinha aquele
momento. A volumosa parteira circula em meu redor. A placenta e o sangue
são cuidadosamente eliminados. Para que ninguém te faça mal, explica
Muzamussi.
— Por que me ajuda, por que me protege? — pergunto.
A rainha não responde. Pede que me dispa. Vai levar com ela a minha
roupa, vai rasgá-la em irreconhecíveis pedaços. Ao fechar a porta as suas
instruções são claras: nos dias que se seguem nenhum homem poderá entrar
no meu quarto. Sorrio: que homem teria esse desejo? Se até Germano me
espera longe, num outro país, num outro tempo.

Horas depois Dabondi visita-me. Estou grávida, diz ela, posso pegar no
teu filho, não receies. Uma mulher com os sangues — essas que dizemos
que saltam a lua — está interdita de tocar no recém-nascido. Não é o seu
caso.
A rainha dança com o bebé ao colo. Que nome lhe vais dar?, pergunta.
Chama-se Sanga, respondo. Quem escolheu o nome foi o avô Sangatela. A
rainha encolhe os ombros. A decisão devia pertencer ao pai. Germano que
se queixe mais tarde.
Peço contas a Dabondi: ela tinha ameaçado que, depois do parto, eu
ficaria vazia. Foi esse o termo que usou: vazia. Disse que os deuses me iam
apagar por dentro.
— Que vazio é esse que nunca me senti tão cheia? — pergunto.
— Falamos disso noutra altura.
— Diga-me agora, Dabondi. Que maldição era essa?
— Agora que o teu filho nasceu — responde ela — deixarás de saber
falar a língua dos brancos.
Sorrio, descrente. Não é possível. Aquele língua fazia parte do meu corpo.
— Duvidas? — indaga a rainha. — Pois experimenta falar em português.
Sorrio, sacudindo a cabeça. E ensaio pronunciar umas palavras. E o que
escuto é diverso do que digo. Repito a fala e mantem-se a dissonância:
penso em português mas as palavras são proferidas em txitxope. Afinal, a
maldição é verdadeira: a partir de hoje deixei de saber português. A rainha
estava certa. As minhas raízes estão-me devorando. Peço, imploro. Ela que
me devolva a voz da minha alma. Esse sempre fora o teu engano, alega a
rainha.
— A tua alma tem outras vozes — declara a rainha. — A partir de agora,
não mais servirás os portugueses.
Não me castigava, dizia ela, pousando a criança no meu colo. Pelo
contrário, estava apenas a devolver uma parte do meu ser.

No dia seguinte a mãe de Germano vem visitar-me. Espreita o


improvisado berço e comenta, aliviada: É clarinho! Ergo-me a custo, as
mãos viciadas no amparo do ventre. Emocionada, pergunto: Não é bonito,
Dona Laura?
— Nada de intimidades, minha filha! Posso ser avó. Mas não sou tua
sogra.
Um dia destes virá buscar o menino, anuncia. Não há maldade, é apenas
promessa que fez a Germano. Não procederia assim, diz ela, se eu tivesse
condição para tratar da criança.
Seguro o meu Sanga entre os braços e juro para mim mesma: para o
arrancarem de mim terão que esgaçar o meu corpo. Indefesa, choro. Peço
que a visitante se vá mas, como previa, as palavras desobedecem-me.
Famba khaya, Dona Laura! São estas palavras que Laura escuta. A
mensagem, porém, produz o efeito oposto. A portuguesa senta-se na minha
cama.
— Estou completamente sozinha — suspira. — Quem me dera alguém
tomasse conta de mim.
Contempla o bebé, sem lhe chegar a tocar. O marido nunca soubera ser
pai. E Germano, segundo ela, segue as mesmas pisadas.
Na véspera de morrer, o seu homem confessou pela primeira vez que a
amava. E ela, então, desabou em lágrimas. Por que choras?, perguntou ele.
Não quero ser amada, respondeu, soluçando. Longe de ser uma prenda,
aquela confissão de amor fazia-a pensar em tudo o que a vida não lhe tinha
dado.
Anos depois, quando o marido morreu, Laura passou a dormir deitada
sobre a campa. Não era saudade. Era medo de que o falecido pudesse
regressar. O corpo dela era uma pedra, uma laje a enclausurar o velho
companheiro. O padre vinha buscá-la de madrugada. Arrastava-a à força
pela aldeia enquanto ela gritava pelo marido. Mas enganava-se no nome: era
Germano que ela chamava em prantos. Não foi internada num manicómio
porque, segundo ela, a aldeia já era um hospício. Passava pelo cemitério e
via as flores, secas sobre a campa. Aquela decadência não a incomodava.
Aquele desapego, dentro dela, era a prova de que estava dispensada do luto.
Já era viúva antes de o marido morrer.

Uma semana depois Dona Laura regressa ao forte. Vem buscar o menino.
Não deixo que se aproxime. Com a criança nos braços, vou escapando pelo
terreiro. Os guardas perseguem-me. Lembro de todas as mães que, durante
séculos, correram para salvar os filhos. A força e o desespero dessas
mulheres habitam agora o meu corpo. E vou voando sobre o pátio até ficar
encurralada entre os tanques de lavar a roupa. Dona Laura grita para que
tenha cuidado, o chão está molhado, não vá eu tombar e magoar o neto.
De repente, das traseiras da lavandaria surgem as dez rainhas. Todas elas
empunham facas. Fazem um cordão à minha volta. E ameaçam os soldados.
Esse menino é filho de todas nós, anuncia Mazimussi. As mesmas facas que
lhes foram entregues para se civilizarem, brilham agora no seu gesto
rebelde. Eram talheres, agora são armas. De cada vez que lavaram a louça,
uma peça desaparecia. Tivessem-nas deixado comer com as mãos e não
teriam agora que as enfrentar.
Pela janela do quarto o embriagado rei de Gaza espreita e sorri. Em
tempos foi assaltado pela ideia de um exército africano composto só por
mulheres. Não era um sonho. Era um pesadelo. Agora ali estavam as
mulheres enfrentando os militares brancos. Não são as pequenas facas que
os soldados mais temem. O que os atemoriza é o simples facto de serem
confrontados. Aprenderam a enfrentar um exército. Mas não sabem como
vencer uma dezena de mulheres.
A batalha, contudo, estava decidida mesmo antes de começar. As
mulheres são dominadas e a minha criança é-me arrancada dos braços.
Dona Laura embrulha-a numa manta e afasta-se a passo acelerado.
Desvanece na distância o choro do meu bebé. Até que escuto apenas a água
tombando sobre o tanque. Daqui para a frente será sempre assim: um rumor
de água será a única voz do meu pequeno filho.
Capítulo 26

Entre exílios e desterros

O grande rei não é o que conduz o seu povo na guerra mas o


que afasta a guerra para longe do seu povo.
(Zixaxa)
Ao fim da tarde de vinte e dois de junho os militares entram de rompante
pela cela dos presos. Gritam por Ngungunyane, Zixaxa, Mulungo e Godido.
Mandam que façam as malas. As malas?, pergunta Godido, que é o único
que percebe o que dizem. Apressadamente embrulham numa trouxa os
magros pertences. E nem para isso lhes dão tempo.
Ngungunyane senta-se no chão, em prantos. Agora sim, pela pressa e
rispidez com que o empurram, ele está certo de que, desta vez, o irão
fuzilar. As esposas lamentam-se aos berros, os soldados usam da força para
afastar os quatro prisioneiros. Olho para tudo aquilo com indiferença.
Levaram o meu filho, tudo o resto deixou de importar.
Mandam-me que acompanhe os presos, não confiam na tradução de
Godido. Vamos em duas carruagens, a cidade está vazia. A operação é feita
em segredo. No cais aguarda o navio Zambeze. Só então me revelam: irão
conduzir os exilados para os Açores. No cais há um compasso de espera.
Ngungunyane está mais tranquilo, percebe que não o vão molestar. O seu
aspeto, contudo, é completamente decadente: descalço, a fralda da camisa
de fora, as calças rasgadas, os cabelos desgrenhados.
— São todos falsos, os brancos — declara o rei de Gaza. — Alguma vez
faríamos com eles o que eles fizeram connosco: prenderem-nos, trazerem-
nos para outra terra e exibirem-nos como bichos?
— Alguma vez fizemos prisioneiros? — contesta Zixaxa.
— Por que e que você toma o partido dos brancos?
— Não somos melhores do que eles. É só isso que estou a dizer.
— Você, Zixaxa, fala muito porque não é a si que querem morto.
— O problema, meu Nkosi, não é esse. O problema é que eles não sabem
o que fazer consigo.
Ngungunyane vira costas, diz que não entende a língua dos tsongas. Essa
língua é a que sempre falámos os dois, afirma Zixaxa. E prossegue,
seguindo em desafio os passos do rei: Você, meu rei, não me entende não
por causa do que eu digo. Não me entende por causa do que eu sou.
Agradeça aos portugueses por o terem poupado, grita Zixaxa antes de o
empurrarem para dentro do navio. Agradeça-lhes, Ngungunyane, não foi
isso que sempre fez?
Vejo o barco com os presos afastando-se nas brumas. De volta ao forte,
penso: não basta o exílio para afastar aqueles rebeldes de Moçambique. É
preciso que não haja terra lá onde forem desterrados.

No dia seguinte recebo a visita do comandante António Sérgio de Sousa.


Fica surpreso com a ausência do rei. A decisão de levar os presos para os
Açores foi tão secreta que o visitante a desconhecia. Oferece-me um ramo
de flores. Sabe que dei à luz, quer ver a criança.
— Onde está esse rapagão? — pergunta.
Quero explicar que levaram o meu filho mas o choro rouba-me a voz.
Consternado, o comandante pensa que o menino morreu. Não entende o que
eu digo. Escapa-lhe por que razão não lhe falo em português. Faço de conta
que estou doente da garganta. Peço-lhe caneta e papel. Escrevo curtas
mensagens que lhe dou a ler. Levaram o meu filho. Ajude-me!
— Vou ver o que posso fazer — responde ele.
Deixo tombar a caneta, a tinta espalha-se-me pelas pernas. Falo, choro,
gesticulo. Ele é tão pequenino, balbucio. Quase cabe numa mão. E deixo a
mão erguida como se ainda o segurasse.
— Os homens não sabem, senhor capitão, mas é quando pegamos pela
primeira vez num filho que as nossas mãos começam a nascer.
Encosto a cabeça no ombro do visitante e assim me deixo ficar enquanto,
em prantos, faço desfilar um rosário de tristes e intraduziveis lamentos,
todos pronunciados em txitxopi. O português faz de conta que me entende,
aflito perante a minha indecifrável emoção. Nunca vi ninguém tão gentil. O
meu nome já foi Cinza, relembro. Esse nome foi-me dado para me proteger.
Quando somos cinza nada nos faz doer. Como eu queria ter a doença da
minha mãe, que nunca na vida sentiu dor! Como eu desejo essa maldição!
Manifestamente o comandante não sabe tratar da minha tristeza. E tenta
um desajeitado consolo. Sabes ler e escrever?, pergunta. Tens sorte, minha
filha. Os meus vizinhos, que se dizem cultos e abastados, proibiram as
filhas de irem à escola, não fossem as meninas escrever cartas de namoro
aos rapazes.
*

António Sérgio de Sousa conduz-me para o terraço onde se pode ver o


mar de um lado e a cidade do outro. As mãos sobre os meus ombros trazem-
me antigos sossegos.
— Existe uma razão que me trouxe aqui — começa por dizer António de
Sousa.
Ergo o sobrolho, curiosa. O comandante esfrega os cotovelos como se
sofresse de um acesso de frio. Acordou esta manhã sem se conseguir
levantar. Por um momento, suspeitou que, durante a noite, lhe tivessem
bloqueado as juntas e os ossos se tivessem convertido em ferro. Acordou
dizendo para si mesmo: é hoje que me vendem na sucata juntamente com o
meu velho navio. Sentou-se na cama e pensou que havia assuntos que não
queria levar para a cova.
— Trouxe-te flores, Imani — diz ele. — Mas nenhuma flor vale nada se
não tiver uma história.
Fico à espera dessa história. Mas o capitão permanece calado, em luta
com os seus fantasmas. Deixo passsar um tempo e pergunto pelo Álvaro
Andrea. Acha que ele me pode ajudar?, pergunto, usando dos rabiscos.
Tomara o capitão que o ajudassem a ele, responde Sousa. Um jornal
publicou parte do seu relatório de denúncia de Mouzinho. E agora o homem
não sai do quartel. A pretexto de consecutivas audições conservam-no
incontactável. A maior parte dos que se revoltaram contra o relatório de
Andrea não foi porque ele denunciasse o herói nacional. O que mais os
irritava era o modo como Andrea tratava os negros como seres humanos,
merecedores de todo o respeito. O comandante volta a pousar os longos
braços sobre os meus ombros e fala:
— Agora, sim, agora vou ao assunto que aqui me trouxe. É esta a dúvida
que me rouba o sono: durante a viagem, o sargento Araújo chegou a fazer-
te mal?
Não respondo. Mesmo que quisesse não seria capaz. O comandante exala
um longo suspiro e diz: Sempre suspeitei. E acrescenta: A culpa é minha,
que nunca fui capaz de me impor. Se ele fosse pássaro, declara
envergonhado, seria um papagaio. Nunca uma águia. Falta-lhe o gosto das
alturas, falta-lhe o prazer de mandar. Por essa razão sempre necessitou de
uma alma complementar. Essa alma foi o sargento Araújo.
Aquele é o seu modo de me pedir desculpas. Um papagaio, é isso que
sou, repete enquanto se retira. Está agora em paz consigo mesmo, o velho
comandante do África. Não foi ele que me visitou. Fui eu que sosseguei os
seus fantasmas. A sua generosidade consistiu em que eu lhe fizesse bem.
Capítulo 27

O bebedor de horizontes

Não vejo com os olhos. Vejo com os sonhos.


(Dabondi)
Querida Imani

Esta carta é uma surpresa. Sou eu, o Nwamatibjane Zixaxa, que te escreve
dos Açores. Como vês, foi muito bom ter aprendido português. Na viagem
aprendi a falar. Agora, na ilha, ensinam-me a escrever. Nesta primeira carta
ainda sou ajudado por um soldado que se tornou meu companheiro. Chamo-
lhe Munganu. E ele risse, desconhecendo que o chamo exatamente de
«amigo», na minha língua. Passo mais tempo na companhia dele do que
com qualquer um dos que vieram de Moçambique. Os brancos estranham
essa minha escolha. Devia ficar entre a «minha gente». Para eles somos
todos pretos, sem distinção. Não sabem que sou um mfumo. E os outros três
presos são vanguni, são da realeza dos zulus. Não entendem por que confio
mais neste soldado branco do que em qualquer dos meus companheiros de
cela. A próxima carta, combinámos eu e Munganu, serei eu sozinho a
escrevê-la.
Viajámos para os Açores num navio chamado Zambeze. Já o grande barco
que nos trouxe de Moçambique se chamava África. Ngungunyane acha que
estes nomes foram atribuídos em sua homenagem. Está doente o Leão de
Gaza. Não lhe chegava a velha embriaguez. Busca agora na loucura o
derradeiro refúgio. Durante toda a viagem dormiu abraçado a uma garrafa
de vinho. De manhã cedo lançava as garrafas vazias contra as grandes aves
que voavam sobre navio.
Na ilha Terceira fomos recebidos de maneira especial: não houve insultos
nem ameaças como aconteceu em Lisboa. Disseram-nos que éramos
hóspedes, não prisioneiros. Deram-nos uma casa dentro do forte. Somos
autorizados a circular no grande recinto da fortaleza. Num dos edifícios
caiados a branco gravaram a ferro uma frase que, para nós, os exilados, só
nos pode fazer rir. Está escrito assim: «Antes morrer livres que em paz
sujeitos.» Aquelas palavras recordam-me o pastor Machava ao desembarcar
em Cabo Verde. António Sérgio de Sousa despediu-se dele, com visível
culpa. E justificou-se: Há coisas, disse ele, que não faríamos se não fosse a
guerra. E o missionário respondeu: Ninguém mais quer a paz do que os
meus religiosos, que aqui ficam presos. O que se passa, disse o pastor, é
que, para nós, viver é já uma guerra. E o comandante Sousa defendeu-se,
argumentando que tudo o que fazia era com o propósito de acabar com a
guerra. As últimas palavras de Roberto Machava foram pronunciadas na sua
própria língua: Quer a paz, meu patrão? Pois nós queremos isso e muito
mais. Queremos uma outra vida.
Ouvi dizer que o Machava foi reenviado para Moçambique. Os ingleses
pressionaram tanto as autoridades portuguesas que estas cederam e
deixaram-no regressar. Mas os outros crentes, seus seguidores, ficaram em
Cabo Verde. Ainda esperaram que Machava viesse buscá-los. Ou que Deus
fizesse justiça. Mandaram-nos trabalhar nas salinas. A maior parte deles
morreu, segundo me disseram. Assim que era ensacado, o sal convertia-se
numa pedra dura. Era um problema da qualidade do sal. Mas os patrões
culparam os escravos de Moçambique. E castigaram-nos, obrigando-os a
dormir amarrados aos sacos. Os homens foram mirrando, perdendo carne e
substância. No dia em que choraram eles se dissolveram. Pode ser mentira.
Mas é isto que contam. Os ausentes servem para isso mesmo: para serem
convertidos em histórias. Essas histórias regressam a Moçambique. E assim
os ausentes reencontram o seu caminho de volta.
Imagino que queiras saber como passo o tempo cercado por tanto mar.
Pois eu te digo: se esta ilha é uma prisão então eu partilho com milhares de
açorianos esse castigo. Sou aqui tudo menos um prisioneiro. Por detrás da
fortaleza há uma mata extensa onde caçamos coelhos. As árvores aqui são
diferentes. Não sabemos que almas ali moram. Ngungunyane não se
descalça para entrar na floresta. Caminha sem pedir licença por entre as
árvores que desconhece. Os loucos estão dispensados de temer os deuses.
Para matar coelhos, o Ngungunyane usa um pau que trouxe de
Moçambique. Lança essa estaca e nunca falha. Ngungunyane diz que essa
madeira foi tratada por Dabondi. Um dia, diz ele, lançará esse pau de
encontro ao oceano. Em vez de coelhos matará baleias. Beneficiará, então,
do respeito devido aos caçadores do mar.
De noite o rei circula pelo pátio e nós escutamo-lo a gritar pelo nome da
única mulher que amou: Vuiaze! Godido sai a resgatar o pai. Abraça-o e
entrega-lhe uma garrafa de vinho doce. O rei guarda as rolhas de cortiça.
Tem centenas dessas rolhas, que foi juntando para construir um barco.
Nesse barco, diz ele, regressará um dia a Moçambique.
Confesso, Imani, que sinto pena de Ngungunyane. O desgraçado já foi
punido. Foi castigado da única maneira possível: ele é o seu próprio
carrasco. Agora nem precisa beber: o horizonte enche-lhe os olhos, a
solidão inunda-lhe a alma.
Já a mim não me dói estar cercado pelo mar. Na verdade, não é a primeira
vez que estou numa ilha. Quando tinha vinte anos os portugueses enviaram-
me de castigo para a Ilha de Moçambique. Perdoaram-me, depois. E
deixaram-me voltar para Lourenço Marques. Foi um erro. Se alguém devem
odiar é a mim. Fui eu — e eu sozinho — que ataquei Lourenço Marques.
Por pouco não venci, por pouco não lancei os portugueses às águas da baía.
São curiosos os encontros e os desencontros deste mundo. O militar que
redige esta carta trouxe ontem um grupo de outros soldados brancos.
Sentaram-se à minha volta, muito atentos, e perguntaram como era a minha
terra. Querem fugir da ilha, não aguentam a pobreza em que vivem. Muitos
da idade deles foram para o Brasil. Mas estes pensam que África possa ser
melhor destino, agora que deixou de haver guerra. Queriam saber como era
a vida lá na nossa terra. Respondi-lhes o seguinte: Se me derem autorização
conduzo-vos para Moçambique e, se não mudarem de raça no caminho,
acabarão todos ricos. E riram-se, rimo-nos todos. Rir junto é um abraço.
E é assim, minha filha. O Ngungunyane vai tecendo cestos. Eu vou
tecendo pequenas alegrias. Ser feliz é o melhor modo de me vingar de
Ngungunyane. O rei de Gaza entregou-me aos portugueses? Pois agora é o
que eu sou: um português, um português de pele escura. Um português feliz
que olha para quem o traiu e o vê infeliz e bêbado. Aos fins de semana
levam-me às casas das mulheres. Durmo com elas, esqueço-me das minhas
esposas que ficaram longe. Eu e Godido divertimo-nos nestes programas
noturnos. Mulungo está velho, nunca vai. Ngungunyane vai às vezes,
quando está sóbrio. Mas fica apenas o tempo para um primeiro copo.
Depois é vencido pelo medo que sente das mulheres. E volta para casa
sabendo que, mais que destronado, ele foi despromovido da sua virilidade.
O nosso Ngungunyane odeia o mar, as mulheres e as andorinhas por essa
mesma razão. Ele receia o que não pode governar.
Não quero terminar esta carta sem te falar daquilo que sei que te
atormenta. Os três prisioneiros que foram fuzilados na viagem. Pois agora te
quero dizer: não te tortures, Imani. Não és culpada. Fui eu quem, no barco,
denunciou os planos de Machava. Fui eu que impedi que o meu grande rival
fosse assassinado. Fiz isso com medo da reação que a morte do Leão de
Gaza iria provocar. Os portugueses iriam vingar-se em mim. Seria também
eu executado e deitado ao mar.
Despeço-me de ti, pedindo a este amigo que me empreste a caneta que
usou para redigir esta carta. Porque quero escrever, agora por meu próprio
punho: ita vunana musuko, nkata Imane! Vemo-nos amanhã, querida Imani.

Ilha Terceira, 1 de julho de 1896


Nwamatibjane Zixaxa
Capítulo 28

O derradeiro idioma

Os portugueses arrancaram-me do meu chão. Agora não


tenho onde ser enterrado. Os que rezarem por mim terão que
olhar para o mar.
(Ngungunyane)
Visto-me quando devia morrer. Calço-me e já não há mais chão.
Empurram-me pelos corredores do forte, a trouxa da roupa varrendo o
caminho. Gritam os soldados, mandam que nos apressemos. Chamam-nos
nomes feios, que ofendem mais as rainhas porque não os entendem. Desde
que Dabondi me amaldiçoou nunca mais voltei a falar em português. Foi
pena que o mau-olhado não me impedisse também de compreender essa
outra língua que, sendo dos outros, faz parte da minha carne.
Vão-nos levar para uma ilha muito distante. É um exílio dentro do exílio.
As rainhas estão resignadas, nada as prende a nenhum lugar. Não é o meu
caso. Tenho o meu filho nesta cidade. Peço ao comandante para me
despedir do meu menino. Ninguém me escuta. Já fui a tradutora de um rei.
Já fui espia ao serviço da coroa lusitana. Agora sou apenas a décima
primeira das pretas. Ainda há pouco dei à luz e nunca mais verei o meu
pequeno Sanga. Nunca mais encontrarei o pai dessa criança, o meu
Germano, o amor da minha vida. Subo para a carroça, em total desleixo.
Dabondi ajeita-me os cabelos, aperta-me os botões do vestido. Faltam-me
os dedos, todo o corpo que eu tinha era para acarinhar o filho que me
roubaram.
Seguimos em silêncio em direção ao cais. Há quatro meses entrámos
numa cidade fria, atafulhada de gente. Saímos agora de uma Lisboa quente
e deserta. A meio do caminho enlouqueço. E desato aos gritos: Dona Laura!
Devolva-me o meu filho, Dona Laura! As rainhas choram, abraçam-me,
escondem-me a cabeça nos seus vastos colos. Os cavalos golpeiam o
silêncio, os cascos são pedras percutindo pedras.
O barco onde viajaremos está agora à vista. Chama-se São Tomé, o nome
da terra para onde seremos desterradas. As rainhas pisam descalças a laje do
cais. Seguem de olhos fechados, duas delas levam os rostos tapados com os
xailes. Faz quatro meses que nos deitaram num poço escuro, faz duas
semanas que nos roubaram as companhias dos homens. Temem que a nossa
tristeza se converta em raiva. A raiva cria raízes. É por isso que nos levam
pelo mar afora.
Ainda me resta uma última força. E protesto, mesmo sem crença: se nos
carregam de barco por que não nos deixam nos Açores, onde já se
encontram os nossos homens? Esqueço-me, porém, de que agora apenas
falo na minha língua natal. Os soldados riem-se dos meus convictos mas
impercetíveis protestos. Mas eu sei por que não podemos ter o mesmo
destino dos homens. António Sérgio de Sousa já antes me havia explicado:
os Açores são uma terra de muita religião. Recebem com piedade cristã os
africanos sofredores. Mas não aceitariam albergar o pecado da poligamia.
As cartas de Zixaxa não confirmam essa pureza de costumes. Falam mesmo
das casas de prostitutas que os presos são levados a frequentar nos finais de
semana. A moral tem as suas interdições e os seus consentimentos no que
respeita às mulheres. Putas, sim. Amantes, talvez. Polígamas, nunca.
Não vamos, pois, para os Açores. Mas também não nos enviam de volta
para Moçambique. E o motivo é simples de entender: a chegada das rainhas
pode atiçar animosidades contra Portugal. E já se fala numa mulher — a
rainha Zambili — que lidera uma revolta às portas de Lourenço Marques.
São doze dias de náuseas até aportarmos a São Tomé. Grávida, Dabondi é
quem mais sofre. A barriga já se nota, os seios estão cobertos por um pano
que será sempre o mesmo até ao parto. No final, a rainha terá mais sorte do
que eu. Na ilha de São Tomé não haverá uma avó que lhe roube a criança.
Seremos dez tias ajudando a criar um filho que, sendo dela, nos pertence a
todas.

Não sabia que havia tantas Áfricas. Foi preciso uma ilha pequena para
aprender o tamanho das terras africanas. Em São Tomé cruzam-se gentes,
línguas e crenças de todo o continente. E é de tal modo que nos guardamos
quietos e tímidos sempre que cruzamos com outro negro. Somos da mesma
cor de pele mas não somos da mesma raça. É por isso que hesitamos antes
de nos lançar em calorosas saudações. E, no entanto, há sempre um gesto
esboçado, um riso contido, um silêncio escondido que partilhamos em cada
encontro. Na suspensa intenção de um abraço nos vamos adiando irmãos.
Na primeira semana somos albergadas nas dependências de uma
plantação que aqui chamam de «roça». Dormimos num armazém de café.
Ali nos ocupamos com o que já antes fazíamos: absolutamente nada. Desta
vez, porém, não há grades nem soldados. Um único guarda — à civil e
desarmado — vigia à porta do armazém. Quando chove — e chove
constantemente — convidamos esse vigilante para se abrigar no nosso teto.
Não sei o que seria de mim sem a companhia das rainhas. A presença
destas mulheres é mais uma prova da profecia de Dabondi: as raízes da
minha alma devolvem-me agora todo o meu ser. Não se trata apenas de
regressar ao idioma da minha aldeia. Estas mulheres trazem de volta a
minha terra e a minha gente. E trazem-me de volta a mim.
Este convívio tão familiar tinha, porém, os dias contados. Na segunda
semana somos separadas. Muzamussi, a matriarca, é conduzida para um
estaleiro no sul da Ilha. É a mais corpulenta, obrigam-na a carregar pedras
para as obras. Oito das restantes rainhas são levadas a trabalhar no hospital.
Ali prestarão serviços de limpeza. Ficarão alojadas nos anexos da unidade
hospitalar. Dabondi e eu somos as únicas que permanecemos no armazém
de café. A razão não é exatamente a melhor: acham-nos as mais atraentes,
somos postas a servir num bordel para o exército. Não se apercebem de que
Dabondi está grávida. E ela prefere nada dizer. Tem medo que, ao ser tida
como imprestável, seja deitada aos bichos. Cumpre-se, enfim, o augúrio de
Bianca Vanzini: sou finalmente uma mulher da vida, vendendo-me de noite
como uma coisa de carne.
Todas as noites eu e a rainha percorremos um caminho de areia ladeado
por coqueiros. Esse atalho leva-nos ao bar onde os soldados nos esperam.
De madrugada regressamos exaustas e embriagadas ao armazém da roça.
Adormecemos ao som das carroças e dos carregadores empilhando os sacos.
São negros, jovens, cirandam de tronco nu. Transportam a carga como
fazemos nós as mulheres: à cabeça. Os corpos libertam um aroma doce, o
mesmo que emana dos grãos de café. Esse aroma entorpece os sentidos.
Estranho sofrer aquele que vicia como uma bebida: a própria carga impede
que sintam o cansaço.
Certa manhã, a rainha acorda-me. Escorre-lhe sangue pelo rosto, foi
espancada por um cliente a quem recusou servir. Vem comigo, diz ela.
Vamos à casa do administrador. Dabondi sabe coisas que eu não sei: o
administrador português chama-se Almada Negreiros, a mulher dele é
mulata, natural da terra, e está gravemente doente. Levanto-me com custosa
obediência: E o que vamos lá fazer? Não espera resposta, apressando-me
porta fora. No caminho, passo estugado, respiração ofegante, Dabondi
explica-se: vai pedir emprego na casa dos Negreiros. Fico a tomar conta
dos filhos do casal, diz ela.
Vamos subindo encostas, cruzamos riachos e cascatas e atravessamos
extensas plantações. Os cafezeiros estão em flor, rendas brancas tocam os
nossos braços. Não gosto desta paisagem, resmunga ela. Nunca vi o mato
tão penteado. Todo o caminho a rainha vai tateando o ventre. Um fio de
sangue escorre-lhe pelas pernas. E pragueja: Se esse homem magoou o meu
filho, eu mato-o!
A casa do administrador Negreiros fica assente em pilares e em redor há
grutas por onde escorrem fios de água que nascem dos céus. Vais conhecer
Dona Elvira, a mulher desse branco, estou certa de que nunca viste olhos
tão grandes, adverte Dabondi.
— Ela está muito grávida — acrescenta a rainha —, deve estar quase a
parir, se demorar mais uns dias saltam os olhos das órbitas. Pede-me que
lhe sirva de tradutora. A princípio resisto: A senhora roubou-me o
português, agora, mesmo que queira, já esqueci. Lacónica, Dabondi afirma:
Vais falar!
Após longa espera, surpreendemos o administrador e a esposa saindo para
o hospital. Dabondi apresenta-se. Fala da sua origem, da corte de Gaza. O
funcionário observa-nos, desconfiado. Rainhas?, pergunta com sarcasmo. E
apressa a esposa que traz um menino pela mão: Vamos, Elvira? Não temos
tempo para isto.
Com firmeza, Dabondi interpõe-se entre o casal. Enfrenta, em desafio, o
português: Eu conheço-o, senhor administrador. Quer que diga como nos
encontramos? Sem que eu traduza, António Almada Negreiros parece
perceber. Em silêncio, encosta-se a uma parede. A rainha aproxima-se de
Dona Elvira, leva as mãos à barriga e proclama:
— Por favor, minha senhora. Olhe para mim, também estou grávida.
Como me podem obrigar a deitar com os soldados?
Dona Elvira fixa os olhos na negra que ousa barrar-lhe o caminho. Não
parece contrariada. Pelo contrário, tem um ar fascinado. Toca nas pulseiras
que cobrem o braço da rainha.
— És de Angola? — pergunta. — Reconheço os teus traços, vens de
Benguela...
A rainha não entende mas responde afirmativamente. O administrador
reage, nervoso. Tem pressa e mais apressado se sente por estar a ser
incomodado por aquelas duas estranhas.
— Por favor, minha senhora, fale com o seu marido! — insiste Dabondi.
De repente, a rainha deixa de pedir. Está descalça, mas fala do trono da
sua dignidade. A senhora tem sangue negro, vai ter que me ajudar, declara.
A família do administrador está parada, suspensa das palavras que
empolgadamente vou traduzindo. A esta minha amiga — e Dabondi aponta
para mim — tiraram-lhe o filho. E a mim... — detém-se, engole em seco e
só depois retoma o discurso — ... a mim acabaram de maltratar o meu
filho.
— E onde está esse menino? — pergunta a esposa do administrador.
— Está aqui, dentro de mim.
O administrador puxa pelo braço da relutante esposa. Deixe-me!, reage
ela com firmeza. O marido, mais delicadamente, insiste: Vamos, Elvira.
Elas que venham depois.
Não houve depois. No dia seguinte Dabondi perdeu o filho no hospital.
Num outro quarto, da mesma casa de saúde, morreu no parto a esposa do
administrador Negreiros. Assim que soube da notícia, Dabondi saiu do seu
quarto e, com passo decidido, atravessou as linhas que, naquele hospital,
separavam as raças. Uma enfermeira perseguiu-a todo o caminho,
advertindo-a das consequências daquela insubordinação. No quarto da
falecida Elvira, a rainha irrompeu por entre os consternados visitantes, foi
ao berço e pegou ao colo o recém-nascido. Embalou-o e conduziu-o até ao
pequeno irmão. O menino fixou nela os desorbitados olhos que herdara da
Elvira. Dabondi falou em xizulu: O teu irmão nasceu enquanto o meu filho
morria. Duas sombras se tocaram, nos meus braços encontrarás a tua
mãe...
Não tinha sentido traduzir. Nem teria tempo para o fazer: as outras
rainhas, entretanto, já se haviam reunido no hospital. E conduzem Dabondi
de regresso a casa.
— Vais escrever a informar Ngungunyane — ordena Muzamussi no
caminho. Quando uma criança morre no ventre diz-se que «decidiu voltar».
E há culpas que pesam sobre a mãe. Devemos dizer a Ngungunyane que não
foi este o caso. Este menino foi morto. É imperioso informar o pai, mesmo
sabendo que a notícia levará tempo a chegar aos Açores.
— É Godido quem tem que ser avisado, reage Dabondi. E acrescenta: É
só ele quem tem que saber.
*

Estou de joelhos junto à esteira onde repousa Dabondi. Os carregadores


de saco, por respeito, depositam a carga no exterior do armazém. Os olhos
dela estão cravados no teto, e eu rezo em zulu, a única língua que os nossos
deuses entendem. Desfio uma improvisada de oração e Dabondi escuta sem
me interromper:
Minha rainha, a senhora apagou-me o idioma que aprendi na escola,
arrancou uma das minhas mais antigas raízes. Não me apagou, contudo, a
arte de ler e escrever em português. Pois agora sou eu que lhe peço: leve-
me também esses dons. Não quero mais papel, não quero mais tinta, não
quero mais caneta. A escrita dói-me, e eu desejo destatuar a alma. Talvez a
senhora não saiba, mas as palavras, quando grafadas, amarram o tempo.
Se não posso rever o meu filho, não quero mais o tempo, não quero
nenhuma lembrança. Por isso lhe imploro: rasgue todas as folhas antes de
estarem escritas e converta em água toda a gota de tinta. Quero-me vazia.
E quando não houver em mim nenhum idioma, peço-lhe que me apague a
língua dos sonhos. Porque me basta a noite dos bichos: um tempo para
simplesmente nascer e morrer.
E regresso ao silêncio. De olhos fechados, a rainha Dabondi ergue o braço
à procura do meu rosto. Os dedos tateiam-me os olhos, descem-me
lentamente pelas faces e depois cruzam-me a boca como duas lâminas. Está
exausta, não me quer mais escutar. Mas ainda volto à fala:
— Nós nunca mais vamos voltar, Dabondi.
— É melhor assim, minha filha, é melhor morrermos por aqui — afirma a
rainha. — Perdemos os nossos filhos, não deixamos semente neste mundo.
Não somos ninguém. Não temos para onde voltar, Imani.
Capítulo 29

Um novo nome para Zixaxa

Quem sofre mais? Aquele que espera para sempre ou quem


nunca esperou por ninguém?
(Dabondi)
Querida Imani

Começo esta carta pelo fim. E já vou assinando com o meu mais recente
nome: Roberto Frederico Zixaxa. Como vês, fui batizado. Com a minha
idade e a minha raça, isso quer dizer o seguinte: lavaram-me a alma. E fui,
posso dizer, lavado com águas nobres. Conforme me explicaram, Frederico
é nome de gente distinta. Quiseram assim os brancos mostrar que nos
respeitam como reis das terras de onde viemos. O batismo decorreu na
maior igreja da cidade. Trouxeram pessoas importantes, os indunas da ilha
Terceira e das outras ilhas. Saíram satisfeitos acreditando terem mudado a
nossa natureza. Mas eu imagino que, no fundo, eles sabem: os nomes são
tatuagens na alma. Não há morte que os apague.
A ti posso confessar: uso este novo nome como se fosse um par de
sapatos. Servem-me nos pés, mas não são parte do meu corpo. À nascença,
os nossos ancestrais escolhem o nome que teremos. Os patrões do mundo
decidem o nome que deixamos de ter. Tudo isto pode ser verdade no caso
de Ngungunyane. No meu caso, preservo o meu passado no nome que me
restou. Os filhos e netos que terei nesta ilha não negarão este nome africano:
Zixaxa. Sou feliz com esta minha pequena eternidade.
Não foi apenas a mim que mudaram o nome. Todos nós os quatro fomos
batizados na mesma cerimónia. Ngungunyane chama-se agora Reinaldo
Frederico Gungunhana. Na folha do registo, inventaram-lhe uma idade.
Ficou escrito que tem sessenta anos. O desgraçado não chegou aos
cinquenta. Um dia destes, ante os veementes protestos do próprio,
decretarão que está morto.
Na semana passada, o Nkosi de Portugal, o rei D. Carlos, visitou os
Açores. Para evitar que o ilustre visitante tivesse que encontrar o
Ngungunyane mandaram que fôssemos passear pelo campo. Dizem que D.
Carlos ainda fez questão de nos vir cumprimentar. Dissuadiram-no.
Ngungunyane não valia sequer como lembrança do que antes fora.
Por isso nos levaram para longe, a passear pela chamada Lagoa do Preto.
O lugar foi criado pelas lágrimas de um escravo. Esse africano apaixonou-se
por uma grande senhora. O marido descobriu o caso e mandou que o
matassem. O infeliz escapou de casa mas foi perseguido por cães e
soldados. Refugiou-se num pântano. E ali chorou. Chorou tanto que, quando
deu conta, em seu redor tinha nascido um lago. Foram essas águas que
fizeram parar os cães. Cercado pelos soldados, o escravo afogou-se na
lagoa.
Sentado na margem desse mesmo charco, o rei de Gaza comoveu-se ao
ouvir esta lenda. Mas logo adiantou que não podia ser da sua etnia esse
homem que tanto chorou por uma mulher. Na nossa raça, declarou em voz
alta, as mulheres é que choram de amor. E Vuaize, perguntei?
Fui malvado, reconheço. Não devia ter reavivado tão triste lembrança.
Porque o rei, depois de escutar o nome da sua amada, deambulou trôpego e
descalço como um fantasma. O pântano está cercado de grandes pedras a
que deram o nome de «mistérios negros». Os soldados, vigilantes, seguiram
o preso até que ele tropeçou numas ossadas. Não eram restos de bicho. Era
um esqueleto humano, parcialmente enterrado. Ngungunyane esgravatou e
apanhou um osso comprido. E viu que nele estava escrito um nome. E logo
maldisse o dia em que aprendera a ler. Porque viu que ali estava gravado o
seu próprio nome: Reinaldo Francisco Gungunhana. Raspou com as unhas,
queria apagar aquelas letras. Raspou com raiva até sentir sangue escorrendo
nos pulsos. Cortei-me, pensou. Os dedos, porém, estavam intactos. E, no
entanto, ele via o sangue tombar generosamente. Percebeu, então, que era o
osso que sangrava. Assustado, soltou a ossada na areia e ali a deixou
sangrando. Cada vez mais enfraquecido, ficou a olhar o chão avermelhando-
se. E tombou sobre os ossos o esqueleto que trazia escrito o seu próprio
nome.
Esse episódio deixou Ngungunyane transtornado. Regressou calado para a
fortaleza. Num certo momento segurou-me pelo braço e disse: Virão
buscar-me, Zixaxa. Os meus netos virão buscar-me.
Pode ser verdade, admito, pode ser que o venham buscar. Mas a mim já
me vieram buscar. E não vieram de longe. Quem chegou veio daqui mesmo.
Tenho uma namorada. É verdade, uma noiva branca, completamente
branca. Chama-se Maria Augusta, é filha de João de Sousa, um açoriano
natural da Ribeirinha. A mãe dela, a minha futura sogra, chama-se Francisca
Vila d’Amigo e nasceu em Espanha. O mundo é pequeno e grande, Imani.
Eis-me aqui, um africano numa ilha portuguesa, pronto para casar com uma
açoriana de origem espanhola.
Não poderei lobolar a minha noiva. Nesta ilha é como na terra dos zulus:
um boi vale mais do que uma pessoa estranha como eu. Que dote tenho para
lhe oferecer? Para meu consolo, consegui convites para um espetáculo de
circo em homenagem aos presos de África. Noutras palavras, em nossa
homenagem. A família da noiva — a sograria, como lhe chamamos — ficou
impressionada com a minha importância. Mais impressionada ficou quando
soube que fui promovido a guarda florestal. Tenho emprego, faço o meu
dinheiro, ganho o meu respeito. Sabes o que me puseram a guardar? Guardo
um monte inteiro, guardo um monte chamado Brasil. De vigiado passei a
vigilante. Tudo isto acontece e a tudo isto Ngungunyane assiste com a idade
a que acabou de ser promovido. Confesso, minha filha: já começo a ter
saudades do ódio que já senti ao Ngungunyane.
Numa destas madrugadas o rei de Gaza acordou aos berros: Não o levem,
não o levem! Como sempre foi o seu filho Godido que o socorreu. Só ele
está autorizado a acudir aos delírios do imperador. Cada vez mais,
Ngungunyane desconhece se está no meio de um sonho ou em plena
embriaguez. Desta vez confessou que tinha acabado de ver o grande touro
sagrado dos zulus, o isibaya. O bicho atravessou dois oceanos para vir ter
com ele. Emergiu das águas, atravessou a praia, subiu a duna pedregosa,
galgou as «bocas do lobo» que protegem as muralhas da fortaleza. Quando
se apresentou à frente da nossa cela o touro dobrou os grandes joelhos e
pôs-se a jeito de ser amarrado. Mas não chegou a deitar-se porque,
inesperadamente, surgiu um grupo de brancos gritando e agitando panos e
cordas. Queriam levar o touro sagrado para a festa da largada dos bois. Um
dia lhe explico o que são estas festas. Nunca vi um povo tão triste e tão
festivo.
Mais uma vez foi preciso ajudar o Ngungunyane a sair do sonho, mais
uma vez Godido conduziu o pai pelas ruelas que circundam o forte. As
autoridades deixaram que o rei se distraísse nessa passeata. Eu e Mulungo
seguimos atrás, deambulando entre os trilhos marginados por montes de
pedras. Para felicidade de Ngungunyane a ilha está cheia de bois. Por onde
passa o rei toca nos bichos, aprecia-lhes o porte e a grossura dos chifres.
Todos aqueles bois, garante ele, são propriedade sua. Naquela madrugada o
rei decidiu que devia ensinar os brancos a falar zulu. Apenas a sua língua
tem riqueza para traduzir o mundo dos bovinos. O gado é o ouro dos
vanguni. Não têm castelos como os que vimos em Lisboa. Mas têm uma
nação de bois, currais e pastores. E os deuses são chamados pelo sangue dos
animais.
No regresso ao forte, era já manhã, sentimos a terra tremer. Os açorianos
são feitos metade de lava, metade de mar. Por isso não temem os sismos.
Talvez desconheçam a verdadeira causa dos terramotos. A terra treme
quando o wamulambo, o dragão que vive nas montanhas, sai da sua gruta
para desovar no mar. Daquela vez o dragão caminhava zangado: o
terramoto foi forte e duradouro. As pedras rolaram pela estrada, pareciam
bichos enlouquecidos. Os bois saltaram dos quintais e tresmalharam-se
pelos campos. Os militares vieram-nos buscar — cada um de nós tinha
fugido para o seu lado — e levaram-nos de volta para o forte.
À porta cruzámo-nos com o general Almeida Pinheiro, o comandante da
fortaleza. Chamamos-lhe de xipôngo xa mahetche, por causa das barbas que
lhe descem até ao peito como um bode velho. O português acredita que
estamos em pânico e convida-nos para o seu gabinete. Serve-nos um chá e
abre um jornal para mostrar uma fotografia da visita de D. Carlos e Dona
Amélia. Ngungunyane observa a imagem com excessiva atenção. Depois
comenta: É bonita a rainha mas embeleza-se como um homem. As penas
que ela usa na cabeça são coisas de macho. A rainha portuguesa, diz ele,
está a imitar-nos a nós, os guerreiros vanguni. E comenta, a fechar: O
senhor é que devia usar essas penas, meu general!
O general reage primeiro com distância. Afinal, é da rainha de Portugal
que se fala. Mas logo solta uma risada, divertido. Afaga as longas barbas e
desafia os colegas a imaginarem-no coberto de plumas de avestruz.
Uma vez mais o rei de Gaza se debruça sobre a fotografia. O dedo sapudo
vai engordurando a imagem enquanto esclarece: Deixe-me dizer, senhor
general, que a vossa rainha está magrita. As minhas esposas estão
anafadas. Não são, diz ele, como as demais mulheres que só comem carne
nos dias de festa. Diga ao rei que não fica bem exibir uma esposa tão
magrita e tão emplumada.
E de novo todos se riem. De súbito, Ngungunyane torna-se sério, quase
solene, quando implora: Por favor, meu general: não me mande de volta!
Almeida Pinheiro contempla, surpreso, o rei e não sabe o que dizer. De
volta para onde, para Moçambique?, indaga, confuso. Não me mataram
vocês, matar-me-iam os meus irmãos, afirma Ngungunyane. E retira-se. São
tristes os olhos do general ao ver o rei negro a dissolver-se no escuro.
E estou a chegar ao fim. Confesso, minha filha: quem escreve esta carta é
o meu sogro, João de Sousa. Apenas as duas primeiras linhas são da minha
autoria. Tudo o resto é letra e arranjo dele. Este meu sogro quer saber quem
és, ou melhor, quer saber como és. Descrevi-te como a mais bela das
mulheres. Depois de Maria Augusta, é claro. A minha namorada açoriana
não tem quem se lhe compare. Expliquei ao meu sogro que, como nós, vives
numa ilha. E ele, com o ar misterioso que é tão seu, declarou: Todas as
pessoas vivem numa ilha.
Quando lhe pedi para lhe ditar esta carta, o meu sogro disse que o faria de
bom gosto mas teria que ser num lugar que ele escolhesse. A moça é
africana, não é?, perguntou. E lá me levou para a Praia da Vitória e ali
andou farejando entre os penedos até que escolheu uma enorme pedra e
disse: É aqui. Sentámo-nos os dois, lado a lado. E escrevemos esta longa
carta apoiados nessa pedra branca que contrasta com o paredão de rocha
escura que margina a praia.
Esta pedra tem uma história, disse ele. Quem a trouxe para a Terceira
tinha sido o seu avô, um velho marinheiro de longo curso. Numa viagem
junto à costa de África decidiu o capitão acostar numa praia. A intenção era
visitar um padrão que os descobridores portugueses ali haviam implantado
há séculos. Perguntaram aos indígenas pelo Cabo da Cruz. Ninguém nunca
ouvira tal nome. Perguntaram pela coluna de pedra com a cruz e as cinco
quinas gravadas. Ninguém vira tal pedra. Os marinheiros deram as devidas
explicações aos nativos. E os negros mostraram-lhes um enorme buraco. O
padrão tinha-se afundado, como se a praia tivesse fome de pedra.
Desenterraram-no os marinheiros e voltaram a colocá-lo de pé sobre a areia.
No dia seguinte o padrão de novo submergira no chão africano. Os negros
disseram aos portugueses: Levem essa pedra. É vossa, levem-na convosco.
Este nosso chão não aguenta o peso dessa pedra.
E é isto, minha filha. A pedra escutou a nossa história, escutamos nós a
história dela. Juntaram-se o avô do meu sogro, tu, eu, o tempo. Por favor,
Imani, não leias esta carta às minhas esposas. Não quero que saibam que
casei. Na correspondência que troco com elas contam-me novidades. A
maior parte delas é mentira. Não me importo. Não é para isso que servem as
cartas?
Capítulo 30

A sombra das palavras

Num dia de calor um jovem caçador viu uma nuvem pairar


sobre a sua casa.
O jovem tomava conta do velho avô.
Aquela inesperada sombra era tão maravilhosa que o avô
rejuvenesceu.
Com receio de que o vento levasse aquela felicidade, o jovem
resolveu lançar uma corda e prender a nuvem pelo pescoço.
Assim pensou, melhor o fez. Como um bicho doméstico, ficou
a nuvem presa a uma estaca.
Na manhã seguinte, ao sair de casa, o jovem tropeçou no céu e
desabou no firmamento.
A mesma corda com que antes laçara a nuvem prendia-o agora
ao infinito.
E o avô descansava agora numa sombra sem fim.
(Relatos de Nkokolani)
Batem à porta. Abro uma fresta e vejo uma mão branca.
— Germano?, pergunto, em sobressalto.
Escancaro a portada com inesperado entusiasmo. Tenho noventa e cinco
anos, não me restam forças nem para lembrar quem sou. Há muito que o
meu corpo é um arado abrindo sulcos com os pés. De súbito, porém, nasce
em mim um estranho vigor. Protejo os olhos para decifrar a silhueta que se
desenha a contraluz. E já não me parece o meu homem que espera sob o
umbral da porta.
— Sanga? Meu filho!?
Abraço-o. É o meu filho. Estou quase cega, abraço o escuro e deixo que
as mãos, tateando o rosto do visitante, me devolvam os olhos. O vulto
encolhe-se, surpreso, nos meus braços.
— Meu filho!
Esvai-se-me o peito num suspiro. Esqueci-me de como se chora. O meu
filho também deve ter tido os seus esquecimentos. Porque não me devolve o
abraço.
— Dona Imani?, interpela-me.
É o que pareço escutar. Estou em Nkokolani, na minha aldeia natal.
Regressei de São Tomé há sessenta e três anos. Aos poucos foi acontecendo
com as vozes aquilo que sucede com as horas: parecem-se todas umas com
as outras.
Já ninguém me bate à porta. Os poucos que o fazem não é a mim que
querem. Procuram as minhas sobrinhas-netas que fingem tomar conta de
mim. Este visitante é diferente: cheira a mar, tem uma voz e um sotaque
distintos. E pergunta por mim. Não pode ser o meu filho. Seria mais velho,
mais arqueado pelo tempo.
— Já sei, és o meu neto! Trata-me por avó. Percebes txitxope?
— Não, Dona...
— É que eu há muito que deixei de falar português. Agora, só falo em
txitxope.
— Mas... a senhora está a falar português.
— Ouço-te mal. Tens que falar mais alto.
— Digo que a senhora está a falar em português. E em muito bom
português.
Estendo a mão para lhe tocar os cabelos. O meu neto desvia-se. A pele, os
olhos, os lábios, tudo pode falsear a raça das pessoas. Só os cabelos não
mentem. E eu tenho pressa em sentir a verdade daquele corpo.
— Entendes tudo o que eu digo?
O moço acena e diz: Perfeitamente! Peço-lhe que entre. Ele hesita, sacode
os pés cheio de cortesia. Que saudades tinha desse educado balancear do
corpo! O moço traz uma mochila às costas e caminha vergado, não por
causa do peso mas por gentileza: quer falar mais junto do meu rosto.
À distância escutam-se explosões. São tiros?, pergunto. São foguetes,
responde o rapaz. Preparam as festas para a proclamação da
Independência. Empolgado, remata: Vamos ter uma bandeira, Dona Imani!
Um bandeira nossa!
— És parecido com Germano. Tens o mesmo riso. Como te chamas?
Usa as mãos em concha para ampliar a fala. Desiste desse estratagema e
retira da pasta uma caneta e um caderno. Foi assim, recordo-me. Foi assim
que, da última vez, comuniquei com o comandante António Sérgio de
Sousa. Rabisca frases curtas, os seus dedos fazem estremecer o tempo: a
caligrafia é igual à minha! Mas o inevitável volta a acontecer: as letras são
visíveis até ao momento em que alguém as escreve. Depois ficam
enevoadas. Faço de conta que decifro o nome, não quero que o moço
desista. Sorrio e convido-o a entrar.
Avanço devagar pelo corredor. Não me lembro se estou doente. Todo o
meu corpo, com a idade, se tornou uma doença.
— Sou um escritor — declara o visitante.
Talvez o rapaz esteja aos berros, mas escuto-o como se ele se expressasse
no mais suave tom. Os brancos da cidade falam assim, não são como nós
que comunicamos sempre aos gritos. Para os portugueses mais educados, o
falar alto é uma grosseria. Para nós, o falar baixo de alguns portugueses é
uma prova de que escondem qualquer coisa.

Acedemos a um pátio interior onde se amontoam pilões, panelas, pratos e


galinhas. O meu neto deve estar surpreso. Veio da cidade, se calhar veio
mesmo de Portugal. Não previa que existisse uma casa de cimento em tão
remota aldeia. Esta é a casa dos Nsambe, digo-lhe, o que resta da tua
família.
De fora não se imagina que a nossa residência albergue um pátio tão
espaçoso: à sombra de uma grande mangueira sentam-se várias mulheres.
São as minhas sobrinhas. Chamo-lhes as «sombrinhas». Porque são
sombras. Estão ali, derramadas e imóveis, como se antecipassem naquele
chão vivo o seu último destino.
Escuto as sombras gritar: «Ubuyile, mulungo!» Avisam-me que chegou
um branco. Como se eu fosse completamente cega. Minhas filhas, digo-
lhes, ainda não morri. Vejo mal mas ainda escuto.
Elas riem-se, divertidas. Esperem, declaro de braço erguido: Vou
explicar: é que, mesmo calados, os brancos escutam-se à distância. E falo
do que sei: passei décadas com eles, na terra deles. Falo, penso e vivo como
eles. Sou negra, é verdade. Mas entro e saio da minha raça quando quero.
— Este que chega não é um branco — afirmo. — É o meu neto.
Entendem?
O meu neto — como anseio chamá-lo pelo nome! — cumprimenta as
sombras. As mulheres, sempre sentadas, correspondem à saudação. E
apresentam-se, uma por uma. São minhas filhas afastadas, trazem o sangue
do meu pai e de Bibliana. Vieram do Save, onde nasceram e para onde
nunca mais voltarão. Agora, o seu único serviço é esperar. Esperam que eu
morra para vender a casa de família. Essa espera é a dos chacais: não
sentem os passos dos assassinos. Mais do que uma espera é uma
emboscada. Enquanto aguardavam as mulheres foram tendo filhos. Os
rapazes fugiram para a cidade. As filhas ficaram e converteram-se em novas
sombras. A mais bela e sedutora de todas elas levanta-se para saudar o
visitante.
— Chamo-me Mozi. — Meneia as palavras como se ondulasse uma saia
rodada. E depois dirige-se a mim pedindo licença: — Vou ajudar a
conversa, avó Imani.
— Não preciso de ninguém — asseguro, decidida. — Vou para dentro
que aqui já há mais bocas que ouvidos.

*
Mozi caminha à nossa frente, levando-nos por um corredor escuro com
cheiro a maresia. Sei o que passa pela cabeça do escritor. Deve estranhar:
com o mar tão longe, de onde vem aquele aroma? Só pode vir dos cabelos
de Mozi. Rumores de búzios cascateiam nos seus ombros. E toda ela é uma
onda que se soltou do mar. As ancas de Mozi mordem os olhos do
forasteiro. E ele baixa o rosto para se salvar.
Chegamos, por fim, ao meu quarto, o único lugar em que a idade se
esquece de mim. Custa-me a aceitar, mas a presença desta minha sobrinha
acaba sendo providencial. Por uma misteriosa razão, Mozi é a única pessoa
que escuto sem esforço. As palavras, ditas por ela, ganham estranha
sonoridade. Aliás, toda ela se parece comigo. Todos dizem: Mozi sou eu,
com outra idade. Essa comparação envaidece-me mas, ao mesmo tempo, me
enche de fúria. Vamos ficando velhos e o que menos queremos são
espelhos.
— Lindo nome, Mozi — afirma o meu neto. — Adivinho que seja um
diminutivo da palavra «Moçambique».
Mozi sorri. Exibe o riso como palmeira em oásis: quer ser vista e, ao
mesmo tempo, quer cegar quem nela pousar os olhos. Deambula pelo meu
quarto fazendo rodopiar a saia. Toda aquela exibição me cansa. Com
azedume dirijo-me ao meu neto:
— Vieste para ficar aqui?
— Ficar aqui? — pergunta ele.
— Se não vieste para viver connosco, podes ir embora.
A minha sobrinha-neta troca segredos com o escritor. Depois dirige-se a
mim, resumindo a conversa que tiveram. Este homem quer que a avó conte
a sua história. Junto ao meu ouvido, ela segreda: o escritor pensa que fui
mulher do imperador Ngungunyane. Sou a única sobrevivente das mais de
três centenas de esposas.
— Queres que conte a minha história? — pergunto.
— Posso gravar, Dona Imani?
Excitado, o meu neto vai mexendo em fios e botões. E começa a gravar
muito antes de eu ter vontade de falar. A fita do gravador vai girando
sonolenta. Já me pesam as pálpebras quando Mozi me sacode e me
encoraja: Conte, avó, conte que eu também quero ouvir!

*
Eis o que me sucedeu, meu neto: aos quinze anos tive um filho. Dias
depois roubaram-me esse menino e levaram-me para a ilha de São Tomé, no
meio do oceano Atlântico. Fiquei nessa ilha durante quinze anos. A seguir à
proclamação da República Portuguesa, em 1911, mandaram-me buscar a
mim e às rainhas que me acompanhavam. Disseram que nos iam recambiar
para Moçambique. Dez mulheres tinham chegado àquela ilha, voltavam
agora sete. A rainha Dabondi, a minha querida Dabondi, foi uma das que
ficou sepultada na ilha. Quem perde a vida numa ilha não sabe regressar da
morte. O seu espírito vagueia na neblina, sem saber se pertence à terra ou ao
mar.
O barco que nos foi buscar fez escala em Lisboa. Durante quinze anos
sonhei com aquele destino. Ou melhor: aquele foi o único destino dos meus
sonhos. Fiz as contas: cinco mil e quatrocentas noites, cinco mil e
quatrocentos sonhos. Todos iguais: eu resgatando o meu filho, ele
anichando-se nos meus braços como se regressasse, inteiro, ao meu corpo.
Nas poucas horas de escala, autorizaram que visitasse a casa da minha
sogra, Laura de Melo. Fui escoltada por um sargento da Marinha. A minha
intenção era resgatar o meu filho, o meu Sanga, e levá-lo comigo para
Moçambique. O coração pulsava-me quando um rapaz me abriu a porta da
família Melo. Contive-me, as mãos tão tensas que me magoava com os
meus próprios dedos. A mãe de Germano, Dona Laura, estava de cama e foi
o meu filho que me conduziu até ao seu quarto. Segui calada, olhando em
contraluz aquele que habitou a minha carne. Estendida num leito e de olhos
cerrados, a mãe de Germano declarou em desafio.
— Mostra a essa mulher quem é a tua única e verdadeira mãe.
O meu filho, calado, aproximou-se do leito da avó. Baixei o rosto, os
olhos marejados. Morri, pensei. Não me resta senão retirar-me. Como podia
caminhar, porém, se me faltava estar viva? Pigarreando, Dona Laura fez-me
sinal para que me aproximasse. Sempre deitada, estendeu a mão e afagou-
me o ombro. E depois murmurou: Ficaste fora quinze anos. Pensa neste
menino, minha querida. Pensa e responde: para além de mim, existe uma
outra mãe neste quarto?
Abriu os olhos e contemplou-me demoradamente. Sabia que nunca mais
nos veríamos. Não há culpa nesta história, disse ela. Foi a vida que
escolheu, acrescentou. Sacudi a cabeça a sugerir que não a queria escutar.
Permiti, contudo, que ela mantivesse a mão sobre o meu ombro.
— E que nome lhe deu, Dona Laura?
— O nome que já lhe tinhas dado — respondeu Laura. — É o nosso
Sanga.
— E Germano? — quis perguntar. Mas não tinha voz para tanto. E foi
como se Laura adivinhasse as minhas secretas interrogações. Porque
murmurou: O meu Germano vai chegar para a semana, vem muito doente.
Nem força tem para escrever, diz Laura. Nem por isso deixou de mandar
religiosamente a mesada para o filho dele... E corrige: ... para o vosso filho.
No regresso ao barco não era apenas eu quem chorava. Recatadadamente
o sargento ia trocando um lenço comigo. Seguimos pela Estrada das
Laranjeiras e, a certo ponto, o marinheiro suspendeu a marcha para dizer:
Foi aqui, foi aqui que ele se matou! E antes que o questionasse, clarificou:
Mouzinho de Albuquerque, foi aqui que ele morreu.
Passou os dedos pelas pedras da calçada como se sentisse o sangue.
Fizeram-lhe a cama, comentou o sargento. Puseram a correr que Mouzinho
foi muito desumano nas campanhas em África. Quem o tramou foi o meu
chefe, o capitão Andrea, que andou por lá também...
No cais o sargento despediu-se com um inesperado aperto de mão.
Aquele marinheiro experimentava, quem sabe, algo novo: o respeito pela
tristeza de uma mulher negra. Não sendo capaz de um consolo tentou uma
distração.
— E do Gungunhanha, sabes o que lhe aconteceu? — perguntou. — O
Gungunhanha, o rei dos pretos...
Após todos aqueles anos já havia desistido de corrigir o nome de
Ngungunyane. Desta vez, por respeito a quem perguntava, endireitei a
pronúncia do militar. Morreram todos, disse eu com secura. Morreu o rei de
Gaza, morreu o filho, morreu o tio. Sobreviveu o único que foi feliz: o
Zixaxa. A última notícia que recebi é que esse Zixaxa ia ter um filho. Um
filho mulato, como o meu Sanga.

Dá-me sono, a fita do gravador. Faço menção de me erguer para resistir


àquela doce indolência. Mas o corpo não me obedece. E volto a afundar-me
no assento. Olhos fechados, acaricio o braço do sofá como se fosse a
retribuição de um carinho.
— Há quanto tempo a senhora mora nesta casa?
— Eu não moro. Eu sou esta casa.
Eu sou a casa, repito, e estas mobílias são as minhas irmãs. Tenho
parentes de madeira que não deixaram nunca de me fazer companhia. Deves
aprender, meu neto, prossigo. Mais do que às pessoas, afeiçoa-te à mobília.
A cama e as cadeiras, garanto, são quem mais nos permanece fiel até ao fim
dos nossos dias. Reza pela alma das coisas, meu neto.
— Continuamos a gravação, Dona Imani? — pergunta o meu neto.
Abano a cabeça, em veemente negação. Estou cansada. Vejo-o tirar da
mochila uma máquina fotográfica. Cubro o rosto com os braços. E reclamo,
oponho-me com convicção. O protesto é moroso, mas o meu neto escuta-me
sem interrupção. No final, fascinado, exclama: Que coisa mais linda a
senhora acabou de dizer! Quer ouvir?, pergunta. É que gravei tudo,
justifica. Sinto vergonha quando escuto, o volume no máximo, a minha
própria voz:
«Podes gravar, mas não me fotografes. Olha bem para mim, meu neto.
Esta criatura que vês à tua frente não é feita de um corpo único. São muito
corpos colados, cada um feito num tempo, cada um vindo de uma terra
diferente. O coração é desta aldeia, os braços são de Mutimati, as pernas já
se esqueceram de onde são. Não me fotografes, meu neto. Este meu corpo é
feito de despedaços. Quem mais vive dentro de mim é quem já morreu: as
mães que ainda me fazem nascer. A primeira, Chikazi Nsambe e as outras,
Bibliana, Bianca, Dabondi. Não me fotografes, meu neto. Porque eu não
termino em mim. O meu corpo agora é o mundo inteiro.»
A reprodução termina, as fitas rodopiam no vazio. E Gungunhana?,
pergunta o meu neto. Não sei, respondo. Só sei da minha história.
O ruído das bobinas cresce no quarto. Pergunto a Sanga se chegou a
conhecer Germano. Quem?, pergunta. O teu avô Germano, esclareço.
Sacode a cabeça, sorrindo. E de Bianca, ouviste falar?, volto a inquirir. Mas
não espero por resposta. De súbito sou assaltada por uma insólita raiva:
ataco com os pés a mesa à minha frente. O gravador e a máquina fotográfica
tombam no chão. O meu neto dá um passo atrás, entre medo e espanto.
— Não voltes a aparecer com essas máquinas! Nunca mais! — declaro
aos berros.
Quero erguer-me, mas nem a fúria me ajuda. Permaneço afundada no
velho sofá de napa. Estou presa nas grades do meu corpo.
*

Mozi contempla-me no sofá, sacode a cabeça, impaciente, e pede ao


visitante que nos deixe a sós. Diz-lhe que espere no pátio. O escritor recolhe
as suas máquinas e retira-se, mais vergado do que entrara. Assim que a
porta bate, Mozi investe sobre mim. Está colérica. Que eu não estava a
entender, argumenta, que havia ali uma oportunidade única. E eu
simplesmente deitava tudo a perder.
— Faça de conta, avó. Custa assim tanto? Admita ter sido esposa de
Ngungunyane...
Tenta convencer-me, obstinada. Fizesse aquele pequeno teatro e nós, os
Nsambe, teríamos incalculáveis vantagens. Seríamos da família dos heróis,
ganharíamos uma fortuna, viajaríamos até à capital, quem sabe nos levariam
até aos Açores?
— Escuta bem, avó — insiste Mozi, agora num tom melífluo. — Vou-te
dizer o que vais contar ao escritor...
— Não é escritor, é o meu neto.
— Neto, bisneto, trineto.... A toda essa gente vais dizer que foste esposa
do rei. E vais contar-lhes uma história...
— Não vou começar a mentir com noventa e cinco anos.
— Se não quer mentir — reclama Mozi —, então deixe de chamar neto a
este rapaz.
Dirige-se para a saída para lançar uma derradeira ameaça: Não se
esqueça, avó: somos nós que tratamos da senhora! E bate a porta, furiosa.
Por um momento fico só. Nunca estive tão só. E nunca a solidão me soube
tão bem.
Abro a porta das traseiras e esgueiro-me para a rua. Pela primeira vez em
muitos anos saio de casa. E sigo pelo mesmo caminho de areia que a nossa
mãe tomava para ir buscar lenha. Ando sem direção, como fazem as
crianças que dão os primeiros passos. Quero apenas distanciar-me de casa,
afastar-me de quem sou. Na esquina quase tropeço num grupo de crianças
que brincam sentadas na terra. São meninos pobres, sujos e maltrajados.
Lembro os meus tempos de menina e penso: mesmo na guerra mais cruel,
mesmo entre ruínas e cinzas, as crianças nunca pararam de brincar.
De súbito uma sombra veloz me derruba. Estou tão magra que nunca mais
acabo de cair. E vejo passar, como um monstro de metal, um camião militar
carregado de guerrilheiros. Revejo os atribulados tempos da minha infância.
A diferença é que há agora mais chão, um chão que chama pelo meu nome.
Regresso amparada pelo jovem escritor que acabou de me salvar de ser
atropelada. Venha, avó!, incita-me. Chama-me «avó», o rapaz. Chama-me
«avó» e as ruas voltam a ser minhas. No terreiro da casa passamos junto à
velha termiteira. Cimentaram o terreiro mas deixaram vivo aquele lugar
sagrado. Tiveram medo, não foi respeito. Ali resiste o morro de muchém,
sustentando a frondosa mafurreira. Já nela não amarram panos brancos.
Ninguém mais fala com os antepassados. A única que fala sou eu, que estou
quase defunta.
Peço ao escritor que me espere. Regresso pouco depois carregando nos
braços uma mala. É pesada?, pergunta ele, apressando-se a ajudar. Na
minha idade tudo é pesado, a começar pelos meus próprios braços. Despejo
o conteúdo da mala. O chão fica coberto de papéis. São teus, estes
cadernos, digo-lhe. Estão aqui os meus escritos, estão aqui as cartas que
guardei, está aqui toda a minha vida. Leva estes cadernos e publica-os se
achares que merecem ser conhecidos. Assina-os como sendo tu o autor, não
me importo. Desde que digas que és o meu neto, o neto de Imani Nsambe.
O escritor dá dois passos, senta-se e começa a ler o primeiro caderno. À
medida que vai lendo vou-me aconchegando a ele, como se buscasse no seu
corpo a minha última sombra:
«Todas as manhãs se erguiam sete sóis sobre a planície de Inharrime.
Nua como havia dormido, a nossa mãe saía de casa com uma peneira na
mão. Ia escolher o melhor dos sóis. Com a peneira recolhia as restantes
seis estrelas e trazia-as para a aldeia. Enterrava-as junto à termiteira, por
trás da nossa casa. Aquele era o nosso cemitério de criaturas celestiais. Um
dia, caso precisássemos, iríamos lá desenterrar estrelas.»
ANEXO

Este livro é uma obra de ficção. Grande parte das


personagens e das histórias foram, no entanto, construídas com
base em pessoas reais e factos históricos. Este anexo contém
imagens que ilustram pessoas e paisagens relevantes para a
construção desta narrativa.
Ngungunyane aquando da partida de Moçambique.
Nwamatibjane Zixaxa, durante a estada nos Açores
Comandante Álvaro Andrea
A corveta Capello no estuário do Limpopo
Ngungunyane sentado com as sete rainhas
O comandante Jaime Leote
O navio Neves Ferreira
Mouzinho de Albuquerque, ao centro, é o mais alto dos oficiais. Do lado esquerdo, de óculos,
pode ver-se Aires de Ornellas
A Rua dos Mercadores, na baixa de Lourenço Marques, nos finais do século XIX
Nas duas cadeiras que rodeiam a mesa estão Mouzinho de Albuquerque e a sua esposa,
Maria José. Encostado à cadeira de Mouzinho está Aires de Ornelas
Caldas Xavier
O navio África à saída de Lisboa
Zona portuária da Cidade do Cabo, no final do século XIX
O imperador com duas das suas mulheres. Dabondi é a do lado esquerdo
Escravos exibindo as mãos decepadas de outros escravos no Congo Belga
Desembarque dos prisioneiros da corte de Gaza em Lisboa
Forte de Monsanto em Lisboa, primeiro local de deportação
Casa da Fortaleza de São João Baptista na Ilha Terceira, em frente à cidade de Angra do
Heroismo, onde ficaram alojados os quatro prisioneiros
Os prisioneiros durante o exílio nos Açores
Índice
CAPA
Ficha Técnica
RESUMO DOS ANTERIORES VOLUMES
Capítulo 1 A mulher que chamava os rios
Capítulo 2 Um mal-amanhado bilhete
Capítulo 3 A lama e a neve
Capítulo 4 Primeira carta do sargento
Capítulo 5 Andorinhas e crocodilos
Capítulo 6 Segunda carta do sargento
Capítulo 7 As mãos e as mães
Capítulo 8 Antes de haver mar havia um barco
Capítulo 9 A caligrafia do rei analfabeto
Capítulo 10 Um lenço branco iluminando o passado
Capítulo 11 Carta de Germano de Melo para Bianca Vanzini
Capítulo 12 Pegadas no orvalho
Capítulo 13 Carta de Álvaro Andrea para Imani
Capítulo 14 Desfiles e delírios
Capítulo 15 Uma submissa desobediência
Capítulo 16 Nem juba nem coroa
Capítulo 17 Bartolomeu e o caminho marítimo para o céu
Capítulo 18 Um involuntário suicídio
Capítulo 19 Os amnésicos defuntos
Capítulo 20 Quanto pesa uma lágrima?
Capítulo 21 Véspera da terra
Capítulo 22 A luz de Lisboa
Capítulo 23 Um quarto debaixo da terra
Capítulo 24 Um corpo rasgado
Capítulo 25 O que foi dado à luz
Capítulo 26 Entre exílios e desterros
Capítulo 27 O bebedor de horizontes
Capítulo 28 O derradeiro idioma
Capítulo 29 Um novo nome para Zixaxa
Capítulo 30 A sombra das palavras
ANEXO

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