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Toponímia maranhense:

lugares de memória, lugares de poder

O historiador francês Pierre Nora, ao analisar o processo de constituição da


memória da República na França, construiu o conceito de “lugares de memória” para
designar os “restos”, os lugares onde “subsiste uma consciência comemorativa” republicana
e cuja razão de ser é “parar o tempo”, “bloquear o trabalho do esquecimento”, “imortalizar a
morte”. “Lugares de memória” são fortalezas onde a memória se defende dos ventos e
tempestades da história. História que representa a morte e o esquecimento tão típicos da
modernidade, esta destruidora dos laços de identidade com o passado e dos atores sociais
portadores de uma dada memória. Daí, a necessidade de fundação dos “lugares de
memória”, de uma “memória histórica”, nos termos de Edgar de Decca, um compósito de
história e memória, porém um compósito ameaçador e desvirtuante, pois, por um lado, nega
a “experiência do vivido” peculiar à memória, e, por outro, inutiliza a crítica do passado
inerente ao ofício do historiador.

Estas breves reflexões servem de introdução ao objeto de análise deste artigo:


a toponímia estadual. Recentemente, ao percorrer a lista dos 217 municípios maranhenses,
deparamo-nos com dois dados interessantes. Em primeiro lugar, a profusão de nomes
religiosos, principalmente de santos (cerca de 40 municípios), a atestar a bem conhecida
profundidade da cultura religiosa da população. Em segundo, a abundância de nomes
pessoais na designação dos municípios, especialmente de políticos de expressão regional.
Neste item, o Maranhão prodigalizou: se excluirmos as várias referências de tipo familiar
(Fortaleza dos Nogueiras, Jenipapo dos Vieiras, etc.) ou mistas (Santo Antônio dos Lopes,
São Raimundo do Doca Bezerra), atendo-nos apenas aos nomes próprios, estes
representam cerca de 20 % das denominações, formando um conjunto toponomástico que é
simultaneamente um discurso sobre a história do Maranhão, na ótica das elites regionais.

Nesse discurso histórico inscrito na toponímia regional o primeiro aspecto


ressaltado é a tradição literária do Maranhão, através das homenagens prestadas a vários de
nossos escritores e intelectuais, tais como Gonçalves Dias, Graça Aranha, Humberto de
Campos, João Lisboa, Nina Rodrigues, entre outros. Tradição literária que, por sua vez,
constituiu um “lugar de memória” por excelência, a Academia Maranhense de Letras,
instituição cujo papel é não somente de consagração das novas gerações de intelectuais,
como também de celebração das glórias do passado, da “Idade de Ouro” maranhense, em
que São Luís foi cognominada de “Atenas Brasileira”.

Aliás, São Luís tem sido um espaço privilegiado de disputa em torno das
representações sobre a cidade, cada qual evocando significados distintos conforme o campo
onde se produza o discurso. A cidade tanto pode ser a “Atenas Brasileira” dos literatos;
quanto a “Ilha Rebelde”, das jornadas populares e oposicionistas contra a oligarquia de
Vitorino Freire na “Greve de 51”; ou então a “Meia Cidade”, da palavra de ordem estudantil
cunhada na “Greve da Meia-Passagem” em 1979; ou mesmo a “Jamaica Brasileira”, forjada
nos espaços de lazer e de identidade negra que são os clubes de reggae da ilha; sendo até a
“única capital brasileira que nasceu francesa”, para evocar uma suposta ligação umbilical
com a França e sua capital, Paris, a “luz do mundo”. Há, portanto, uma verdadeira batalha
simbólica por São Luís, na qual as representações são significadas e ressignificadas , num
embate que envolve os mais diversos atores sociais na construção de uma história/memória
para a cidade.

Outro aspecto relevante do discurso toponímico é a celebração do poder


oligárquico, perenizado na história do Maranhão via a constituição de um “pantheon” político
no qual os sucessivos grupos da oligarquia inscrevem os seus mais dignos representantes,
como que “naturalizando-os”, ao torná-los parte da paisagem, elementos da natureza mesma
do Maranhão. No altar-mor deste “pantheon” figura o Bequimão, “herói” do nativismo e da
luta pela liberdade, um “herói” político mas também “amoroso”, pois ama tanto a sua terra
que por ela “morre contente”. O Bequimão funda uma distinta dinastia de líderes políticos
“amorosos” que se estende à atualidade, pois, afinal, o Maranhão é “berço de heróis”,
segundo fomos condenados pelo hino estadual, e, ainda, a “minha terra, minha paixão”,
conforme a mais recente elaboração do mito.

Se nessa linhagem há poucas referências a políticos do Império, com destaque


para o Barão de Grajaú, o mesmo não acontece com o período republicano, onde se percebe
a intenção deliberada de constituir os cardeais de cada geração da oligarquia dominante em
“lugares de memória”: da República Velha surgem os nomes de Benedito Leite, Urbano
Santos e Magalhães de Almeida, entre outros; do Estado Novo ressurge a figura de Paulo
Ramos; da República Nova aparece em primeiro plano Vitorino Freire (junto a seu “padrinho
e amigo”, o Presidente Dutra), seguido por seus correligionários, os governadores Sebastião
Archer, Eugênio Barros, Newton Bello e Nunes Freire; e, finalmente, a partir da ditadura
militar, “resplandece” todo o fulgor do Presidente Sarney e seus aliados, os senadores
Alexandre Costa e La Rocque, os governadores Luís Rocha e Edson Lobão.

Convém lembrar que a toponímia comemorativa da oligarquia Sarney foi toda


ela instituída em 1996, quando da criação dos 81 novos municípios maranhenses. Através
deste mecanismo, a oligarquia política reverencia a si mesma e a seus feitos na edificação
do que denomina, em seu discurso, de um “Novo Maranhão”. Como nos primórdios da
República no Brasil, ainda vale a advertência de Lima Barreto: “há nos próceres republicanos
uma necessidade extraordinária de serem gloriosos e não esquecidos pelo futuro”. Aliás,
esse ponto nunca foi negligenciado, pois já há alguns anos foi criada pelo então presidente
José Sarney a Fundação da Memória Republicana, a qual encampou o Convento das Mercês
em São Luís, transformando-o num museu e futuro mausoléu do próprio Sarney. Nada mais
justo que a instituição deste Taj Mahal maranhense, monumento à morte que celebra a
dominação política entre os vivos. Um “lugar de memória”, mas fundamentalmente um “lugar
de poder”.

Wagner Cabral da Costa


Prof. Departamento de História / UFMA

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