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Alegoria e símbolo na literatura ocidental

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11 de março de
2019

Epígrafe: “Rationality, when conceived as complete, as excluding all arbitrariness, becomes


itself a kind of irrationality” — “A racionalidade, quando se concebe como completa, como
excluindo toda e qualquer arbitrariedade, torna-se ela mesma um tipo de
irracionalidade” (Arthur Lovejoy, The Great Chain of Being: A Study of the History of an Idea ).

“História” x “alegoria”

“Detesto do fundo do coração a alegoria em todas as suas manifestações, e sempre o fiz


desde que me tornei velho e cauteloso o suficiente para detectar a sua presença”,
escrevia J.R.R. Tolkien no Prefácio ao seu Senhor dos anéis. “Prefiro de longe a história,
verdadeira ou imaginária, com a sua variada aplicabilidade ao pensamento e à
experiência dos leitores. Penso que muitos confundem ‘aplicabilidade’ com ‘alegoria’;
aquela, porém, reside na liberdade do leitor, e esta numa presumível dominação por
parte do autor”.

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Atena combate os titãs Enceladus e Palas. Friso daGigantomachia (combate dos deuses e dos gigantes)
do altar de Zeus em Pérgamo, Pergamonmuseum, Berlim.

Em contrapartida, Chesterton — que reconhecidamente não tinha tendência alguma a


dominar os outros — escrevia na sua biografia do pintor G.F. Watts, de 1904, que “não é
que haja uma arte alegórica; antes, não há arte que não seja alegórica”. Que pensar
diante de tamanha discrepância entre dois grandes autores? Qual a relação entre
alegoria e arte, e mais concretamente arte literária?

Tolkien talvez tenha matizado mais tarde o seu juízo, pois escreveu ao menos um conto
expressamente alegórico — “Leaf” by Niggle — em que se autoironiza deliciosamente.
Mas a distinção que aponta parece de fato dividir em dois campos toda a literatura
ocidental, e a impressão geral que se tem é de que autores e leitores coincidem com o
seu gosto: as narrativas do tipo “histórico-aplicável” formam a imensa maioria nos
últimos séculos, e as de tipo alegórico parecem ser a exceção — embora não seja uma
exceção assim tão rara.

Examinemos brevemente o panorama geral, que ao mesmo tempo nos será útil para
estabelecermos para uma sumária classificação prática. Prescindamos da poesia lírica,
que exigiria uma análise à parte; e mencionemos apenas de passagem um primeiro tipo,
o das fábulas e apólogos, de Esopo a La Fontaine e a James Thurber, pois são em geral
breves contos que pretendem ilustrar, a sério ou ironicamente, um único ponto bem
concreto de moral, um provérbio ou coisas do gênero.

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Um segundo subgênero, ao lado do apólogo, poderia ser a tipologia, que apresenta um
personagem exemplar ou contra-exemplar como protótipo ou “tipo” de determinada
qualidade ou fraqueza humana. Ao primeiro caso pertence, por exemplo, Das
Marmorbild (“A estátua de mármore”) de Joseph Eichendorff, pequena obra-prima que
traça um retrato da virtude da castidade. Ao segundo, os diversos don-Juanes da
literatura, de Tirso de Molina (El burlador de Sevilla) a Molière, Byron, Zorrilla, Balzac e
muitos outros. Também pertencem a esse grupo o Retrato de Dorian Gray e alguns
contos de Wilde; e igualmente o Henrique V e o Ricardo III de Shakespeare, que
pretendem respectivamente retratar as virtudes do bom rei e os defeitos do mau.

A Idade Média gostava muito da alegoria em geral, mas especialmente da tipologia.


Plasmou-a em muitas das suas lendas anônimas — como o Fausto, O jogral de Nossa
Senhora e O quarto rei mago, as duas últimas recontadas de maneira encantadora pelo
agnóstico (?) e anticlerical Anatole France –; no esquecido Roman de la Rose; nas poesias
do ciclo arturiano; na Legenda áurea, e sobretudo nos autos, religiosos ou não, como o da
Barca do inferno ou o da Alma, do nosso Gil Vicente. Aliás, o Auto da Compadecida de
Ariano Suassuna, que alude aos medievais, é parcialmente alegórico, embora os seus
personagens principais já sejam mais do que simples tipos.

Até o nosso Machado de Assis, que à primeira vista pareceria quase que o oposto puro
de um pregador de idéias, traça nas Memórias póstumas um “tipo” do brasileiro (“Esse,
sim, é que o verdadeiro Macunaíma”, como disse alguém), embora os personagens
sejam muito detalhados, realistas demais, para serem puramente alegóricos; esta é, no
entanto, uma tendência geral da alegoria moderna. Também têm base alegórica, ao
menos em parte, o Dom Casmurro e o Esaú e Jacó.

O subgênero utópico, o das obras destinadas a imaginar uma sociedade ou um homem


“customizados” ao gosto do autor, floresceu sobretudo do começo da modernidade até
o iluminismo; pertencem a ele uma multidão de títulos que em geral tiveram vida curta,
o que não significa que tenham tido pouca influência na mentalidade moderna: da
Cidade do sol de Campanella, ou da Nova Atlantis de Francis Bacon, ao Emílio e à Nova
Heloísa de Rousseau, e aos pré-socialistas Le code de la Nature de Morelly (possivelmente
um pseudônimo de Diderot), The New Law of Righteousness de Gerrard Winstanley ou as
News from Nowhere de William Morris.

Muito mais bem fornido anda o gênero distópico, isto é, o dos livros destinados a fazer
crítica social, de correntes filosóficas, de costumes, da moral ou da religião por meio da
comparação com uma sociedade, pessoa ou narrativa exemplar. Por ironia, a ele
pertence a Utopia original de Thomas More; e da mesma forma As viagens de Gulliver do
puritano Swift, que procura mostrar as distorções causadas pelo pecado em todos os
aspectos da sociedade; o Candide, o Zadig e as demais obras narrativas de Voltaire, com
as suas ironias de adolescente; a Revolução dos bichos e o 1984 do comunista
arrependido George Orwell, em que transparece o ranço amargo do “ex”; O zero e o
infinito, de Arthur Koestler, muito mais inteligente; o profético Admirável mundo novo de
Aldous Huxley, que anda meio esquecido — talvez porque nos estejamos aproximando

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desconfortavelmente da sociedade que ele descreve; ou o divertido A guerra das
salamandras de Karel Čapek (pronuncia-se “tchapek”). E daria para continuar a lista sem
muita dificuldade; por exemplo, o Alienista do nosso Machado é uma maravilhosa e
irônica metáfora da Revolução Francesa.

A alegoria “clássica”

Por fim, temos a alegoria, digamos, “clássica”, que pretende tornar as idéias acessíveis
aos sentidos e à imaginação. O genial Asno de ouro de Apuleio, por exemplo, é um
encadeamento de histórias mais ou menos alegóricas ou exemplares que giram em
torno do tema do amor dentro uma alegoria maior, a do homem que, sob a forma de
asno, percorre um caminho de iniciação na “arte de amar”, ascendendo do meramente
venéreo ao divino. Semelhante é também o itinerário percorrido por Charles Ryder,
personagem central do Retorno a Brideshead, talvez a única obra alegórica de Evelyn
Waugh.

Penso que Kafka pode classificar-se dentro desta categoria, embora não seja fácil definir
o que é que alegoriza: os seus personagens de contornos indefinidos movem-se em
confronto com um mundo em que o sem-sentido assume angustiantes proporções
labirínticas, ditadas por uma “lei” contra a qual não há defesa possível. A sua lei talvez
seja a Torá dos seus ancestrais, sentida por ele como arbitrária e incompreensível; talvez
a burocracia asfixiante do império austro-húngaro decadente; ou ainda a paralisia das
perplexidades e indecisões em que ele mesmo se debatia. Possivelmente todas as três,
que neste caso serviriam como analogias umas das outras.

Também Chesterton é quase um alegórico puro. Todos os seus romances e contos são
no mínimo apólogos e o mais das vezes alegorias de múltiplas “camadas de significado”;
incluem-se aí até as histórias do Padre Brown, uma vez que, segundo G.K.C., “o romance
policial é todo o romance do ser humano, pois se baseia no fato de que a moral é a mais
obscura e ousada das conspirações”. No caso deste escritor, o pendor alegórico já era de
esperar, pois a sua principal grandeza está na ensaística, e a narrativa é para ele pouco
mais que um ensaio “disfarçado”.

C.S. Lewis, amigo de Tolkien, é outro dos gigantes do gênero. Cada título da série infanto-
juvenil das Crônicas de Nárnia é uma alegoria “clássica” explícita e simples, bastante
linear, de algum tema do cristianismo. E o mesmo se poderia dizer da sua trilogia de
“ficção científico-teológica”, Longe do planeta silencioso / Perelandra / Aquela força
medonha, se aos poucos não fosse aprofundando no tema para atingir ressonâncias
quase místicas no terceiro. Por fim, O grande abismo, no original The Great Divorce —
resposta à obra de William Blake, The Marriage of Heaven and Hell — gira em torno da
relação entre tempo e eternidade.

Naturalmente, muitos autores do tipo histórico-aplicável “cometem” de vez em quando a


sua alegoria: é alegórico o conto do “Grande Inquisidor”, posto na boca de Ivan nos
Irmãos Karamasov. Joseph Conrad, outro avesso ao gênero simbólico, confessa
enrubescendo que o seu conto alegórico The Return, “O retorno”, lhe parecia “a left-
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handed production”, “produto da sua mão esquerda”; logo a seguir, porém, acrescenta
que “toda palavra bondosa [a respeito desse conto] desperta em mim a mais viva
gratidão, pois sei quanto me custou escrever aquela fantasia, em termos de puro e
simples esforço, irritações e desilusão”… (“Author’s Note” a Tales of Unrest).
Acrescentemos que essa obra é uma pequena jóia, talvez uma das melhores coisas que
Conrad escreveu.

Praticamente todas as obras mencionadas até aqui pertencem ao segundo ou até


terceiro escalões da literatura universal, ou são obras secundárias ou isoladas de
grandes autores. Se formos para o primeiro escalão, veremos que quase não há
alegorias puro-sangue, mas também são raras as narrativas puras. A maioria dos
grandes livros tem diversas “camadas de leitura”, algumas das quais são históricas (a
partir de agora usarei a palavra sem aspas; o leitor entenderá que sempre a uso no
sentido de Tolkien, não no da historiografia) e outras, intencionalmente ou não,
alegóricas: assim, a Odisséia pode ser lida, para além das diversas peripécias pelas quais
passa Ulisses — algumas das quais são inconsciente ou até intencionalmente alegóricas,
outras não –, como uma analogia da vida humana entendida como viagem de retorno
para casa; o Senhor dos anéis, já que começamos estas páginas com ele, do caminho
para a santidade moral através do sacrifício e da dor; o Dom Quixote, como um
panorama do romantismo humano, que parece louco sob muitos aspectos, mas em
última análise está mais próximo da sanidade do que o racionalismo da modernidade
nascente…

Também Guimarães Rosa cavalga sempre sobre os dois gêneros, o histórico e o


alegórico; ora predomina um, ora o outro, mas sempre estão presentes os dois. Isso se
vê já na macroconstrução das obras: Sagarana, talvez a menos alegórica das suas obras,
começa pela vitória do pequeno e do humilde (o burro pedrês e o seu cavaleiro bêbado)
ali onde os “grandes” (os cavalos e os pretensos assassinos) fracassam, e termina pela
conversão de um coronel ajagunçado e pela sua vocação, que integra toda a violência
nociva da vida passada num sacrifício redentor. Esse arco que vai da grandeza do
pequeno à transcendência do sentido da vida é preenchido pela vitória da
malandragem, a impotência nascida da enfermidade, o encontro do amor inesperado, a
magia, o ódio vingativo e sem perdão mesmo para além da morte, a força nascida de
uma ilusão… — toda a variedade da mesma vida humana. Análises desse tipo se
poderiam fazer de todas as suas obras, com exceção de Estas histórias, coletânea
póstuma de contos diversos, e Ave, palavra, coletânea de artigos e peças díspares.

Se as grandes obras narrativas têm camadas ou trechos alegóricos, o inverso também é


verdade: as grandes alegorias contêm muitos trechos meramente históricos, nos quais
não se trata de procurar sentidos ocultos, pois estão ali por exigências da trama ou do
equilíbrio narrativo, ou pelo simples prazer de narrar, de contar histórias. Digamos desde
já que, se um dos principais prazeres na leitura das obras simbólicas é encontrar os
significados ocultos e ao mesmo tempo revelados sob a superfície narrativa, o grande

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vício dos críticos e intérpretes do gênero é o encarniçamento interpretativo, que procura
significações esotéricas em cada vírgula, disposto a torturar o texto (e o autor, se for o
caso) até que confesse mesmo as analogias que não cometeu.

A “polissemia”

Por fim, existem algumas obras em que há, não uma, mas várias camadas alegóricas. As
alegorias “puras”, via de regra, são bem mais estreitas, por estarem dominadas por uma
tese central a serviço da qual estão todos os símbolos narrativos. Nessas outras, pelo
contrário, confluem, entrecruzam-se, sobrepõem ou entrelaçam-se diversas linhas
alegóricas: são verdadeiras “sinfonias de símbolos”.

O protótipo desse tipo de obras é, parece-me, a Divina comédia. Dante, ao falar dela,
reconhece explicitamente que é “polissêmica”, de muitos significados. Vejamos
brevemente quais poderiam ser alguns deles. À primeira vista, é uma tipologia das
figuras históricas, dos contemporâneos e dos conterrâneos do poeta, cuja verdadeira
grandeza ou miséria (segundo a opinião e às vezes os preconceitos de il Dante) aparece
revelada no seu destino eterno. Mais profundamente, porém, é um “resumo do mundo
sobrenatural” alegorizado mediante um abismo/montanha em círculos concêntricos, que
por sua vez refletem as esferas celestes, segundo o esquema platônico medieval
maravilhosamente pintado por Botticelli; esse mundo escatológico, por sua vez, é um
retrato, ou talvez melhor o original eterno do nosso.

Ao mesmo tempo, a Commedia é também uma tipificação e alegorização dos vícios


humanos, que produzem já em vida o castigo representado pelas diversas torturas do
Inferno e do Purgatório, e igualmente das virtudes, que produzem as bem-aventuranças
do Céu. A viagem através do Inferno, do Purgatório até ao Céu, por sua vez, pode e deve
ser entendida em clave psicológica, como uma viagem ao interior de si mesmo
provocada por uma grande crise existencial e uma alegoria da conversio necessária para
encontrar uma saída para a crise; por fim, a estrutura da conversão, do “virar-se do
avesso”, é em si mesma uma alegoria da vida humana.

Os Lusíadas pretende contar, aparentemente, um fato histórico real, mas está permeado
de alegorias: a viagem de Vasco da Gama é selecionada por ser tipo da criação do
Império (que já de per si é um símbolo) para o qual a história de Portugal, narrada por
Vasco da Gama nos Cantos III-IV, tinha preparado essa nação. Passa, como é natural, por
todos os obstáculos, figurados no velho do Restelo (a voz da prudência humana, que não
deixa de ter razão ao desmascarar a mentira, a tolice e o vício que se escondem por trás
do ambicioso projeto de Vasco da Gama, mas não pode prevalecer contra a
magnanimidade que o inspirou), no gigante Adamastor (a fúria da natureza), nos régulos
de Moçambique e Mombaça, instigados por “Baco” (o perigo da traição). Mas tem
também as suas recompensas, simbolizadas na “ilha dos amores” (as “deleitosas honras
que a vida fazem sublimada” são simbolizadas pela conquista sexual), mas sobretudo no
“conspecto do mundo” que Tétis entrega a Vasco da Gama: Portugal traz, doravante, o
mundo em suas mãos.

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Autênticas obras polissêmicas são também o Fausto de Goethe e o Dr. Faustus de
Thomas Mann; A tempestade de Shakespeare; e (embora não goste nada do autor pela
sua arrogância, que naturalmente transparece nas suas obras) o Ulysses de Joyce.
Igualmente, embora algo mais simples, O homem que era quinta-feira , A esfera e a cruz e o
Manalive, de Chesterton, que já tivemos ocasião de mencionar em outro lugar. De Lewis,
O retorno do peregrino — alusão ao Pilgrim’s Progress de Bunyan, alegoria da vida cristã
segundo a visão de um congregacionalista do século XVII — é ao mesmo tempo um
panorama metafórico das filosofias do seu tempo, um “progresso do peregrino ateu ou
agnóstico” em direção ao cristianismo, e uma alegorização do caminho pessoal do autor.
E o romance Till We Have Faces (ao que eu saiba ainda não traduzido para o português,
mas no meu entender a melhor obra do autor) é uma genial e profunda remeditação em
vários níveis de significado do mito de Eros e Psiqué — a relação da alma humana com o
amor divino –, incluído no já mencionado Asno de ouro.

O nosso Grande sertão: veredas, por fim, encerra esta nossa lista provisória. Riobaldo —
“rio baldado, vão” –, em cujo nome já se espelha o amor de Guimarães Rosa pelos
grandes rios, “escuros e profundos como a alma dos homens”, refaz a viagem da
Commedia, porém de maneira mais obscura e problemática do que Dante. O livro parte
da palavra “nonada” (ninharia, coisa sem importância) e termina com o caracter “∞” —
como a vida humana, é uma viagem simbólica do quase-nada ao infinito. A paisagem, em
todos os seus aspectos, é sempre figura: quer o sertão como um todo, imagem do
mundo; quer nos rios, cuja “terceira margem” é sempre o infinito mar; quer no Liso do
Suassurão, figura do deserto interior.

O personagem central desce ao inferno do fracasso existencial para depois ascender ao


céu do triunfo; mas, como o Fausto, faz — terá mesmo feito? — um pacto com o
demônio, que lhe dará a força — sobrenatural ou psicológica? — para vencer. Em
conseqüência, experimenta a natureza dolorosamente ambígua do homem pecador,
tantas vezes dividido entre bens aparentemente opostos — o amor de Otacília e o de
Diadorim –, enganado sobre a verdadeira natureza do que lhe é mais caro
(Diadorim/Deodorina, fusão latino-grega, significa “dom de Deus”, a graça), fracassado no
triunfo, despojado na vitória.

Por fim, antes de passarmos adiante, examinemos brevemente se procede a acusação


de Tolkien, de que na alegoria há “uma presumível dominação por parte do autor”. A
breve lista acima confirma, por um lado, que na maioria das vezes a analogia tem uma
função didática, que será moralizante, sapiencial ou mistagógica (explicação dos
mistérios religiosos), conforme o caso, além da função propriamente literária de
orquestrar os sentimentos do leitor.

Para muitas dessas obras, especialmente dos gêneros utópico e distópico, não há dúvida
de que há um empenho de dominação, pois prometem o que não podem cumprir ou
pretendem incutir medo, que em alguns casos concretos bem pode ser salutar, mas é
péssimo como reação habitual perante o futuro. Suaviza um pouco esse juízo a ironia
bem-humorada, que põe entre o autor e o leitor uma distância crítica que permite ao

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segundo ganhar objetividade. Mas a ironia não se confunde com a mera mordacidade
destrutiva de um Voltaire, por exemplo, na qual se revela novamente a garra da hybris
escravizadora.

Quanto às alegorias clássicas e tipológicas, como a sua função é tornar palpáveis para o
leitor determinadas verdades ou idéias abstratas, e não cooptá-lo para uma posição
política, filosófica ou religiosa, poderão ser verdadeiras ou falsas, rasas ou profundas,
tolas ou sábias, herméticas ou evidentes, mas dificilmente terão um aspecto de
dominação; caso contrário, todo o ensino e até toda a linguagem teriam de ser
dominação — mas aí já cairíamos nas paranóias de Foucault.

Neste sentido, é interessante ver o que diz Michael Ende, autor de ao menos duas
alegorias polissêmicas puro-sangue, a História sem fim e o Espelho no espelho:

“Não há dúvida de que a literatura do pós-guerra até agora tem difundido a idéia de que os
autores têm de iluminar os leitores e dar-lhes a conhecer os fatos desconhecidos [refere-se
sobretudo a Bertold Brecht, Günther Grass & cia.]. Em suma, que os autores são professores
que devem dar lições aos leitores. Isso me parece pura arrogância. […] O mais difícil para
mim foi evitar todo tipo de análises nos meus livros. Custou-me tremendamente banir e
apagar dos meus livros toda palavra que pudesse parecer explicativa. […].

“Há alguma coisa que eu precise entender quando ouço música? Talvez sim, talvez eu devesse
analisá-la se me tivesse formado em musicologia e soubesse compor. Mas entendê-la? Você
não precisa entender música; basta experimentá-la. Quando vou a um concerto e ouço uma
música maravilhosa, ao voltar para casa estou cheio da alegria que nasce de ter tido uma
experiência tão boa. Mas não penso que esteja nem um pouquinho mais instruído do que
antes” (“Conversa com Hisashi Inoue, Mitsumasa Yasuno e Hayao Kawai”, publicada no
Asahi Journal, Tóquio, 14, 21 e 28.04.89).

Parece, portanto, que o elemento criador visceral, emotivo, pode estar tão presente na
alegoria como habitualmente se diz que está na narrativa histórica. Ou seja, a alegoria
talvez não seja tão “racional” como às vezes se pode pensar — também há nela uma
espécie de “música dos símbolos”, uma harmonia que precede ou até dispensa a
interpretação. Para examinarmos esta segunda questão mais a fundo, será preciso antes
de mais nada desbastarmos um pouco o labirinto conceitual que cerca os termos
analogia, símbolo e assemelhados.

Símbolos e representações mentais

Para começarmos esta tarefa, sigamos o caminho mais simples: vamos conferir o que
diz o dicionário. O significado n. 1 da palavra “símbolo” citado pelo Houaiss, dos sete que
menciona (ou treze, se contarmos os subsignificados de alguns itens, baseados em
distinções tão sutis que o Fermat teria dificuldade em captá-las) é enunciado assim:
“aquilo que, por um princípio de analogia formal ou de outra natureza, substitui ou
sugere algo”.

Deixemos de lado os “princípios de outra natureza”, que só nos lançariam de volta no


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labirinto, e retenhamos apenas o princípio da analogia formal. Símbolo seria, neste caso,
tudo aquilo que representa outra coisa por manter com ela uma relação de analogia, isto
é, de semelhança: tem algo em comum com o representado e algo — ou muito — de
diferente. Com isto, já podemos distinguir o símbolo do mero signo ou sinal, cuja
conexão com o representado é muito mais frouxa e externa, por exemplo de mera
convenção. A palavra “banana” é signo do fruto, pois nada tem em comum com ele; o
desenho de uma banana, por mais estilizado e simplificado que seja, a simboliza.

Naturalmente, a forma da “analogia formal” não se deve entender apenas no sentido de


uma configuração ou semelhança física. Entende-se no sentido da filosofia clássica como
uma “configuração lógica” comum ao símbolo e ao seu significado: ambos participam de
uma mesma “estrutura racional”. Assim, quando digo que “Fulano é um banana”, posso
usar o fruto como símbolo da pessoa porque os dois apresentam uma característica
comum — uma consistência pouco firme, digamos, que num caso é física, no outro
moral.

Os símbolos pictóricos, lingüísticos, musicais e verbais fazem por assim dizer o “meio de
campo” entre a razão, por um lado, e a afetividade e ação humanas, por outro. E podem
fazê-lo porque, ao vestirem os conceitos ou afirmações abstratas com a roupa de uma
imagem concreta, encontram-se em casa na imaginação ou fantasia, a capacidade de
operar com imagens concretas.

Emprego a expressão “imagem concreta” ou simplesmente “imagem” no sentido da


filosofia clássica: a representação mental que formamos de um objeto a partir dos dados
soltos (cores, linhas, luzes e sombras, movimentos, odores, sabor, temperatura,
consistência, rugosidade da superfície, brilho etc.) informados pelos diversos sentidos. É
por isso que manipulamos, examinamos e testamos os objetos novos, ainda
desconhecidos, que nos são apresentados (por exemplo, apalpamos, cheiramos e até
lambemos cautelosamente uma seriguela ou um cupuaçu que nos oferecem; testamos
todas as alavancas, botões e teclas de um aparelho para ver se se movem e que efeito
têm, etc.): estamos tentando extrair o máximo de informações da coisa a fim de
podermos construir uma imagem dela.

Neste sentido, portanto, a imagem não é apenas visual. Há imagens predominantemente


visuais, auditivas (uma melodia, um ritmo), táteis, espaciais, gustativas, olfativas; mas
tendemos sempre que possível a reunir em um todo único os dados fornecidos pelos
diversos sentidos. Naturalmente, a maioria das imagens do mundo ao nosso redor
foram formadas durante a infância e depois armazenadas na memória, de onde as
tiramos para operar com elas. Mais ainda, a principal atividade dos nossos primeiros
meses e anos parece ser a de formar as imagens das coisas que depois usaremos para
funcionar no mundo.

Os conceitos, ainda para usar a terminologia clássica, distinguem-se das imagens por
serem abstratos e universais, enquanto estas são sensíveis e concretas (a minha imagem
de bolo de chocolate tem cor marrom bem escuro, o brilho da calda na cobertura que
escorre pelos lados, é quentinha e tem sabor meio amargo). No entanto, estão
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vinculados a uma série de imagens: em primeiro lugar, aquelas a partir das quais nós o
formamos (aprendi o que é “homem” abstraindo o que havia de comum entre a mãe, o
pai, as tias e tios, os carinhas do prezinho, a Zazinha, o Martim Vasques, etc.); e a elas
acrescentam-se depois muitas outras, que vão corrigindo, expandindo ou
eventualmente reformulando o conceito original. Aos conceitos presentes naquela
“camada” da nossa pessoa a que poderíamos chamar razão, espírito ou nous,
corresponde uma espécie de “nuvem de imagens” na “camada” mais visceral e animal a
que chamamos imaginação.

Mesmo depois de formada a imagem, posso ainda não ter um conceito: continuo a
experimentar o desconforto de não saber que raios é este troço. Só chego ao conceito
quando sou capaz de responder à pergunta “o que é isto?” E, ao contrário do que dizem
algumas correntes filosóficas, o conceito é distinto também da palavra que o denomina:
posso ter entendido que esse troço de casca parecida com uma laranja, mas bem maior
do que ela, com gomos como os de uma tangerina, mas de cor vermelha e sabor amargo
(até aqui, a imagem concreta) é uma fruta cítrica de espécie própria (o conceito), mas só
depois de pouco ou muito tempo vir a saber que se chama toranja ou grapefruit (agora,
sim, a palavra).

Faltou, porém, esclarecer uma pergunta que já terá ocorrido a muitos leitores: qual é,
afinal, a diferença entre símbolo e imagem? Uma maneira prática e simples de estabelecê-
la poderia ser esta: as imagens concretas propriamente ditas nos vêm das coisas
externas (formam-se “de baixo para cima” ou “de fora para dentro”, por assim dizer, ao
sabor do que os sentidos nos transmitem), ao passo que os símbolos seguem o caminho
inverso, “de cima para baixo”, “de dentro para fora”: do conceito para a imagem. Símbolo
será, pois, toda a imagem já presente espontaneamente na memória, ou inventada
expressamente para essa finalidade, que eu passe a utilizar de preferência a outras para
representar um conceito, ou uma proposição, ou um conjunto de proposições; esse
conceito não é aquele que resultou por abstração dessa imagem e de suas semelhantes,
mas outro diferente, ao qual se vincula por meio de uma analogia formal. Ou seja,
símbolo é uma imagem que passa a ter, além do seu significado próprio e normal (a
banana), um significado especial, indireto e analógico (o banana).

Perdoem-me o comprimento desta explicação, mas é crucial entendermos a distinção


entre os dois tipos de representações internas para compreendermos o que são e o que
fazem os símbolos. Essa distinção foi esquecida, parece-me, em boa parte da história da
filosofia — notadamente na linha empirista inglesa, que usava o termo “conceito” onde
deveria usar “imagem”, “imaginificando” assim todas as operações mentais. Vejam o que
Hobbes, Locke, Hume, chegando depois até Kant, dizem sobre o conhecimento humano:
que os “conceitos” se formam por “adição” e “subtração” de “partes”, etc.; precisamente o
que comentávamos sobre a formação da imagem a partir dos dados sensíveis. E foi
esquecida igualmente na linha racionalista continental (Descartes, Malebranche, Spinoza,
Leibnitz, novamente chegando até Kant), que pôs a imagem no mesmo saco que os
conceitos, “racionalistizando” assim todas as operações mentais.

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Por isso, parece-me, a Crítica da razão pura de Kant deveria antes chamar-se Crítica da
formação de imagens pura, com o que encontraria o seu lugar adequado dentro do
modelo clássico de compreensão do ser humano. Por isso também as ciências empíricas,
especialmente a biologia, que nasceram em solo empirista, não conseguem mais
encontrar a distinção entre os animais (que têm e operam com imagens) e nós (que
operamos com imagens tal como eles e em alguns aspectos melhor do que eles; mas
além disso operamos com conceitos).

Um exemplo simples disso e que tem a ver com o nosso tema é que, ao referir-se à
linguagem humana, os pensadores do âmbito anglossaxônico usam com freqüência a
expressão symbolic language, o que nos põe no mesmo nível das abelhas, que também
fazem uso de uma linguagem simbólica (a famosa “dança”, que indica a posição e
distância de uma fonte de pólen e néctar); quando o que distingue a linguagem humana
é que se situa na intersecção de três planos, um de tipo conceitual (a dimensão
semântica), um outro simbólico (a dimensão metafórica) e um terceiro gramático (a
dimensão morfológico-sintática). Mas, enfim, toda a temática apontada nestes últimos
parágrafos mal pode ser mencionada aqui, já que exigiria uma série de refinamentos
adicionais na análise e levaria pelo menos um livro inteiro para ser examinada como
deveria. Contentemo-nos por ora com o tema bem mais modesto dos símbolos.

Um símbolo vale por mil palavras

Dizíamos que os símbolos fazem o “meio de campo” entre a razão, aquela função ou
capacidade mental presente em nós que forma os conceitos e opera com eles
(vinculando-os entre si em proposições e depois silogismos), e a afetividade e ação, e o
fazem porque estão presentes na imaginação, a função mental que opera com imagens.

São as imagens concretas — quer quando vêm apresentadas diretamente pelos


sentidos, quer quando o são indiretamente pela imaginação — que suscitam os desejos,
fazem nascer repulsas, despertam ou intensificam medos ou tensões, apaziguam ou
criam angústias, etc. Se o leitor duvidar, basta que feche os olhos e pense num belo
churrasquinho; imagine-se aspirando o odor da carne frita, veja a picanha suculenta
passando daquele tom avermelhado para o pardo-claro, ouça as gotas de gordura que
chiam fervendo na brasa…

A força que este processo chega a ter talvez fique mais clara com um exemplo simples.
Enquanto escrevo este artigo, estou passando uns dias na casa de uns amigos, perto de
Curitiba, em pleno mês de julho. O termômetro, tanto dentro como fora de casa, insiste
em oscilar entre miseráveis 6º e 11º C (com base no mito do “país tropical”, não há
aquecimento que preste na casa). Em determinado momento, um desses meus amigos
comentou: “Sabe o que faço para combater o frio? Estou lendo As minas do rei Salomão, e
os personagens estão agora atravessando o deserto. Um sol infernal, calor ressecante,
dias e dias de sede, sede e sede. Enquanto leio isso, não sinto frio algum”.

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A repercussão emotiva que as imagens têm apóia-se de início na experiência direta, e
talvez até em alguns padrões inatos (bichinhos peludos de muitas pernas são repulsivos,
chuva dá tédio e modorra…). Mas esse vínculo também pode ser indireto, fortuito ou
histórico, sem nenhuma relação intrínseca com a imagem em si: a cruz gamada, entre os
nossos ancestrais indogermânicos, representava o disco do sol a girar pelo céu; mais
tarde, adquiriu as associações ligadas à roda — circularidade, movimento perpétuo,
progresso (que era o que os nazistas queriam representar, como bons modernistas que
eram) –; e agora, desde a sua associação com o nazismo, passou a representar
fanatismo, racismo, injustiça, quase que o puro mal. Em quem sofreu as conseqüências
devastadoras da ideologia, na sua pessoa ou na dos seus parentes próximos, é natural
que o símbolo desperte angústia, indignação ou ódio frio; em quem só o conhece
através dos filmes de guerra americanos, uma vaga repulsa ou desprezo; em quem se
sente um pária, talvez por vir de uma família desfeita ou padecer de uma neurose de
inferioridade, ou então se imagina de alguma forma em guerra com a sociedade, pode
despertar identificação e uma certa sensação de poder.

John Henry Newman, na sua Grammar of Assent (“Gramática do assentimento”), distingue


entre o que chama assentimento nocional a proposições nocionais — na terminologia
que usamos aqui, falaríamos de proposições conceituais, abstratas –, e assentimento
real a proposições reais — proposições concretas ou imagéticas, para nós. (Toda a
formação filosófica de Newman deu-se dentro da tradição empirista britânica, mas aqui
vemos como a sua genialidade rompe os moldes recebidos e lhe permite reencontrar a
distinção aristotélica.) Vejamos o que diz:

“Destes dois modos de apreender proposições, nocional e real, o real é o mais forte; e por
mais forte quero dizer mais vívido e convincente. Assim ocorre apenas porque diz respeito ao
que ou é real ou é considerado real; pois as idéias intelectuais não podem competir em
efetividade com a experiência dos fatos concretos. Diversos provérbios e máximas permitem-
me falar assim, como por exemplo ‘Os fatos são teimosos’, ‘Aprender por experiência’, ‘É
preciso ver para crer’; bem assim o contraste popular entre teoria e prática, razão e visão,
filosofia e fé. Não é que a apreensão real, tomada em si mesma, impulsione a agir mais do
que a nocional; o que ocorre é que excita e estimula os afetos e paixões, apresentando-lhes
fatos [imagens, diríamos] como causas motoras. Desta forma, produz indiretamente aquilo
que a apreensão de princípios amplos, de leis gerais ou de obrigações morais nunca seria
capaz de fazer” (Grammar of Assent, cap. 1, § 2).

Dizemos que “uma imagem vale por mil palavras”. Naturalmente, na medida em que o
conceito que está por trás de uma palavra exprime o que há de comum entre mil
imagens concretas, esse provérbio é uma tolice. Mas na medida em que a imagem
catalisa as emoções e assim suscita uma reação forte, sim, faz sentido dizer que uma
imagem ou um símbolo realiza o que mil palavras conceituais não conseguiriam fazer.
Por isso mesmo, retornando à literatura propriamente dita, podemos afirmar que o
grande estilista — que não é necessariamente um grande autor, pois para isso se exige
também profundidade de pensamento — é aquele que consegue orquestrar as emoções
do leitor por meio das imagens que evoca através da linguagem.
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Símbolos verbais

O caso dos símbolos verbais, que ao mesmo tempo traduzem essa linguagem simbólica
e fazem parte dela, é evidentemente especial. As meras onomatopéias e os ritmos
poéticos são os “primos pobres” dessa grande família, pois se limitam a simbolizar ruídos
por semelhança física ou representar — ao mesmo tempo que os reforçam ou suscitam
— ritmos musculares (lembremo-nos do tamborilar dos dedos de quem conta os pés de
um verso ou acompanha uma música, as canções de dança, as marchas militares, etc.);
neste ponto, aliás, poética e música se tocam.

Mas, se prescindimos das onomatopéias e dos ritmos, a palavra pode atuar apenas
como um “símbolo de segundo grau”, por assim dizer. Diretamente, é apenas signo da
realidade significada, não a representa — torna presente — de uma maneira imaginária
que atue sobre os afetos; indiretamente, porém, conta com a imaginação do ouvinte ou
do leitor para evocar nela as imagens simbólicas através das quais orquestrará os
sentimentos do destinatário.

Se quisermos ser de uma precisão meticulosa, o texto seria até um símbolo de “terceiro
grau”: é um conjunto de signos gráficos (as letras) de signos verbais (as palavras) que
evocam os símbolos imaginativos… Mas deixemos de lado esse prurido, pois na leitura a
passagem de um nível para o outro se dá tão rapidamente que podemos, para todos os
efeitos práticos, igualar a palavra lida e a ouvida.

Não vamos passar em revista aqui todas as figuras de linguagem — metonímia,


sinédoque, metalepse e todos esses outros nomes abstrusos; qualquer boa gramática,
manual de estilo ou tratado de retórica basta para isso, embora recaia muitas vezes em
distinções tão sutis que nem o Fermat, etc. Interessa-nos apenas a metáfora, que é, na
definição do meu velho professor de português, “uma comparação sem ‘como’”. Ou seja,
estamos de volta à analogia, essa semelhança estrutural que está na base de todas as
comparações e que vimos ser o elemento definitório do símbolo. A metáfora é, podemos
dizer, o símbolo verbal por excelência, e por isso mesmo a maneira mais normal de
exprimir os símbolos imagéticos. Nas outras figuras de linguagem, o nexo entre a figura
e o conceito não é analógico, mas tipológico (um exemplo ou caso que serve como
representante de todos os outros; no entanto, entre o exemplar e a categoria há um
vínculo que, em sentido amplo, pode ser considerado analógico, porque o concreto é
usado para representar o abstrato), de contigüidade física ou conceitual, de causalidade,
etc.

Quanto à alegoria, na mesma linha, é uma metáfora narrativa, um “símbolo contado”,


pois exprime um conjunto conceitual conexo entre si e que necessita de uma narrativa
inteira, conto ou romance, para poder ser expresso. Só que, com isso, chegamos à
distinção que abria estas páginas: se a linguagem é signo e sempre atua sobre símbolos,
qual é afinal a diferença entre a “história verdadeira ou imaginária” e a alegoria?

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Penso que é essencialmente a mesma que dizíamos haver entre a imagem mental e o
símbolo. A narrativa simples não pretende apontar para além de si mesma: deseja ser o
retrato de uma realidade, externa ou interna ao seu autor. Esgota-se em si mesma. Pode
usar símbolos a seu serviço, mas não é um símbolo. Ao passo que a alegoria, sempre
sendo também uma narrativa, é em si mesma um símbolo.

Linguagem simbólica

Se considerarmos a simbologia de uma civilização e até da humanidade no seu conjunto,


veremos que forma uma autêntica “linguagem”, correspondente apenas em parte à
linguagem propriamente dita, e que — agora sim — é verdadeiramente simbólica. Essa
linguagem consiste sobretudo em imagens; encerra um núcleo conceitual, muitas vezes
não explicitado, mas reformulado alegoricamente; e é formadora da afetividade
individual e coletiva e, ao mesmo tempo, formada por ela.

A linguagem simbólica apresenta diversas camadas. Na base, podemos dizer, há um


estrato natural, mais ou menos comum a todos, porque baseado numa experiência e
numa afetividade comuns (a mãe, o pai, o aleitamento, aprender a andar, os medos
básicos, as primeiras manifestações da sexualidade etc. etc.), e que forma em parte o
que Jung chama os “arquétipos” do “inconsciente coletivo”. A seguir, vem a camada
histórico-cultural — isso que deram em chamar “o imaginário” –, que naturalmente tem
uma infinidade de subcamadas: algumas tão antigas e tão enraizadas que passaram a
integrar o tal do inconsciente coletivo, outras de média antiguidade, outras vindas de
modas recentes. Naturalmente, contribuem para a formação desta camada os mitos
recebidos por tradição e os acréscimos feitos por artistas individuais, grandes e
pequenos. E por fim boa parte dessa simbologia encontra a sua expressão também na
língua falada e escrita, que a recebe em depósito e por sua vez ajuda a formá-la,
entendê-la, transmiti-la e transformá-la.

Agora chega o momento de recorrermos a um pouco de etimologia. “Alegoria” não nos


ajuda muito: o grego allos + agoreuein (“outro + falar em público”) indica apenas a
distinção entre o sentido literal das palavras proferidas e o sentido real que se tem em
mente para elas, ou seja, equivale a todo o tipo de linguagem figurada. Mais
esclarecedora, porém, é a etimologia de “símbolo”. O grego sýmbolon deriva do costume,
bastante difundido na antiguidade, de partir em dois um objeto — um anel, um sinete ou
um bastão, por exemplo — de tal forma que as duas metades servissem de sinal de
reconhecimento mútuo para hospedeiros, mensageiros, as partes de um contrato ou os
representantes delas. Mostrar a parte complementar, fazer a união das metades —
indicada pelo verbo symballo –, dava direito à hospitalidade, a fazer cobranças, a receber
uma mercadoria que tivesse sido deixada em depósito, o que fosse.

Também o símbolo literário exige a conjunção de duas “metades”: uma é a que o autor
apresenta, mas ela por si mesma não basta, pois precisa “encaixar” com aquela que o
leitor já tem. Por isso, a qualidade e a beleza de uma alegoria dependem, mais do que da

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profundidade da tese conceitual “narrada”, da capacidade que o autor tenha de
sintonizar com a simbologia universal, ou pelo menos civilizacional, presente nos seus
leitores.

É claro que o “encaixe” simbólico por natureza nunca é tão preciso como o da linguagem
conceitual, pois cada pessoa tem um conjunto de imagens, uma experiência e um perfil
afetivo únicos e, como vimos, os símbolos — na sua qualidade de imagens –agem sobre
a afetividade da pessoa. As imagens tiradas de um contexto agropastoril como é o da
antiguidade clássica e judaica — o pastor, o oleiro, a semente, o asno, o sangue etc. —
não podem dizer-nos a mesma coisa que aos contemporâneos, pois quase nunca se
apoiam em experiências vividas pessoalmente. Em conseqüência, ao tentarmos
entender ou explicar o seu uso simbólico, temos necessariamente de lançar mão da
imaginação e da empatia para nos pormos no lugar do destinatário original, com a
consciência de que esse é sempre um esforço que só pode ser parcialmente bem-
sucedido.

Isso gera um curioso paradoxo, que vale para a literatura simbólica ainda mais do que
para a histórica: as narrativas alegóricas são em geral capazes de dizer muito mais do
que o autor pretendia. Como os símbolos são “assimétricos”, por assim dizer, pode
ocorrer que o autor tivesse em mente apenas um determinado conceito ou tese que
pretendia vestir de imagens; no leitor, porém, essas imagens despertam todo um
conjunto de afetos e de interpretações que só em parte coincide com o do autor, e
quanto ao resto é legítima ou inevitável elaboração pessoal. Em torno de um núcleo
objetivo, há um vasto espaço para a subjetividade, talvez até mais do que na obras
narrativas.

Acrescente-se a isso que os símbolos não se limitam a representar conceitos, mas


podem representar outros símbolos; há alegorias de alegorias. Os “vínculos formais” de
tipo analógico que estão por trás do simbolismo, como vimos, permitem navegar ao bel-
prazer em todas as direções, tanto “horizontal” como “verticalmente”. “No limite”, como
está em moda dizer, tudo se assemelha de alguma forma a tudo o mais.

E a interpretação?

As formas substanciais — para usar ainda a terminologia clássica –, as estruturas lógicas


das coisas, tornam-se presentes na nossa mente por meio dos conceitos; tenho um
conceito de “mesa” quando compreendo o projeto que o artesão tinha em mente ao
fazer aquele móvel, ou de “diamante” quando entendo a estrutura lógica que organiza
aquela pedra e lhe confere as suas propriedades de brilho, dureza, etc. Por isso, estão
sujeitos aos princípios da identidade (“mesas são mesas”) e da não-contradição (“mesas
não são diamantes”). A analogia, em contrapartida, não se deixa enfiar em nenhum tipo
de espartilho lógico: em Camões, “madeiro” é usado para simbolizar “navio”, que
representa o “domínio sobre o mar”, e assim o “império” que é o “triunfo da razão sobre
o caos dos elementos”, etc. O gênero alegórico é necessária e intrinsecamente subjetivo
e “incartografável”.

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Isso traz como conseqüência que não faz sentido buscar o significado oficial e único das
grandes obras analógicas — a não ser que haja uma chave de interpretação
deliberadamente prevista pelo autor –, mas séries ou “leques” de possíveis
interpretações conceituais, que são também elas análogas entre si.

Se o símbolo não admite um significado único, tem um contexto cultural que o torna
significativo. Para nós, a flor de lótus não significa nada, pois normalmente nem temos
imagem dela, ao passo que para indianos, chineses e japoneses significa pureza sexual e
desprendimento; em contrapartida, os mitos e divindades greco-romanos por assim
dizer são grego para eles, enquanto nós temos ao menos certa familiaridade com eles,
certa noção do que poderiam significar.

É interessante observar como alguns desenhos animados recentes, e sobretudo os


mangás e animes, apresentam a simbologia tanto das civilizações orientais como da
ocidental, mas desarraigada do seu entorno histórico, privada do seu contexto e por isso
do seu sentido, nivelada e batida numa espécie de liquidificador cultural… Neste caso, é
fácil ver como esses símbolos se tornam rasos e vazios: basta pensar no “Thor” do filme
de Kenneth Brannagh ou no seu ancestral direto da Marvel Comics, reduzido a uma
espécie de Schwarzenegger (que, segundo se dizia, precisava de um dublê para as cenas
de diálogo)…

As obras alegóricas, portanto, e mais ainda as polissêmicas, abrirão tanto mais o seu
significado quanto maior seja a cultura dos seus leitores, na medida em que esta lhes
permite estabelecer mais relações cruzadas, “navegar” com mais facilidade e soltura pelo
“oceano hipertextual” das relações analógicas. São obras que permanecem com o leitor
ao longo da vida, e que a cada releitura permitem descobrir novas profundidades, além
de deixar a impressão prazerosamente instigante de que há muito mais que ainda não
compreendemos. Muito longe de uma “presumível dominação por parte do autor”,
estamos no campo da livre navegação e “aplicabilidade à vida pessoal”, talvez mais ainda
do que ocorre nas obras históricas, que se vêem obrigadas a obedecer à plausibilidade
do real sensível a que estamos acostumados.

Mas, reconheçamos, pode também acontecer o exato contrário: se o autor trabalhar


uma experiência imaginativa e simbólica muito peculiar, passará a ser um hermético
incompreensível e isolado, dirá muito menos do que pretendia dizer. É o que aconteceu,
por exemplo, com o nosso Jorge de Lima: a sua Invenção de Orfeu é intrigante, mas não
consegue passar disso porque as metáforas que usa e a alegoria geral não “conversam”
nem com a experiência humana comum, nem com o simbolismo religioso cristão, nem
com a tradição literária brasileira. Lembra um pouco essas estátuas de bronze sem placa
que há em algumas praças: já ninguém sabe de quem são, nada nos recordam, mas ali
permanecem, mudas, negras e tristonhas.

O hermetismo foi muito usado historicamente para limitar o acesso dos ouvintes ou
leitores ao verdadeiro significado de uma narrativa. É curioso, por exemplo, que até
meados do século passado, tenha sido usado em muitas tribos africanas para ensinar a
técnica de forjar o ferro, codificada em uma canção, ou na alquimia medieval para
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descrever as “obras alquímicas”, as reações químicas obtidas, que se consideravam
análogas às do caminho espiritual do seu autor. Diga-se de passagem que neste caso, e
só neste caso, a alegoria é realmente passível de um puro “rigor interpretativo”, pois
exige a posse de uma chave de compreensão que permite decifrar as relações,
geralmente bastante elementares, que subjazem ao texto. É curioso observar, ainda,
como nas ciências humanas da atualidade, tal como em muitas seitas esotéricas, esse
tipo de linguagem hermética, reservada aos “iniciados”, é usada unicamente para
encobrir a pobreza do pensamento subjacente.

Neste sentido, ocorre-me um episódio contado pelo psiquiatra Anthony Daniels na sua
recente visita ao Brasil. Ele e a esposa haviam ido a um congresso de psiquiatras em
Paris. Chegou a vez da conferência do grande professor lacaniano; camiseta, jeans,
dreadlocks (embora nada tivesse de “afro-francês”), tudo conforme a mais rigorosa
etiqueta acadêmica da pseudocontracultura moderna. Não sei se fumaria um cigarro
amassado, como o “mestre”, ou se teria cedido ao politicamente correto neste ponto.
Seja como for, começou a lecture: uma página, duas, três… Lá pela décima, porém, ele
pára, coça a cabeça, remexe os papéis e por fim diz: “Preciso pedir-lhes desculpas…
Acontece que eu comecei a ler o meu trabalho de trás para frente…” E Daniels
comentava: “E o mais engraçado é que só minha esposa e eu rimos”.

Em contrapartida, os mestres da alegoria propriamente literária — um Dante, um


Thomas Mann, um Chesterton — são capazes de fazer vibrar como um diapasão, através
das cordas simbólicas que tocam, o coração dos seus leitores. Não necessitam de claves
interpretativas junguianas, freudianas, esotéricas, alquímicas ou os cambau! É
perfeitamente possível que os seus leitores, ao fecharem o livro, não saibam exprimir
com precisão conceitual a tese que absorveram, embora “sintam” que aquilo ali é belo, e
portanto está certo, de alguma forma é verdade. As grandes alegorias intrigam,
prendem, absorvem — e por isso atingem o público de uma maneira que a simples
narrativa histórica não é capaz de fazer.

“Camadas de sentido”

Mas o fato de ser impossível estabelecer regras de interpretação para a metáfora e a


alegoria — como é atestado pelas inúmeras distinções e classificações mais ou menos
fracassadas dessas figuras –, não significa que as relações analógicas que exprimem não
admitam ou conduzam a interpretações que não são reais. Apenas é preciso ter em
conta que se referem, não àquilo que as coisas são em si mesmas, mas às suas
manifestações externas, fenomênicas, ao relacionamento que têm com os nossos
sentidos. E essas manifestações, por sua vez estão ancoradas na essência das coisas,
naquilo que elas são: na sua realidade, portanto.

Os primeiros que parecem ter-se dado conta disto parecem ter sido os autores cristãos,
preocupados em entender os textos do Antigo Testamento e a sua relação com o Novo.
Clemente de Alexandria é o primeiro a distinguir quatro “níveis de leitura” dos textos, um
literal e três simbólicos; o seu discípulo Orígenes os reduz a três, correlacionados com os
três níveis que distingue no ser humano, o corpo (sentido literal), a alma (moral) e o
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espírito (espiritual). Embora o segundo esquema hoje nos pareça forçado, encerra a
intuição profundamente inovadora de que a interpretação da metáfora e da alegoria
deve ser buscada no campo fenomenológico — na relação que as coisas têm com o ser
humano –, e não apenas no conceitual.

São Jerônimo, Santo Agostinho e outros propõem sistemas diferentes, mas o que
acabou por se tornar clássico é o que encontramos desenvolvido pela primeira vez nas
Collationes (“Conversas”) de João Cassiano (*ca. 360-†430–5). Distingue ele entre o
sentido histórico ou literal (o nosso “conceitual”, “realista”), o tropológico ou moral
(indicativo do que se deve fazer: a história seria exemplar, tipológica, não apenas das
virtudes a imitar, mas também dos erros humanos a evitar), o alegórico ou doutrinal (o
que se deve crer, a Revelação divina, relacionada com o sentido do homem e do mundo),
e o anagógico ou escatológico (a dimensão da temporalidade, da história, relacionada
com o fim do homem e do mundo). Esta teoria difundiu-se no Ocidente formulada nos
versinhos mnemônicos que encontramos citados pela primeira vez em 330, nos escritos
de um certo Agostinho da Dácia: “Littera gesta docet, quid credas allegoria, / Moralia quid
agas, quo tendas anagogia”, “A letra ensina os acontecimentos, o que deves crer a
alegoria, / a moral o que deves fazer, para onde deves tender a anagogia”.

Os malabarismos feitos por alguns Padres da Igreja por encontrar todos esses sentidos
figurados em cada detalhe da Sagrada Escritura hoje nos fazem sorrir com uma
superioridade indulgente — embora pouco fundada. Porque, mesmo que aqui ou ali
haja uma interpretação “puxada pelos cabelos”, não há dúvida de que esse imenso
trabalho de pesar, revirar, tentar compreender, interpretar e reinterpretar cada frase,
cada palavra e até cada vírgula da Bíblia, “peneirado” ao longo de séculos pela crítica
anticristã, mas sobretudo pela crítica cristã, foi esse trabalho que permitiu o
desenvolvimento da exegese, a descoberta das correlações entre o Antigo e o Novo
Testamento, e assim uma compreensão cada vez mais plena da Escritura. Para
comprovar a que vertiginosas profundezas é possível chegar, basta ler os três volumes
do Jesus de Nazaré de Joseph Ratzinger.

Mais diretamente relacionado com o nosso tema está o fato de que isso permitiu
descobrir ou prever que um mesmo texto admite não apenas um, mas vários sentidos
alegóricos: a polissemia de que vimos falando. Não é por acaso que as obras
polissêmicas se encontram, ao que me parece exclusivamente, dentro do âmbito cultural
do cristianismo, o que não significa que sejam necessariamente cristãs. Autores
agnósticos como Thomas Mann, ou mais ou menos gnósticos como Michael Ende e
Guimarães Rosa, precisam recorrer necessariamente aos símbolos sedimentados ao
longo dos milênios de judaísmo e cristianismo para conversarem com os seus leitores.

Penso que o que faz a grandeza das grandes obras (se me perdoam a redundância) é em
ampla medida essa presença simultânea de diversos níveis ou planos de leitura, diversos
deles alegóricos, outros histórico-aplicáveis. Isso faz com que sejam ricas como a própria

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vida humana e assim nos permitam reconhecer-nos nelas, viver através delas, por assim
dizer, vidas vicárias, que paradoxalmente ampliam a nossa própria experiência (“A minha
vida é a narrativa que faço a Deus da minha vida”, dizia já não me lembro mais quem).

Isso é assim porque tendemos a descrever-nos alegoricamente, sobretudo ao falar da


nossa emotividade. Como vimos antes, as imagens internas são capazes de despertar os
nossos afetos e assim impulsionar-nos a agir; em sentido inverso, tendemos a expressar
o que sentimos em forma imagética, simbólica, com base na analogia: “Tenho um vulcão
no meu peito” mostra melhor o que se passa no interior de um recém-apaixonado do
que um pálido e conceitual “Experimento por você uma atração de tipo passional que
causa desordem e polarização em toda a minha emotividade” (acredite o leitor ou não,
conheci um sujeito que pensava e falava dessa forma!; e depois reclamava que não
conseguia arrumar namorada…); “Sou um ovo gorado” poderia descrever perfeitamente
a frustração de um depressivo, etc.

Essa é também a razão pela qual a linguagem comum e, mais fortemente ainda, a
literária estão completamente embebidas de metáforas, muitas delas “fossilizadas” —
isto é, já não percebemos que são metáforas, de tão acostumados que estamos a elas
(“deixar de lado”, “pesar cada frase”, “despertar os afetos” — para ficar só nos últimos
parágrafos). Assim como o pensamento conceitual se traduz quase que
automaticamente em imagens, assim também a comunicação desse pensamento se
veste sem muita reflexão de metáforas relacionadas com os sentidos.

Aí está também a resposta para outra pergunta que fazíamos: há, de fato, uma “música
dos símbolos” pela qual os afetos do autor podem despertar diretamente os do leitor,
desde que ambos contem com um fundo comum de símbolos, uma cultura comum.
Naturalmente, a razão — também ela comum ao autor e ao leitor — está por trás das
imagens simbólicas; mas não há necessidade de explicitar as idéias de um e de outro, e
parece que de fato muitos grandes autores, alegóricos ou não, não formalizam o seu
pensamento antes de pô-lo por escrito; criam as imagens narrativas em função da sua
experiência sensível e das emoções que experimentam, e suscitam por semelhança
direta sentimentos semelhantes — análogos — no leitor: daí a “música”. Nas obras
alegóricas, mas sobretudo nas polissêmicas, “o coração pode falar diretamente ao
coração”, sem necessidade de uma explicitação racional.

Mas talvez haja uma razão ainda mais profunda para o paralelismo entre polissemia e
vida. Vimos antes que, etimologicamente, a palavra “símbolo” designa um objeto partido
em dois, com a finalidade de que a reunião das partes servisse para o reconhecimento
mútuo das pessoas. Platão, no Banquete (191d) faz desse significado da palavra uma
interpretação do ser humano todo. Nessa obra, o personagem Aristófanes sugere, entre
sério e irônico, que no início os seres humanos eram entidades completas, redondas
como uma maçã. Depois que tentaram escalar os céus, os deuses resolveram castigá-los
cortando-os em duas metades complementares, masculina e feminina, e desde então
essas metades se buscam entre si para recomporem o todo e curar a natureza humana.

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De fato, esse mito revela a sensação de incompletude, a angústia central da vida
humana, que uiva pelos corredores de todas as épocas. Em palavras do nosso Gustavo
Corção, na Descoberta do Outro:

“Eu diria que temos três sensos, atrofiados mas persistentes, e voltados todos para o
absoluto: primeiro o ‘senso da objetividade’; segundo, o senso da eternidade; terceiro, o senso
da altruidade. […] Uma dolorosa desproporção parece existir entre a nossa natureza e nossos
maiores anseios. O ser dança diante da inteligência; a idade pesa; o próximo decepciona e
trai. Nossos três sensos tateiam à procura de um objeto. Onde está ele, esse objeto cuja
presença velada nos agita? Por que nos escondeu Ele a sua face?”

Tocamos aqui um paradoxo fundamental do ser humano: o de que somos e não somos
ao mesmo tempo. Num sentido, é claro, somos reais, demasiado reais: damos topadas,
batemos a cabeça em portas, fazemos guerras e maltratamos os que nos amam.
Adaptando um pouco Aristóteles, se não fôssemos reais e pudéssemos conhecer a
realidade, se tudo fosse apenas fruto da nossa mente (como quer Kant), teríamos uma
mentezinha bem masoquista.

Em outro sentido, porém, no das nossas carências e limitações, não somos. Neste
aspecto, o da carência, efetivamente somos apenas símbolos — imagens especulares
reduzidas, por assim dizer — dAquele que é plenamente, e ansiamos pelo original. Assim
ganham todo o seu significado as tão citadas e tão sentidas palavras de Agostinho no
começo das Confissões: “Fizeste-nos, Senhor, para Ti e o nosso coração está inquieto
enquanto não repousar em Ti”.

Símbolos e religiões analógicas

Vimos anteriormente que a principal função da analogia e dos símbolos em geral


costuma ser didática, e mais exatamente moralizante, sapiencial ou mistagógica. De fato,
a principal fonte da simbologia empregada em uma cultura e na sua literatura encontra-
se na religião, possivelmente por causa dessa incompletude essencial do ser humano
que acabamos de apontar. Não é possível e não é o caso aqui de examinarmos a fundo o
tema, mas será necessário fazer umas poucas observações.

Antes de mais nada, podemos distinguir para os nossos fins entre as religiões baseadas
no “princípio da analogia” e as baseadas no “princípio da palavra”. Ao primeiro grupo,
pertencem aquelas que poderíamos chamar panteístas no sentido mais amplo do termo,
pois identificam a substância mesma da realidade, a sua arché, com a própria substância
divina. A divindade, por um processo necessário de emanação, daria origem a diversos
níveis “concêntricos”, análogos entre si, de seres divinos ou espirituais, cada vez menos
“reais” quanto mais longe se encontrem do centro; o nível mais baixo seria o deste
mundo, o dos seres materiais, que já confina com o nada. O número desses níveis
concêntricos, e portanto de entidades “divinas”, depende do autor ou do sistema que
estudemos: desde os três básicos de Plotino até as centenas do hinduísmo védico.

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Formam este grupo, sempre numa rápida passada de olhos, o hinduísmo e a sua versão
“reformada”, o budismo; o taoísmo tardio; os diversos politeísmos, grego, celta, latino,
germânico, e tantos outros; a cabala e os gnosticismos apocalípticos hebraicos; os
diversos gnosticismos cristãos, de Marcião no século II em diante; o zoroastrismo persa e
seus derivados, como o gnosticismo maniqueu a que Santo Agostinho aderiu
brevemente no século IV; o catarismo dos séculos XII-XIII; a alquimia, como podemos
comprovar ainda nos séculos XVII-XVIII, pelos escritos de Isaac Newton; os diversos
esoterismos dos séculos XVI-XIX, como os rosa-cruzes, maçons e tantos outros; o
espiritualismo anglossaxônico e o espiritismo francês, nos séculos XIX-XX; as diversas
correntes e grupos New Age; e igualmente o perenialismo e o tradicionalismo à René
Guénon.

Em todo esse opalescente panorama, há ao menos um princípio comum, que é o da


analogia. Examinemo-lo tal como aparece citado na Tabula smaragdina (“Tábua de
esmeralda”), um antigo texto hermético, provavelmente anterior ao ano 700, que
conhecemos em árabe, grego e diversas traduções latinas. Cito-o na versão de Alberto
Magno: “Quod est inferius est sicut quod est superius, et quod est superius est sicut id quod
est inferius, ad penetranda miracula rei unius”. Traduzindo: “O que é inferior é tal como
aquilo que é superior, e aquilo que é superior é tal como aquilo que é inferior, quando se
trata de compreender as maravilhas da coisa una” [isto é, do Uno, do conjunto Deus +
mundo].

A analogia é a força e a fraqueza dessas visões de mundo. Segundo esse princípio, cada
nível inferior é um microcosmo que reflete analogicamente (por semelhança = “é tal
como…”) aqueles que lhe são superiores, o macrocosmo. O microcosmo formado dentro
da alma humana reflete o macrocosmo do universo material e do universo espiritual (o
Uno e os deuses); o universo material por sua vez é um microcosmo que reflete o
macrocosmo espiritual, e assim por diante. Como todos os níveis e todos os seres estão
ligados entre si de maneira analógica, todos — exceto o ser original, divino — são apenas
símbolos de outros símbolos, reflexões de outras reflexões um pouco “mais reais”. Toda
a realidade dissolve-se em irrealidade — o mundo passa a ser apenas maya, “a ilusão” –,
e caímos naquilo que Guimarães Rosa descreve como “essa série de símbolos que é esta
nossa outra vida de aquém-túmulo” (“Nós, os temulentos”, prefácio de Tutaméia).

Ou seja, afora o ser divino, em última análise não há seres reais. A realidade divina é a
única realidade, e todas as coisas — deuses, homens e seres materiais são como que
ondas passageiras, menos ainda, reflexos dançantes na superfície do mar da divindade.
Como a analogia permite vincular tudo com tudo, tudo acaba simbolizando tudo, ou seja,
no fim das contas não significa nada. Se se leva adiante com coerência essa linha de
pensamento, até a realidade divina acabará por identificar-se com o nada, como
acontece no budismo Mahayana, para quem o fundo original do ser é sunyata, “o vazio”.

Mircea Éliade descreve assim esse modo de ver o mundo:

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“Isso a que poderíamos chamar de pensamento simbólico facilita ao homem a livre
circulação através de todos os planos do real. Mas livre circulação diz muito pouco: o símbolo
[…] identifica, assimila, unifica planos heterogêneos e realidades aparentemente irredutíveis.
Mais ainda: a experiência mágico-religiosa permite ao homem mesmo transformar-se em
símbolo. Todos os sistemas e experiências antropocósmicos são possíveis na medida em que
o próprio homem se converte em símbolo” (Mircea Éliade, Traité d’histoire des réligions, vol.
II).

Uma conseqüência disso tudo é que nessas religiões ocorre secretamente um


assassinato, o do princípio da não-contradição (porque Deus teria de ser ao mesmo
tempo bom em si mesmo e mau em Mao e em mim; lógico nas regularidades do mundo
e ilógico na arbitrariedade a que está submetida a vida humana; real em si mesmo e
irreal no mundo, etc.). Ora, o princípio da não-contradição é a base de toda a lógica e, ao
mesmo tempo, da inteligibilidade do mundos; em consequência, a razão é inaplicável
nesses sistemas religiosos, e muitas vezes (como no budismo Zen) chega a ser
considerada prejudicial, pois acorrentaria à ilusão. Torna-se então necessário recorrer a
uma “sabedoria superior”, geralmente esotérica — reservada aos iniciados, aos espíritos
superiores, aos iluminados — que venha a fazer a coincidentia oppositorum, a
“harmonização dos opostos”.

Os mitos são, no âmbito dessas religiões, as grandes narrativas alegóricas que


respondem às perguntas centrais do homem sobre a sua origem, o seu fim, quem é, o
que deve fazer para salvar-se. Serão, pois, narrativas cosmogônicas (de origem do
mundo, da humanidade, do povo, de determinado animal ou planta), escatológicas (de
fim), e religioso-rituais — os ritos são encenações dos mitos, que os atualizam e aplicam a
uma determinada situação ou pessoa concreta –, e a sua estonteante variedade não
deveria esconder-nos essa sua unidade fundamental. Na medida em que mitos e ritos
integram o homem no mundo, na sociedade e em si mesmo, são considerados como
capazes de realizar a harmonização dos opostos tanto no âmbito interior de cada pessoa
como no cósmico.

Símbolos e religiões da palavra

Ao segundo grupo, o das religiões baseadas no “princípio da palavra”, pertencem os


monoteísmos, que implicam uma total distinção entre o ser divino e o do universo. Se
para as religiões analógicas vale o provérbio hindu “Enquanto Brahma sonha, os deuses
são” — isto é, a relação entre Deus e o universo é semelhante à que existe entre um
homem e os personagens que sonha –, para as religiões da palavra essa relação é
semelhante à que existe entre um artesão ou um artista e a sua obra. Ou seja, Deus não
emana o mundo espiritual e material por um processo necessário, mas o cria por um
processo racional e livre.

A noção de criação traz consigo uma dupla realidade: a divina, que é fontal e absoluta, e
a criada, que é reflexa e relativa. Ambas são, porém, reais — com o que está conjurado o
perigo de dissolver o mundo em uma sinfonia de símbolos sem entidade. Há sem dúvida

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um aspecto analógico na realidade criada, mas é uma analogia mais complexa, menos
direta do que no caso das religiões analógicas.

Nestas últimas, um espírito ou uma divindade é mais perfeito na medida em que está
mais próximo de Deus, e a situação do homem se define por estar “entre” o não-ser da
matéria e o ser da divindade; o homem não tem a rigor uma natureza, um ser próprio,
mas apenas uma condição reflexa e de intermediariedade, puramente analógica. Nas
religiões da palavra, pelo contrário, cada ser é tanto mais perfeito quanto melhor
exprimir a sua natureza peculiar e própria, que por sua vez reflete indiretamente a Deus
na medida em que corresponde por assim dizer a um pensamento, a um projeto seu: a
analogia, na falta de uma palavra melhor, é “indireta”, ao passo que nos panteísmos é
“direta”.

Em conseqüência, há nos monoteísmos uma perfeição natural do ser humano, uma vida
correta (como descrita, por exemplo, na Ética a Nicômaco de Aristóteles), que consiste na
realização das potencialidades racionais da natureza humana. (Para o cristão, há uma
“segunda” perfeição, a da santidade, que une o homem a Deus no seu Filho, o Verbo
encarnado, pelo conhecimento e pelo amor; esta segunda perfeição apóia-se sobre a
primeira, sem a anular. Mas este é um tema que já está fora do que nos cabe examinar
aqui.)

Já teremos percebido que entre os grandes mitos religiosos analógicos — que eram,
segundo víamos, cosmogônicos, escatológicos ou religioso-rituais –, faltava o tema da
moral, uma vez que esta não trata do divino, não é redentora nem divinizadora, mas
antes uma questão de costume e tradição — é o que significam o grego ethos, que dará
“ética”, e o latim mores, que dará “moral” –. Ou seja, a moral pertence a outro plano bem
diferente do dos mitos, o plano da experiência socialmente acumulada ao longo dos
séculos, experiência essa que vai desenhando pouco a pouco o perfil da natureza
humana. Só nos três grandes monoteísmos há uma moral revelada, que se acrescenta às
três dimensões anteriores e aprofunda todo o tema da transgressão e da queda,
permitindo ver o pecado como uma agressão à natureza humana e, por isso, a Deus.

Por isso mesmo, a experiência moral determina as narrativas tipológicas, que pouco mais
ou menos nascerão dentro da linha histórica que reúne o judaísmo e o cristianismo, na
medida em que este dá um valor central à natureza de cada ser. Estaremos lembrados
que as alegorias tipológicas são aquelas que isolam e abstraem as características
observáveis de uma virtude e de um vício presentes em diversos indivíduos e procuram
construir uma narrativa de caráter psicológico, exteriorizando em comportamentos
observáveis o desenvolvimento interior da pessoa. Por isso, não pertencem ao grupo
dos grandes mitos, mas das “alegorias menores”, por assim dizer.

Há vestígios desse tipo de religião entre alguns dos povos tecnologicamente mais
primitivos que conhecemos; é possível que a tentativa de Akhenaton, no Egito, da qual
sabemos muito pouco, fosse um monoteísmo; são-no indubitavelmente o taoísmo
original e o confucianismo; conduz ao monoteísmo a linha de evolução racionalmente

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embasada que vai de Sócrates a Platão e a Aristóteles, e que se prolonga depois, embora
com menos clareza, no helenismo; e, por fim, há os “três grandes”: o judaísmo, o
islamismo e o cristianismo.

Depois de dois séculos de discussões e teorias mais ou menos conflitantes que tentavam
fazer o monoteísmo nascer do panteísmo, a cosmovisão baseada num Deus único
parece sair vencedora como a forma religiosa original ou primitiva da humanidade. Caso
isso seja verdade, os panteísmos seriam formas derivadas do monoteísmo, que se
originariam sempre que se perdesse de vista o princípio racional da não-contradição;
isso explicaria, por exemplo, o seu persistente ressurgimento, sob a forma das seitas
gnósticas e esotéricas, a partir dos diversos monoteísmos (como ocorre com o sufismo
em relação ao Islã, a cabala em relação ao judaísmo, e os diversos esoterismos já
mencionados em relação ao cristianismo). E, em sentido contrário, muitos panteísmos
podem retornar a uma forma monoteísta lá onde são submetidos a uma crítica racional,
como ocorreu na Grécia antiga, por exemplo, e igualmente por volta de 200 a.C. com o
hinduísmo Nyaya.

Os monoteísmos têm como esqueleto um corpo doutrinal, conceitual e narrativo,


formulado verbalmente nas respectivas tradições e posto por escrito nas suas escrituras
sagradas, a Bíblia e o Corão. Exigem, portanto, uma formulação e uma proteção das
verdades fundamentais sobre Deus em dogmas expressos verbalmente da maneira mais
literal possível (a existência e unicidade de Deus, a sua Revelação aos homens, etc.). Isso,
juntamente com o conceito que já mencionamos de criação, faz com que sua relação
com o simbolismo religioso seja extremamente complexa.

O judaísmo e o islamismo, bem como boa parte do protestantismo, rejeitam de forma


absoluta as imagens visuais e esculturais com a intenção de evitarem toda a
contaminação com o panteísmo circundante; mas não escapam às imagens verbais (as
parábolas e alegorias, que florescem como ilustração dos seus ensinamentos doutrinais
e sobretudo morais), nem às imagens que poderíamos chamar “teatrais” ou
“performáticas”, os ritos. No judaísmo antigo, o próprio Templo era uma analogia
arquitetural do mundo e os ritos, parábolas atualizadoras da história de Israel, isto é, da
relação de Israel com Deus. Seja como for, ao menos em algumas das suas vertentes,
essas três religiões tendem a rejeitar toda a interpretação da realidade como símbolo e
alegoria, isto é, a “lê-la” apenas no sentido literal — daí os debates insolúveis em que se
atolam os fundamentalismos.

Símbolos e religião do logos

Bastante diferente é a atitude do cristianismo católico (categoria em que podemos


incluir também, para o que nos interessa aqui, as Igrejas ortodoxas e o
anglocatolicismo). Mais até do que de “religião da palavra”, seria necessário falar aqui de
uma “religião do logos”, porque a palavra grega logos tem uma amplitude de significados
bem maior que o termo português ou até do que o latino verbum: significa não apenas
“palavra” e “verbo” (a palavra por excelência), mas “conceito” (a palavra na mente),
“razão”, “proporcionalidade”, “estruturação lógica” interna do real, “verdade”.
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De fato, o cristianismo católico recebeu por herança direta o conceito judaico da criação
do mundo pela Vontade divina — mais correto seria dizer do Amor divino –, mas aceitou
também, depois de uma rejeição inicial, a crítica grega do mythos pelo logos e a idéia da
criação pela Sabedoria divina, pelo Logos, encarnado em Cristo. Os Padres, talvez já a
partir de São Justino (103–165), optam principalmente por Platão e pelos neoplatônicos,
que são melhores interlocutores do que os representantes de outras correntes, e cuja
doutrina, além de ser a mais difundida no mundo grego, conduz com relativamente
poucas fricções até a porta de entrada ao cristianismo.

Platão, porém, não tinha chegado a desfazer-se integralmente do princípio da analogia, e


esse princípio volta assim a entrar no cristianismo — embora mantido habitualmente
com rédea bastante curta –, por muitos canais, entre os quais o principal parecem ser as
obras do Pseudo-Dionísio Areopagita, um teólogo cristão platônico que escreveu entre
fins do século V e começos do VI. Juntamente com esse princípio retorna ao pensamento
cristão a tendência a interpretar a realidade criada como simbólica, sem negar que tenha
sido criada. Isso fica muito bem ilustrado pelo Physiologus, um bestiário (“tratado de
zoologia”) redigido provavelmente em grego entre os séculos II a IV, que apresenta as
propriedades de cada animal antecedidas por uma citação bíblica e seguidas de uma
interpretação alegórica. Vejamos, a título de exemplo, apenas uma das propriedades do
leão, muito divertida:

“Capítulo I. Comecemos por falar do leão, rei das feras e dos animais; pois Jacó, ao abençoar
Judá, disse: ‘Judá é um filhote de leão, de raiz filho meu’, etc.

“Primeira propriedade do leão. Quando o leão anda pelos montes e sente o cheiro do
caçador, apaga as suas pegadas com a cauda, não seja que, seguindo-as, os caçadores
encontrem a sua cova e o apanhem. Interpretação. Assim Nosso Senhor Jesus Cristo, o leão
espiritual, saiu da tribo de Judá, raiz de Davi, enviado pelo Pai, e encobriu as suas pegadas
espirituais, isto é, a sua divindade […]. Outra interpretação. Da mesma forma [deves agir]
também tu, homem espiritual: quando deres esmola, ignore a tua mão esquerda o que faz a
direita”.

Percebe-se que há mais imaginação piedosa do que capacidade de observação real


neste texto, que no entanto influenciou todos os bestiários medievais. Outro aspecto, já
bem mais fatídico, desse modo alegórico de olhar para o mundo é a convicção de que a
sociedade deve organizar-se hierarquicamente para refletir a hierarquia que haveria nos
céus (entendida geralmente segundo o esquema traçado pelo Pseudo-Dionísio). Por trás
de concepções assim — e de outras muito mais acertadas, também, como a que preside
à Divina Comédia — está o pressuposto básico e muitas vezes inconsciente de que o
mundo é uma alegoria que se deve “ler” analogicamente; ou, para formular esta idéia de
maneira diferente, de que a realidade em si pouco importa, importa o sentido que ela
tem. Naturalmente, esse tipo de leitura presta-se à anarquia interpretativa, uma
conseqüência das quais serão as heresias surgidas entre os séculos II-XVI, e que serão
retomadas pelos diversos gnosticismos dos séculos posteriores.

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Será somente com a reintrodução no Ocidente do pensamento aristotélico — que
representa uma tentativa mais radical e mais profunda de crítica ao panteísmo do que o
platonismo –, que São Tomás poderá refundar, não a fé, mas a teologia, em novas bases
mais racionais, que permitirão ler o mundo de outra forma. Ao discutir, por exemplo, os
quatro sentidos da Escritura que já vimos antes, afirma que “o sentido parabólico está
contido dentro do literal, pois pelas palavras significam-se umas coisas propriamente e
outras figurativamente” (Suma teológica Iª q. 1 a. 10 ad 3).

Essas palavras secas escondem uma revolução não apenas no modo de ler as Escrituras,
mas também de ler o mundo. Restabelecem o sentido literal ou natural do mundo real, o
das essências ou naturezas das coisas, que serve de “âncora” necessária para quaisquer
interpretações alegóricas. Fundam, assim, o modo propriamente moderno de ver o
mundo: a realidade é primariamente racional, e apenas secundariamente analógica. A
analogia, a imaginação estará doravante a serviço da exposição da racionalidade, da qual
será um instrumento precioso e necessário. E justamente esse status de instrumento é o
que a “liberta” a alegoria, tirando-a do campo religioso e transferindo-a para o da arte
em geral e da literatura em particular.

Esse novo modo de leitura do real tem conseqüências radicais, isto é, que chegam às
raízes de todo o nosso modo de ver o mundo. Como vimos há pouco, na visão do
platonismo medieval, como praticamente não há ser em si, a perfeição de cada homem
consiste na sua proximidade com o ser divino, na santidade, que é puro dom divino; na
visão aristotélico-tomista, a perfeição de cada ser consiste primariamente na perfeição
com que exprime a sua natureza, isto é, nas virtudes que adquire, enquanto a santidade
propriamente dita apóia-se sobre as virtudes e opera também através delas.

Essa nova visão do mundo é também o que permite o progressivo desvinculamento da


política e da religião, até se chegar à atual e altamente desejável separação entre Igreja e
Estado; a explosão da filosofia medieval, que passa a ser independente da teologia e por
isso está livre para estudar o mundo; e o nascimento das ciências a partir do século XII,
primeiro de uma física hesitante que ainda tinha de livrar-se das cascas do ovo, isto é da
Física aristotélica (mas não da Lógica nem da Metafísica), e depois de todas as outras.
Mais tarde, grandes setores dessa tendência desvirtuar-se-ão no nominalismo empirista
e no racionalismo cartesiano, que vão reter novamente apenas partes do problema e
enrolar a filosofia e depois a ciência nas complicações cada vez mais esterilizantes de
uma parte da modernidade. Mas isso é outra história e terá de ficar para outra ocasião.

Simbologia religiosa e literatura moderna

Como pudemos ver pelos títulos mencionados na primeira parte deste ensaio, as
grandes obras, quase sempre polissêmicas, mexem e mexerão sempre com os mitos
básicos da humanidade, as narrativas cosmogônicas, soteriológicas, escatológicas e
tipológicas. Não têm a menor preocupação por serem “originais”, por se encaixarem
dentro de escolas ou movimentos, ou por obedecerem aos esquemas criados pelos
professores universitários de literatura.

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Na polis antiga, tendia-se a encarar o ser humano apenas como um indivíduo, um
reflexo do macrocosmo da coletividade e a ela subordinado; assim, também os mitos
antigos dizem respeito às coletividades e às suas “encarnações”, os seus chefes ou
príncipes. O cristianismo traz no seu centro o conceito de pessoa, e instaura na história
coletiva e individual a tendência para centrar tudo na pessoa plena, foco de dignidade,
de direitos e deveres, e repleta de interioridade; cada pessoa é, não apenas um
microcosmo, mas um macrocosmo inteiro por direito próprio). Da mesma forma, os
“mitos desmitificados” tenderão ao longo da história a centrar-se na pessoa e a
interiorizar-se nela, informando o campo do psicológico e do cotidiano. E aqui está a
razão da tendência a tornar os tipos alegóricos ou os heróis mitológicos cada vez mais
realistas e vivos e cada vez menos esquemáticos.

Em decorrência, a “cosmogonia” não será tanto a criação como a descoberta de um


mundo, tanto o do macrocosmo exterior como do “macrocosmo interior” da pessoa. A
“soteriologia”, em vez de descrever a redenção da humanidade, tenderá a descrever a
superação pelo indivíduo de uma crise determinada ou das limitações de toda uma vida.
A “escatologia” girará em torno do sentido da vida de cada um diante da pedra de toque
definitiva da morte. E a tipologia já nasceu no âmbito das virtudes e dos vícios, dos
direitos e deveres da pessoa individual.

Se a literatura moderna aprendeu muito bem essa lição, a contemporânea parece ter
voltado a esquecê-la em ampla medida. Com algumas honrosas exceções, como A
elegância do ouriço (que é uma narrativa histórica, mas com um cunho soteriológico), a
impressão que se tem é que ou os autores atuais ou caem numa espécie de
multirreferencialidade à T.S. Eliot (só que, no caso dele, era original…), que mostra que
leram todas as grandes obras anteriores a eles (ou então pesquisaram longamente as
citações da Wikipédia), mas não têm nada de importante para dizer; ou então numa
análise hiperrealista de tremores afetivos microscópicos; ou no abaratamento do mito
em fábula besta e superficial, que faz o leitor ter convulsões de vergonha alheia; ou
ainda em historietas submetidas à lei de mercado da “indústria cultural”, que chegam a
ser entretidas e legaizinhas, mas male male isso.

Por que essa ruptura aparentemente tão repentina? Para começarmos a responder a
essa pergunta, pode ajudar-nos um comentário escrito por Mircea Éliade em 1962, e que
reflete uma preocupação comum a muitos autores do século XX:

“Desde princípios do século [XX], as artes plásticas, bem como a literatura e a música,
passaram por transformações tão radicais que se pôde falar até de uma ‘destruição da
linguagem artística’. Começada na pintura, esta ‘destruição da linguagem’ estendeu-se à
poesia, ao romance e, mais recentemente, com Ionesco, ao teatro. Em certos casos, trata-se
de uma verdadeira destruição do Universo artístico estabelecido. Ao contemplar algumas
obras recentes, tem-se a impressão de que o artista quis fazer tabula rasa de toda a história
da pintura. Mais até que uma simples destruição, é uma regressão ao Caos, a uma espécie de
massa confusa primordial. No entanto, […] em muitos artistas modernos nota-se que essa

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‘destruição da linguagem plástica’ não é senão a primeira fase de um processo mais
complexo e que a recriação de um novo Universo deve seguir-se necessariamente” (Mircea
Éliade, Aspects du Mythe).

Cinquenta anos depois, parece-me que continuamos esperando em vão pela “recriação
do novo Universo” que Éliade considerava iminente. Chesterton talvez tenha feito um
diagnóstico mais correto desse fenômeno, ao atribuir a destruição da linguagem artística
a uma “morte da imaginação”. Tenho a impressão de que a aniquilação da linguagem
simbólica e artística tradicional e a subordinação da arte a fins práticos, financeiros ou
políticos, é o resultado de uma das tendências problemáticas que compõem a
modernidade desde a nascença: o racionalismo. Desde os “libertinos” renascentistas (o
termo, naquele momento, não tinha nenhuma conotação sexual, apenas “libertária”),
passando pelo racionalismo filosófico cartesiano e depois pelo iluminismo, a razão quis
apresentar-se como a única potência capaz de responder a todas as questões humanas.

Esse racionalismo unilateral apresenta paradoxalmente muitas das características


gnósticas: pretende a “salvação pela filosofia”, e nessa medida mostrou-se — como
todos os gnosticismos — um inimigo mortal do cristianismo, que procurou atacar de
todas as formas; reclui o conhecimento adquirido em guetos de especialistas e protege-o
com uma linguagem hermética; destrói a educação da emotividade que era feita pelos
ritos, e portanto a imaginação criadora de símbolos; e relega a vontade ao papel de puro
imperativo categórico irracional.

Provam-no as suas “flores”, os gnosticismos secularizados dos séculos XIX-XX e do nosso.


Por exemplo, o idealismo alemão com o seu Geist (“Espírito”) que evolui dialeticamente
em uma série de passos necessários (níveis concêntricos…) até encontrar a forma
suprema no… Estado prussiano! Ou a sua progênie materialista, o marxismo e os seus
descendentes, que dotam a matéria de atributos divinos (autocriação, autoestruturação,
totipotência, etc.). Vão na mesma linha o nacional-socialismo (que diviniza a raça) e o
liberal-pragmatismo (idem, a liberdade). Há também o positivismo de Comte (“religião da
humanidade”…), o darwinismo popular (não o de Darwin, mas o Huxley e Haeckel), o
freudismo e sua prole, e o cientificismo atual, à Dawkins, prostrado em adoração perante
o acaso criador e o seu profeta, o gene egoísta. Diante deste panorama, só se pode
constatar que não há nada mais irracional que o racionalismo.

Em suma: a sensação de “fim de feira” que tomou conta do mundo ocidental parece
anunciar o fracasso definitivo da razão racionalista e do seu cortejo de ideologias. Agora
sim parece anunciar-se a possibilidade de uma renovação, que certamente não virá de
um mero conservadorismo que se limite a reagir perante as radicalizações sucessivas do
velho progressismo racionalista, enquanto alimenta uma secreta afinidade com ele:
afinal, um e outro são filhos da revolução francesa e do iluminismo. Precisamos de uma
renovação real, que, como toda a verdadeira renovação, passa por um retorno às raízes:
à teologia, cuja renovação já está em curso; e à arte, que é desde sempre o meio pelo
qual a verdade pode falar ao homem, ao homem todo.

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“Está na hora de contrapormos a essa cosmovisão [a do racionalismo] uma outra, que
devolva ao mundo o seu mistério sagrado e ao homem a sua dignidade. Os artistas,
poetas e escritores terão uma parte importante nessa tarefa, pois o seu trabalho
consiste em emprestar à vida magia e mistério”, comentava Michael Ende — que já
encontramos de passagem entre os autores de polissemias –, acrescentando que “a
poesia sempre nasce de uma totalidade de cabeça, coração e sentidos” (cit. por Martin
Beyer, “Überlegungen zu Michael Ende”, in Titel-Magazin, 30.11.2009). Ende alude aqui à
visão de Friedrich Schiller nas suas Cartas sobre a educação estética, que — embora a
partir de uma noção um tanto idealizada da antiguidade grega — escreve:

“Outrora, por ocasião daquele belo despertar das forças do espírito, os sentidos e o espírito
ainda não tinham campos rigorosamente delimitados; ainda nenhuma discórdia os havia
levado a dividirem a herança, repletos de inimizade mútua, nem a estabelecer fronteiras entre
si. A poesia ainda não tinha implicado com o humor e a especulação não se havia desonrado
com sofismas. Em caso de necessidade, ambos podiam trocar de papéis, porque cada um dos
dois, a seu modo particular, honrava a verdade. Por mais alto que subisse a razão, sempre
puxava amorosamente a matéria atrás de si, e por mais finas e agudas que fossem as suas
distinções, nunca aleijava o seu tema […].

“Foi a própria cultura quem infligiu à humanidade moderna essa ferida [da divisão]. […] Para
desenvolver as diversas inclinações do ser humano, não havia outro meio senão lançá-las
umas contra as outras. Esse antagonismo das potências é o grande instrumento da cultura,
mas apenas o seu instrumento; enquanto ele perdurar, estamos apenas a caminho da
cultura, não chegamos até ela. Na medida em que, no homem, determinados poderes se
isolam e se arrogam uma jurisdição exclusiva, entram em conflito com a verdade das coisas, e
obrigam o senso comum, que normalmente se limitaria a pousar sobre as meras aparências
com uma espécie de parcimônia letárgica, a penetrar nas profundezas dos objetos. […]

“Mas pode o homem estar destinado a perder-se a si mesmo em função de alguma finalidade
útil? Poderá a natureza, em função dos seus objetivos, despojar-nos daqueles outros objetivos
que a razão nos prescreve? Não pode, pois, ser verdade que o desenvolvimento das potências
isoladas torne necessário o sacrifício da sua totalidade; ou, por mais que a lei da natureza
humana tenda a esse sacrifício, tem de ser empenho nosso restaurar essa totalidade da
nossa natureza, que a arte destruiu, por meio de uma arte mais elevada”.

Parece, pois, que temos de dar razão a Chesterton, quando diz que não há arte que não
seja alegórica. Toda a arte, ao menos a grande arte (não as artes decorativas, às quais a
arte moderna parece ter-se reduzido), é alegórica, mesmo quando é histórica no sentido
de Tolkien. Afinal, a razão sempre tem de fazer um “conspecto reduzido” do mundo para
poder operar com ele, e esse modelo da realidade é analógico a ela; quando porém
reveste esse modelo da carne da alegoria, esse recorte passa a falar ao homem inteiro,
razão e imaginação, afetos e vontade.

Publicado originalmente na revista Dicta&Contradicta, n. 8, 30.11.2011, IFE, São Paulo.

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