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UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais

EBA – Escola de Belas Artes – Pós -Graduação


Disciplina: EBA003 – Imagem do pensamento e pensamento da imagem
Prof.: Marcelo Kraizer
Aluno: Aroldo Dias Lacerda
Data : 06 de julho de 2007

Blocos de infância & o ensino de Arte


Não é a criança que se torna adulto, é o devir-criança que faz uma juventude
universal. (Deleuze –Guattari)

Um dos temas que surgiu durante o curso de forma recorrente em algumas aulas e que mais
me chamou a atenção foi o ensino de Arte em comunidades desprovidas de oportunidades sócio-
econômico-culturais. Partia-se da constatação de que ONGs e o Estado têm usado nas últimas
duas décadas a estratégia de associar o ensino de Arte à possibilidade de contribuir para a
redenção de crianças e jovens daquelas comunidades, quase sempre sob uma perspectiva
„salvadora‟. Uma pergunta que se coloca é: a Arte - ou antes, a oferta de oficinas de Arte – pode
„salvar‟ jovens desprovidos de quase tudo? Por trás desta ideia „salvadora‟ vem muitas vezes um
enfoque assistencialista que predomina em muitas destas iniciativas.

Procurarei neste ensaio apoiado por dois dos conceitos de Deleuze e Guattari que mais me
tocaram – o de devir-criança e o dos blocos de infância – responder àquela pergunta. Há
subjacente a estes conceitos a possibilidade de se encontrar ressonâncias entre o criar e o
brincar, entre o jogo infantil e o jogo da artista e, se pensamos em educação, ressonâncias
também com o ensino de Arte. Considerarei também minha formação em Licenciatura na EBA e
as várias experiências como professor de Arte para crianças e jovens em ONG, escolas públicas
e particulares. Quando esta pergunta era colocada, um turbilhão de pensamentos me invadia e
me mobilizava. O contato recente com o pensamento dos dois pensadores franceses causou
profundo impacto em mim, desestabilizando algumas ideias difundidas durante minha formação
ainda em ato, mas ao mesmo tempo em que preparava este trabalho final apontou também uma
luminosa possibilidade de resposta à pergunta acima colocada.
Inicialmente é preciso romper com a ilusão da escola redentora, ainda mais quando se percebe
que ela está sobrecarregada de tarefas que não são as suas. A escola será tanto mais eficaz em
sua função quanto mais ela puder exercer aquelas funções que lhe são próprias. Os resultados
da avaliação das escolas públicas que foram recentemente divulgados apontam que em apenas
1% delas a sua função pode ser considerada cumprida de modo satisfatório. E um ponto em
comum a este pequeno grupo de 166 escolas num universo de 20.000: o maior envolvimento das
famílias no acompanhamento da vida escolar de seus filhos e maior aproximação com as escolas
e professores. Necessário se faz também romper com o „mito‟ de que a educação é tudo. Ela é
fundamental, mas a educação só fará diferença, quando houver educação de qualidade
associada ao desenvolvimento amplo de todos os setores da sociedade, justiça social, melhor
distribuição de renda, economia ágil, investimento maciço em saúde e em educação básica,
saneamento, pesquisa, cultura e arte.

Qual seria a contribuição do pensamento diferencial para se pensar o ensino de Arte? Que
concepção de infância e de criança ele trás em seu bojo?
E antes será possível encontrar um novo modo de pensar a educação, um novo início para a
educação?Talvez possamos pensar de novo um outro lugar minoritário, molecular, para a
infância, no espaço de vigilância e punição da escola; talvez queiramos promover outras
potências de vida infantil, outros movimentos e linhas nesse território tão maltratado, descuidado
e desconsiderado que é a escola. Espaço este tão degradado, assaltado e pichado pelos jovens
que gravitam em torno dela, como um sinal gritante de que as relações de poder e tudo nela
precisam ser revistos.

Com os meios materiais de que dispõe e o correspondente plano de composição técnica e o


plano de composição estética (que é o trabalho da sensação) presentes na obra, o objetivo da
arte é o de arrancar o percepto às percepções do objeto e aos estados de um sujeito de
percepção, o de arrancar o afecto às afecções como passagem de um estado a outro. Extrair um
bloco de sensações, um puro ser de sensação eis o objetivo da arte para Deleuze-Guattari. Para
isso é preciso um método, que varia de autor para autor e faz parte da obra - marca o seu estilo e
este não cessa de variar historicamente. “O percepto é a paisagem anterior ao homem. Os
afectos são os devires não humanos do homem”, afirmam eles.

De alguma forma, este jogo metódico do artista se aproxima do jogo infantil - repleto de linhas de
fugas que vazam fortemente no recreio escolar, longe do controle dos professores.

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Com base no pensamento de Bergson,
Deleuze-Guattari criam um conceito de
infância como contemporaneidade e não
mais como algo retido num tempo
cronológico. Chamam aos fluxos de
sensações que não se enquadram em
nenhuma visão linear e cronológica do
tempo de blocos de infância.

Os blocos de infância são formas de devir-criança do presente e não se relacionam com


lembranças de infância, retorno ou regressão à criança real que fomos um dia – a infância trivial
do sujeito psicológico. A infância não seria uma suposta etapa inferior no processo de maturação
que caminharia em direção ao simbólico, seu suposto ponto culminante desde Piaget – região
dos jogos e suas regras com seus mapas instituídos. Em Deleuze-Guattari a infância é
concebida como vetor de subjetivação que pode ser estendido à qualquer idade, vetor que
aproximaria criança e artista, o brincar e o criar.

Para eles, como anota Zourabichvili(1996), paralelamente ao aprendizado da adaptação aos


meandros de uma cartografia estabelecida, que se faz por identificação, representação e
imitação, a criança vive uma outra espécie de aprendizado, muito mais potente do que o visado
pelas pedagogias. Desta vez é um aprendizado do mundo enquanto meio feito de matéria fluida,
plástica, capaz de todas as metamorfoses, aquém e além de sua formatação, demarcadora de
sujeitos, objetos, hábitos e significados.

Devir-criança é como Deleuze e Guattari nomeiam a afirmação desta potência criadora na


subjetividade. “Na inocência de uma constante experimentação, a criança explora os universos
por onde passa, numa atividade febril de conexões e desconexões em função dos afetos
mobilizados pelas forças que se agitam nestes universos variáveis. As brincadeiras são tentativas
de formar um plano de consistência para estas passagens intensivas, que serão mais tarde
substituídas pela criação cultural”, como assinala Rolnik (2000) com muita propriedade.

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E continua:

Brincadeiras e obras de arte seriam, então, dois modos de atualização das sensações, e teriam em
comum sua condição de cartografias, as quais a criança e o artista inventam, movidos pelos efeitos
intensivos das forças do Fora em seu corpo vibrátil: reconfigurações dos limites da subjetividade e
seu território. Como escreve Deleuze, a Arte também (como a criança) atinge este estado que já
nada guarda de pessoal nem de racional. À sua maneira a Arte diz o que dizem as crianças. Ela é
feita de trajetos e devires, e também faz mapas extensivos e intensivos.(ROLNIK,2000)

Tomando por base estas ideias, agora posso formular uma resposta para a pergunta inicial. A
Arte não pode „salvar‟ crianças e jovens que passaram pela infância e seguem pela vida sem as
condições mínimas necessárias para ativarem as potências criadoras próprias da infância.
Infância negligenciada, com seus desafetos, abandono, exploração e trabalho infantil. Em meio a
pais e professores que também não puderam configurar seus próprios blocos de infância, o que
vejo são tentativas de se ativar estas forças criativas a partir de uma simplificação do material
ofertado às crianças, como se fosse possível instaurar um lugar de invenção através de decretos,
sem promover outras potências de vida infantil, outros movimentos e linhas nesse território tão
maltratado, descuidado e desconsiderado que é a escola.

Se há o fracasso escolar pela ausência de blocos de infância de onde tirar os estímulos e os


vetores de subjetivação para a realização de competências cognitivas, por outro lado, o sucesso
alcançado no futebol por crianças vindas destas mesmas condições ajuda no entendimento
daquele fracasso. Ora, em condições tão precárias, a prática do futebol - por exigir mínima
estrutura material - é quase sempre a brincadeira preferida daquelas crianças. E por a praticarem
à exaustão, tudo o que foi dito sobre a aproximação do jogo infantil e da criação artística, algumas
destas crianças se tornam jogadores diferenciados e promovem esta espantosa renovação de
craques no futebol brasileiro. Não é sem razão que às vezes é chamado de futebol-arte o
praticado por certas seleções ou times do Brasil: há momentos em que certas jogadas ou dribles
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encantam por serem portadores de rara beleza plástica, surpresa, novidade – potentes linhas de
fuga que surgem no campo e desconcertam os adversários e encantam as platéias. Talvez seja
uma das formas de criação mais potentes de uma sociedade complexa, injusta, caótica e que
busca encontrar, apesar de tudo, uma forma de desfrutar de momentos do prazer de existir em
meio ao caos.
O ensino de Arte poderia, então, ser arejado por outras formas de se conceber a infância e a
criança, formas mais fluidas,mais libertárias e menos pedagogizantes. Procurar erguer blocos de
infância potentes para serem lançados contra estruturas arcaicas e promoverem uma saída pelo
meio, entre o que é e o que poderá ser, explodindo possibilidades de superação do marasmo e
da passividade que se observam nas escolas.

Referências

DELEUZE, Gilles; GUATTARI,Félix. O que é a filosofia. São Paulo: Editora 34, 1992.

ROLNIK, Suely. Os mapas movediços de Öyvind Fahlström. Disponível em :


<http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Fahlstrom.pdf> Acesso em: 20. jun.
2007.

ZOURABICHVILI, François. Six Notes on the Percept. (on the Relation between the Critical and
the Clinical). In DELEUZE , Gilles. A Critical Reader, Oxford: Blackwell, 1996.

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