Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Um dos temas que surgiu durante o curso de forma recorrente em algumas aulas e que mais
me chamou a atenção foi o ensino de Arte em comunidades desprovidas de oportunidades sócio-
econômico-culturais. Partia-se da constatação de que ONGs e o Estado têm usado nas últimas
duas décadas a estratégia de associar o ensino de Arte à possibilidade de contribuir para a
redenção de crianças e jovens daquelas comunidades, quase sempre sob uma perspectiva
„salvadora‟. Uma pergunta que se coloca é: a Arte - ou antes, a oferta de oficinas de Arte – pode
„salvar‟ jovens desprovidos de quase tudo? Por trás desta ideia „salvadora‟ vem muitas vezes um
enfoque assistencialista que predomina em muitas destas iniciativas.
Procurarei neste ensaio apoiado por dois dos conceitos de Deleuze e Guattari que mais me
tocaram – o de devir-criança e o dos blocos de infância – responder àquela pergunta. Há
subjacente a estes conceitos a possibilidade de se encontrar ressonâncias entre o criar e o
brincar, entre o jogo infantil e o jogo da artista e, se pensamos em educação, ressonâncias
também com o ensino de Arte. Considerarei também minha formação em Licenciatura na EBA e
as várias experiências como professor de Arte para crianças e jovens em ONG, escolas públicas
e particulares. Quando esta pergunta era colocada, um turbilhão de pensamentos me invadia e
me mobilizava. O contato recente com o pensamento dos dois pensadores franceses causou
profundo impacto em mim, desestabilizando algumas ideias difundidas durante minha formação
ainda em ato, mas ao mesmo tempo em que preparava este trabalho final apontou também uma
luminosa possibilidade de resposta à pergunta acima colocada.
Inicialmente é preciso romper com a ilusão da escola redentora, ainda mais quando se percebe
que ela está sobrecarregada de tarefas que não são as suas. A escola será tanto mais eficaz em
sua função quanto mais ela puder exercer aquelas funções que lhe são próprias. Os resultados
da avaliação das escolas públicas que foram recentemente divulgados apontam que em apenas
1% delas a sua função pode ser considerada cumprida de modo satisfatório. E um ponto em
comum a este pequeno grupo de 166 escolas num universo de 20.000: o maior envolvimento das
famílias no acompanhamento da vida escolar de seus filhos e maior aproximação com as escolas
e professores. Necessário se faz também romper com o „mito‟ de que a educação é tudo. Ela é
fundamental, mas a educação só fará diferença, quando houver educação de qualidade
associada ao desenvolvimento amplo de todos os setores da sociedade, justiça social, melhor
distribuição de renda, economia ágil, investimento maciço em saúde e em educação básica,
saneamento, pesquisa, cultura e arte.
Qual seria a contribuição do pensamento diferencial para se pensar o ensino de Arte? Que
concepção de infância e de criança ele trás em seu bojo?
E antes será possível encontrar um novo modo de pensar a educação, um novo início para a
educação?Talvez possamos pensar de novo um outro lugar minoritário, molecular, para a
infância, no espaço de vigilância e punição da escola; talvez queiramos promover outras
potências de vida infantil, outros movimentos e linhas nesse território tão maltratado, descuidado
e desconsiderado que é a escola. Espaço este tão degradado, assaltado e pichado pelos jovens
que gravitam em torno dela, como um sinal gritante de que as relações de poder e tudo nela
precisam ser revistos.
De alguma forma, este jogo metódico do artista se aproxima do jogo infantil - repleto de linhas de
fugas que vazam fortemente no recreio escolar, longe do controle dos professores.
2
Com base no pensamento de Bergson,
Deleuze-Guattari criam um conceito de
infância como contemporaneidade e não
mais como algo retido num tempo
cronológico. Chamam aos fluxos de
sensações que não se enquadram em
nenhuma visão linear e cronológica do
tempo de blocos de infância.
3
E continua:
Brincadeiras e obras de arte seriam, então, dois modos de atualização das sensações, e teriam em
comum sua condição de cartografias, as quais a criança e o artista inventam, movidos pelos efeitos
intensivos das forças do Fora em seu corpo vibrátil: reconfigurações dos limites da subjetividade e
seu território. Como escreve Deleuze, a Arte também (como a criança) atinge este estado que já
nada guarda de pessoal nem de racional. À sua maneira a Arte diz o que dizem as crianças. Ela é
feita de trajetos e devires, e também faz mapas extensivos e intensivos.(ROLNIK,2000)
Tomando por base estas ideias, agora posso formular uma resposta para a pergunta inicial. A
Arte não pode „salvar‟ crianças e jovens que passaram pela infância e seguem pela vida sem as
condições mínimas necessárias para ativarem as potências criadoras próprias da infância.
Infância negligenciada, com seus desafetos, abandono, exploração e trabalho infantil. Em meio a
pais e professores que também não puderam configurar seus próprios blocos de infância, o que
vejo são tentativas de se ativar estas forças criativas a partir de uma simplificação do material
ofertado às crianças, como se fosse possível instaurar um lugar de invenção através de decretos,
sem promover outras potências de vida infantil, outros movimentos e linhas nesse território tão
maltratado, descuidado e desconsiderado que é a escola.
Referências
DELEUZE, Gilles; GUATTARI,Félix. O que é a filosofia. São Paulo: Editora 34, 1992.
ZOURABICHVILI, François. Six Notes on the Percept. (on the Relation between the Critical and
the Clinical). In DELEUZE , Gilles. A Critical Reader, Oxford: Blackwell, 1996.