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Do Homem Do Amor Ao Amor Do Homem - PDF
Do Homem Do Amor Ao Amor Do Homem - PDF
ontológica do amor
Vinícius Bezerra1
Resumo:
Esboço para uma teoria histórico-ontológica do amor, cujas bases fundamentais encontram-se no
aporte científico-filosófico do materialismo histórico-dialético desenvolvido por Karl Marx. Para
tanto, parte-se da ontologia do ser social – a ontologia do trabalho – e do método dialético como
fundamentos para uma análise do amor manifesto na sociedade burguesa. Busca-se demonstrar que
o amor possui um estatuto ontológico que, entretanto, no moderno mundo das mercadorias, se
manifesta sob a forma de fetichismo amoroso. Em face desta proposição, é construído um arsenal
teórico que aponte as condições histórico-ontológicas para a efetivação do amor e sua tipologia.
Por fim, é aventado um ethos amoroso, transitório e precário, para o mundo das mercadorias.
FROM THE MAN OF LOVE TO THE LOVE OF MAN: sketch for a historical-ontological
theory of love
Abstract:
Sketch for a historical-ontological theory of love, whose fundamental basis are in the scientific and
philosophical contributions of historical and dialectical materialism developed by Karl Marx. Thus,
it is the ontology of social being – the ontology of work – and the dialectical method as basis for an
analysis of plain love in bourgeois society. Try to demonstrate that love has ontological rules that,
however, in the modern goods world, are manifested in the form of loving fetishism. In response to
this proposition, a theoretical arsenal is built and it points the historical-ontological conditions for
the performance of love and its typology. Finally, a transient and precarious ethos love is considered
for the goods world.
Keywords: Love. Historical and dialectical materialism. Goods world. Loving fetishism. Loose
love.
1
Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA),
campus Santa Inês. Estudante do Mestrado em História Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
1
Aqueles que falam de revolução e luta
de classes sem se referirem à vida
cotidiana, sem compreenderem o que
há de subversivo no amor e de positivo
na recusa das coações, esses têm na
boca um cadáver.
Raoul Vaneigem
2
1 PALAVRAS PRELIMINARES
3
entrave incorrigível no seu desenvolvimento em face de relações sociais de produção que tem na
produção de mais-valia seu cego objetivo. Convertem-se inelutavelmente em forças destrutivas e servem
de operativo do capital à prática de incisiva sangria da vida social, que vivenciamos recentemente
materializadas pelas guerras mundiais imperialistas, pelos regimes totalitários explícitos, pelo
desequilíbrio ambiental em curso e pelo risco real hoje existente de a humanidade entregar-se à
completa autofagia.
Em um cenário devastador como esse, onde muitos não titubearam em prontamente
render-se, poder-se-ia-me questionar do porquê de um trabalho acerca do amor. Não seria ele de
menor importância diante dos propósitos de combate à miséria e à opressão levadas a cabo nesta
estrutura social? Quero dedicar algumas palavras a esta questão.
As sublevações revolucionárias do início do século passado ansiavam, antes de
qualquer coisa (visto que eram as exigências da ordem do dia), por fazer desaparecer estas miséria e
opressão e por em rearranjo a economia, através da tomada do poder. Caracterizam-se, como
pontua Agnes Heller (1992) em releitura de Marcuse, como revoluções da fome. Ou seja, em certa
medida os problemas éticos ocupavam um lugar mais marginal, como questões que já estavam
incorporadas aos objetivos acima indicados. Os horrores que envolveram a experiência stalinista, e
sua direta relação com o plano ético-moral, impele-nos a repensar esse processo para o nosso
momento. A questão não pode ser posta novamente segundo a ordem de, primeiramente, criar as
bases elementares para a vida humana e, segundamente, chegar a uma verdadeira vida humana. O
nosso objetivo estratégico imediato é chegar tão-logo à efetividade da vida humana (Heller, 1992, p.
116-117).
A percepção da importância práxica da atividade amorosa não pode ser secundarizada.
Por ser de uma dimensão crucial à condução da vida, entendemos que “a dialética das relações
amorosas não merece uma dedicação menor que a exigida pela dialética das transformações
sociais”3 (Konder, 1983, p. 12).
Entre as tarefas dos intelectuais de esquerda está a de refundar a teoria revolucionária, o
que não significa ater-se ao sentido meramente político ou sociológico, mas recuperar o sentido
ontológico da práxis social e as implicações daí decorrentes, pois a revolução não é uma
necessidade qualquer, mas uma necessidade absoluta de nossa época (Tonet, 1999). Isto não
significa partir do nada. Ao contrário, é preciso recuperar a radicalidade teórico-prática do
pensamento de Marx (que muitos insistentemente tentam domesticar e falsificar) que, sob o prisma
ontológico, significa efetivar o gênero humano, através da total superação da propriedade privada e
do capital, e dar vazão à individualidade livre e universal tal como concebera Marx em seus escritos
(Duarte, 2004).
Penso, desse modo, que não somente é oportuno, mas necessário, recuperar o que há
de subversivo no amor, como defende Vaneigem (2002), e pô-lo no seu devido lugar de
importância nesta reconstrução revolucionária do pensamento social. Algo que o mundo do
trabalho não pode ignorar e que, despossuindo-se das recusas niilistas então dominantes, tome o
conjunto diádico – amor e comunismo ou amor e revolução – como elemento fundamental para
“atingir a coerência da crítica teórica e a organização prática dessa coerência” (Internacional
Situacionista, 2002, p. 43) no enfrentamento ao mundo do capital.
Deve parecer aos olhos de muitos que num trabalho sobre o amor tais questões soem
pesadas demais. Um fardo que pode acabar esmagando a riqueza sensível própria da atividade
amorosa. Devo lembrar que, de fato, há um enorme peso em jogo. O fardo social carregado pelo
homem neste tempo histórico (uma paráfrase não intencional de Mészáros), ao qual se esconde a
leveza do amor que lhe é possível, mas inda não realizada dadas as circunstâncias adversas, é síntese
contemporânea do dilema em questão. Esta contraditória realidade do pesado-leve, conforme
sugere Milan Kundera (1983), nos exige o cuidadoso trato visto ser ela “a mais ambígua de todas as
contradições” (p. 11).
De certo modo, o fato de não descuidarmos com a aparelhagem conceitual na análise
de nosso objeto talvez sugira uma dureza no modo de exposição das teses aqui defendidas.
Queremos contrabalancear essa eventual leitura, indicando que, no fundo, buscamos desvelar a
3
O breve ensaio de Leandro Konder sobre a vida amorosa de Rosa Luxemburgo traz a passagem supracitada
no tempo pretérito – não merecia... – no sentido de que esta foi a concepção vivida pela revolucionária na
prática. Subverto a passagem e a estendo à minha leitura de que esta relação – dialética das relações amorosas
e dialética das transformações sociais – se estabelece neste nível.
4
mais profunda riqueza amorosa – sua leveza – sem recair no subjetivismo, e permanecer no terreno
da leveza aparente. Se no campo do desenvolvimento histórico o homem precisou realizar uma
caminhada claudicante até erguer as condições histórico-sociais para realizar-se como tal e como
homem amante, na esfera do pensamento científico-filosófico não poderia ser menos tortuosa tal
empreita. Afinal de contas, Marx (1983-1985, p. 23) já nos alertara sobre a dificuldade desta tarefa
ao afirmar: “Não há entrada já aberta para a ciência e só aqueles que não temem a fadiga de galgar
suas escarpas abruptas é que têm a chance de chegar a seus cimos luminosos”.
Disto posto, a teoria histórico-ontológica do amor, que aqui pretendemos impulsionar
mediante a síntese precária que é esse esboço, é composta de três momentos: o onto-metodológico
(capítulo 1), o de análise do ser do amor na sociedade produtora de mercadorias (capítulo 2) e o das
condições para a concretização da liberdade amorosa (capítulo 3).
O primeiro capítulo consiste no ponto de partida conceitual e metodológico adotados
em nosso trabalho – a ontologia do ser social marxiana e o método dialético marxiano – como
parte indispensável à abordagem e compreensão do ser do amor no moderno mundo das
mercadorias.
O segundo capítulo argumenta que o amor, segundo a compreensão marxiana, possui
um estatuto ontológico, mas que na ordem social dominada pelo capital, este amor é posto ao
avesso, ou seja, em função das condições materiais de existência que impedem o homem de
humanizar-se, o seu amor igualmente torna-se desumanizado.
O terceiro e derradeiro capítulo indica genericamente duas teses. A primeira referente
à condição do amor numa sociedade emancipada dos grilhões do trabalho alienado, a sociedade
comunista defendida por Marx. A segunda aventa um ethos amoroso provisório para a sociedade
capitalista. Pela sua própria natureza, tal ethos só pode ser limitado e precário, mas que busque
destoar relativamente da realidade dominante em que se enreda o amor.
“Ditas” estas palavras preliminares, esperamos que a leitura das páginas subseqüentes
provoque a sensação de quem tem suas feridas dolorosamente cutucadas por um dedo intruso,
como Caravaggio retrata em sua bela obra A incredulidade de São Tomé.
5
uma atividade não digna de homens livres. Outras definições tais como “o homem como um
animal político”, “um animal que fala”, “um animal simbólico” etc, juntamente com a de que o
homem é um animal racional, derivam todas elas do mesmo tronco comum, qual seja, o caráter
especulativo contraposto à existência histórica dos indivíduos. Seu ponto de partida é uma idéia
abstrata e universal da essência humana onde se inscreveria o conjunto dos caracteres de cada
indivíduo da espécie humana. Para pôr o debate no seu devido lugar, é imprescindível retomar a
ontologia marxiana.
Conforme indicamos acima, a relação metabólica entre o homem e a natureza,
formadora de valores-de-uso, é conditio sine qua non para a existência do homem. Esta relação,
denominada por Marx & Engels de trabalho, é “a condição fundamental de toda a vida humana”
(Engels, 2000, p. 215), onde o mundo social é erguido sob a base do mundo natural, cuja
dependência é inescapável, sem no entanto ser moldado pelas mesmas leis e princípios que operam
na natureza. A reprodução biológica dos homens é um fato, condição da vida social, porém a vida
social está longe de encerrar-se neste processo. Como se verá adiante, os processos biológico-
naturais mesmos são moldados pelo caráter social da vida humana, assumindo pois um conteúdo
surpreendentemente superior e novo do que o ato primordial, natural.
Para que se possa perceber o ato do trabalho como atributo essencial que cria o
homem como tal, é significativo elencar as diferenças entre homens e animais4. Como se sabe, o
mundo natural vive sob o império das necessidades vitais que, quando satisfeitas, garantem a
reprodução biofísica das espécies. O animal em face de uma necessidade, a fome por exemplo, a
satisfaz de um modo imediato, isto é, o objeto que satisfaz a sua necessidade, um outro animal por
exemplo, coincide inteiramente com a atividade que lhe impulsiona. Há uma relação de identidade
entre a necessidade que o move e o objeto que a satisfaz. “O animal identifica-se prontamente com
a sua atividade vital. Não se diferencia dela” (Marx, 2006a, p. 116). Desta forma, o animal não existe
como sujeito independente de seu objeto. O homem, diversamente, se serve de uma cadeia de
mediações para satisfazer suas necessidades5. A mediação, o meio da ação humana, se apresenta, de
um lado, como o instrumento de trabalho que se interpõe entre o homem e o objeto de sua
necessidade e, do outro, como a atividade de trabalho precedente que possibilita o uso do objeto 6, a
fabricação mesma do objeto. Quando satisfeitas as necessidades, o homem produz novas
necessidades num movimento ampliado7. Deste modo, o homem existe como sujeito independente
de seu objeto. Daí derivam duas conseqüências de grande monta, tanto no plano do sujeito quanto
do objeto.
4
Em flagrante oposição ao idealismo hegeliano para o qual esta questão se apresenta à maneira da filosofia
anterior: “A filosofia pode, antes de mais nada, definir-se em geral como a consideração pensante dos objetos. Se
é verdade (e sê-lo-á certamente) que o homem se distingue do animal pelo pensar, então todo o humano é
humano por e somente por ser produzido pelo pensar” (Hegel, s/d, p. 70). Marx & Engels (2007, p. 87) vão,
pois, recuperar o caráter terreno da vida, o homem-que-vive-de-pão (Homero), para apreender a questão: “Pode-se
distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou pelo que se queira. Mas eles mesmos
começam a se distinguir dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo que é
condicionado pela sua organização corporal. Ao produzir seus meios de vida, os homens produzem,
indiretamente, sua própria vida material”.
5
Conforme lemos em Márkus (1974, p. 51) a perspectiva materialista é corroborada: “Para o animal, o
resultado de sua atividade reside no consumo que aniquila os objetos naturais singulares, na adaptação
imediata de outros objetos ao próprio corpo; em troca, a atividade produtiva do homem – ainda que tenha
sua finalidade última no consumo – pressupõe um instrumento de trabalho que deve ser (salvo nos
primeiríssimos momentos) não um objeto encontrado já pronto na natureza, mas algo elaborado: desse
modo, no processo de trabalho, formam-se continuamente novos objetos que transformam pouco a pouco o
ambiente humano”.
6
Hegel (s/d, p. 81) antecipara a dialética incorporada à mediação: “[...] a mediação é um começo e uma
passagem a um segundo [termo], de modo que este segundo só é enquanto ao mesmo se chegou a partir de
algo que é outro em relação a ele”.
7
Como afirmam Marx & Engels (2007, p. 33): “O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a
satisfação dessas necessidades [comida, bebida, moradia, vestimenta etc, V. B.], a produção da própria vida
material e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje,
assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens
vivos. [...] O segundo ponto é que a satisfação dessa primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de
satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades – e essa produção de novas necessidades constitui o primeiro ato histórico”.
6
1. Há um aumento do círculo de objetos sobre os quais o homem pode
exercer sua atividade. De um lado, cresce a quantidade de objetos que
satisfazem necessidades humanas, na medida em que os homens modificam
sua forma ao utilizá-los. De outro, os objetos que não são imediatamente
adequados à satisfação de necessidades se tornam instrumentos da atividade
de produção. Dessa maneira, há uma incorporação progressiva de
fenômenos naturais à dinâmica sócio-metabólica do homem com a
natureza.
2. Para Marx, a produção de um objeto é idêntica à humanização do objeto
mesmo. A objetivação do homem significa, simultaneamente, apropriação do
objeto. Segundo Márkus (1974, p. 55), “apropriação do objeto significa
apropriação da força essencial do homem que se tornou objetiva”, e deste
modo, no que tange ao sujeito, ele completa: “O homem só desenvolve suas
faculdades na medida em que as objetiva”.
A dialética dos processos de apropriação/objetivação que forjam a produção material
do gênero humano8, onde a mediação cumpre um papel essencial, indica um domínio paulatino do
homem sobre as forças naturais. Aqui se inscreve outro elemento diferencial entre homens e
animais de grande relevância.
Com a ampliação progressiva das apropriações humanas sobre a natureza, o gênero
humano vai tornando-se capaz de subordinar o conjunto da natureza ao seu poder. Por outros
termos, o gênero humano deixa de estar submetido à pura causalidade que rege o mundo natural e
submete suas forças – as forças naturais - às suas finalidades conscientes. Esse processo de
humanização da natureza, ao invés de segregar o homem da natureza, ao contrário, os aproxima,
pois a última é incorporada à dinâmica da atividade social. Dessa maneira, o desenvolvimento do
gênero humano é simultaneamente um processo de humanização da natureza e naturalização do
homem (Márkus, 1974). Naturalização pois a natureza passa a ser parte cada vez mais indispensável
à construção do mundo social, torna-se o corpo inorgânico do homem9. Neste aspecto, a diferença
com os animais é flagrante: enquanto estes precisam se adaptar à natureza, o homem,
diferentemente, adapta à natureza a si10 (Saviani, 2007).
O desenvolvimento de nossas considerações indica expressamente a atividade de
trabalho como algo pertencente especificamente ao gênero humano. A transformação contínua da
natureza, onde ela é sujeitada ao domínio humano, é um ato de modificação do próprio homem.
Trata-se de pôr em movimento as forças naturais atinentes à sua corporalidade, cérebro, mãos, etc
para a apropriação das forças naturais numa forma útil à sua vida.
Entretanto, para tornar clara e satisfatória a demonstração do ato de trabalho como o
fundamento do ser social, é necessário discorrer sobre um atributo inseparável da atividade de
trabalho, sem o qual esta seria impossível: a teleologia, pois a atividade vital é inescapavelmente
uma atividade consciente.
8
“O elemento do trabalho é a objetivação da vida genérica do homem” (Marx, 2006a, p. 117). Ivo Tonet (1991, p.
41) torna ainda mais claro o significado desta categoria: “Ser genérico significa ter a capacidade de tornar seu
tudo aquilo que é produzido pela totalidade da humanidade – quer material, quer espiritual – e de contribuir,
pelo exercício das suas faculdades, para o enriquecimento comum”.
9
Segundo afirma Marx (2006a, p. 116) no que tange à sua teoria da universalidade do homem: “A
universalidade do homem aparece praticamente na universalidade que faz de toda a natureza o seu corpo
inorgânico: 1) como imediato meio de vida e igualmente 2) como objeto material e instrumento de sua
atividade. A natureza é o corpo inorgânico do homem, ou seja, com o qual tem de manter-se em permanente
intercâmbio para não morrer”.
10
“O homem é capaz de elevar o conjunto das conexões e das leis naturais a leis e princípios de sua própria
atividade” (Márkus, 1974, p. 55).
7
A clássica passagem de O Capital dá o devido acento à questão11. A teleologia do
trabalho possui um significado essencial, sendo de fato uma premissa na ontologia marxiana do ser
social. É o primeiro momento do processo de objetivação, ou melhor, o momento que possibilita a
explicitação do ser social12. A concepção teleológica do trabalho é tão fundamental para Marx, o
alicerce filosófico-científico de sua obra, que ela está presente durante toda a sua produção teórica,
o que põe abaixo as interpretações já sobremaneira torturadas e refutadas que estabelecem a
existência de uma muralha chinesa entre o “jovem Marx” e o “velho Marx” 13. Nos Manuscritos
Econômico-Filosóficos de 1844, Marx (2006a, p. 116, grifo nosso) afirma:
[...] o homem faz da atividade vital o objeto da vontade e da consciência. Possui
uma atividade vital lúcida. Ela não é uma deliberação com a qual ele imediatamente
coincide. A atividade vital lúcida diferencia o homem da atividade vital dos animais. Só
por este motivo é que ele é um ser genérico. Ou então, só é um ser lúcido, ou
melhor, a sua vida é para ele um objeto, porque é um ser genérico.
11
“Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto
humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da
melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se
um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma
transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele
sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade.
E essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é exigida a vontade orientada a
um fim, que se manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho [...]” (Marx, 1983-1985, p. 149-150,
grifo nosso).
12
“Com o ato da posição teleológica no trabalho, tem lugar o ser social. O processo histórico da sua
explicitação, todavia, implica na importantíssima transformação do ser-em-si do ser social em ser-para-si e,
por conseguinte, implica na superação tendencial das formas e conteúdos de ser meramente naturais em
formas e conteúdos sociais mais puros, mais especificamente sociais” (Lukács, 1981, p. 93)”.
13
Esta difundida interpretação deve-se sobretudo à leitura althusseriana da obra de Marx e à vulgata stalinista.
As obras de Georg Lukács e György Márkus, para citar duas apenas, já constituem uma excelente refutação
desta questão, que foi polêmica durante boa parte do século 20 entre os marxistas.
14
Lukács (s/d, p. 5) parece não deixar dúvidas acerca de quão importante é a consciência no processo de
trabalho: “A essência do trabalho consiste precisamente em ir além dessa fixação dos seres vivos na
competição biológica com seu mundo ambiente. O momento essencialmente separatório é constituído não
pela fabricação de produtos, mas pelo papel da consciência, a qual, precisamente aqui, deixa de ser mero
epifenômeno da reprodução biológica: o produto, diz Marx, é um resultado que no início do processo existia
‘já na representação do trabalhador’, isto é, de modo ideal”.
15
“O processo de trabalho [...] é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do
natural para satisfazer a necessidades humanas, condição natural eterna da vida humana e, portanto,
independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as suas formas sociais”
(Marx, 1983-1985, p. 153).
8
as subvertendo num novo processo de transformação17. Os homens fazem sua história, mas a
fazem sob condições determinadas: a teoria marxiana da história é o garante para a expressão
ontológica do ser social. A essência humana (o ser dos homens) é histórica (o). Agnes Heller (1992,
p. 4,), recuperando um importante estudo de Márkus sobre esta questão, afirma:
[...] as componentes da essência humana são, para Marx, o trabalho (a
objetivação), a socialidade, a universalidade, a consciência e a liberdade. A
essência humana, portanto, não é o que “esteve sempre presente” na
humanidade (para não falar mesmo de cada indivíduo), mas a realização gradual
e contínua das possibilidades imanentes à humanidade, ao gênero humano.
16
“Tal como os indivíduos exteriorizam a sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com a sua
produção, tanto com o que produzem como também como o modo como produzem. O que os indivíduos são,
portanto, depende das condições materiais de sua produção” (Marx & Engels, 2007, p. 87)
17
“Todo existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte (movente e movida) de um
complexo concreto” (Lukács, s/d, p. 2-3).
18
“Não há nada no pensar que não tenha estado no sentido, na experiência”.
19
Nas palavras de Ernst Bloch (1988, p. 40): “[...] a atividade humana com sua consciência é declarada um
pedaço da natureza, e além disso, como a mais importante, como a práxis transformadora na base do ser
material que, novamente, condiciona a consciência que segue”.
9
como arma de guerra como meio de caça não é mais simplesmente um objeto natural, é um objeto
humanizado. É uma resposta objetivada, uma solução prática, diante das perguntas feitas sobre a
necessidade imperativa da sede, da fome e do lugar para se “fixar”20.
As conseqüências ontológicas da formulação anterior, qual seja, o homem é um ser que dá
respostas, são significativas para a compreensão da concreta dialética histórico-social. Como o “ato
de responder” funda e enriquece a atividade vital, a conseqüente característica ontológica é o
permanente aperfeiçoamento do trabalho. Este constante desenvolvimento do trabalho é
impossível sem um conhecimento concreto das finalidades e dos meios para os quais a objetivação
se materializa. Isto porque enquanto o trabalho é realizado e seus resultados são observados, tanto
mais se tornam cognoscíveis suas determinações, o que o torna mais variado, engloba novos
campos, eleva-se tanto em extensão quanto em intensidade21. A implicação direta do
aperfeiçoamento do trabalho é que ele faz nascer produtos sociais mais complexos e elevados. O
conhecimento separa-se progressivamente (uma separação relativa) no processo concreto de
trabalho, como forma autônoma preparatória, dos meios e finalidades. Hoje essa autonomização e
universalização crescentes tornam, por sua vez, mais perfeito e universal o trabalho, e a própria
influência destes conhecimentos obtidos sobre as finalidades e meios de efetivação do trabalho se
torna cada vez maior. Lembremo-nos que a física, a matemática, a geometria, a química etc, eram
originalmente momentos do processo preparatório do trabalho, ao qual não havia praticamente
nenhuma autonomia. Disto posto, é este precisamente o sentido da afirmação de Márkus em que O
homem só desenvolve suas faculdades na medida em que as objetiva.
Um breve delineamento acerca do processo evolutivo humano é relevante nestas
considerações. Engels (2000) considera que o passo decisivo para a transição do macaco em
homem foi dado com a postura ereta. No que concerne aos três aspectos fundamentais que ele
considera acerca da evolução humana – a fala, o cérebro grande e a postura ereta – a postura é o
aspecto primevo. A postura ereta deixa as mãos livres, passíveis de se dedicar a outras novas tarefas.
Dentre elas, fundamentalmente, a fabricação de ferramentas. O crescimento cerebral e a linguagem
são decorrentes do uso cada vez mais aprimorado da mão com os conseqüentes reflexos em todo o
organismo22.
Não apenas um órgão do trabalho, a mão humana é também um produto deste. Pela
sua adaptação a novas manipulações herdadas de um aperfeiçoamento adquirido tornando-as
sempre mais complexas, a mão humana alcançou o nível de perfeição que permitiu realizar os
quadros de Rafael, as estátuas de Thorwaldsen e a música de Paganini, conforme aponta Engels.
O aperfeiçoamento da mão, através do contínuo ato de trabalho, permitiu ao homem
descobrir inúmeras novas qualidades nos objetos naturais, permitiu ao homem aprender a
manipular o entorno material, algo que teve como conseqüência o surgimento da caça, da criação
de gado, da agricultura, da tecelagem, dos utensílios de metal, da olaria, da navegação, e,
posteriormente, da arte e da ciência, do direito e da política e, finalmente, da religião.
O contraste entre a primazia ontológica do trabalho no desenvolvimento humano e a
primazia cerebral é da maior importância, pois a tradição filosófica e científica sempre sustentou
que os progressos humanos deveram-se à atividade cerebral e não ao trabalho, e assim criaram a
concepção idealista de mundo que se tornou dominante na maioria das cabeças, inclusive em
naturalistas da própria escola darwiniana23; até mesmo quando o “elo perdido” – o Australopithecus –
comprovava a tese engelsiana, em plena década de sessenta do século 20 diversos autores ainda se
punham a sustentar que a chave da omnização estava no cérebro, como o paleontólogo e biólogo
norte-americano George Gaylord Sympson (Gould, 1996).
20
Nunca é demais lembrar que neste período os homens são nômades, pois não havia produção de
excedentes, e a atividade econômica essencial era conseguir alimentos; deste modo, esta fixação territorial é
transitória.
21
Segundo precisa definição de Lukács (s/d, p. 9): “O trabalho é um ato de pôr consciente e, portanto,
pressupõe um conhecimento concreto, ainda que jamais perfeito, de determinadas finalidades e de
determinados meios”.
22
“O refinamento gradual da mão humana e a conformação do pé para tornar possível o caminhar erecto,
repercutiu, por certo, sobre outras formas do organismo” (Engels, 2000, p. 217).
23
Sobre isto Jay Gould (1996, p. 5) é enfático: “La importancia del ensayo de Engels yace no en su
conclusión sustantiva sino en su incisivo análisis político de por qué la ciencia occidental está tan
comprometida con la afirmación apriorística de la primacía cerebral”.
10
Longe de desconsiderar a importância do cérebro no desenvolvimento humano,
Engels, entretanto, precisa restituir ao trabalho sua força motriz no processo evolutivo,
demonstrando como o cérebro aí assume a devida importância como produto tardio do ser
material:
Primeiramente o trabalho e, em seguida, em conseqüência dele, a palavra; eis aí
os dois principais estímulos sob cuja influência o cérebro do macaco foi, pouco
a pouco, se transformando em cérebro humano, apesar de toda a semelhança,
muito maior e mais perfeito. Com o desenvolvimento do cérebro, marcha
paralelamente o aperfeiçoamento de seus instrumentos mais imediatos: os
órgãos dos sentidos. Assim como a linguagem em seu desenvolvimento gradual,
é necessariamente acompanhada de um adequado refinamento do órgão da
audição, assim também o cérebro provoca o refinamento de todos os sentidos.
24
“Toda praxis social, se considerarmos o trabalho como seu modelo, contém em si esse caráter
contraditório. Por um lado, a praxis é uma decisão entre alternativas, já que todo indivíduo singular, sempre
que faz algo, deve decidir se o faz ou não. Todo ato social, portanto, surge de uma decisão entre alternativas
acerca de posições teleológicas futuras. A necessidade social só se pode afirmar por meio da pressão que
exerce sobre os indivíduos (freqüentemente de maneira anônima), a fim de que as decisões deles tenham uma
determinada orientação” (Lukács, s/d, p. 7). Esta equação marxiano-lukcsciana é confirmada por Agnes
Heller (1992, p. 2) quando afirma: “Causalidade e finalidade, portanto, são em Marx fatos ontológico-sociais
que necessariamente se relacionam. A tese de sua necessária inter-relação, decerto, só é verdadeira para a
sociedade, pois na natureza existe uma causalidade sem nenhuma teleologia”.
11
pela práxis que a subjetividade se objetiva e, por sua vez, as objetivações sociais são submetidas à
subjetividade humana” (Evangelista, 2002, p. 43).
Nesta contextura, um aforismo indica precisamente aquilo que encerra a práxis social,
e não por acaso era a máxima que Marx mais apreciava: Nihil humani a me alienum puto25.
Georg Lukács, na segunda década do século 20, provocou enorme polêmica no debate
intelectual, cujo eco ainda hoje é sentido, quando de sua publicação de História e consciência de classe
onde o ensaio que abre seu livro, denominado “O que é marxismo ortodoxo?”, ousadamente
defendia que aquilo que vinculava efetivamente alguém à tradição marxiana, em sua legítima
ortodoxia teórico-prática, não era, como a expressão ortodoxo possa sugerir aos mais apressados, a
aceitação acrítica de todas as teses particulares resultantes da pesquisa de Marx e sim
fundamentalmente fidelidade ao método dialético desenvolvido em sua forma mais acabada pelo
próprio Marx. Todas as tentativas de reformular, retificar, melhorar ou superar o método marxiano
resultaram num empobrecimento deste método, convertendo-o num ecletismo. A defesa do
método dialético, em sua formulação marxiana, como um método privilegiado para a investigação
do mundo social, indica desde já, pois, que o método dialético não é simplesmente mais um método
como outros tantos (ditados segundo o mais novo modismo acadêmico dominante, o pluralismo
metodológico) e sim o método mais avançado. Decerto que esta afirmação deve soar um acinte em
tempos de relativismo, mas se procurará nas linhas subseqüentes mostrar como o método marxiano
é uma ferramenta indispensável na investigação científica da realidade social e os defeitos imanentes
da concepção metodológica preconizada pelos papas pós-modernos. Neste percurso, a
compreensão de que “A dialética materialista é uma dialética revolucionária” (Lukács, 1981, p. 60)
será o pano de fundo do esboço a seguir.
O correto entendimento acerca da dialética materialista, é preciso considerar, deve ser
buscado na concepção marxiana da dialética, pois segundo argumenta Lukács, a elaboração
engelsiana desta dialética é cercada de equívocos, o que deu enormes brechas às falsificações
revisionistas dominantes na II Internacional, em especial por Eduard Bernstein. Desse modo,
apesar da inconteste importância de Engels como co-fundador do materialismo histórico, não é
prudente desconsiderar as diferenças significativas tangentes à compreensão da dialética entre ele e
Marx, especialmente por sua redução da dialética materialista e, em muito, pela sua aplicação
equivocada.
Considero que após Marx, a melhor empresa de recuperação do papel fundamental do
método foi feita por Lukács, inclusive pondo-o no seu devido lugar de importância na formulação
marxiana26. Em grande parte, à maneira da restituição da dialética hegeliana que Marx fizera quando
seus coetâneos tratavam a Hegel como um “cachorro morto”, a fertilidade da empresa lukacsiana se
deve à retomada da herança da dialética hegeliana no compósito do pensamento de Marx,
ponderando suas virtudes e limites, e onde Marx a supera. Este procedimento seguiu o curso
oposto dos contemporâneos de Lukács, cujas deturpações do pensamento marxiano se assentavam,
em grande medida, a um esquecimento que tinha nome próprio: Hegel27.
Entretanto, ao invés de adentrarmos centralmente nos desvios cometidos por Engels
ou nas diferenças entre as dialéticas hegeliana e marxiana, é forçoso tomar como fio de Ariadne o
debate sobre o chamado pluralismo metodológico, por ser uma das questões nevrálgicas nas
ciências sociais atualmente e pela urgência da crítica, visto que esta contenda diz respeito
25
“Nada do que é humano me é estranho” ou “Nada do que é humano julgo alheio a mim”.
26
Certamente que, como pontua o próprio Lukács, o método foi atualizado e fertilmente trabalhado por
Lênin e Rosa Luxemburgo, a quem o filósofo húngaro não deixa de ser devedor.
27
“A omissão da dívida de Marx para com ele [Hegel, V. B.] teria gerado três graves deturpações no
marxismo da Segunda Internacional: a) a consideração da dialética em Marx como um acréscimo estilístico a
ser eliminado em nome do interesse científico; b) o não-reconhecimento de que categorias decisivas,
utilizadas com freqüência em O capital, foram desenvolvidas antes na Ciência da lógica; c) a recusa da
interpretação, estabelecida por Engels e reiterada por Plekhánov, que apresenta o movimento operário como
‘herdeiro da filosofia clássica alemã’” (Musse, 2005, p. 369).
12
diretamente à pertinência mesma da dialética materialista como método. Neste passo, seguiremos o
percurso precioso caminhado por Ivo Tonet (1997), abordando as questões acima de través. Como
se verá mais adiante, longe de tratar-se de um mero exercício de erudição, esta recuperação dos
fundamentos ontológicos e metodológicos aqui empreendida será indispensável para a captura da
atividade amorosa no capitalismo e seu possível vir-a-ser no comunismo, o que constitui nossa
preocupação central.
Costuma-se entender por pluralismo metodológico, num determinado aspecto, o
ecletismo, isto é, “a liberdade de tomar idéias de vários autores e articulá-las segundo a
conveniência do pensador” (Tonet, 1997, p. 2). Algo que Vigotski denomina, ao fazer dura crítica
num contexto específico, de “método de superposição lógica de conceitos”28. Afrouxa-se o rigor
quanto a compatibilidade de idéias e paradigmas diferentes, criando-se um verdadeiro Frankenstein
epistemológico, uma colcha de retalhos. É possível encontrar ecletismo de baixo e elevado nível.
Noutro sentido, é entendido como relativismo, onde a divisa fundamental é que não
há verdade, somente verdades, não há método, existem apenas métodos. Parcializa-se verdade,
critério de verdade, método, visto que todos apenas possuem um valor relativo. Neste campo
impera a famigerada pós-modernidade.
No entanto, o pluralismo metodológico, de modo a não declarar-se nem pretender-se
dogmático, eclético ou relativista, encontra como meio para a busca da verdade (ela não é
completamente abandonada, exceto em pós-modernos extremos) a primazia do sujeito que,
reconhecendo a relatividade dos métodos, toma como norma o diálogo, a conciliação de
paradigmas diversos, sempre com espírito crítico vigilante.
Visualizando o sentido do pluralismo metodológico, passemos aos seus fundamentos.
Conforme Tonet, são dois os tipos de argumentos: um referente ao modo de ser do universo social
(ontológico), os outros relacionam-se ao modo de conhecê-lo (epistemológico).
O argumento de tipo ontológico consiste na seguinte idéia: hodiernamente, vivemos
em um mundo radicalmente diferente do mundo do século 19 e da primeira metade do século 20. A
sua complexidade, heterogeneidade e dinâmica são absolutamente diversas daquela época, mais
simples e homogênea. O trabalho ainda podia ser considerado o fundamento, as classes sociais
tinham um maior grau de homogeneidade e o Estado tinha um visível perfil de instrumento de
dominação de classe. Hoje, contrariamente, as classes perderam o papel central e homogêneo em
face da emergência de uma miríade de novos grupos sociais. As intensas transformações hoje
vivenciadas, o surgimento de vários novos elementos, mobilizam relações em que as categorias da
totalidade e do trabalho como fundamento do ser social não possuem significado algum. Àquela
época o mundo podia ser compreendido como totalidade de suas partes componentes, indiferente
se a articulação fosse organicista ou dialética, algo hoje sem qualquer sustentação. Segundo
concebem, “o mundo atual é um caleidoscópio de mil faces cujas relações são mais ou menos
arbitrárias e passageiras” (Tonet, 1997, p. 3). A totalidade social tornou-se um conjunto de cacos
não intercambiáveis entre si.
No campo epistemológico, os argumentos não divergem do argumento acima.
Argumentam que os paradigmas oriundos do mundo moderno possuíam o caráter de
28
Vigotski (apud Duarte, 2000, p. 81), critica a junção imprópria entre marxismo e psicanálise, um idêntico
procedimento do pluralismo metodológico: “Se este primeiro procedimento de importação de idéias alheias
de uma escola a outra lembra a anexação de um território alheio, o segundo procedimento de associação de
idéias alheias se assemelha a um tratado de aliança entre dois países, mediante o qual nenhum dos dois perde
sua independência, porém chegam ao acordo de atuarem conjuntamente, partindo da comunhão de
interesses. Este procedimento é ao qual se costuma recorrer quando se quer associar o marxismo e a
psicologia freudiana. Neste caso se utiliza o método que por analogia com a geometria poderíamos
denominar “método de superposição lógica de conceitos”. Define-se o sistema marxista como monista,
materialista, dialético, etc. Depois se estabelece o monismo, o materialismo, etc. do sistema freudiano; ao
superpor os conceitos, estes coincidem, e se declaram unidos os sistemas. Mediante um procedimento
elementar eliminam-se contradições gritantes, bruscas, que saltam à vista, excluindo-as simplesmente do
sistema, considerando-as exageradas, etc. É assim que se dessexualiza o freudismo, porque o pansexualismo
não concorda de modo algum com a filosofia de Marx. “Bom”, dizem-nos, “admitamos o freudismo sem os
postulados da sexualidade”. Mas ocorre que esses postulados constituem precisamente o nervo, a alma, o
centro de todo o sistema. É cabível aceitar um sistema sem seu centro? Porque a psicologia freudiana sem o
postulado da natureza sexual do inconsciente é o mesmo que o cristianismo sem Cristo e o budismo com
Alá”.
13
metanarrativas, são macroteóricos. É exatamente o perfil totalizador que os tornou obsoletos para o
entendimento da vida atual. Reside neste ínterim – caducidade dos paradigmas modernos – a crise
das ciências sociais. É preciso, portanto, encontrar novas perspectivas que solucionem este impasse.
De maneira mais disfarçada, outro argumento ampara o pluralismo metodológico.
Consiste na tese de que o cientista perde sua liberdade caso assuma algum método como o caminho
privilegiado para a pesquisa científica. Segundo Tonet (1997, p. 4):
Este é o mote essencial do pluralismo. Privilegiar algum método é, de saída,
interditar-se a possibilidade de escolher o que for mais adequado e isto fere
frontalmente a liberdade necessária para a produção do conhecimento. Este é o
tipo de argumento que parece sepultar definitivamente qualquer crítica ao
pluralismo metodológico.
29
“Entificação é o termo filosófico que designa o processo de algo tornar-se o que é” (Iasi, 2007, p. 14, nota
5).
30
Marx (1978b, p. 79) exprime bem a importância de situar-se além da epiderme dos objetos em investigação:
“(...) para explicar o caráter geral do lucro não tereis outro remédio senão partir do teorema de que as
mercadorias se vendem, em média, pelos seus verdadeiros valores e que os lucros se obtêm vendendo as mercadorias pelo
seu valor, isto é, em proporção à quantidade de trabalho nelas materializado. Se não conseguirdes explicar o
lucro sobre esta base, de nenhum outro modo conseguireis explicá-lo. Isto parece um paradoxo e contrário à
observação de todos os dias. Parece também paradoxal que a Terra gire ao redor do Sol e que a água seja
formada por dois gases altamente inflamáveis. As verdades científicas serão sempre paradoxais, se julgada
pela experiência de todos os dias, a qual somente capta a aparência enganadora das coisas”.
31
Esta valiosa categoria deriva do retorno à fonte hegeliana, com a impressão digital lukacsiana, como
confirma a passagem: “(...) o todo representa-se, pois, como um círculo de círculos, de que cada um é um
momento necessário, de tal modo que o sistema dos seus elementos peculiares constitui a ideia inteira, a qual
14
pontuamos, trata-se de uma força essencial, fundamento ontológico, e não causa única ou
mecânica. Dessa forma, os elementos constituintes desta totalidade interrelacionam-se segundo a
autonomia relativa que possuem de modo a fazer valer sua função social32.
Lukács discrimina a categoria da totalidade como a chave da concepção dialética
marxiana33, o que torna a metodologia marxiana uma onto-metodologia, ou seja, a categoria da
totalidade não é algo puramente lógico, um construto mental, é em verdade enraizada na própria
realidade: “As relações de produção de qualquer sociedade formam um todo”34 (Marx, s/d, p. 101).
Neste passo, a fragmentação atualmente existente da realidade, reclamada para argumentar que ela
não é mais uma totalidade, longe de refutá-la confirma a pertinência desta categoria. Justamente
porque esta fragmentação resulta da atividade vital determinada de uma época determinada,
atividade cujo cerne é o capital35. Conforme demonstramos anteriormente (vide sub-item 2.1), umas
das conseqüências ontológicas da práxis era o permanente aperfeiçoamento do trabalho através da
15
criação de um mundo humano cada vez mais complexo; que a entificação do ser social consiste,
pois, na relação entre unidade e heterogeneidade, que progressivamente o ser social se complexifica
e se torna uno, genérico. No capitalismo não poderia ser diverso. À medida que se universaliza cada
vez mais, torna-se mais diversificado. Porém, essa diversificação, em face da incontrolabilidade do
capital, a anarquia da produção, ocorre sob a forma fragmentária, estilhaçada. Tão-somente na
aparência, fragmentação e totalidade se excluem. A razão grosseira, empírica e fenomênica, em sua
incapacidade de apreender “a lógica essencial de entificação do mundo” (Tonet, 1997, p. 5), que
une essência e aparência de modo contraditório e indissolúvel, só percebe a fragmentação como
inteira diferença, como movimento arbitrário de cacos da vida36 criados fortuitamente. A pergunta
pela origem de tal fragmentação se esfuma, da mesma maneira que a própria qualidade e veracidade
das narrativas fenomenais, visto que “não basta afirmar que as coisas são assim, é preciso explicar
como e porque são assim” (Idem, ibidem).
Como vimos, o mundo não deixou de ser uma totalidade. Então, a acusação da
insuficiência dos paradigmas macroteóricos incide em novo erro. Erro cuja origem encontra-se no
modelo de cientificidade burguesa37, o positivismo, que, apesar do esforço em tentar assemelhar a
sociedade a um organismo, jamais teve em seu seio a totalidade como categoria essencial. Cada
parte do mundo social era um ente autônomo. Destarte, se a fragmentação regia o nascimento das
ciências sociais, tendeu a aumentar, de tal maneira que hoje, com a fetichização elevada a todo
vapor, detonou qualquer diretriz de objetividade e, perdida, a ciência burguesa autocentrou-se na
subjetividade. Daí a produção desenfreada de propostas metodológicas38. Não é extraordinário
concordarmos, portanto, que o equívoco do ponto de partida empirista não desaguasse em uma
conclusão igualmente equivocada.
Mas o aparente consenso da maioria dos cientistas acerca do pluralismo metodológico
como saída para a crise epistemológica, é, então, um equívoco? Uma falsa saída? Tal como Tonet
(1997), concordamos que sim. Os argumentos subseqüentes pretendem demonstrar tal posição.
16
Por si só o fato de a maioria dos cientistas pensar de uma determinada forma não é
critério de verdade. A não ser que o critério de verdade seja a concordância intersubjetiva. Mas este
problema não se resolve simplesmente através do debate intersubjetivo. Sua solução é
necessariamente teórico-prática.
Este problema reclama o exame da questão de fundo: o caráter gnosiológico das
análises sobre a crise. Toda a problemática é analisada em torno da perspectiva do sujeito e não da
inteireza do processo de conhecimento, cuja regência está no objeto e não no sujeito.
A gênese de uma tal concepção resulta da mudança epistemológica angular surgida
com a modernidade que vai da objetividade assentar-se na subjetividade. A famosa “revolução
copernicana” kantiana, tão dominante hoje que se apresenta inquestionável, na busca em superar a
passividade greco-medieval do sujeito no processo de conhecimento, substitui-a pela autônoma
atividade do sujeito na edificação gnosiológica39. A eventual réplica de se não seria um avanço a
proposição kantiana, ao passo que chegou a uma síntese entre sujeito e objeto, destacando o caráter
ativo da subjetividade, parece-me que apenas superficialmente é verdadeira, mas em suma falsa. Se é
verdade que a gnosiologia greco-medieval era defeituosa, pois encarava sujeito e objeto como duas
entidades fixas e exteriores uma à outra, gravitando o sujeito em torno do objeto, a solução
kantiana não supera a dualidade sujeito-objeto, apenas põe o sujeito como órbita gravitacional
cognitiva. Mudou-se simplesmente a polaridade. Dessa forma, a pretensa solução kantiana é uma
frustração. Pelo que indicamos no sub-item precedente, a nova ontologia fundada por Marx
inaugura uma forma radicalmente nova de se fazer filosofia e ciência, visto que põe abaixo a falsa
opositividade objetivismo-subjetivismo40. A I e II Teses Ad Feuerbach são fonte magistral desta
perspectiva.
A dominância do ponto de vista do sujeito lastreou tanto perspectivas
contemporâneas científicas (pós-modernas ou não) quanto anti-científicas (pós-modernas
extremas). E trata-se realmente do que?
Deste ponto de vista do sujeito, o conhecimento é o produto de uma
subjetividade autônoma, que estabelece as regras e os procedimentos
necessários para uma tal empreitada. Daí a substituição da idéia de verdade
como representação pela de validade das teorias. Ainda que o objeto tenha
alguma importância na produção do conhecimento, ele não tem uma
participação essencial, ativa e muito menos pode ser considerado como o pólo
regente deste processo. Isto pode ser resumido na expressão tão em voga hoje e
que também faz parte do estranho consenso entre não-marxistas e boa parte dos
marxistas, segundo o qual o objeto de conhecimento não é o objeto real, mas
um objeto construído, pela razão41 (Tonet, 1997, p. 8).
17
“reprodução do concreto por meio do pensamento” (Marx, 1991, p. 17). Sob o amparo do sujeito a
verdade não passa do “resultado do consenso das intersubjetividades” (Tonet, 1997, p. 8).
O pluralismo metodológico pode tranquilamente ser compreendido e justificado, em
vista das categorias cognitivas que o balizam serem desprovidas de estatuto ontológico (apenas
lógico) e o objeto não possuir realidade efetiva quando confrontado com o objeto cognitivo. Por
conseguinte, o método é uma construção subjetiva, cujas leis não decorrem do objeto, são obra do
próprio espírito, onde a garantia contra o solipsismo só pode estar no exame transcendental 42. A
razão fenomênica, index sui et falsi.
Para uma análise da perspectiva ontológica do conhecimento, o ponto de partida
certamente não será o auto-exame da razão, mas a gênese e desenvolvimento das posições
cognitivas na entificação do ser social. Já salientamos que a totalidade do concreto é um
pressuposto para a avaliação dialética da sociedade burguesa. Esta premissa (a totalidade) é herança
positiva da lógica hegeliana. Além dela, outro elemento herdado é de grande relevância: o caminho
pelo qual o pensamento se apropria da materialidade em seus momentos imediatos: a abstração.
Um “feixe de abstrações” (Vaisman, 2006, p. 339) é quem media, através do conhecimento das
partes, da aparência da realidade, o conhecimento concreto (complexo) da realidade, quando
rearticuladas as partes à totalidade concreta43: “(...) o método que consiste em elevar-se do abstrato
ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para
reproduzi-lo como concreto pensado” (Marx, 1991, p. 17). No que respeita à concepção de
conhecimento, Duarte (2000, p. 93) esclarece:
(...) o conhecimento é explicitamente entendido como apropriação da realidade
objetiva, com reprodução dessa realidade no pensamento, isto é, a epistemologia
de Marx é materialista e dialética, o concreto pensado é a apropriação dialética
do concreto real através da mediação da análise, mediação do abstrato. Não há
margem para qualquer tipo de relativismo subjetivista na epistemologia
marxiana.
18
uma lógica qualquer ao objeto, deve apreender sua lógica interna, própria. Repito a fórmula dialética
do onto-método: “(...) a ‘chave’ geral da captura integral do objeto é a ontologia, porque ela é o
momento da universalidade que permite encontrar, passando pela particularidade, o caminho em
direção à concretude singular daquele objeto”45 (Idem, ibidem). E como acrescenta Duarte (2000, p.
92): “(...) o singular só pode ser entendido em toda a sua riqueza quando visto como parte das
relações que compõem o todo”. Por conseguinte, estará em melhores condições (apenas condições)
para produzir um conhecimento verdadeiro aquele que se postar sob esta angulação. Como foi dito
acima, o conhecimento de um objeto é um processo infinito de aproximações sucessivas, portanto,
inclui acertos e erros, entre outras contribuições. Daí o método marxiano primar pelo debate, pelo
confronto democrático de idéias, não por exigência subjetiva, mas pela impostação do processo real
de conhecimento. Isto significa que mesmo aquele que está disposto sobre esta perspectiva pode
cometer equívocos, como qualquer outro. A acusação de dogmatismo, portanto, cai por terra. Para
Marx, conforme expõe no Pósfácio da 2ª Ed. alemã de O Capital, o fundamental é capturar a lei de
modificação e desenvolvimento a que se submetem os fenômenos, o que faz com que o objeto,
como pólo regente do conhecimento, que é processual e complexo, exija o permanente esforço de
reprodução intelectual do concreto e, deste modo, abertura para revisão de resultados.
Deduz-se que é completamente diferente a idéia de abertura crítica segundo as duas
perspectivas, gnosiológica e ontológica. Para a primeira, ser crítico é o esforço da razão em
patrulhar-se para o rigor, consistência, coerência do discurso e ver-se livre de percalços
epistemológicos. O diálogo, o confronto de idéias obedece a esta lógica. Para a segunda, em que
pese considerar tais aspectos, o objeto é o eixo axial do processo. “Quem faz a crítica das teorias
não é uma outra teoria, mas o objeto enquanto integralidade” (Tonet, 1997, p. 11). Assim, abertura
crítica aqui é o crisol a que o objeto real e concreto submete as formulações teóricas, aproveitando
aquelas contribuições que lhe permitem expor sua realidade integral. Não tem, então, qualquer
relação com entrecruzamento de diferentes métodos. Ao contrário, opõe-se a este ecletismo.
Surge, assim, uma nova questão. Não é contraditório afirmar que se tem abertura e
simultaneamente rejeitar radicalmente outros métodos? A pergunta novamente ancora-se sob o
ponto de vista do sujeito. Sob este prisma, é realmente inaceitável. Sob o prisma histórico-
ontológico, nenhum problema. Faço das palavras de Tonet (1997, p. 11) as minhas, ao acrescentar
que:
Podemos até radicalizar mais a questão e afirmar que a eleição do método
ontológico, ao invés de cercear a liberdade do sujeito, ela o torna mais livre. O
que equivale a dizer que a liberdade não reside essencialmente na possibilidade
de escolher autonomamente o método que se julgar mais adequado, mas postar-
se do ângulo mais favorável à captura integral do objeto.
Nem preciso afirmar que o cerne da liberdade do sujeito reside, portanto, no objeto. E
que isto em nada destitui a prática de liberdade da subjetividade. Tanto mais livre sou à medida que
mais me posiciono sob o ângulo do objeto, de sua captura integral, pois este processo não é
simplesmente teórico, é teórico-prático.
A primazia dada ao objeto provoca uma nova réplica: se o objeto não se exprime
senão pelo sujeito, então a ontologia já não é também uma teoria? Por que então ela seria
45
Neste momento se inscreve a complexa relação histórica entre categorias abstratas (simples) e categorias
concretas (complexas) cuja análise metodológica deve, para Marx, apreender a lógica de um determinado
fenômeno em sua forma mais desenvolvida (categoria concreta) como chave da análise do processo histórico
de desenvolvimento desse fenômeno (em manifestação mais abstrata). Eis a tese da relação entre o lógico e o
histórico: “A sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais diferenciada da produção.
As categorias que exprimem suas relações, a compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na
articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedades desaparecidas, sobre cujas ruínas e
elementos se acha edificada, e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, leva de arrastão, desenvolvendo tudo
que fora antes apenas indicado que toma assim toda a sua significação etc. A anatomia do homem é a chave
da anatomia do macaco. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior não pode, ao
contrário, ser compreendido senão quando se conhece a forma superior. A economia burguesa fornece a
chave da economia da antigüidade etc. Porém, não conforme o método dos economistas que fazem
desaparecer todas as diferenças históricas e vêem a forma burguesa em todas as formas de sociedade” (Marx,
1991, p. 20).
19
privilegiada para o objeto expressar-se e as outras teorias não? Qual garantia se tem de que a teoria
marxiana apreende o objeto em si e não como ele é para nós, tal como as demais teorias? Na
verdade, é uma confrontação entre a proposição kantiana que afirma que nós conhecemos as coisas
como são para nós, ou seja, tal como elas nos aparecem, e a perspectiva marxiana, que defende a
possibilidade de conhecermos o em si das coisas.
A suposta força desta objeção se esfuma rapidamente, quando de sua afirmação de
que a teoria marxiana pretende-se a um acesso direto ao objeto, visto que expressa um largo
desconhecimento, ou falsificação deliberada, da própria pena de Marx. Ele não afirma em momento
algum a existência deste acesso direto. Afirma sim que a práxis constitui a mediação entre sujeito e
objeto. Ao recobrarmos que aquilo que forja a práxis humana – o trabalho – possibilita claramente
perceber que sujeito e objeto não são entidades exteriores cujo elo seriam as teorias erigidas pela
subjetividade autônoma, tal como reza a concepção gnosiológica do conhecimento. Vale a pena
lembrar a I e II Teses Ad Feuerbach:
O principal defeito de todo materialismo existente até agora (o de Feuerbach
incluído) é que o objeto [Gegenstand], a realidade, o sensível, só é apreendido sob
a forma do objeto [Objetkt] ou da contemplação, mas não como atividade humana
sensível, como prática; não subjetivamente. Daí o lado ativo, em oposição ao
materialismo, [ter sido] abstratamente desenvolvido pelo idealismo – que,
naturalmente, não conhece a atividade real, sensível, como tal. Feuerbach quer
objetos sensíveis [sinnliche Objetkte], efetivamente diferenciados dos objetos do
pensamento: mas ele não apreende a própria atividade humana como atividade
objetiva [gegenständliche Tätigkeit]. Razão pela qual ele enxerga, n’A essência do
cristianismo, apenas o comportamento teórico como o autenticamente humano,
enquanto a prática é apreendida e fixada apenas em sua forma de manifestação
judaica, suja. Ele não entende, por isso, o significado da atividade
“revolucionária”, “prático-crítica” (Marx, 2007, p. 533).
20
do sujeito, não para a arbitrariedade, mas para a captura integral do que lhe antecede e ultrapassa.
Marx (s/d, p. 105), em A Miséria da Filosofia, manifestamente expressa essa concepção:
Cada princípio teve seu século, para nele se manifestar: o princípio da
autoridade, por exemplo, teve o século XI, tal como o princípio do
individualismo o século XVIII. De conseqüência em conseqüência, era o século
que pertencia ao princípio e não o princípio que pertencia ao século. Em outras
palavras, era o princípio que fazia a história e não a história que fazia o
princípio. Quando, em seguida, para salvar tanto os princípios como a história,
nos perguntamos por que é que tal princípio se manifestou no século XI ou no
século XVIII e não em qualquer outro, somos necessariamente levados a
examinar minuciosamente como eram os homens do século XI, como eram os
do século XVIII, quais eram suas necessidades respectivas, suas forças
produtivas, seu modo de produção, as matérias-primas de sua produção, enfim,
quais eram as relações de homem para homem que resultavam de todas essas
condições de existência. Aprofundar todas essas questões não será fazer a
história real, profana, dos homens em cada século, apresentar esses homens
simultaneamente como os autores e os atores de seu próprio drama? Mas a
partir do momento em que se representa o homem como o ator e o autor de sua
própria história, chega-se, por um desvio, ao verdadeiro ponto de partida, visto
que se abandona os princípios eternos de que inicialmente se falava.
21
objetividade e a necessidade de transformá-la radical e violentamente46. É o caminho que Marx
(1983-1985, p. 21, grifo nosso) assevera:
Em sua forma mistificada, a dialética foi moda alemã porque ela parecia tornar
sublime o existente. Em sua configuração racional, é um incômodo e um horror
para a burguesia e para os seus porta-vozes doutrinários, porque, no entendimento
positivo do existente, ela inclui ao mesmo tempo o entendimento da sua negação, da sua
desaparição inevitável; porque apreende cada forma existente no fluxo do
movimento, portanto também com seu lado transitório; porque não se deixa
impressionar por nada e é, em sua essência, crítica e revolucionária.
46
“A essência metodológica do materialismo histórico não pode, pois, ser separada da ‘atividade crítica
prática’ do proletariado – ambas são momentos do mesmo processo de evolução da sociedade. Assim, o
conhecimento da realidade operado pelo método dialético não pode ser desvinculado do ponto de vista de
classe do proletariado. A questão colocada pelo ‘austro-marxismo’, a separação metodológica entre a ciência
‘pura’ do marxismo e o socialismo, é, como todas as questões semelhantes, um falso problema, porque o
método marxista, a dialética materialista enquanto conhecimento da realidade, só é possível do ponto de vista
de classe, do ponto de vista da luta do proletariado. Abandonando-se este ponto de vista, afasta-se do
materialismo histórico, como, em troca, assumi-lo, entra-se diretamente na luta do proletariado” (Lukács,
1981, p. 83).
22
cabível a sugestão de que a ontologia marxiana dos Manuscritos é uma ontologia empirista que põe
em equivalência essência objetiva e essência sensível no sentido de que o que é real é tão-somente o
que advém de nossos sentidos (físicos)47, tal como aventa Della Fonte (2007, p. 333). Como se
destacará, a compreensão da esfera dos sentidos humanos, para Marx, extrapola os limites físicos,
diz respeito aos órgãos da individualidade (Marx, 2006a).
“O homem é imediatamente ser natural” (Marx, 1978a, p. 40), e tal como os outros seres,
sua condição corpórea, sensível, é que o torna objetivo. Ou seja, os objetos de suas necessidades
existem fora dele, como objetos independentes, indispensáveis à exteriorização de sua própria
existência. A conseqüência desta proposição é que “ser objetivo é também ser objeto para um outro
ser”48 (Della Fonte, 2007, p. 333). Essa dimensão do carecimento dos seres é sinônimo de
padecimento por ter seu ser fora de si. “Ser sensível é padecer” (Marx, 1978a, p. 41).
Desta afirmação poder-se-ia contestar que antes fora dito (vide capítulo anterior) que
no ato de trabalho apenas o homem existe de modo independente do objeto, a partir do momento
que cria mediações, enquanto que “o animal identifica-se prontamente com a sua atividade vital”
(Marx, 2006a, p. 116). Nossa afirmação mostrava apenas que no ato de trabalho (a satisfação da
carência através da relação metabólica com a natureza) e em seu resultado, apenas no homem, sua
atividade vital se torna “objeto da vontade e da consciência” (Marx, 2006a, p. 116), daí sua atividade
ser uma atividade vital consciente, lúcida.
Retomando. O outro elemento do teorema é, portanto, que um ser não-objetivo é um
não-ser; “ele não tem necessidade de, nem é necessário para um outro; ele não carece de nenhum
objeto e não é, para nenhum outro ser, objeto de necessidade; é atemporal” (Della Fonte, 2007, p.
333-334).
“O homem, no entanto, não é apenas ser natural, mas ser natural humano” (Marx,
1978a, p. 41). O homem ergue todo o tecido social mediado pela sua atividade vital. Ele humaniza a
natureza, fazendo-a o material onde imprime sua finalidade consciente, criando uma progressiva
riqueza humana, uma constelação de objetivações exteriores a ele, apesar de sua dependência do
criador. O ser humano produz-se a si mesmo no e pelo trabalho universalmente, como ser
genérico, onde a vida individual só pode constituir-se como tal enquanto vida genérica49.
47
“Gostaria de lembrar que o conceito de essência humana, ao contrário do que dizem os críticos das obras de
juventude de Marx, não está, de forma alguma, ancorado na compreensão que tinha Feuerbach do mesmo
conceito. Essência humana, para Marx, diz respeito à disponibilidade histórica do homem tornar-se social por
meio de suas relações e interações mundanas a partir do domínio da natureza e da organização do trabalho,
ao passo que, em Feuerbach, o conceito de essência humana está vinculado a aquilo que ele, Feuerbach,
compreende como sendo predicados imutáveis no homem, no sentido de que tais qualidades (a razão, o amor
e a vontade) moldam, mas ao mesmo tempo originam-se da referida essência” (Ranieri, 2006, p. 68, nota de
rodapé 3).
48
“[o homem, V. B.] enquanto ser natural, corpóreo, sensível, objetivo, é um ser que sofre, condicionado e
limitado, tal como o animal e a planta, quer dizer, os objetos das suas pulsões existem fora dele, como objetos
independentes, e, no entanto, tais objetos são objetos das suas necessidades, objetos essenciais, indispensáveis ao
exercício e à confirmação das suas faculdades. [...] Ser objetivo, natural, sensível e simultaneamente ter fora de si
o objeto, a natureza, o sentido para uma terceira pessoa, é a mesma coisa. A fome é uma necessidade natural;
portanto, requer uma natureza fora de si, um objeto fora de si, de maneira a satisfazer-se e a acalmar. A fome
constitui a necessidade objetiva de um corpo por um objeto exterior, indispensável à sua integração e à
expressão da própria natureza. O Sol é o objeto da planta, objeto indispensável e que lhe assegura a vida, da
mesma maneira que a planta é objeto do Sol, enquanto expressão da força suscitadora de vida do sol, do poder
objetivo do Sol” (Marx, 2006a, p. 182).
49
“A edificação prática de um mundo objetivo, a manipulação da natureza inorgânica, é a ratificação do homem
como ser genérico lúcido, ou seja, um ser que avalia a espécie como seu próprio ser ou se tem a si mesmo
como ser genérico. Sem dúvida, o animal também produz. Ergue um ninho, uma habitação, como as abelhas,
os castores, as formigas, etc. Mas só produz o que é absolutamente necessário para si ou para os seus filhotes;
produz apenas numa só direção, ao passo que o homem produz universalmente; produz somente sob a
dominação da necessidade física imediata, enquanto o homem produz quando se encontra livre da
necessidade física e só produz verdadeiramente na liberdade de tal necessidade; o animal apenas se produz a
si, ao passo que o homem reproduz toda natureza; o seu produto pertence imediatamente ao seu corpo físico,
enquanto o homem é livre diante do seu produto. O animal constrói apenas segundo o padrão e a
necessidade da espécie a que pertence, ao passo que o homem sabe como produzir de acordo com o padrão
de cada espécie e sabe como aplicar o apropriado ao objeto; assim, o homem constrói também em acordo
com as leis da beleza” (Marx, 2006a, p. 117).
23
Desprovido da apropriação destas objetivações histórico-socialmente desenvolvidas nenhuma
individualidade é possível.
Nem a afirmação do indivíduo isolado, nem a concepção de uma sociedade abstrata,
Marx resolve definitivamente a relação entre vida individual e vida genérica, daí sua assertiva de que
“O indivíduo é o ser social” (Marx, 2006a, p. 140). Indo mais além, “O homem é no sentido mais
literal, um zoon politikon, não só animal social, mas animal que só pode isolar-se em sociedade”
(Marx, 1991, p. 4, sublinhado meu).
O processo de exteriorização (objetivação) do ser humano no mundo objetivo, social,
se dá mediante a afirmação da integralidade de suas faculdades, isto é, “Não é, por conseguinte, só
no pensamento, mas por meio de todos os sentidos, que o homem se afirma no mundo objetivo”
(Marx, 2006a, p. 143). O homem precisa, por outro lado, suprassumir tais objetivações
omnilateralmente de modo a asseverar sua humanidade. Como indica Marx (1978a, p. 11,
sublinhado meu):
O homem apropria-se do seu ser global de forma global, isto é, como homem
total. Cada uma de suas relações humanas com o mundo – ver, ouvir, cheirar,
saborear, sentir, pensar, observar, perceber, querer, atuar, amar -, em resumo,
todos os órgãos de sua individualidade, como órgãos que são imediatamente
coletivos em sua forma, são, em seu comportamento objetivo, em seu
comportamento para com o objeto, a apropriação deste. A apropriação da efetividade
humana, seu comportamento frente ao objeto, é a manifestação da efetividade humana
[...].
50
Qualquer associação à relação metodológica todo/partes não é mera coincidência. É apenas mais uma
prova de seu caráter ontológico.
24
O homem como ser objetivo sensível é, por isso, um ser que padece, e, por ser um
ser que sente sua paixão, um ser apaixonado. A paixão é a força essencial do
homem que tende energicamente para seu objeto.
25
vitalidade do meu coração. Sinto-me outra vez um homem, na medida em que me sinto
vivendo uma grande paixão. A complexidade na qual somos envolvidos pelos
estudos e pela educação modernos, bem como o ceticismo com que
necessariamente relativizamos todas as impressões subjetivas e objetivas, tudo
isso nos leva muito eficazmente a nos sentirmos fracos, pequenos, indecisos e
titubeantes. Porém o amor – não o amor feuerbachiano pelo ser, não o amor
moleschottiano pela transformação da matéria, não o amor pelo proletariado,
mas o amor pela amada (no caso, por ti) – torna a fazer do homem um homem.
Podemos notar que Marx se refere à paixão amorosa como algo que “torna a fazer do
homem um homem”, algo que permite ao amante sentir-se “outra vez um homem”. Decerto, Marx
é bem feliz ao empregar tamanha energia à paixão, e, como busca essencialmente a carta, elogiar as
potentes qualidades amorosas de Jenny. Entrementes, a indicação marxiana pressupõe a existência
de um homem duplicado, cindido, perdido e estranhado a si mesmo. Isto é, seu elogio está relacionado,
neste particular, à forma específica de amar de uma época onde o homem alienado é expressão
geral. Desta maneira, ele abre caminho para nossa análise mais detida exatamente sobre a própria
possibilidade de amar. É a senda para avaliarmos por que o tempo presente culmina com a negação
ontológica do amor.
3.2 O avesso de si: a negação ontológica do amor ou o amor nos tempos do cólera
26
criatividade? Longe disso, o que ocorre é que “o objeto produzido pelo trabalho, o seu produto,
opõe-se a ele como ser estranho, como um poder independente do produtor” (Marx, 2006a, p. 49). Mas
não só isso, o trabalhador mesmo transfigura-se em mercadoria: “O trabalho não produz apenas
mercadorias; produz-se a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria [...]” (idem, ibidem).
Entretanto, antes de apontarmos mais elementos desta que é uma forma de alienação – o fenômeno
do fetichismo – vejamos do que se trata a alienação.
A alienação não é um fenômeno surgido no mundo capitalista. Sua origem remonta ao
advento da propriedade privada e da divisão social do trabalho, ou por outros termos, ao
surgimento das classes sociais. Ou seja, a alienação surge no modo de produção asiático e persiste
até os nossos dias. A objetivação do gênero humano de lá para cá tem ocorrido mediante a
exploração do trabalho, a apropriação privada do resultado geral da atividade social. A maior parte
da humanidade, neste processo, tem sido impedida de se apropriar de toda essa riqueza material e
imaterial, de enriquecer-se através das criações humanas. É isto a alienação52 (Duarte, 2004).
Afirmamos acima que a dialética da existência social, aquela responsável pelo processo de
objetivação do gênero humano, é contraditória, onde coexistiram e coexistem os fenômenos de
humanização e alienação. A alienação encerra desta maneira, contraditoriamente, aspectos positivos
e negativos. Positivamente, tivemos um profundo enriquecimento do gênero humano, da riqueza
humana, que no capitalismo, como em nenhum outro período da história humana, deu um salto no
desenvolvimento das forças produtivas53, isto é, “a burguesia deu um caráter cosmopolita à
produção e ao consumo em todos os países” (Marx & Engels, 2003, p. 29). Em que pese o
capitalismo moderno ter criado pela primeira vez na história indivíduos empiricamente universais, é
também sob esse sistema social que a alienação, aos compassos da exploração do trabalho, chega ao
paroxismo. Numa época como a nossa o trabalho chega a níveis extremamente degradantes, os seus
efeitos deletérios não poderiam ser outra coisa senão profundo embrutecimento dos indivíduos, a
exploração torna-se “aberta, única, direta e brutal” (idem, p. 28). A maioria dos seres humanos está
encarcerada sob a cotidianidade alienada, destituída da vida humano-genérica, numa “muda”
coexistência. Um aspecto decisivo do trabalho alienado é que ela transforma a atividade vital do
homem, o seu ser, em simples meio de sua existência54, “transforma a vida genérica em meio da vida
individual” (Marx, 2006a, p. 116), o que faz com que o trabalho, a atividade vital, apareça para o
homem como o único meio que satisfaz um carecimento, o de manter a existência física. Isto
decorre de uma das leis imanentes à reprodução sócio-metabólica do capital, a anarquia da produção,
ou seja, a produção pela produção, a produção (da riqueza) como um fim em si mesmo, que, nesse
caso, aparece como o objetivo da humanidade. Assim, se entendermos que “a condição de
existência do capital é o trabalho assalariado” (Marx & Engels, 2003, p. 37), e que o capital só pode
reproduzir-se em movimento ampliado – acumulando riqueza -, então saberemos que faz parte de
sua lógica (incorrigível) a busca crescente de mais-valia, que ele precisa ampliar progressivamente a
exploração do trabalho (e predatoriamente dos indispensáveis recursos naturais para a produção das
mercadorias). É o que István Mészáros chama de incontrolabilidade do capital. Ora, no plano da
atividade social o trabalho é simples meio do capital, é trabalho vivo sendo sugado pelo trabalho
52
“Existe alienação quando ocorre um abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades
de desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humano-genérica e a participação consciente
do indivíduo nessa produção. Esse abismo não teve a mesma profundidade em todas as épocas nem para
todas as camadas sociais; assim, por exemplo, fechou-se quase completamente nas épocas de florescimento
da polis ática e do Renascimento italiano; mas, no capitalismo moderno, aprofundou-se desmesuradamente”
(Heller, 1992, p. 38).
53
“A burguesia durante seu domínio, apenas secular, criou forças produtivas mais poderosas e colossais do
que todas as gerações em conjunto. A subordinação das forças da natureza ao homem, a maquinaria, a
aplicação da química na indústria e na agricultura, a navegação a vapor, as vias férreas, os telégrafos elétricos,
a exploração de continentes inteiros para fins de cultivo, a canalização de rios, populações inteiras brotadas da
terra como por encanto – que século anterior poderia prever que essas forças produtivas estivessem
adormecidas no seio do trabalho social?” (Marx & Engels, 2003, p. 30).
54
“Não se trata apenas do fato de que o trabalhador não seja o proprietário daquilo que resulta de seu
trabalho mas também do fato de que o trabalhador não pode apropriar-se de tudo aquilo que, sendo produto
da atividade humana em geral, poderia tornar sua vida muito mais humana, com muito mais sentido, com
muito mais conteúdo, diferentemente da vida real que lhe cabe, na qual a maior parte de seu tempo e de suas
energias físicas e mentais é destinada à luta cotidiana pela sobrevivência” (Duarte, 2004, p. 232).
27
morto, o que faz com que no plano individual o trabalho seja simples meio para garantir a
existência como sujeito físico.
Nos Manuscritos parisienses, Marx apresenta cinco momentos constitutivos da alienação:
a alienação do homem com o produto do seu trabalho, alienação com relação ao gênero humano (à
sua própria atividade), alienação de si mesmo, alienação com relação ao outro e alienação em face
da natureza55.
Destaca-se que o ser do homem da sociedade alienada consiste na negação de si,
através da negação de sua humanidade e liberdade, tipicamente sua por ser um ser genérico,
resultando, portanto, na negação ontológica do ser social, pois a alienação consiste justamente em
usurpar-lhe a dimensão humano-genérica (ontológica)56.
Vejamos ipsis verbis a ácida passagem de Marx (2006a, p. 114) onde ele trata da
condição alienada do homem burguês:
[...] ele não se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo, não se sente bem,
mas, infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-
se fisicamente e arruína o espírito. Por conseguinte, o trabalhador só se sente em
si fora do trabalho, enquanto no trabalho se sente fora de si. Assim, o seu
trabalho não é voluntário, mas imposto, é trabalho forçado. Não constitui a
satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras
necessidades. O trabalho externo, o trabalho em que o homem se aliena, é um
trabalho de sacrifício de si mesmo, de martírio.
[...] Assim, chega-se à conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente
livremente ativo em suas funções animais – comer, beber e procriar, quando
muito, na habitação, no adorno, etc. – enquanto nas funções humanas se vê
reduzido a animal. O elemento animal torna-se humano e o humano, animal.
Mais a frente, no terceiro manuscrito, Marx (2006a, p. 150) radicaliza e leva às últimas
conseqüências a dimensão da desefetivação da essência humana, da desrealização do homem, pelo
trabalho sob relações sociais onde vigora a propriedade privada, onde nem a animalidade das
necessidades persiste:
Para o trabalhador, até mesmo a necessidade de ar puro deixa de ser
necessidade. O homem regressa à moradia nas cavernas, mas agora se encontra
intoxicada pela exalação maléfica da civilização. O trabalhador tem apenas um
direito precário a nela morar, porque se tornou um poder estranho, que se lhe
diminui todos os dias, do qual pode ser desalojado [XV], se não pagar a renda.
Tem de pagar este cemitério. A moradia cheia de luz que Prometeu, em Ésquilo,
caracteriza como um dos maiores dons pelo qual transformou o selvagem em
homem, deixa de existir para o trabalhador. A luz, o ar e a mais elementar
limpeza animal deixam de existir para o homem como necessidades. A sujeira, a
corrupção e a degradação do homem, os esgotos da civilização (deve-se entender
o termo no seu significado exato), tornam-se o seu elemento vital. Nenhum dos
seus sentidos já não existe mais, seja em configuração humana, seja até numa
configuração não-humana, numa configuração animal. Ressurgem os mais
grosseiros métodos (e instrumentos) de trabalho humano; assim, o moinho dos
escravos romanos tornou-se o modo de produção e o modo de existência de
55
Apesar do equívoco de Paulo Silveira (1989) em considerar as formas de alienação 1) do homem com a
natureza, 2) com o outro e 3) de si mesmo como tendo uma dimensão ontológica, enquanto as restantes seriam
históricas, concordo com ele quanto aos cinco momentos. Jesus Ranieri (2006), estranhamente, não enumera a
alienação do homem com a natureza como momento, considerando apenas os outros quatro.
56
“Na medida em que o trabalho alienado tira do homem o elemento da sua produção, rouba-lhe a vida
genérica, a sua objetividade real como ser genérico [...]. A consciência que o homem tem da própria espécie
altera-se por meio da alienação, de modo que a vida genérica se transforma para ele em meio.
Conseqüentemente, o trabalho alienado transforma:
3) A vida genérica do homem, e também enquanto sua propriedade genérica espiritual, em ser estranho, em meio da
sua existência individual” (Marx, 2006a, p. 117).
28
muitos trabalhadores ingleses. Não foi o bastante que o homem tivesse perdido
as necessidades humanas; também as necessidades animais desaparecem57.
Marx (1978b, p. 92-93, grifo nosso) parece não abandonar esta leitura virulenta da
condição (des)humana do homem no mundo das mercadorias. Anos mais tarde, em Salário, Preço e
Lucro, ele afirma:
O tempo é o campo do desenvolvimento humano. O homem que não dispõe de
nenhum tempo livre, cuja vida, afora as interrupções puramente físicas do sono, das
refeições, etc., está toda ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalista, é menos
que uma besta de carga. É uma simples máquina, fisicamente destroçada e espiritualmente
animalizada, para produzir riqueza alheia. E, no entanto, toda a história da moderna
indústria demonstra que o capital, se não se lhe põe um freio, lutará sempre,
implacavelmente, e sem contemplações, para conduzir toda a classe operária a
este nível de extrema degradação.
Ora, se o homem alienado se objetiva alienadamente, isto é, exterioriza sua vida como
ser inumano, os seus sentidos perdem suas qualidades humanas e reduzem-se à mais mesquinha
condição: “Em lugar de todos os sentidos físicos e espirituais apareceu a simples alienação de todos os
sentidos, o sentido do ter” (Marx, 1978a, p. 11).
Disto posto, a negação ontológica do ser social equivale à negação ontológica dos
sentidos humanos, dentre eles o sentido amoroso. Como pode o homem amar se ao amor, enquanto
atividade e sentido profundamente humano, e ao homem amante foram usurpados toda a
humanidade, toda a qualidade humana?
Em 1928, René Magritte apreendeu de maneira estética o estranhamento amoroso
experimentado no moderno mundo das mercadorias. Em Os amantes, a capacidade de fruição
amorosa que me objetive como ser total, mediada pela universalidade do outro-amante, e que,
portanto, nos encaminhe à beleza e riqueza das necessidades subjetivas, é extraviada em função da
própria desefetividade humana, da identidade perdida58, da individualidade livre e universal mandada às
57
Raoul Vaneigem (2002, p. 60, grifo nosso) não titubeia ao retratar esta miserável situação advinda da
decadência do trabalho. Quem ousaria negá-la?!: “O que sobra de centelha humana, de criatividade possível,
em um ser arrancado do sono às 6 da manhã, sacudido nos trens suburbanos, ensurdecido pelo barulho das
máquinas, lixiviado e vaporizado pelas cadências, pelos gestos sem sentido, pelo controle estatístico, e
empurrado no fim do dia para os saguões das estações (essas catedrais de partida para o inferno dos dias de
semana e do fútil paraíso dos weekends), quando a multidão comunga na fadiga e no embrutecimento? Da
adolescência à aposentadoria, os ciclos de 24 horas sucedem-se com seu mesmo estilhaçamento, como balas
acertando uma janela: repetição mecânica, o tempo-que-é-dinheiro, submissão aos chefes, tédio, fadiga. Da
aniquilação da energia da juventude à ferida aberta da velhice, a vida é estilhaçada sob os golpes do trabalho forçado.
Nunca uma civilização chegou a um tal grau de desprezo pela vida”.
58
A ausência de uma consciência social para o indivíduo equivale a “uma consciência altamente alienada, em
que a experiência de sua própria identidade se perdeu” (Fromm, 1994, p. 112).
29
favas. A ausência dos rostos corresponde à individualidade esvaziada e carcomida pelo valor de troca
no mundo mercantil. O véu que os encobre – o véu de Maya da roda-viva da existência burguesa –
é o envoltório místico que camufla a existência amorosa posta ao avesso, que tem seu píncaro no
fetiche. É a retratação poética das mais brilhantes sobre a condição ontologicamente obstruída do
amor humano na sociedade burguesa. É por isso que ela estampa, com inteira legitimidade, a
abertura deste ensaio.
Faz-se necessário entender, então, a efetividade estranha do amor no mundo do capital.
Entender como o sentido dominante desta época – o ter –, que subsume todos os demais, se
configura em nível erótico. Nessa contextura, quero arriscar-me apresentando o meu ponto de vista
sobre a questão, conforme me permite a materialidade teórica e praticamente.
Uma das formas decisivas da alienação, que cumpre uma função de essencialidade na
ordem social capitalista, é o fetichismo59. Marx (1983-1985) desvelou o segredo do fetichismo da
mercadoria (e do dinheiro, conseqüentemente), o fetiche fundante de todos os demais que incidem
sob a individualidade, onde esta é tomada pelo seu próprio fetichismo, o fetichismo da individualidade
(Duarte, 2004).
O capitalismo moderno põe as relações de produção em movimento num nível até
então não atingido em nenhum momento histórico anterior: a burguesia, através do mercado
mundial, universalizou (pelo menos virtualmente) a produção e a distribuição dos produtos do
trabalho. Ao romper com os limites das unidades econômicas presas à esfera da comunidade
natural, deixou também, por conseqüência, o caráter social transparente da organização da produção.
Na produção orientada para o mercado, que possibilita a superação dos limites nacionais, religiosos,
sociais, etc., o seu laço social se dá mediante a confrontação dos produtos dos trabalhos privados
dos produtores, onde esse complexo de trabalhos privados “forma o trabalho social total” (Marx,
1983-1985, p. 71). As características propriamente sociais destes diferentes trabalhos só aparecem
dentro dessa troca. Para que diferentes produtos (trabalhos concretos) possam ser trocados, eles
são nivelados (igualados) pelo quantum de tempo de trabalho socialmente necessário para a sua
produção, pela quantidade de trabalho neles plasmado. Os diferentes produtos de trabalho com
suas objetividades de uso específicas (qualidades específicas) são equiparados tão-somente de
maneira abstrata. Reduzem-se a trabalho abstrato. Este caráter eminentemente social (o trabalho
socialmente necessário à produção de um bem) é transformado, numa economia mercantil, em
atributo natural do objeto, em uma qualidade inerente à coisa. Ou seja, a forma mercadoria faz com
que as características sociais do trabalho dos homens lhes apareçam como características objetivas
dos próprios produtos do trabalho, o que se estende também à relação dos produtores com o
trabalho total, que aparece como uma relação social existente fora deles, entre objetos. Daí a
mercadoria ser uma “coisa fisicamente metafísica” (Marx, 1983-1985, p. 70). Esta dinâmica é
inseparável da forma social de produção de mercadorias.
No processo de produção capitalista não há uma organização planejada e racional para
a totalidade do processo social, trata-se de “uma formação social em que o processo de produção
domina os homens, e ainda não o homem o processo de produção” (Marx, 1983-1985, p. 76). Isto
quer dizer que, se na produção há uma racionalidade burocrática que a organiza, na distribuição é o
mercado quem se “responsabiliza” por isso através de sua regra-mor:
[...] os produtos devem ser vendidos a um preço suficientemente elevado em um
mercado mais ou menos competitivo, no qual cada um se encontra diante de
compradores ou de concorrentes que agem independentemente dele – ou
mesmo contra as suas intenções. É por isso que o mercado assume para ele o
aspecto de uma realidade cega, objetiva e exterior (Goldmann, 1994, p. 140).
Deste modo, o equivalente geral das trocas das mercadorias – a mercadoria geral –
passa a ser o dinheiro. O valor de troca é a mediação universal do mundo das mercadorias, e por se
tratar nada mais do que uma relação abstrata de homem a homem (reificação), e do homem com a
produção social (relação entre os objetos, entre coisas), ela produz o completo esvaziamento das
relações humanas, da vida humana, e, por isso mesmo, um completo esvaziamento dos indivíduos
(Duarte, 2004, 2006a; Goldmann, 1994). No fetiche da mercadoria, é exatamente o valor de troca
59
Há um conjunto de categorias que, apesar de sua existência em formações econômicas pré-capitalistas, só
assumem uma função decisiva, essencial, no modo de produção capitalista. Entre elas contamos o capital, a
mercadoria, o dinheiro, o fetichismo, a ideologia, o Estado, etc.
30
que é tido como uma propriedade natural, objetiva, da coisa. Sumária e grosseiramente, o fetichismo
corresponde a atribuir (isso se reflete em nossa consciência) uma propriedade objetiva a um objeto
sem que isso lhe corresponda objetivamente.
É importante levantar a questão, pois, segundo entendo, as relações amorosas no
mundo das mercadorias elevam-se à sua negação ontológica em nível mais interno em virtude do
fetichismo amoroso. Já demonstramos que ontologicamente o homem se efetiva estranhadamente, o que
quer dizer que se nega ontologicamente como homem, e que, portanto, suas capacidades e sentidos
amorosos são negados. Porém, é preciso indicar como internamente o sentido amoroso se põe ao
avesso, resultando na negação ontológica do amor. Entendo que o fetichismo amoroso conta entre
aqueles que compõem o “fetichismo da individualidade”60 (Duarte, 2004).
O fetichismo amoroso fora percebido por Marx (2005) bem cedo, já em A Sagrada Família.
Edgar Bauer, em sua fetichização, faz do amor um “deus” para quem o homem é um ser particular,
um predicado. Este deus “Amor” passa a ter existência própria, independente do próprio homem.
Inspirando-me na crítica de Marx sobre a alienação do ser amoroso, que me parece ser a
determinação histórica implacável do ser social burguês que produz o homem do amor, aponto as
bases para investigarmos as condições histórico-ontológicas para a efetivação do amor do homem. O
movimento de trânsito de uma condição à outra encontrará, teoricamente, seu coroamento no
próximo e último capítulo onde trataremos sobre a liberdade de amar. Confiramos, pois, a passagem
onde Marx (2005, p. 29-30) nos fornece a base para a nossa tese segundo a qual o amor, no mundo das
mercadorias, é ontologicamente impossível:
O Sr. Edgar fez do amor um “deus”, que é sobretudo um “deus cruel”,
substituindo o homem amante, o amor do homem, pelo homem do amor, tirando do
homem o “Amor” do qual ele faz um ser particular, conferindo-lhe uma
existência independente. Por este simples processo, por esta metamorfose do
atributo do sujeito, pode-se transformar criticamente todas as determinações e
todas as manifestações essenciais do homem em monstros e alienações do ser.
O moderno mundo das mercadorias é o mundo que tem no valor de troca, isto é, no
dinheiro, a mediação universal das relações sociais esvaziadas, e é o mundo onde todos os sentidos
foram alienados pelo sentido do ter. É um mundo dominado pela propriedade privada.
Ora, o Dasein do amor é sua transfiguração num deus estranho e independente do
homem, a que este é um anelo. Este deus consiste justamente no deus universal que regula as
relações humanas desta época – o dinheiro61. É este o elemento decisivo na permuta amorosa. É a
qualidade objetiva essencial para a sedução amorosa, que daí se espraia para os diversos níveis
particulares da relação erótica. Hoje, o indivíduo julga-se bom amante pela quantidade de parceiras/
os com quem já transou, por exemplo. Entre os atributos que as pessoas dizem procurar num
parceiro (companheiro amoroso) enumeram muitos tais como respeito, carinho, fidelidade, etc. etc.,
mas o que no fundo define a escolha é a “estabilidade” financeira (quanto dinheiro se tem); estes
atributos são subsumidos pelo laço que me liga à vida humana na sociedade burguesa. O dinheiro e
a posição ocupada na divisão social do trabalho (algo bastante equivalente) são os aspectos
decisivos da busca amorosa. O dinheiro, “a verdadeira necessidade criada pelo moderno sistema
econômico e é a única necessidade que ele produz” (Marx, 2006a, p. 149), modela o sentido
amoroso estranhado dos amantes alienados. No mundo da alienação, o dinheiro estraçalha,
relativiza e quantifica todos os valores. Subverte-os, transforma “a fidelidade em infidelidade, o amor
em ódio, o ódio em amor, a virtude em vício, o vício em virtude” (Marx, 2006a, p. 170). No Brasil,
60
Newton Duarte (2004, p. 221) demonstra com perspicácia como o chamado pós-modernismo, longe de ser
uma crítica ao fetichismo da individualidade, constitui a sua radicalização. Está em grande sintonia com o que
já fizera o liberalismo: “O pensamento liberal clássico fetichiza a individualidade ao naturalizá-la e ao erigir à
condição de natureza humana as características próprias da individualidade burguesa. O pensamento pós-
moderno fetichiza a individualidade ao transformar em condição humana o ceticismo, a fragmentação, o
solipsismo, o subjetivismo e a irracionalidade”.
61
“O deus da necessidade prática e do interesse pessoal é o dinheiro. [...] O dinheiro rebaixa todos os deuses do
homem e transforma-os em mercadoria. O dinheiro é o valor universal e auto-suficiente de todas as coisas.
Conseqüentemente, destituiu todo o mundo, tanto o mundo humano como a natureza, do seu próprio valor.
O dinheiro é a essência alienada do trabalho e da existência prática do homem; esta essência domina-o e ele
presta-lhe culto e adoração” (Marx, 2006b, p. 42)
31
por exemplo, ter uma relação amorosa com alguém que seja servidor público (federal então...) -
dependendo da função na divisão do trabalho - é quase o mesmo que ganhar na loteria 62. Mas...
“Dizer ‘eu tenho grande amor por você’ não tem sentido. Amor não é uma coisa que se possa ter,
mas um processo [...]” (Fromm, 1982, p. 41).
No fundo, os atributos perseguidos na escolha amorosa, um verdadeiro comércio
amoroso, são a carcaça daquilo em que estou travestido sob uma ordem social baseada na divisão do
trabalho e na propriedade privada. As relações amorosas face-to-face, intersubjetivas, expressam-se
pela mesma dimensão abstrata da inteireza das relações sociais, para quem o dinheiro é o guardião-
maior, “o laço de todos os laços” (Marx, 2006a, p. 169). O dinheiro é a força universal de separação
e união na sociedade burguesa, “a força galvano-química da sociedade” (idem, ibidem).
O que para mim existe por meio do dinheiro, aquilo que eu posso pagar, ou seja,
o que o dinheiro pode comprar, sou eu, o próprio possuidor de dinheiro. O
poder do dinheiro é o meu próprio poder. As propriedades do dinheiro são as
minhas – do possuidor – próprias propriedades e faculdades. Aquilo que eu sou
e posso não é, pois, de modo algum determinado pela minha própria
individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher.
Conseqüentemente, não sou feio, porque o efeito da fealdade, o seu poder de repulsa,
é anulado pelo dinheiro. Como indivíduo, sou manco, mas o dinheiro fornece-
me vinte e quatro pernas; portanto, não sou manco; sou um homem detestável,
indigno, sem escrúpulos e estúpido, mas o dinheiro é o objeto de honra, por
conseguinte, também o seu possuidor. O dinheiro é o bem supremo, e deste
modo também o seu possuidor é bom. Além disso, o dinheiro poupa-me, ao
esforço de ser desonesto; por conseqüência, sou tido na conta como honesto;
sou estúpido, mas o dinheiro constitui o espírito real de todas as coisas: como
poderá o seu possuidor ser estúpido? Ademais, ele pode comprar para si as
pessoas talentosas: quem tem poder sobre as pessoas inteligentes não será mais
talentoso do que elas? Eu, que por meio do dinheiro posso tudo o que o coração
humano ambiciona, não possuirei todas as capacidades humanas? Não
transformará assim o dinheiro todas as minhas incapacidades no seu contrário?
(Marx, 2006a, p. 168-169)
32
da essência humana. Do contrário, seria preciso aceitarmos a idéia de que só é possível satisfazer as
necessidades humanas (e enriquecer-me com necessidades superiores) mediante o valor de troca, o
dinheiro.
Isto significa que, no plano erótico, nós nos confrontamos como possuidores de dinheiro.
As eventuais qualidades que podem em mim ser exaltadas são, em verdade, as qualidades que o meu
dinheiro me permite ter. Ou seja, as propriedades que parecem ser minhas são resultado do poder
do dinheiro em mim investido. Aquilo que o dinheiro, com o seu fantástico poder, me permitiu
adquirir, sou eu. Quer dizer, mesmo em situações onde o relacionamento se ampara em um amante
possuidor de dinheiro e o outro desprovido de dinheiro, em nada altera a questão. Porque a
condição para o amor entre ambos está no poder do dinheiro de um deles (que pode se tornar
conjunto). Amamo-nos porque temos dinheiro. É assim que o dinheiro, na ordem sócio-metabólica do
capital, se torna um atributo imanente do amor, sua propriedade natural, fisiológica. O dinheiro é “a
forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (Marx, 1983-1985, p. 71) que amam. Fetichismo
amoroso consumado.
Como salientamos anteriormente, a atividade de trabalho humano na sociedade
burguesa orienta a produção da riqueza unilateralmente, para a produção de mais-valia, para a
reprodução do capital, para a produção de valor de troca, o que faz com que a riqueza sob a forma
burguesa seja caracteristicamente alienada. “Tanto isso é verdade que a palavra riqueza está
fortemente associada na mente de todos à imagem de uma grande quantidade de dinheiro” (Duarte,
2004, p. 235). No entanto, o reconhecimento dessa alienação por Marx não o impelia a aspirar por
uma sociedade em que o trabalho humano não visasse à produção da riqueza. Em diametral
oposição, ele criticava as noções românticas que coadunavam com esta idéia. Aliás, até hoje tais
concepções são propaladas, com uma carapaça de novidade. No campo educacional, o relatório da
Unesco sobre educação para o século XXI, também conhecido como relatório “Jack Delors”, apela
quase esotericamente para uma educação que não esteja voltada unicamente para o
desenvolvimento econômico dos países, mas promova a valorização da pessoa humana, o cultivo
de valores para paz e a tolerância religiosa, dentre outros. A concepção marxiana de riqueza entende
que a questão fundamental não é encontrar alguma espécie de meio-termo entre uma sociedade
voltada para a produção da riqueza e uma sociedade voltada para a produção do ser humano. É,
sim, necessário superar a forma burguesa da riqueza. Com isso, supera-se a oposição entre, de um
lado, a riqueza e, do outro, o ser humano. Retirada a carcaça burguesa da riqueza, é possível ver
como o enriquecimento objetivo implica sob vários aspectos no enriquecimento subjetivo (Duarte,
2004, p. 235-236). Isto inclui, sem dúvidas, a dimensão da riqueza amorosa. Voltaremos mais à
frente a esta questão.
Há, segundo penso, outro aspecto determinante, que é reflexo em nível subjetivo da
propriedade do dinheiro, para a afirmação do fetichismo amoroso: as relações amorosas num mundo
dominado pela propriedade privada expressam-se igualmente como relações de propriedade. A
configuração erótica do homem burguês é exatamente a de propriedade amorosa. É um reflexo
subjetivo profundo nas relações amorosas da propriedade privada e do dinheiro, onde mesmo que
“fisicamente” o dinheiro não esteja presente, a “onipotência da sua natureza” (Marx, 2006a, p. 167)
não se faz ausente, exprimindo-se como controle do outro, como quem guarda uma conta bancária
recheada. Eis que o sentido do ter, no campo amoroso, exerce um vasto domínio 64, e é justamente
em função disso que a riqueza erótica do outro não consegue ser apanhada, pois o homem não
efetivou a auto-posse de si mesmo como gênero humano, de tal modo que isto não pode ser
64
No campo da linguagem, o fetiche se exprime pela substituição do verbo – que se refere ao processo – pelo
substantivo – que se refere à coisa. Conforme Erich Fromm (1982) explora esta questão fornecendo-nos
alguns exemplos tais como: “Eu tenho saudade” em vez de “Eu sinto falta” (p. 39), ou outros tantos casos em
que temos um problema, temos um casamento, temos uma vida assim ou assado etc. De algum modo estes casos
só expressam de maneira mais explícita o fetiche da mercadoria e do dinheiro, que na linguagem fica impressa
como uma digital, e cuja dificuldade de percepção é mais complexa. Marx (1983-1985, p. 73) já havia
salientado esta dimensão do fetiche: “Quando digo casaco, botas etc. se relacionam ao linho como a
corporificação geral de trabalho humano abstrato, salta aos olhos o absurdo desta expressão”. Na esteira de
Marx, Lucien Goldmann (1994, p. 145) diz a respeito: “Longe de ser um simples aspecto sutil, tal distorção [a
economia mercantil que mascara o caráter histórico e humano da vida social, tornando o homem um
elemento passivo, um espectador, V. B.] é uma realidade psíquica profunda que se exprime até mesmo na
linguagem. Correntemente usamos expressões absurdas em si mesmas, mas que todo mundo compreende,
como: “a empresa vai indo bem”, “o cobre subiu”, “as mercadorias não vieram””.
33
percebido no outro-amante. A atividade amorosa como manifestação da propriedade privada,
reproduzindo-a subjetivamente, fora captada pelas intuições de F. Nietzsche (2003, p. 47), quando
questiona e afirma:
[...] O nosso amor pelo próximo não será o desejo imperioso de uma nova
propriedade? [...] [o indivíduo, V. B.] chama também de “amor” a este desejo de
uma nova posse que despertou em sua alma e tem prazer nisso como diante de
uma nova conquista iminente. Mas é o amor sexual que se revela mais
nitidamente como um desejo de posse: aquele que ama quer ser possuidor
exclusivo da pessoa que deseja, quer ter um poder absoluto tanto sobre a sua
alma como sobre seu corpo, quer ser amado unicamente, habitar e reinar na
outra alma como o mais alto e o mais desejável.
Este modo de ser amoroso em que “aquele que ama quer ser possuidor exclusivo da
pessoa que deseja, quer ter um poder absoluto tanto sobre a sua alma como sobre seu corpo”, que
Nietzsche e B. Franklin vêem como parte da condição humana, cada um à sua maneira, consiste
fundamentalmente no Dasein amoroso de uma época onde “O capital é a potência econômica [...]
que domina tudo” (Marx, 1991, p. 22), onde a alienação tornou-nos profundamente estúpidos, a tal
ponto que o amor-ao-outro-amante, para exprimir-se como “amor” recíproco, exige-nos o controle e a
65
Nietzsche, por não compreender as efetivas condições de existência dos homens, não atribui nenhuma
realidade ao amor não-egoísta, senão como signo, como uso lingüístico (ou no vocabulário contemporâneo
mais cool: discurso). A dimensão lingüística e ideal de um amor não-egoísta não decorreu de nenhuma realidade
vivida na existência social dos homens, foi apenas uma idéia por alguns inventada. Este raciocínio idealista
aparece nas diversas obras do filósofo alemão, mas a fonte originária está em seu opúsculo de juventude Sobre
Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral (1873) onde ele defende que a verdade não passa de uma ilusão
gramatical do sujeito. A crítica a esta concepção foi feita no capítulo anterior.
66
Confira nota de rodapé número 63.
34
vigilância do ser-amado67. Assim é que reconhecemos o amor um do outro. Parece-me que Marx
(2006a, p. 142) é certeiro ao analisar o estado de embrutecimento provocado pela propriedade
privada que, no plano amoroso, desemboca no ímpeto de posse da propriedade:
A propriedade privada tornou-nos tão estúpidos e parciais que um objeto só é
nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando por nós
é diretamente possuído, comido, bebido, transportado no corpo, habitado, etc.
ou melhor, quando é utilizado.
Este ethos amoroso está tão enraizado na sociedade burguesa que outro elemento,
complementar e indispensável para sua exteriorização, ajuda-nos a melhor visualizar este aspecto do
fetichismo amoroso: o ciúme.
Defendemos até aqui que o amor na sociedade burguesa é um amor estranhado, que se
nega ontologicamente a si mesmo, pois lhe foi usurpado “toda” a humanidade, juntamente com o
homem. Asseveramos que os elementos-chave para apreender esse fetichismo amoroso estão no
dinheiro e na propriedade amorosa. Nessa contextura, o amor que temos nada mais é do que um
amor patológico. A manifestação amorosa de um homem adoecido não pode ser outra senão igualmente
adoecida. Tal manifestação patológica do amor, a relação de propriedade amorosa, encontra no
ciúme a sua maior expressão sintomática. Ciúme quer dizer etimologicamente zelo. Muitos o
concebem como uma manifestação amorosa, como algo que protege o amor. No século XIV,
segundo Torres et al (1999), associava-se à paixão, devoção e zelo, desprovido das conotações
pejorativas hoje existentes. No entanto, no mundo burguês e sua forma nuclear monogâmica, longe
disso, ele afirma-se como controle e patrulhamento da propriedade amorosa. Como o ímpeto de posse da
propriedade68. Isto é, dada a forma amorosa contratual na sociedade burguesa, permeadas da ilusão
jurídica típica das relações de propriedade existentes onde “alguém pode ter o título jurídico de uma
coisa sem ter a coisa realmente” (Marx & Engels, 2007, p. 77), o ciúme é o ímpeto de posse da
propriedade, pois a relação de propriedade amorosa é uma espécie de “título jurídico” onde não se
tem a coisa realmente (a auto-posse do gênero humano que me permita reconhecê-lo no outro-
amante e por isso a garantia translúcida do amor do ser-amado), mas que buscamos dela nos apossar
(grosseira e violentamente, como se evidenciam os acessos de ciúme). O que, nesse caso, significa
exercitar (como “bom” proprietário) o meu jus utendi et abutendi69. Como isso se realiza apenas num
plano mesquinhamente subjetivo, as suas implicações são exatamente as do doentio
comportamento vigilante.
Quero deixar claro, algo em evidência em nosso percurso teórico, que não me afino às
pesquisas dominantes acerca do amor patológico e do ciúme patológico nos relacionamentos
amorosos (e mesmo da querela insossa sobre o normal e o patológico), capitaneadas principalmente
pela psiquiatria. Simplesmente por lhe faltar a perspectiva da totalidade e, por decorrência, analisar
o indivíduo de maneira atomicamente empirista. Restringem-se sobremaneira ao nível clínico do
problema, isto é, àquilo que efetivamente beira a níveis extremos da patologia, mas que não são
nada mais do que casos extremados de uma situação que é regra geral 70. Daí muitos de seus
67
“O contrato de casamento dá a cada sócio a posse exclusiva do corpo, dos sentimentos e do cuidado.
Ninguém mais tem que conquistar, porque o amor tornou-se alguma coisa que se tem, uma propriedade”
(Fromm, 1982, p. 61). “O matrimônio legal está fundado em dois princípios igualmente falsos: a
indissolubilidade, por um lado, e o conceito de propriedade, da posse absoluta de um dos cônjuges pelo
outro” (Kolontai, 2000, p. 31).
68
Há uma distinção entre as categorias posse e propriedade em Marx. Enquanto a posse está relacionada ao
domínio das objetivações fundamentais para a garantia da minha existência, a propriedade é a confirmação
jurídica da posse. Há uma transição da primeira para a segunda no desenvolvimento histórico e, não por
acaso, é o que permite a Marx demonstrar a presença do Direito na arquitetura ideológica dominante, como
por exemplo, na esfera da produção e circulação.
69
Direito de uso e consumo (também: abuso).
70
A definição de amor patológico a seguir expressa bem o fundamento (subjetivo) da análise que se
pretendem: “Autores mais recentes propõem que a atitude de fixar atenção e cuidados em relação ao
companheiro é esperada em qualquer relacionamento amoroso saudável. Todavia, quando ocorre falta de
controle e de liberdade de escolha sobre essa conduta, de modo que ela passa a ser prioritária para o
indivíduo, em detrimento de outros interesses antes valorizados, está caracterizado um problema denominado
amor patológico (AP)” (Sophia et al, 2007, s/p)
35
resultados serem fetichizantes71. Apesar disso, a existência mesmo de estudos monadológicos sobre
tais questões, interessando-se em compreendê-las, já mostra que ele chegou a um grau que não dá
mais para ocultar. Ou melhor, o grau de decadência amorosa, consoante ao elevado nível de
decomposição do ser social burguês, expele grosseiramente a carcaça amorosa deste homem
alienado.
Nos relacionamentos amorosos contemporâneos, há um arroubo do ciúme como
forma de regulação da própria relação, regulação de posse. Ele aparece como a prova cabal do amor
que tenho pelo ser-amado, que dessa maneira está, eroticamente falando, “diretamente possuído”.
Numa ordem social onde a monogamia está fadada ao fracasso72, o ciúme media a pretensão de zelo
de uma relação erótica que só tende a gerar “policiamento”, e disto, sofrimentos. O zelo é tão-só o da
propriedade. Neste aspecto, creio que os estudos clínicos dos psiquiatras servem para evidenciar
bem este ímpeto de posse da relação de propriedade amorosa e as conseqüências doridas que provoca.
Penso, pois, que o ciúme, e o que dele decorre, é acentuadamente anti-amoroso. Que dizer então dos
desejos, sentimentos e emoções experimentados com o ciúme tais como “ansiedade, depressão,
raiva, vergonha, insegurança, humilhação, perplexidade, culpa, aumento do desejo sexual e desejo
de vingança” (Torres et al, 1999, s/p)? Ou, que tal distúrbios afetivos e distúrbios neuróticos bem
como “idéias obsessivas claramente irracionais e de caráter compulsivo” (idem, ibidem)?
O título que nomeia este sub-item não é despropositado. A época burguesa onde o
amor e as relações amorosas sofrem o poderoso entrave que lhes impede de serem autênticos é a
época do cólera. O amor nos tempos do cólera, na narrativa de Gabriel García Márquez, resguarda um
duplo e acertado sentido. Trata-se do amor que acontece numa época, de fato, adoecida. O cólera que
encerra o nosso tempo se alastra com toda sua força para o âmbito das relações amorosas,
explodindo-as como relações irascíveis, como algo que provoca os virulentos sentimentos de cólera
entre os amantes. O que seriam eles senão os ímpetos de posse da propriedade, típicos de uma época
eroticamente patológica?! O domínio do cólera se expressa nas relações singulares através da
multiplicação de “apetites patológicos” (Marx, 2006a, p. 150). Para recorrer a uma alegoria da
mitologia grega, os tempos do cólera são estes onde Anteros reina de maneira quase absoluta.
Diante da argumentação exposta, poder-se-ia questionar: mas, em vez de uma
acentuação das relações calcadas na propriedade e no controle, as relações não estão cada vez mais
fluidas, “líquidas”, instantâneas e fugazes? Não é este o verdadeiro modo de ser dominante do amor
na contemporaneidade? O amor contemporâneo, diferentemente da concepção burguesa
propugnada por B. Franklin, não superou tal concepção de uma vez por todas, desfazendo-se de
todos os rígidos laços do amor romântico e do casamento?
Não são poucos os que respondem afirmativamente à questão acima. Não é fortuito
também que entre estes se contam principalmente os pós-modernos. Sob o mesmo trajeto já
apontado e criticado neste trabalho, no capítulo primeiro, - o da razão fenomênica – estes autores,
em que pese algumas de suas afirmações não serem absolutamente equivocadas, não conseguem ir
muito além do nível aparente do modo de ser amoroso.
Marx & Engels (2003, p. 29), em célebre passagem, já haviam mostrado que a forma
fragmentária mutante como o modo de produção capitalista se expande (algo deveras acentuado
contemporaneamente) expressa o agravamento da essência que permanece a mesma. Ora, “Tudo o
que era sólido se evapora” em virtude da “revolução contínua na produção”, do “abalo constante
71
Sob um ângulo, Almeida et al (2008) intentando mapear os fundamentos do “ciúme romântico” nas
relações amorosas contemporâneas não vão muito além de um nível descritivo, afora sua análise estritamente
subjetiva sobre as causas do ciúme, que seriam três: 1. interação matrimonial perturbada, 2. contratos mal
feitos e 3. dificuldades emocionais particulares de cada um dos parceiros (p. 88). Nesse movimento,
contradizem-se, e recaem sobre o fetichismo: ao final do texto (espantosamente) afirmam que o ciúme deve
ser considerado uma construção social (p. 89), quando já haviam afirmado o seguinte: “[...] o ciúme pode ser
considerado como uma manifestação normal das pessoas, umas em relação às outras, assim como é normal
sentir medo, inveja, luto, alegria, raiva e saudade, dentre outras emoções humanas. Portanto poderia ser
considerado um sentimento constitutivo da natureza humana de maneira que todos nós seríamos ciumentos em
maior ou em menor grau” (p. 85, grifo nosso). Outra angulação dominante é a tentativa fetichizadora de
solucionar importantes problemas humanos sob uma luz biologizante. Menciono, neste passo, pesquisas no
campo da genética ou neurociências que buscam “demonstrar” porque o homem seria mais “infiel” do que a
mulher, porque sentimos ciúme, etc.
72
Tratarei desta delicada questão no próximo capítulo Sobre a liberdade de amar.
36
de todas as condições sociais”, assim é que “todas as novas relações se tornam antiquadas, antes
mesmo de se consolidar”.
Não preciso tornar a dizer tudo o que já fora dito até aqui sobre o processo de
formação histórico-social do ser social, para afirmar que as concepções pós-modernas sobre o amor
são prisioneiras do mundo aparente e que, principalmente, pela ausência de compreensão sobre este
processo de formação histórico-social, as mesmas concepções pós-modernas debatem-se em torno
de uma noção de relação amorosa que tem como horizonte último o marco do individualismo
burguês, isto é, ou tratam o amor como uma codificação subjetiva diádica em torno de signos e
significados – “comunidade a dois acima de tudo e de todos” (Costa, 2005, p. 124) –, ou o tratam
como “um investimento como todos os outros” (Bauman, 2004, p. 28), a partir da velha antinomia
indivíduo e sociedade.
Tornou-se praticamente um lugar-comum falar-se da crise do modelo familiar nuclear
burguês, cuja prescrição se baseia na moral de subordinação feminina e restrição ao domínio do lar,
com a infinidade de mitos que daí surgiu para assegurar tal condição – como o mito do amor
materno, do sexo frágil etc. –, enquanto que o homem ocuparia o lugar público, econômica e
politicamente, e seria o provedor familiar. Que a expressão máxima desta moral sexual fora
consolidada na era vitoriana, mas que do século 20 pra cá teria entrado em franco declínio. Associa-
se a esta moral sexual as idéias de um parceiro “único”, consolidado, “até que a morte os separe”,
que tem no casamento o bastião amoroso. Assim, contrapõem a isso relações cada vez mais
“virtuais”, efêmeras, ou, por outros termos, “líquidas”. Tais relações seriam mais livres, porque o
curto prazo que as marcam abre as portas para novas possibilidades. Estas relações são
definitivamente uma parte do “líquido mundo moderno” (Bauman, 2004), sem, entretanto, serem
resultado dele. Giddens (1993, p. 72) chega ao cúmulo da inversão no que tange à origem do “amor
confluente”, como se ele fosse a força material da sociedade alienada, quando afirma: “A
“sociedade separada e divorciada” de hoje aparece aqui mais como um efeito da emergência do
amor confluente do que como sua causa”.
Giddens (1993, p. 68-69) fala que o processo de “reestruturação genérica da
intimidade” se deu a partir da passagem do casamento (como aquilo que nos vincula à sexualidade)
para o “relacionamento puro”, que “Refere-se a uma situação em que se entra em uma relação
sexual apenas pela própria relação, pelo que pode ser derivado por cada pessoa da manutenção de
uma associação com outra, e que só continua enquanto ambas as partes consideram que extraem
dela satisfações suficientes, para cada uma individualmente, para nela permanecerem”. Neste passo,
ele considera que “um relacionamento pode derivar muito mais do envolvimento emocional de
duas pessoas do que de critérios sociais externos” (p. 72). Algo idêntico ao que Costa (2005, p. 115,
grifo nosso) defende ao tratar da comunicação amorosa, que para ele trata-se de “uma interação que
se destaca do mundo social anônimo, levando os amantes a se valer de modelos de significação e
interpretação e de símbolos comunicativos”.
A antinomia indivíduo/sociedade é elevada à plenipotência pelos pós-modernos, que,
em face da universalidade devorada pelas relações mercantis, tendem a autocentrar-se no indivíduo
(atado aos grilhões da individualidade fetichizada), à moda de uma indiscutível restituição liberal, e
recaírem no ceticismo, na fragmentação, no solipsismo, no subjetivismo e na irracionalidade73.
Destarte, o mundo social torna-se “anônimo”, “externo”, e o que deve prevalecer é “a minha
vontade e o meu arbítrio soberanos” (Bauman, 2004, p. 33). O “sentido” do amor é algo puramente
atômico, derivado “muito mais do envolvimento emocional de duas pessoas” (Giddens, ibidem),
resultado do “intercâmbio entre duas pessoas muito exclusivas e que manipulam dois mundos de
significados singulares, recortados de maneira extremamente individualizada” (Costa, 2005, p. 120),
exprime “dois mundos notoriamente distantes um do outro” (Bauman, 2004, p. 48)74.
73
“[...] aquilo que diferencia as relações amorosas das demais interações sociais [...] é justamente a atribuição
pelos atores de um sentido único, particular, mítico ao amor” (Costa, 2005, p. 119).
74
Sem precisar recorrer a Marx ou a algum marxista é possível fazer a crítica a este ponto de vista
monadológico. Apesar de não tratar em nível ontológico, Norbert Elias (2001, p. 63, grifo nosso) já faz a
crítica das fragilidades da noção de sentido como algo puramente individual: “Mas o conceito de sentido não
pode ser compreendido por referência a um ser humano isolado ou a um universal derivado dele. O que
chamamos de “sentido” é constituído por pessoas em grupos mutuamente dependentes de uma forma ou de
outra, e que podem comunicar-se entre si. O “sentido” é uma categoria social; o sujeito que lhe corresponde é uma
pluralidade de pessoas interconectadas. Em suas relações, sinais que trocam entre si – que podem ser
37
A entrega dos pós-modernos à individualidade (amorosa) fetichizada, que não é outra
coisa senão “a expressão ideológica do caráter cada vez mais irracional e fetichista da lógica objetiva
da sociedade capitalista” (Duarte, 2004, p. 221), no plano teórico, foi bem diagnosticada por
Newton Duarte (ibidem) ao acrescentar que: “Sem uma teoria do processo histórico de
humanização e sem uma teoria da alienação não é possível fazer a crítica à individualidade
fetichizada”.
Sérgio Costa (2005, p. 119), por exemplo, ao tentar fazer uma (falsa) “crítica” à
socióloga norte-americana Eva Illouz, que defende a existência de uma simbiose entre o mercado
capitalista e o amor romântico75, leitura esta que o autor considera “extremamente útil para a
descrição da dimensão institucional do amor na contemporaneidade”, limita-se a dizer que o amor
romântico “enquanto espaço de construção de sentidos compartilhados o universo a dois
permanece resistente ao mercado”. A idéia de um pretenso “universo a dois” que “permanece
resistente ao mercado” só explicita a completa incompreensão da dialética de apropriação-
objetivação do ser social e, especificamente, de sua forma moderna, marcada pela contradição entre
público e privado, que Marx (2006b) tão bem examina em A questão judaica.
Penso, de fato, que pela falta de uma teoria do processo histórico de humanização e
de uma teoria da alienação, as relações amorosas efêmeras então existentes aparecem como a
máxima e mais liberta realização amorosa, como consagram os pós-modernos. Não quero dizer que
tais relações de curta duração não existam (e que não possam ser efetivamente interessantes), mas
que isso está longe de ser uma negação da propriedade amorosa. Já mostrei que o fetiche amoroso
dominante tem no dinheiro sua crassa materialização, o que põe abaixo rapidamente as concepções
atômicas e românticas de Giddens e Sérgio Costa da comunicação amorosa como um código de
amor face-to-face, estritamente individualizado76. Quero, no entanto, dizer algo mais sobre essa
relação entre indivíduo e riqueza amorosa.
Seja o “amor líquido” (Bauman, 2004), onde o amor se manifesta “como episódios
intensos, curtos e impactantes” (idem, p. 20), seja o “amor confluente” (Giddens, 1993), onde o que
vigora “é a aceitação, por parte de cada um dos parceiros, “até segunda ordem”, de que cada um
obtenha da relação benefício suficiente que justifique a continuidade” (idem, p. 74), seja a idéia de
“amores fáceis” (Costa, 2005), esta perspectiva de amor abraçado ao efêmero – algo que realmente
existe mas não com o exagero de Bauman (2004, p. 13) para quem “as relações virtuais (rebatizada
“conexões”) estabelecem o padrão que orienta todos os outros relacionamentos” – não apenas não
nega nem exclui o amor de propriedade, mas é sob uma forma sutil expressão do domínio do
próprio fetiche.
Marx (2006a, p. 157-158), em uma longa passagem dos Manuscritos de 1844, denuncia o
trato de uma forma da riqueza que se atêm ao prazer e à prodigalidade como prisioneira da riqueza
estranhada, que a domina. O beneficiário desta forma de riqueza é o indivíduo efêmero, isto é, ele é,
em essência, o prisioneiro do mundo alienado. Apesar de Marx referir-se na passagem à riqueza
material, penso que não é problemático estendermos o seu significado à riqueza espiritual, neste
particular, a riqueza amorosa. Vejamos:
Existe uma forma de riqueza que é inativa, pródiga, dedicada ao prazer, cujo
favorecido se comporta como indivíduo efêmero, de atividade desenfreada e sem
destino, que olha o trabalho servil dos outros, o sangue e o suor humanos, como
presa da sua ambição, e que considera o próprio homem e, portanto, também a
si mesmo, como um ser sacrificado e supérfluo. Adquire assim um desprezo
pela humanidade sob a forma de arrogância e de esbanjamento de recursos que
diferentes para cada grupo – assumem um sentido, um sentido comunal, para começar”.
75
Este autor não trata a noção de amor romântico à maneira dos demais autores aqui tratados, a saber
Bauman (2004) e Giddens (1993), como indicado em nosso texto acima. Para ele, o amor romântico abrange
cinco dimensões: 1. o campo das emoções (“interface entre corpo e cultura”), 2. a idealização (síntese entre
amor cristão e ars erótica), 3. modelo de relação (“unidade de amor e matrimônio”), 4. prática cultural
(“repertório de discursos, ações e rituais”) e 5. interações sociais (código amoroso diádico).
76
O romantismo míope de Costa (2005) é tamanho que não percebe que o místico código de amor que
defende é, fundamentalmente, determinado pela conta bancária dos amantes. O próprio Giddens (1993, p.
20-21, grifo nosso), ao comentar uma pesquisa contemporânea sobre diversas questões eróticas entre elas a
da preferência dos homens pelas suas parceiras (que poderia, sem grandes problemas, ser estendida às
mulheres em relação aos seus parceiros), diz que eles “desejam uma parceira sexual que seja intelectual e
economicamente igual a eles”.
38
sustentariam uma centena de vidas humanas, em parte, também, sob a forma de
ilusão infame de que a sua extravagância descontrolada e o seu consumo
ilimitado e improdutivo condicionam o trabalho e a subsistência dos outros.
Considera a realização dos poderes essenciais do homem unicamente como a
realização da própria vida desordenada, das suas manias e caprichos, das suas
idéias bizarras. Esta riqueza, no entanto, que apenas olha a riqueza como meio,
como digna somente da aniquilação, e que portanto é ao mesmo tempo seu
escravo e seu senhor, generosa e mesquinha, caprichosa, arrogante, refinada,
culta e espirituosa – semelhante riqueza ainda não descobriu a riqueza como um
poder inteiramente estranho; nela vê apenas o seu próprio poder; [não] é a riqueza,
mas o prazer [que lhe parece como] finalidade última.
39
É nesse aspecto sua estreita relação com o prazer, conforme aparece como a finalidade
última da existência. Se é verdade que o trabalho alienado impulsiona os homens à degradação, a
adoção pura e simplesmente considerada do prazer como resolução antitética ao trabalho pode
incorrer em enormes vacilações. Em certa medida, Raoul Vaneigem (2002), pensador radical e
revolucionário incontestável, deslizou sobre este equívoco.
Vaneigem (2002, p. 267), sabendo que “o próprio prazer em geral não reconhece
limites”, o encara como aquilo que salvaguarda a “participação autêntica”. Para ele, “No erotismo, a
única perversão é a negação do prazer, é a falsificação do prazer-angústia” (idem, p. 268). Ora, isso
que Vaneigem chama de prazer-angústia assemelha-se ao que Lafargue (2005, s/p.) denuncia em O
direito à preguiça como o culto sacrossanto dos trabalhadores e dos ideólogos ao trabalho alienado,
um culto amoroso: “Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho, levado até
ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua progenitora”. É por isso que Vaneigem
(2002, p. 268) afirma que “o prazer-angústia se satisfaz com o repetitivo”. Isto é, o que ocorre no
ato de trabalho se estende ao nível amoroso: a repetição. Mas a contraposição de Vaneigem enreda-
se nos grilhões da vida cotidiana alienada, sob o disfarce de radicalidade. O que ele reivindica acerca
do erotismo sobre “a liberdade da multiplicidade” (idem, ibidem) é a entrega às esferas
heterogêneas que dominam o cotidiano80, e junto com isso a entrega à espontaneidade (traço mais
característico do cotidiano alienado) – em contraposição à atividade consciente: “É necessário livrar
o amor dos seus mitos, das suas imagens, das suas categorias espetaculares; reforçar a sua
autenticidade, devolvê-lo à espontaneidade” (idem, p. 265, grifo nosso).
Neste passo, Vaneigem se equivoca duas vezes: a primeira, à medida que subestima,
por não levar em consideração, a capacidade do mundo mercantil de manipular o prazer, os desejos
e fantasias submetendo-o à lógica do dinheiro e à configuração do valor na produção e circulação
de mercadorias. A segunda, quando julga que a comunicação amorosa mais autêntica é aquela
associada às características do cotidiano alienado.
Ele se aproxima muito de Bauman (2004, p. 37), para quem “É o tráfego que sustenta
todo o prazer”, na defesa dos relacionamentos “de bolso”, onde “você e só você que está no
controle, e nele permanece por toda a curta vida dessa relação”. A idéia de que “só você está no
controle” só ignora o controle anterior do fetiche. Está no controle – é senhor – à medida que é
controlado – é escravo – pelo que julga dominar. “Considera a realização dos poderes essenciais do
homem unicamente como a realização da própria vida desordenada” (Marx, 2006a, p. 157-158).
Tanto é assim, que Bauman não tergiversa quanto à superficialidade deste “amor”: “Quanto menor
a hipoteca, menos inseguro você vai se sentir quando for exposto às flutuações do mercado
imobiliário futuro; quanto menos investir no relacionamento, menos inseguro vai se sentir quando
for exposto às flutuações de suas emoções futuras”.
Nessa contextura, acredito que esse é o quadro geral do amor no moderno mundo das
mercadorias, cujo modo de ser é em sua totalidade orgânica anti-amoroso81. Estas são as bases para
avançarmos sobre a compreensão da liberdade, comunicação e arte amorosa nos seus termos.
80
“A vida cotidiana é, em grande medida, heterogênea; [...] A heterogeneidade é imprescindível para
conseguir essa “explicitação normal” da cotidianidade; e esse funcionamento rotineiro da hierarquia
espontânea é igualmente necessário para que as esferas heterogêneas se mantenham em movimento
simultâneo” (Heller, 1992, p. 18). Numa sociedade onde a vida cotidiana despiu-se da alienação, a
personalidade consciente (individualidade para-si) poderá construir com máxima possibilidade uma hierarquia
consciente no interior da hierarquia espontânea.
81
Alexandra Kolontai (2000), muito mais intuitivamente do que por rigor e clareza teóricas, apresentou
indicações a respeito do amor tanto no mundo capitalista quanto no mundo comunista. O mundo mercantil e
sua impetuosa força de negação amorosa foram captados por Kolontai (2000, p. 43): “A época atual
caracteriza-se pela ausência da arte de amar. Os homens desconhecem em absoluto a arte de saber conservar
relações amorosas, claras, luminosas, leves. Não sabem todo o valor que encerra a amizade amorosa. O amor
para os homens de nossa época é uma tragédia que destroça a alma, ou um vaudeville”.
40
Enfrentamos até aqui algumas das “escarpas abruptas” sobre os elementos histórico-
ontológicos de formação do ser social, do lugar do amor na arquitetura do mundo social e do amor
deste homem historicamente determinado no mundo do capital. A radiografia aqui desenvolvida
encontrou no fetichismo amoroso a síntese do amor em nosso tempo presente, o que significa a
negação in terminis do próprio amor.
Neste passo, esperamos brevemente apresentar a superação dialética (Aufhebung) do
estado de coisas arregimentado pela ordem sócio-metabólica do capital. Para tanto, é necessário
retomar questões como trabalho, riqueza, individualidade e amor.
Se a essência humana no mundo das mercadorias se efetiva estranhadamente, em virtude
da apropriação privada da riqueza social, isto é, como trabalho alienado, a perspectiva de
emancipação humana aventada por Marx consiste justamente na efetividade da essência humana,
através da apropriação coletiva da objetividade social erigida pelo trabalho ao longo do
desenvolvimento histórico. A afirmação da essência humana, mediante a superação da propriedade
privada, não é outra coisa senão a afirmação ontológica da humanidade, “a humanidade socializada”
a que Marx (2007, p. 535) se refere na X Tese Ad Feuerbach.
A necessidade de superação da propriedade privada, como superação de uma realidade
não-humana, é comumente tratada como abandono da riqueza até aqui produzida 82. Já demonstrei
que, para Marx, pelo contrário, uma sociedade emancipada, comunista, é aquela voltada para a
produção da riqueza, mas cujo conteúdo é completamente diferente. Volta-se para a satisfação das
necessidades humanas, para o enriquecimento subjetivo em face universalidade objetiva por mim
apropriada. Trata-se não de abandonar inteiramente a propriedade, e sim a sua forma burguesa.
Marx & Engels (2003, p. 39) deixam isto muito claro no Manifesto Comunista:
A característica peculiar do comunismo não é abolição da propriedade em geral,
mas a abolição da propriedade burguesa. Mas a propriedade privada atual, a
propriedade burguesa, é a expressão final do sistema de produção e apropriação
que é baseado em antagonismos de classes, na exploração de muitos por
poucos.
41
indivíduo pode apropriar-se da universalidade da riqueza pondo-a como mediação à riqueza de suas
necessidades, ao desenvolvimento de suas múltiplas capacidades individuais, pois o
desenvolvimento universal do indivíduo resulta de sua participação livre e consciente no
intercâmbio universal. Marx (apud Duarte, 2004, p. 233, colchetes de Newton Duarte) nos
Grundrisse não deixa dúvidas sobre isso:
[...] o que é a riqueza senão a universalidade das necessidades, capacidades,
prazeres, forças produtivas etc., dos indivíduos, criados por meio do
intercâmbio universal? O pleno desenvolvimento do domínio humano das
forças da natureza, tanto aquelas da assim chamada natureza como aquelas da
própria natureza humana? A absoluta explicitação de suas potencialidades
criativas, sem nenhum outro pressuposto que não seja o prévio
desenvolvimento histórico, o qual transforma em um fim em si mesmo esse
desenvolvimento em sua totalidade, isto é, o desenvolvimento de todas as forças
humanas, não sendo medido por nenhum padrão pré-determinado? No qual ele [o
indivíduo] não reproduz apenas a si mesmo em sua particularidade, mas produz
sua totalidade? [No qual o indivíduo] empenha-se por não permanecer naquilo
que ele veio a ser, estando em contínuo vir a ser?
42
maneira um conteúdo completamente diferente e superior. Se na sociedade capitalista, a imagem
que nos vem à cabeça quando se pensa em riqueza é uma grande quantidade de dinheiro (a
sociedade do homem abstrato, dominada pelo quantum), para Marx (2006a, p. 146), no mundo
emancipado, o homem rico é aquele que desenvolveu e elevou suas necessidades (como exigências
internas) a níveis superiores, aquele cuja sensibilidade se ampliou (e está em “contínuo vir a ser”, ou
seja, em transformação e aperfeiçoamento). A pobreza, por seu turno, é a compreensão que sinto da
falta, que me lança à riqueza pelo outro. Neste nível, elevamo-nos à própria paixão.
Vemos agora como, em lugar da riqueza e da pobreza da economia política, surge
o homem rico e a perfeição da necessidade humana. O homem rico é ao mesmo
tempo o homem que precisa de uma soma de manifestações humanas; é aquele
cuja realização existe como urgência natural interna, como necessidade. Não é
somente a riqueza, mas também a pobreza do homem, que adquire – do ponto de
vista do socialismo – um significado humano e, assim, social. A pobreza é o laço
paciente que leva o homem a sentir como necessidade a maior riqueza, os outros
homens. A superioridade em mim da entidade objetiva, a erupção sensível da
minha atividade vital, é a paixão que desta forma se torna a atividade do meu
ser84.
Ora, indicamos anteriormente que o homem se afirma no mundo objetivo com todos
os seus sentidos. Se na sociedade burguesa a diversidade multifacetada das necessidades se reduz à
necessidade do dinheiro, e todos os sentidos se reduzem ao sentido do ter, a superação da sociedade
onde reina a propriedade privada consiste na restituição dos sentidos e necessidades autenticamente
humanos. É somente sob estas condições histórico-ontológicas do mundo social que pode brotar o amor, o amor
verdadeiramente humano. É nesse exato momento que se enraíza a transição do homem do amor ao amor
do homem, pois com a apropriação da universalidade da riqueza humana e a superação do fetichismo
(amoroso), o prazer reificado e egoísta é dissipado, e é posto em relevo a riqueza amorosa, objetiva
e subjetivamente. O amor, como um dos mais importantes sentidos espirituais, em face da riqueza
material, pode desenvolver-se em toda a sua riqueza subjetiva, pois “a efetiva riqueza espiritual do
indivíduo depende inteiramente da riqueza de suas relações reais”. Marx (2006a, p. 142), em uma
brilhante passagem dos Manuscritos parisienses, atesta a tese que aqui postulamos:
A supressão da propriedade privada constitui, deste modo, a emancipação total de
todos os sentidos e qualidades humanas. Mas só é esta emancipação porque os
referidos sentidos e propriedades se tornaram humanos, tanto do ponto de vista
subjetivo como objetivo. O olho tornou-se olho humano, no momento em que
seu objeto se transformou em objeto humano, social, criado pelo homem para o
homem. Por conseqüência, os sentidos tornaram-se diretamente teóricos na sua
prática. Relacionam-se à coisa por ela mesma, mas a própria coisa já constitui
uma relação humana objetiva a si mesma e ao homem, e vice-versa. A necessidade
ou o prazer perderam portanto o caráter egoísta e a natureza perdeu sua mera
utilidade, na medida em que a sua utilização se tornou utilização humana.
43
é realmente, internamente, a unidade na multiplicidade, assim como eu. Por isso, minha tese sugere que
a forma amorosa por excelência (verdadeiramente humana, ontologicamente realizada), no mundo
comunista, é a forma monogâmica85. A monogamia é a autêntica relação amorosa, pois o laço
transparente que me liga aos outros, me permite apreender no outro-amante a totalidade do amor nele
presente e ele presente na totalidade do amor. Esta sociedade é aquela onde todos estão em cada um
e cada um está em todos. Penso que este modo de ser amoroso, autenticamente humano, abrange
as diversas formas amorosas, sejam elas heterossexuais ou homoeróticas. A síntese da totalidade
amorosa no ser-amante fora sutilmente captada pelas intuições poéticas de Pablo Neruda (1983, p.
18, grifo nosso), ao afirmar:
[...]
En tu abrazo yo abrazo lo que existe,
la arena, el tiempo, el árbol de la lluvia,
85
É bastante claro o quanto esta questão é polêmica. Não é raro encontrar entre marxistas ou anarquistas a
convicção de que num mundo pós-capitalista (emancipado) as relações amorosas serão de tipo poligâmica,
abstratamente cognominada de “amor livre”. Tais relações são sinônimo de liberdade amorosa, à medida que
posso me relacionar com vários/as parceiros/as sem me vincular a nenhum/a deles/as. Um raciocínio
análogo ao que ocorreria no ato de trabalho, em vista da superação da divisão social do trabalho como
supracitado há pouco. No entanto, sob o lastro da compreensão ontológica da questão, onde superamos
inteiramente o mundo das carências e adentramos no reino das necessidades livremente desenvolvidas, o homem
amante realiza integralmente seu amor no ser-amado, visto que este sintetiza de maneira transparente a
universalidade do gênero humano. No meu amor com o outro, me relaciono como homem total, da mesma
maneira que o outro em relação a mim. É por isso que a liberdade amorosa realiza-se integralmente na
monogamia, pois ao relacionarmo-nos como indivíduos totais, nos realizamos inteiramente em nosso amor, e
daí podermos desenvolver livremente nosso amor, pela ampliação e complexificação de nossas necessidades
amorosas. “Na mesma relação [a essência humana tornar-se para ele, o homem, algo natural, V. B.] revela-se
também em que medida as necessidades do homem se transformaram em necessidades humanas e, portanto, em
que medida o outro homem enquanto pessoa se tornou para ele uma necessidade, até que ponto ele, na sua
existência mais individual, é ao mesmo tempo um ser social” (Marx, 2006a, p. 137). Ser livre é estar em
condições de por em relevo a sensibilidade amorosa, a riqueza amorosa subjetiva, pela universal
individualidade do ser amado. Vaneigem (2002, p. 265) quando afirma ser necessário “favorecer experiências
coletivas de realização individual e multiplicar assim os encontros amorosos reunindo uma grande variedade
de possíveis parceiros” para a “perfeita comunicação amorosa”, não se deu conta que a realização individual,
que passa forçosamente pela dominação coletiva do mundo, no campo amoroso, capta essa universalidade da
riqueza no próprio ser-amado, que o outro já encerra essa dominação coletiva do mundo, pois que é
indivíduo livre e universal. Há uma especificidade na forma como Sérgio Lessa (2005) conduz o debate. Para
ele, o casamento monogâmico (ou a poligamia que, para ele, não é seu oposto) está ontologicamente
associado ao poder da propriedade privada, expresso, neste caso, pelo patriarcalismo. Para Lessa, na
sociedade comunista, o casamento monogâmico foi suplantado e vigora a “plena liberdade sexual”. Eu estaria
em acordo com Lessa segundo tal formulação geral, mas aquilo que ele considera “plena liberdade sexual” já
estaria dado nas sociedades comunistas primárias, isto é, anteriores ao surgimento das sociedades de classe. A
sociedade comunista, de certo modo, retomaria este modo de ser sexual. Mas não é necessário grande esforço
para lembrar que nestas sociedades o indivíduo está cada vez mais submetido ao todo social, como um anelo.
Ou seja, nesta época não há individualidade, muito menos necessidades individuais, pois os homens estão
subjugados pelas forças naturais, não havendo universalidade nas relações sociais. Não posso por um simples
procedimento imputar a uma forma social superior – a sociedade comunista – em que “os indivíduos
participam como indivíduos” (Marx & Engels, 2007, p. 66) algo atinente a uma “economia monacal” (idem,
p. 62). Que o casamento burguês, a comunidade de mulheres, a prostituição pública e particular e o
patriarcalismo que lhes ancora sejam suplantados pelo comunismo estou em pleno acordo. Nesse passo, a
defesa da monogamia aqui empreendida, longe de assemelhar-se a estes caracteres, também não pressupõe de
maneira nenhuma a idéia de indissolubilidade, eternidade ou congênere. Seria propor a substituição de um
cárcere por outro. Como outros laços sociais, pode ser desfeito a qualquer tempo, bastando cessar o amor
entre os amantes. O sentido da monogamia restringe-se à atividade amorosa desenvolvida por um par, um
laço diádico, da mesma forma que o sentido aqui atribuído à poligamia restringe-se à adoção de uma
multiplicidade de parceiros, ou seja, não estamos nos referindo em nenhum dos dois casos à referência do
casamento (monogâmico ou poligâmico), pois ele “é indiscutivelmente uma forma de propriedade privada
exclusiva” (Marx, 2006a, p. 136).
44
sin ir tan lejos puedo verlo todo:
veo en tu vida todo lo vivente.
Este amor emancipado, tipologicamente novo, resguarda uma riqueza que tende a
emergir a partir da multifacetada fruição que ele permitirá, em que a relação de pobreza (momento
paciente) e riqueza (energia ativa) do ser-amante em torno das necessidades e qualidades amorosas
tenderá a exprimir-se pela relação dialética [...] amar/não-amar/amar [...], o vir-a-ser amoroso em
perpétuo rejuvenescimento ou vivificação (Verjüngen), para empregar uma terminologia da filosofia
clássica alemã, que novamente Neruda (idem, p. 56) conseguiu apreender no soneto XLIV:
A síntese dialética da vida amorosa emancipada encerra os dois modos (“de dos
modos es la vida”): riqueza e pobreza amorosa, que têm um elo de complementaridade e um
conteúdo completamente novo. Esta relação ampara-se no vir a ser, na vivificação (ou totalização,
em terminologia moderna), onde “Yo te amo para comenzar a amarte”. Mas a atividade amorosa,
como ser, é transformação, é dinâmica, e por isso, abrange em seu curso tanto o “destino
desdichado” como “las llaves de la dicha”, como unidade contraditória. Mas o contraditório tem
seu diapasão dialético na unidade, “Por eso te amo cuando no te amo y por eso te amo cuando te
amo”.
De maneira semelhante, outro poeta captou a dialética das relações amorosas, parece-
me, segundo aquilo que espelha o amor do mundo dos homens: apropriação amorosa do homem
total. Não um chileno, mas um brasileiro chamado Caetano Veloso. O compositor e poeta baiano vai
às entranhas das relações amorosas (em sua realidade humana) em O quereres:
45
O querer, como querer amoroso, oscila de maneira permanente entre os dois modos
constituintes do homem amante – pobreza e riqueza – como “erupção sensível da minha atividade
vital” (Marx, 2006a, p. 146) no processo de criação e refinamento das necessidades amorosas. A
percepção (sensação) da falta (“Do que em mim é de mim tão desigual”) me impulsiona
permanentemente (“O quereres e o estares sempre afim”) a apropriar-me da essencialidade
amorosa mediante o outro. Esta dinâmica atividade, como também pontua Neruda, é contraditória
(“Faz-me querer-te bem, querer-te mal”), mas no outro-amante assenta sua plenitude (“Bem a ti, mal
ao quereres assim”). A plenitude unitária representada pelo outro-amante é quem nos enriquece
mutuamente que, no termo empregado por Caetano (“infinitivamente”), resguarda um duplo
significado: de um lado, o infinito pode ser equiparado ao universal, significando assim a
apropriação da universalidade da riqueza amorosa mediante o outro e, por outro, juntamente com
isso, a infinitividade das qualidades multilaterais em nós desenvolvida (“infinitivamente pessoal”).
Essa infinitividade (como uma vivificação) é como “comenzar a amarte”, é incessante (“E eu
querendo querer-te sem ter fim”). Eis aí o ser pleno da totalidade amorosa, extravasando como uma
torrente, a partir da fruição da riqueza pelo outro – um ser universal total –, cujo móvel é o padecer
por aquilo que nos falta (“E, querendo-te, aprender o total/Do que há e do que não há em mim”).
A imbricada relação aqui apresentada entre essência humana, riqueza, individualidade
e amor encontrou sua síntese no amor monogâmico como a forma amorosa plena, numa sociedade
de novo tipo. É a organização social quem ampara e fornece as condições materiais para que esse
amor possa emergir, mas que, para isso, o homem precisa tomar as rédeas de sua própria história e
assumir conscientemente o mundo social. “A realização do indivíduo [...] passa forçosamente pela
dominação coletiva do mundo” (Internacional Situacionista, 2003, p. 63). Sem tais condições, o
amor não passará de um malogro.
Lançados estes fundamentos, cabe escarafunchar qual ethos seja mais conseqüente para
o ensaio de amor que é a sua realidade na sociedade burguesa.
4.2 Do ethos amoroso: sobre uma mediação amorosa no mundo das mercadorias
Adentramos num dos momentos mais espinhosos deste trabalho. Pois a tese aqui
enunciada soará como em contradição ao que já fora exposto nas linhas anteriores. Esforçar-me-ei
para mostrar que ela é uma inferência do que demonstramos acerca do amor no mundo burguês e
do amor no comunismo.
Afirmei ligeiramente que a monogamia (no sentido atribuído no sub-item anterior) na
sociedade burguesa está fadada ao fracasso. Por quê? Porque o amor do homem burguês, em sua
totalidade orgânica, se afirma de modo estranhado, isto é, não-humano, não se realiza como amor
humano. Destituída a essência humana de sua humanidade, o mesmo ocorre para a essência amorosa
humana. A ausência da integralidade amorosa, em vista das condições inumanas para amar, coincide
com a objetivação de meu ser de modo fragmentário, egoísta e parcial.
A equação deste problema não é complicada. O mundo entronizado pela propriedade
privada é igualmente o mundo das carências. Como Marx procura demonstrar, no capitalismo os
homens não somente estão agrilhoados ao império das carências, mas por vezes a carência mesma
lhes é usurpada (“também as necessidades animais desaparecem”). Ora, o mundo onde, objetivamente,
os homens não se efetivam de modo humano e sim como seres estranhos, e cuja vida é a própria ruína,
espiritualmente estes homens estão dilacerados e não podem (pois isto não depende simplesmente da
força do desejo ou da consciência) afirmar-se humanamente. À medida que, no meu amor pelo outro,
não me realizo inteiramente – pois não me objetivo como homem total – eu sou objetivamente
impelido a buscar realizar o meu amor com outras/os amantes, o amor que entre nós não se efetiva
como totalidade86. Essa busca em outras/os amantes, evidentemente, não integraliza o amor (pois
isto não depende meramente de uma questão de escolha amorosa), mas impõe-se como desejo
férreo: está é a precisa chave para se compreender aquilo que se denomina culturalmente
86
Não apenas outras/os parceiras/os mas também, segundo o que indicamos rapidamente no capítulo
anterior sobre a manipulação de desejos e fantasias para a realização do valor, objetos ou elementos
ficcionais, tais como parceiras/os artificiais (“bonecas/os infláveis”), pornografias, dentre outros. Este é um
campo aberto para investigação que neste ensaio não foi possível ser aprofundado.
46
“infidelidade”, “traição” ou “adultério”. Seja do sexo masculino ou feminino, esta é a realidade do
amor (alienado) na sociedade burguesa. Como se evidencia, esta iluminação do problema põe por
terra preconceitos seculares, sustentados pela cotidianidade reificada e que, mais recentemente,
pesquisas fetichizantes e biologizantes no campo da neurociência buscam demonstrar
“cientificamente”, através da busca do gene da “infidelidade” masculina. Eventuais suspeitas, que
sugiram empiricamente a maior tendência masculina à infidelidade, só descuidam gravemente da
história social e o papel cumprido pelo patriarcalismo e machismo na ordenação da moral sexual.
Da mesma forma como o maior tempo que, em geral, as mulheres levam para atingir o orgasmo
numa relação sexual tem raiz na história social que castrou durante enorme tempo a possibilidade
do prazer sexual às mulheres, e isto se internalizou na sexualidade feminina, o mesmo ocorre no
âmbito das relações extraconjugais, que podem ser relativamente menores entre as mulheres87.
O amor (ontologicamente) irrealizado, efetivado como propriedade amorosa, condena
os amantes a querer realizar o seu amor em outros/as amantes além do ser amado, pois os
“amantes que estão lado a lado sem estarem juntos” (Vaneigem, 2002, p. 264) não se efetivam
amorosamente como indivíduos totais, o que só pode ocorrer numa sociedade emancipada88. Disto
posto, o amor desrealizado do homem burguês impede ontologicamente a efetivação da monogamia,
bem como da plena liberdade amorosa. Poder-se-ia me replicar a existência empírica de relações
monogâmicas no interior da sociedade burguesa, sem qualquer indício de “infidelidade”. A
existência de tais relações, uma verdadeira exceção à regra geral, não modifica a essência da questão.
Primeiro, porque existem relações e relações “monogâmicas”: aquelas que se sustentam
simplesmente pela força da tradição e do costume (em franco declínio), onde temos na maioria das
vezes casais com diversos anos ou decênios de casamento, mas sem nenhum sentimento (as que
mantêm sentimentos amorosos, como se verá, não afetarão o problema em questão); e aquelas
onde o sentimento amoroso é nutrido e o casal não incorreu em relações extraconjugais. Nenhuma
destas situações expulsa a recusa ontológica do fetichismo amoroso na ordem burguesa, pois o
amor desrealizado do ser social burguês entranha-se na individualidade desta época, como seu sentido
espiritual irremovível, de modo que, embora o ser-amante não incida em relação extraconjugal (ao
contrário do que faz a imensa maioria, mais cedo ou mais tarde), a sua carência amorosa se exterioriza
como íntima vontade, como desejo por outros/as amantes. O fetiche é algo objetivo produzido pela
ordem sócio-metabólica do capital, que se manifesta subjetivamente; é, por isso, subjetivamente
objetivo. Pela simples força de meu querer ou de minha consciência não me é possível extirpá-lo,
senão pela subversão das condições histórico-sociais que necessitam do fetiche. O fetichismo
amoroso é limite ontológico ao livre amor, o amor total.
Parece-me importante, para apresentar nossa última tese, rapidamente dizer algumas
palavras sobre o significado dessa recusa da relação extraconjugal. Ela, como se sabe, é na prática
exceção ao domínio amoroso geral, isto é, a maior parcela dos amantes que têm uma relação “fixa”
com outro contrai relações extraconjugais. Entretanto, ela é postulada como cláusula (quase pétrea)
do contrato amoroso (geralmente) tácito dos amantes. Há situações em que um dos parceiros se
submete à violência física e/ou psicológica, mas considera inaceitável a “infidelidade”. Esta situação
contraditória decorre, pelo que já afirmei, da ordem social que impossibilita a realização do amor.
Mas, além disso, por tratar-se intimamente de uma conduta amorosa, a garantia dessa contradição é
postulada de maneira especial pela moral dominante: a moral burguesa e cristã89.
87
A questão já vem se alterando significativamente, estando quase em nível de equiparação. Anthony Giddens
(1993, p. 22) afirma a respeito: “A proporção de mulheres casadas há mais de cinco anos que têm encontros
sexuais extraconjugais é, hoje em dia, virtualmente a mesma que aquela dos homens. O padrão duplo ainda
existe, mas as mulheres não são mais tolerantes diante da perspectiva que – enquanto os homens necessitam
de variedade e pode-se esperar que se envolvam em aventuras extraconjugais – elas não se comportem do
mesmo modo”.
88
“Somente nessa fase a auto-atividade coincide com a vida material, o que corresponde ao desenvolvimento
dos indivíduos até se tornarem indivíduos totais e à perda de todo seu caráter natural; e, assim, a
transformação do trabalho em auto-atividade corresponde à transformação do restrito intercâmbio anterior
em intercâmbio entre os indivíduos como tais” (Marx & Engels, 2007, p. 74).
89
“A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica popular, sua dignidade
espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua razão geral de consolo e de
justificação. É a realização fantástica da essência humana por que a essência humana carece da realidade
concreta” (Marx, 2005a, p. 85).
47
A defesa moral da família nuclear burguesa, encontra na inviolabilidade do casamento
(ou de sua miniatura, o namoro), em complemento preciso à posse exclusiva, física e mental, oriunda
da propriedade amorosa, o princípio regente para as relações amorosas. O casamento monogâmico
é (im)posto como princípio intangível de organização da vida amorosa. A burguesia, de um lado,
preocupada com “o esteio da propriedade” (B. Franklin) e com aquilo que fundamenta a família
burguesa: “O capital, o ganho individual” (Marx & Engels, 2003, p. 42); de outro, a religião, que
“jura e perjura por sua escritura” (Marx, 2005a, p. 87), e impõe o suplício, o que faz do amor cristão
um “amor sacrifício” (Vaneigem, 2002, p. 263). A insistência abstrata em torno de tal princípio, sem
avaliar as condições materiais que impedem a sua realização, culmina na consagração do reino da
falsidade e da mentira. Mesmo sem tratar em termos eróticos, a defesa cristã do amor recai sobre o
vazio. Como afirma Konder (2007, p. 10):
Um preceito cristão, por exemplo, recomenda: “Ama o próximo como a ti
mesmo”. Entretanto, mesmo o mais convicto dos cristãos encontra dificuldades
imensas para seguir esse preceito. Organizada em torno do mercado, a
sociedade hegemonizada pela burguesia impõe às pessoas que se tornem
competitivas; cada indivíduo é levado a suspeitar do “próximo”, a enxergar nele
um concorrente, uma ameaça em potencial. A recomendação do amor ao
próximo torna-se abstrata: continua a ser proclamada no discurso, mas é
esvaziada de sentido no plano da vida.
48
dominante. Esta segunda falsidade também corresponde à especificidade do homem burguês, que
segundo Konder, “é um ser eticamente irresolvido”90.
Se nem Anteros reina absoluto e nem a moral é inquebrantável – do contrário seríamos
autômatos e este mundo seria insuperável – penso que é possível apontarmos um ethos amoroso
para o mundo das mercadorias, que por sua própria natureza é precário e limitado. Esta mediação
amorosa, pelo que se depreende de nosso trabalho, apenas tem sentido como transitoriedade. Ela é
aventada a partir da simples inquirição: se a plenitude amorosa só pode se realizar numa sociedade
para além do capital, cuja tipologia é monogâmica, e o mundo das mercadorias inviabiliza a
monogamia amorosa, que podemos fazer? Em síntese: como podemos “amar” no capitalismo?
Este ethos é uma “convenção não-escrita da amizade erótica” (Kundera, 1983, p. 19).
Pela natureza mesma do mundo alienado o ethos amoroso é contratual. Mas, diferentemente da
regra geral, não é tácito, e sim deliberação comum em torno dos seguintes “termos” para sua
concretização:
1. Compreensão mútua dos amantes da impossibilidade ontológica de efetivação do
amor na sociedade burguesa. Que a propriedade privada dos meios de produção, o trabalho
alienado e o dinheiro impelem o amor a se manifestar pelo fetiche, convertendo-se numa
propriedade, objetivamente pelo dinheiro e subjetivamente pela posse exclusiva do corpo e do
espírito do outro (asseverada pelo casamento burguês e cristão). Que a lógica do capital, irracional e
predatória, produz um progressivo esvaziamento da vida nas relações sociais mercantis, criando
assim uma “insaciabilidade absoluta” (Kosik, 1982, p. 108) existente também em nível amoroso. A
não-realização amorosa dos indivíduos os impulsiona objetivamente a contrair outras relações
amorosas. Mas a moral da falsidade – burguesa e cristã – lhes recomenda o encarceramento da
vontade, o que na prática não é cumprido mas exigido, criando assim um imbróglio amoroso, a
falsidade entre os amantes em nível subjetivo.
2. A ruptura relativa com o reino da falsidade pode se dar pela aceitação mútua da
possibilidade real de contrairmos outras relações amorosas em virtude de nosso estranhamento às
riquezas sociais, inclusive a amorosa. Não depende de nossa consciência individual a força que nos
impulsiona a querer estabelecer estas demais relações (por mais que, em última instância, eu tenha
de escolher entre relacionar-me ou não com esta ou aquela pessoa), consumando-as em ato ou
negando-as e contentando-me com o refúgio do pensamento. Posto que isso é francamente
assumido não me é necessário suprimir o que sinto e desejo91 simplesmente porque a moral
dominante prescreve. É importante registrar, outrossim, que esta moral, pela sua natureza de
sacrifício, relegou um aspecto importante da sexualidade a uma dimensão diminuta, maculada.
Refiro-me ao corpo. A divinização do amor, contrapondo-se à pecaminosidade do corpo, fez com
que este fundamental elemento da riqueza amorosa fosse secundarizado. Desta forma, ao me
defrontar desejosamente de outros/as amantes, possivelmente incitado pela beleza das formas,
creio que não se é permitido desautorizar a legitimidade desse impulso amoroso. Aristóteles em sua
Ética a Nicômaco ensina que “o prazer dos olhos é o começo do amor” 92 (1167a). Isto é, se meu
sentido amoroso é despertado por outras pessoas, isto não significa negação nos termos da pessoa
amada com que tenho o contrato não-escrito. Penso que, face às condições histórico-sociais
existentes, esta é a máxima liberdade amorosa possível. Corresponde, se me é possível a analogia,
ao lugar da emancipação política face à emancipação humana. Ela busca fundar de maneira
aproximativa a transparência do mundo emancipado, tentando indicar elementos da verdade
90
“Querem ser bons, no entanto precisam aprender a ser maus. Querem ser solidários, mas não conseguem
deixar de ser egoístas. Um certo calculismo se infiltra, gélido, até mesmo na cálida intimidade dos afetos. Virtudes e vícios
se misturam, qualidades e defeitos se confundem. Inteligência e esperteza se transformam em malandragem e
matreirice. Generosidade vira burrice. O homem burguês é um ser eticamente irresolvido” (Konder, 2000, p.
29, grifo nosso).
91
Não pretendo sugerir que o ordenamento ético deva se reduzir a tão tacanha fórmula: desejo, logo devo. Senão
teria de admitir que tudo o que passa pela esfera do meu desejo deve ser consumado, algo inteiramente
problemático. Entretanto, para o caso específico de nosso problema o que está em jogo é anular um desejo
absolutamente resultante da limitação ontológica da ordenação societária do amor pelo cumprimento a uma
tábua de valores abstrata e que no mundo real é vazia de sentido.
92
Creio que há um enorme espaço aberto para tratar tanto sobre a restituição do corpo à sexualidade quanto
uma eventual atualização desta máxima aristotélica compreendendo as relações de classes. Sob certo aspecto
esta divisa poderia ser transmutada para “o prazer dos olhos não enxerga a luta de classes”. O poeta Mario
Benedetti dá indicações do amor acentuando as divisões de classe em seu poema “Ustedes y Nosotros”.
49
amorosa. É criar uma fissura de verdade no reino da mentira. Guy Debord (1997, p. 16), parece-me,
nos dá margem a uma leitura consoante a esta posição quando afirma: “No mundo realmente
invertido, a verdade é um momento do que é falso”. Para tomar um conhecido exemplo, este ethos se
assemelharia àquele adotado pelo casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.
Parecerá contraditório a tese aqui defendida após termos feito um ataque contundente
aos pós-modernos em sua entrega à efemeridade amorosa. Reconheço que há uma linha tênue entre
a perspectiva do contrato amoroso não-escrito que sabe de pronto ser possível a existência de
outras relações amorosas além da relação com o ser amado e a rendição ao fetichismo amoroso do
indivíduo efêmero. Não sei ao certo determinar linhas de fronteira onde as duas esferas amorosas
não deságüem no mesmo mar. Mas, de antemão, algumas diferenças são nítidas: o ponto de partida
dos pós-modernos vê nesse vai-e-vem erótico o coroamento da livre comunicação amorosa,
enquanto para nosso ethos ele não é senão algo de precário e ontologicamente limitado fruto de uma
condição precária e limitada. Ele aspira, portanto, a totalidade amorosa, onde a monogamia é a
máxima expressão, e requer uma tessitura social superior. Como se vê, o ponto de chegada é
também divergente.
Finalmente, pelas teses que defendemos sobre a condição do amor no moderno
mundo das mercadorias e na sociedade comunista, o ethos de uma convenção amorosa não-escrita
aberta a outras relações amorosas põe na prática a compreensão dos limites absolutos do amor na
sociedade capitalista (sabendo agir sobre eles) e busca realizar (de modo aproximativo) elementos
mediadores de uma vida amorosa emancipada, portanto, se expurgamos relativamente a falsidade e
abrimos uma fissura de verdade (parcial verdade) amorosa posso sentir-me, tal como indicara Marx
em sua carta a Jenny, “outra vez um homem, na medida em que me sinto vivendo uma grande
paixão”; é construído um laço precário onde “o amor pela amada [...] torna a fazer do homem um
homem”.
A história humana é o palco aberto onde se desenvolve a trama das paixões e dos
sentimentos, em que os homens reais e ativos costuram a vida e o tempo, onde eles encenam sem
ainda se dar conta disso. “Não o sabem, mas o fazem” (Marx, 1983-1985, p. 72). Nessa arena onde
os homens ainda não se reconheceram como artífices de si mesmo, são incontáveis os atos que
medeiam uma cena à outra. Penso que este inacabado trabalho se arrisca a compor uma destas
cenas, o que faz, portanto, desse epílogo nada mais do que um desfecho do ato em que me
pronuncio, de modo sistemático, pela primeira vez. A peça é interminável, e o ato aqui esboçado
não se esquiva de pretender que tão-logo os homens atuem despidos das máscaras fantasmáticas
que lhes encobrem.
Há inumeráveis lacunas aqui deixadas. Muitas delas estão sugeridas ao longo do
próprio trabalho, em aberto para posteriores formulações. Intentamos lançar alguns dos
fundamentos para uma análise histórico-ontológica do amor. É preciso apreender, a partir disto,
como o amor desenrolou-se no percurso histórico, pelos diferentes modos de produção. Isso é
essencial para fazer o objeto lançar luzes sobre si mesmo, mediado pelas bases teóricas da atividade
científico-filosófica de nossa singularidade. No mais, a práxis porá à prova as teses aqui sustentadas,
algo indispensável para o nosso objetivo estratégico: contribuir para a restituição da arte de amar.
O nosso tempo é deveras um “tempo de homens partidos” (Carlos Drummond de
Andrade). Não seria questionável então a capacidade desses homens desenvolverem uma prática
amorosa revolucionária, tal como exige tão árido período? Sigo Marx (2006a, p. 156) no indicativo
da veracidade prática com que os trabalhadores abraçam os valores: “a solidariedade dos homens
não é uma frase vazia, mas uma realidade, e a nobreza da humanidade irradia sobre nós a partir das
figuras maltratadas pelo trabalho”.
Tornar o amor uma arte requer as condições histórico-sociais para as quais “os sentidos
tornaram-se diretamente teóricos na sua prática” (Marx, 2006a, p. 142). Se pretendo exercer
influência sobre os outros homens devo tornar-me verdadeiramente estimulante e encorajador. O
drama torna-se verdadeiramente humano, pois cada uma das relações que eu estabeleça devem ser
expressões determinadas, em correspondência ao objeto da vontade, de minha vida individual real e
50
concreta. Ou seja, ou eu sou aquilo que sou, ou eu nada sou. Em outras palavras, não há mais
condições para que eu seja aquilo que as propriedades de meu dinheiro me conferem. No campo do
amor, como nas outras relações que vivo, esfumou-se o véu estranho, a fantasmagoria, e nós nos
defrontamos diretamente como homens, pela inteireza de nossas qualidades. Por isso, o amor
torna-se complexo, rico, e nos exige o máximo empenho de nossa individualidade. Em tal
circunstância, de fato, “A sensualidade é a mobilização máxima dos sentidos” (Kundera, 1983, p.
60). Daí Marx (1978a, p. 32) ser categórico em sua atribuição à questão da expressão do que sou
como ser amante (e como isso se corresponde ao objeto da vontade, o outro-amante), sem o qual não
há nenhuma efetividade amorosa, quando afirma: “Se amas sem despertar amor, isto é, se teu amor,
enquanto amor, não produz amor recíproco, se mediante tua exteriorização de vida como homem
amante não te convertes em homem amado, teu amor é impotente, uma desgraça”.
Percebamos que é sob estas bases que se inscreve a verdadeira multiformidade
requerida pelo amor humanamente considerado. A sua determinidade (Bestimmtheit) é sua
multideterminidade, pois as profundas e novas necessidades que produz põem em curso a
permanente necessidade de enriquecimento. “E cada instante é diferente, e cada homem é diferente, e
somos todos iguais” (Drummond de Andrade, 2001, p. 49). Amar é banhar-se no rio heraclitiano
inúmeras vezes junto do ser-amado. Com razão Marx (1983-1985, p. 96) retoma Shakespeare em sua
fala para o qual “O curso do verdadeiro amor nunca é sereno”.
Nesse aspecto, é completamente cabível a divisa de Píndaro, recuperada
posteriormente por Nietzsche, que diz: “Torna-te aquilo que és”. Apenas para uma leitura
superficial ela é um contra-senso. A baixeza a que fora reduzido o homem no mundo das
mercadorias impede-o de exprimir-se inteiramente, aquilo que és. Ou seja, o homem é não apenas a
sua realidade, mas também a sua possibilidade. O itinerário que se lhe está aberto é o seu próprio ser,
porém, em estado de adormecimento. Torna-te humano, eis a tarefa que lhe cabe assumir.
Para levar a termo tão fundamental tarefa, o homem precisa resolver teórica e
praticamente as suas contas com este fatigante mundo. É desfazer-se de falsas antinomias, como as
dos pós-modernos, e erguer-se em manobra de flanco contra a sociedade do capital. Para tanto, não
podemos em nenhuma hipótese abandonar as objetivações complexas até aqui erguidas pelo gênero
humano, inclusive o desenvolvimento da capacidade (ainda limitada, é verdade) de amar. Recorro
novamente a Newton Duarte (2004, p. 222-223) para a interlocução acerca da ontologia do
conhecimento que tratamos referente ao amor, assentada na necessária crítica do trato pós-
moderno ao problema amoroso. Ele afirma que:
Uma abordagem marxista em qualquer campo do conhecimento deve
necessariamente articular-se à perspectiva de superação do capitalismo pelo
socialismo e pelo comunismo. Isso não significa, porém, a negação pura e
simples de tudo o que a sociedade capitalista tem produzido. Uma sociedade
socialista deve ser uma sociedade superior ao capitalismo e, para tanto, ela terá
de incorporar tudo aquilo que, tendo sido produzido na sociedade capitalista,
possa contribuir para o desenvolvimento do gênero humano, para o
enriquecimento material e intelectual da vida de todos os seres humanos. Minha
recusa do pensamento pós-moderno não decorre do fato de ele ser um produto
cultural da sociedade burguesa, mas sim do fato de se tratar de uma ideologia
que, ao invés de valorizar aquilo que de humanizador a sociedade burguesa
tenha produzido, se entrega de corpo e alma à celebração do irracionalismo, do
ceticismo e do cinismo. Minha radical rejeição do pensamento pós-moderno
visa, entre outras coisas, defender uma abordagem marxista que supere os
limites do Iluminismo sem negar o caráter emancipatório do conhecimento e da
razão; que supere os limites da democracia burguesa sem negar a necessidade da
política; que supere os limites da ciência posta a serviço do capital sem,
entretanto, negar o caráter indispensável da ciência para o desenvolvimento
humano; que supere a concepção burguesa de progresso social sem negar a
possibilidade de fazer a sociedade progredir na direção de formas mais evoluídas
de existência humana.
51
sugerido no último capítulo circunscreve-se entre estas mediações práticas para aqueles que
reclamam a urgência de uma vida plenamente humana. Mais um elo a ser incorporado na filosofia
da práxis, para quem a própria práxis confere a verdade de seu estatuto. “Todo filósofo deve viver
seus pensamentos; as idéias que não forem vividas não são efetivamente filosóficas” (Heller, 1992, p.
121).
O patamar social em que os homens estabelecem “relações transparentes e racionais
entre si e com a natureza” corresponde a uma ordem de produção da vida que se desprendeu “do
seu místico véu nebuloso”, onde a riqueza social está “sob controle consciente e planejado” de
“homens livremente socializados” (Marx, 1983-1985, p. 76). Fundar o mundo da transparência é
fundar o mundo do amor. O primeiro se abrirá para a riqueza amorosa, multiforme riqueza, do
homem amante de tal modo que, “na secura nossa” de amor então vivida do mundo das
mercadorias, se impostará “a sede infinita” do pleno amor, o amor do homem a ser efetivado como
“amor sem conta”, tal como nos conta Carlos Drummond de Andrade:
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