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LUÍSA VASCONCELOS
T
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
ermos como necropolítica ou tanatopolítica Lucas investiga as migrações expostas por Graciliano
Vice-governadora
aludem às formas de controle do poder Ramos na 2ª reportagem do projeto Viagem ao país do Luciana Barbosa de Oliveira Santos
sobre a morte dos indivíduos, revigorando futuro, mostrando como a escassez é política – não só
Secretário da Casa Civil
ou atualizando a noção de biopolítica. a do prato de comida, mas também a da linguagem. A Nilton da Mota Silveira Filho
Quando a arma se torna símbolo de um entrevista com Eda Nagayama, que aborda o conflito COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
governo, balizado por sofismas impostos Israel-Palestina em romance, nos expõe a complexidade
Presidente
pelo “bom senso” das “pessoas de bem”, não há como da disputa para os indivíduos e os dilemas de falar de Ricardo Leitão
desviar de uma discussão sobre as políticas da morte. um Outro tão diferente. Pedro Paulo Gomes Pereira, ao
Diretor de Produção e Edição
Quem pode morrer? E quem pode matar? Por quais motivos se mata? revisitar o caminho que correu até chegar a seu Queer in Ricardo Melo
Quais sairão impunes? São reflexões que Jaime Ginzburg tropics, aborda o desmonte das políticas de saúde para as Diretor Administrativo e Financeiro
traz na capa desta edição, mas não diretamente: ao invés populações LGBTQ. Bráulio Meneses
de qualificar o jogo moral entre quem pode e quem não Mas, se Brasília hoje emana discursos preocupantes
pode morrer pelas mãos do Estado, ele o expõe em dois (para dizer o mínimo), também emana outros
contos. Ginzburg vira o espelho sem julgar a aparência: que trazem a vida. É na literatura que isso ocorre:
que você, leitor, possa ver como isso é encontrado de slams, publicações independentes, várias editoras
Uma publicação da Cepe Editora
diversas formas no dia a dia. As ilustrações de Luísa compartilhando processos de leitura, escrita e Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
Vasconcelos trazem o olhar para o atual contexto. publicação. A reportagem de Edma de Góis observa o Pernambuco – CEP: 50100-140
Outras elaborações sobre passado, presente e futuro Plano Piloto a partir das periferias do Distrito Federal. Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
ocupam diversas páginas desta edição. O rescaldo das Tudo isso se soma às traduções inéditas de poemas
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
eleições e o avanço da extrema-direita nos levam a de Wislawa Szymborska para o português, feitas por Luiz Arrais
fabular possíveis futuros. Um deles é o sugerido por Eneida Favre.
EDITOR
Kelvin Falcão Klein, que pensa o porvir a partir de três Schneider Carpeggiani
leituras das vanguardas e filosofia europeias. Isabel Uma boa leitura a todas e todos!
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes
DIAGRAMAÇÃO E ARTE
BASTIDORES
pensáveis além
and sexuality in the global south1 (editora Springer), fruto possíveis e que coloca seus corpos e subjetividades
de mais de duas décadas de pesquisas, encontros como impensáveis. Com o tempo, pude notar que
e envolvimentos. O percurso se inicia no final dos essas formas de agências – as mobilizações dos corpos
anos 1990 e vai até o contexto da pressão que setores dissidentes em aliança – construíram novos caminhos
das companhias
conservadores vêm exercendo contra as conquistas que podem ser observados em conquistas, tais como:
no campo de gênero e sexualidade. O itinerário não em agosto de 2008, o Ministério da Saúde implantou o
foi controlado nem seguro e fui levado pelas expe- processo transexualizador no SUS, a ser empreendido
riências a lugares que não imaginava quando havia em serviços de referência e habilitados; em 2010 sai a
começado a jornada. versão final divulgada do documento Política Nacional
Pesquisador conta como Era final dos anos 1990. Eu estava concluindo o
trabalho de campo numa ONG para portadores de
de Saúde Integral de LGBT.
Mas, apesar dessas conquistas, o contexto que es-
TRADUÇÃO
as violetas na
Sonhei para eles uma mesa, duas cadeiras. Sentaram-se.
Szymborska vertidos pela Não importa que não pudessem sentir dor fora de mim,
se eles sentiam dor dentro de mim.
(1967)
ANIVERSÁRIO
Duma vez tanto mundo de todo canto do mundo:
morenas, moreias e mares e auroras,
e fogos e focas e flumes e floras —
como eu ajeito, onde ponho agora?
Os chernes e chifres e chuvas e charcos,
begônias, peônias — onde eu os guardo?
Argilas, gorilas, berilos, chilradas —
talvez seja muito — demais — obrigada.
Que jarra comporta a bardana e o bolor,
a pompa, o pepino, o problema e o pavor?
Onde ponho a prata, onde pego um jabu,
me diga o que eu faço com a zebra e o zebu?
O dióxido é coisa valiosa e importante,
o octópode aqui e a centopeia adiante!
O valor nas alturas, imagino seu preço —
muito obrigada, mas eu não mereço.
Não é muito pra mim o sol e o poente?
Como vai brincar disso a pessoa vivente?
Vivo só um momento, momento que é presto,
não percebo o futuro e confundo o resto.
Do vazio, sou incapaz de tudo distinguir.
Vou perder as violetas na pressa de ir.
Mesmo sendo o menor, o custo é um horror:
a fadiga da haste e a folhinha e a flor,
nesse mundo, às cegas, uma única vez,
com soberba, exata, frágil com altivez.
(1972)
(2005)
À noite,
melhora do tempo em quase todo o país,
apenas na região sudeste
há possibilidade de precipitações.
A temperatura cairá significativamente,
em compensação, a pressão aumentará.
O dia de amanhã
promete ser ensolarado,
embora, para os ainda vivos,
seja útil um guarda-chuva.
(2005)
TODOS UM DIA
Todos, um dia, têm alguém querido que morre,
entre ser ou não ser
foi obrigado a escolher o segundo.
E só, às vezes,
uma pequena cortesia de sua parte –
nossos entes queridos mortos,
ela joga em nossos sonhos.
(2012)
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2019
ARTIGO
horizontes de
variados pontos, muitos deles englobados por uma
mesma percepção de fundo: é cada vez mais difícil
imaginar um futuro.
Segundo as categorias do historiador Reinhart
Koselleck, todo “espaço de experiência” pressu-
expectativas
põe um “horizonte de expectativa”, ou seja, toda
vida que se desenrola no presente precisa de um
futuro hipotético no qual se projetar. Nosso pre-
sente, contudo, vive um curto-circuito na relação
entre experiência e expectativa. Vivemos em uma
O futuro dos sujeitos época na qual o horizonte não é mais sinônimo de
progresso ou progressão, construção ou formação,
pensado a partir de três pelo contrário: as promessas para o futuro que es-
cutamos envolvem sempre violência, intolerância,
leituras do passado
destruição e ignorância.
O detalhe fascinante dessa dinâmica é que toda
experiência do presente e toda projeção de futuro
envolve, sempre, uma reconfiguração do passado.
Kelvin Falcão Klein O passado não cessa de passar, está sempre aberto
e disponível. Três livros recentemente lançados
buscam dar conta desse detalhe, de formas ra-
dicalmente diversas e igualmente interessantes.
Franco Berardi, filósofo italiano, lançou em 2009
seu livro Depois do futuro – agora publicado no Brasil
pela Ubu Editora com tradução de Regina Silva. No
prefácio, escrito 10 anos depois do lançamento,
Berardi aponta que sua intenção “era comparar
o Zeitgeist depressivo deste novo século ao espírito
futurista que permeou profundamente a cultura
do século XX, marcado pela crença no futuro”. Seu
livro se lança 100 anos no passado – em direção ao
primeiro manifesto do futurismo italiano, de 1909 –
para pensar as bases de nossa contemporaneidade
“depressiva”. Entre um ponto e outro, entre 1909
e 2009, encontra uma série de balizas e pontos de
referência, sendo o principal o Maio de 1968: até aí,
escreve Berardi, “o futuro era imaginado de forma
eufórica”; depois, a percepção do futuro é de algo
que “ameaça o programa humanista”.
Wolfram Eilenberger, por sua vez, também filó-
sofo e autor de Tempo de mágicos, faz um movimento
semelhante ao de Berardi, como indica o subtítulo
de seu livro: “a grande década da filosofia: 1919-
1929” (traduzido por Claudia Abeling e lançado pela
Todavia). Eilenberger resgata quatro grandes nomes
da filosofia europeia, Walter Benjamin, Ludwig
Wittgenstein, Martin Heidegger e Ernst Cassirer, dois números: o primeiro em 1999, com o título
costurando suas trajetórias umas às outras e aos geral de Exercícios de metafísica crítica; o segundo em
eventos históricos do período. A década separada 2001, com o título Zona de opacidade ofensiva. Por fim,
por Eilenberger, que se inicia com o imediato pós- Tiqqun é também a denominação de um concei-
-Primeira Guerra Mundial e se encerra com a crise to filosófico com origem no misticismo judaico:
econômica mundial de 1929, também foi marcada significa algo em torno de reparação, restituição
pelo surgimento de obras que ressoam ainda hoje: e redenção. Nenhum dos artigos publicados nos
o Tractatus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein, Ser e dois números lançados de Tiqqun é assinado, não
tempo, de Heidegger, Origem do drama barroco alemão, há qualquer indicação específica de autoria – ela
de Benjamin, e os três volumes da Filosofia das formas é coletiva.
simbólicas, de Cassirer. Contribuição para a guerra em curso apresenta dois dos
Existe uma questão de fundo que aproxima Eilen- artigos: “Introdução à guerra civil”, dedicado a de-
berger e Berardi: são dois filósofos contemporâneos senvolver a ideia de que vivemos sob permanente
empenhados em pensar o presente a partir da releitura estado de exceção cuja lógica é a da guerra civil, e
das camadas complexas do passado. Esse movimento, “Uma metafísica crítica poderia nascer como ciên-
contudo, ainda é feito a partir de um sentimento de cia dos dispositivos”, dedicado a aprofundar uma
hegemonia nacional – Berardi, italiano, busca o fu- teoria da relação entre dispositivo e subjetividade.
turismo italiano de 1909; Eilenberger, alemão, busca A edição brasileira conta ainda com um posfácio de
a grande década da filosofia alemã, com autores que Giorgio Agamben, cuja obra é declaradamente um
escreveram em alemão. É inegável que uma série de ponto de partida para o coletivo Tiqqun – junto com
elementos suaviza essa ênfase na hegemonia nacio- a de outros autores como Michel Foucault, Gilles
nal – Berardi comenta extensamente as vanguardas Deleuze, Félix Guattari e Guy Debord.
russas; Eilenberger comenta a influência do cenário Berardi e Eilenberger revisitam momentos pre-
francês sobre Benjamin, ou do cenário britânico sobre cisos do passado e incidentalmente refletem sobre
Wittgenstein –, e é inegável também que são trabalhos a contemporaneidade – de um lado, o “tempo de
nascidos da especialização de seus autores a determi- mágicos” nos faz melhor observar a pluralidade e
nados campos disciplinares. multiplicidade de ideias circulando no presente;
O terceiro livro em questão, contudo, é elo- de outro lado, a retrospectiva do “futurismo” nos
quente em sua fuga deliberada de uma série de faz melhor observar (e desconfiar da) a tecnologia
categorias que parecem limitar o pensamento onipresente dos dias atuais. Os textos de Tiqqun,
há gerações – nacionalidade, autoria, disciplina no entanto, ao também revisitar nomes e textos
etc. Trata-se de Contribuição para a guerra em curso, do passado (Hobbes, Tocqueville, Hegel, Marx,
escrito pelo coletivo Tiqqun e agora publicado no Benveniste, Pierre Clastres…) buscam incidir direta
Brasil pela n-1 edições, com tradução de Vinicius e criticamente sobre o presente, propondo ações e
Nicastro Honesko. movimentos de consciência: “a necessária solida-
Tiqqun é o nome de um coletivo fundado em 1999 riedade entre fichados e não fichados, entre aqueles
e encerrado em 2001, depois dos ataques às Torres que têm documentos e os que não os têm, só pode
Gêmeas em 11 de setembro de 2001. Além disso, se fazer contra o princípio do fichamento, contra
Tiqqun foi o nome dado pelo coletivo à revista que o princípio dos documentos. A luta presente quer,
produziram, também de vida curta, com apenas taticamente, que todo mundo tenha documentos, e,
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2019
FILIPE ACA
são atravessadas
dustrialização, seus processos e resultados – Deus em perdição, fazer sair de seu prumo. Aqueles que
veemente de uma raça de aço / Automóvel embriagado de fluem no dispositivo não se dão conta dessa música,
espaço, escreve Marinetti. Duas décadas depois – já seus passos obedecem em demasia à cadência para
ENTREVISTA
Eda Nagayama
Questões para
representar uma
prisão a céu aberto
Escritora parte de experiências vividas (e pessoas que
conheceu) na Palestina para pensar, em seu romance
Yaser, a complexidade dos conflitos com Israel
LAILSON SANTOS / DIVULGAÇÃO
Everardo
NORÕES
esnoroes@uol.com.br
Jarkko nos contou que, numa de suas passagens por (“Congelante” é seu jeito de intrometer na con-
O poeta e o
Paris, flanando sozinho, entrou na livraria Shakespeare versa expressões de quem vem de país gelado e,
and company. Após resistir à tentação de “passar a depois, mesclá-los aos da gíria brasileira aprendida
mão” numa primeira edição de Scott Fitzgerald, com a namorada.)
recomeçou o passeio até estancar de frente à igreja Um dos folhetos na entrada da igreja explicava que
de Saint-Séverin. Entrou no templo gótico flamboyant São Vicente de Paulo – santo dos pobres e fundador da
louco martelo
e abismado com os vitrais, o bosque de colunas, os ordem das Irmãs de Caridade –, costumava acolher
ornamentos, sentou num banco para descansar da ali crianças abandonadas.
caminhada mochila às costas. Reparou em torno. – Quem sabe, sou uma delas! – comentou
Não havia mais ninguém. Ainda ruminava o Paris é Jarkko, rindo.
da noite (3)
uma festa, lido à noite passada, de um Hemingway que Aquela sua história serviu de mote a uma con-
fazia ponto naquela livraria antológica. Foi quando versa sobre o quanto somos amoldados pelo es-
ouviu o órgão jorrar uma peça de Bach, enquanto paço. Depois de ter passado mais de seis horas na
no vitral dos apóstolos, São Pedro, túnica verde, igreja, era como se houvesse transcorrido apenas
testemunhava a cena empunhando uma chave. O alguns minutos. Além de ter se sentido íntimo
poeta pensou ser aquilo o sinal de uma mensagem daquelas paredes a lhe debruçarem sobre o lado
encoberta. A música escorria na matemática ine- de fora do tempo.
Notícias do poeta finlandês briante do compositor e, meio hipnotizado, Jarkko
ficou ali quase toda uma tarde. E saiu reconhecido Há locais com essa espécie de aura. Pode ser uma
IDENTIDADES
Wellington Novas crônicas marcianas
de Melo
Dia desses me convidaram pela materialidade do texto,
para palestrar num seminário o que distinguia efetivamente
sobre Literatura Marciana um autor marciano de uma
Setentrional na universidade. região ou de outra? Os temas,
Declinei. Expliquei aos a cor local, o sotaque, certo
bem-intencionados ethos poderiam determinar
organizadores que sequer se estávamos diante de um
cria na Literatura Marciana ou de outro sistema literário?
e que, aliás, minha crença Se pego texto escrito por
MERCADO na própria Literatura não ia
bem das pernas. Adverti:
um(a) autor(a) marciano(a)
anônimo(a), seria possível
CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
LUÍSA VASCONCELOS
CONSELHO EDITORIAL
certos romances ingleses. Alguns de seus poemas,
que prometeu logo traduzir, têm os rastros de lugares I Os originais de livros submetidos à Companhia
assim, que impregnaram sua memória e imaginação. Editora de Pernambuco -Cepe, exceto aqueles que a
Comentei que o filósofo Evaldo Coutinho havia Diretoria considera projetos da própria Editora, são
observado que o arquiteto pode ser considerado analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a
um “localizador de sentimentos”, ao cumprir uma partir dos seguintes critérios:
coisa notável: deter o tempo. Entramos num deter-
minado recinto e somos possuídos por uma espécie
de espírito ali reinante. Se num edifício gótico, 1. Contribuição relevante à cultura.
sentimo-nos identificados a alguém da época. E
quando moramos numa casa que já foi habitada 2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,
repetimos os mesmos gestos de moradores antigos que privilegia:
e nos tornamos ‘estátuas móveis’.
É certo que novas invenções logo irão permitir
grandes mergulhos nesses fenômenos. E seremos a) A edição de obras inéditas, escritas ou
capazes de captar ondas sonoras que circulam entre traduzidas em português, com relevância
nós. Se já observamos o interior do corpo através do cultural nos vários campos do
ultrassom ou localizamos alguém a partir do GPS, conhecimento, suscetíveis de serem
iremos poder restaurar conversas antigas a partir apreciadas pelo leitor e que preencham os
de vibrações sonoras flutuando feito borboletas.
seguintes requisitos: originalidade,
Então “escutaremos” o que aconteceu dentro de
casa e vamos recapturar nossos discursos, músicas adequação da linguagem, coerência
e fofocas “arquivados” no éter. e criatividade;
– Pelos comentários dos blogs e sites brasileiros,
quando isso acontecer os juízes vão ter que ter má- b) A reedição de obras de qualquer gênero da
xima cautela nas conversas! – disse Jarkko, em tom
criação artística ou área do conhecimento
de ironia.
E arrematou dizendo que no dia em que inventarem científico, consideradas fundamentais para o
o que apelidou “sh” – sound hunter, caçador de sons patrimônio cultural;
–, voltará à Shakespeare and company para “escutar” os
papos de Hemingway, Scott Fitzgerald ou Anaïs Nin. 3. O Conselho não acolhe teses ou dissertações
sem as modificações necessárias à edição e que
{Há tempos não tinha novidades do Jarkko.
contemplem a ampliação do universo de leitores,
Até que o Nuno Félix da Costa1 enviou-me este
Fenômeno idêntico ao de quando entramos numa e-mail: visando à democratização do conhecimento.
igreja ou num jardim árabe concebidos para a me-
ditação e nos vemos transportados para uma outra “Caro Everardo: II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá parecer
esfera. Mesmo não havendo o som de um órgão, Encontrei hoje o Jarkko no Jardim da Estrela um tanto bebido. sobre o projeto analisado, que será comunicado ao
sentimo-nos tocados por uma música secreta, trazida À laia de justificação disse-me estar obcecado com os efeitos
proponente, cabendo à diretoria da Cepe decidir
ao nosso “ouvido de dentro”. E tanto pode ser uma do álcool nos vários heterónimos do Pessoa e exagerara nas
cantata de Bach como um “desafino” de João Gilberto. aguardentes ao tentar levar o Ricardo Reis a descontrolar-se como sobre a publicação.
Somos tomados por uma sensação semelhante, um bêbedo normal. Tal não acontecera quando experimentara
quando participamos de uma cerimônia do Can- beber como Campos ou como o próprio Pessoa cuja vulnerabilidade III Os textos devem ser entregues em duas vias, em
domblé e observamos “baixar o santo”. Prometi a era transparente, mas Ricardo Reis não se descontrola nem papel A4, conforme a nova ortografia, em fonte Times
Jarkko que lhe daria de presente um livro da fotó- cambaleia tal como não erra a métrica, constatara. New Roman, tamanho 12, com espaço de uma linha e
grafa Roberta Guimarães, cujas imagens registram Estava sol e vento como em quase todos os domingos lisboetas,
meia, sem rasuras e, ainda, enviados no formato PDF
essas manifestações de raízes africanas e dão uma Jarkko tentava parecer normal sentado num banco do jardim,
ideia do ambiente, adereços e rituais que costumam mas claramente sucumbira e nem o polimento poético lhe valia. para o email conselhoeditorial@cepe.com.br,
desembocar em transes. Despedi-me advertindo-o que cuidasse da espantosa realidade contendo, quando for o caso, índices e bibliografias
– E caso queira se aprofundar no assunto, fique das cousas que, tal como os horóscopos, também se desacerta. apresentados conforme as normas técnicas em
sabendo que em Lisboa já existe terreiro! – disse-lhe. Abraço” vigor. As páginas dverão ser numeradas.
Respondeu-me que se houvesse algum em Lis-
boa, na época de Fernando Pessoa, tinha a certeza Respondo ao Nuno que num próximo encontro com
que o Poeta teria baixado por lá e inventado mais o poeta de Ääretön valkoinen tentarei saber que diabo IV Serão rejeitados originais que atentem contra a
alguns heterônimos! ele carregava na mochila capaz de ter lhe provocado Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
aquela “viagem” na morada de Saint-Séverin! violência e as diversas formas de preconceito.
Jarkko contou vários casos ocorridos na sua infân-
cia na Finlândia, onde o escuro do inverno tornava 1. Autor do livro Pequena palavra: anotações sobre poesia V Os originais devem ser encaminhados à
tais “visitas” mais tenebrosas e faziam-no lembrar (Cepe Editora, 2018).
Presidência da Cepe, para o endereço indicado a
seguir, sob registro de correio ou protocolo,
acompanhados de correspondência do autor, na
qual informará seu currículo resumido e endereço
para contato.
ADJETIVOS INVISIBILIDADE
CAPA
LUÍSA VASCONCELOS
Formas de interpelar
os desejos assassinos
Imagens da morte em dois A presença de cenas de violência é constante em
diversos gêneros cinematográficos. Elas podem ser
de tiros ou de lutas corporais foram consideradas
fatores de motivação para o consumo. Às vezes, em
significa? É legítimo
mata por ganância ou terrorismo, ele pode ser visto temente de idade ou formação, estejam preparadas
como vilão; se outro personagem mata para libertar para reagir a imagens violentas?
uma criança raptada ou evitar uma catástrofe, ele Uma preocupação com a ética leva a considerar
matar se houver
pode ser visto como herói. as diferenças entre as posições de agente e vítima de
Após décadas de investimentos, por parte da violência. Em filmes de ação, por exemplo, é co-
indústria cultural, em imagens de violência, o sur- mum que tanto o protagonista como o antagonista
gimento da internet constituiu uma escala sem pre-
cedentes de circulação de manifestações verbais e
visuais, tornando a exposição a imagens de violên-
uma razão vista pratiquem atos violentos. A diferença consiste na
razão para praticá-la. O que os distingue é quem
eles representam, isto é, em defesa de quais valores
cia um fato corriqueiro. Na atualidade, convergem
para o favorecimento dessa exposição, entre outros
fatores: a facilidade com que crianças pequenas
como aceitável? seus atos violentos são praticados.
É inteiramente diferente uma situação em
que um filme prioriza a atenção a vítimas de
jogam video games nos quais o ponto de vista do joga- está consciente da sua própria mortalidade? Filmes, violência. Nesses casos, importa, para o público,
dor é o de um matador; o sucesso de programas de músicas, obras de artes plásticas e textos literários, a apresentação dos efeitos dessa prática. Muito mais
televisão sensacionalistas que mostram imagens de às vezes, podem suscitar o aparecimento dessas do que a ação ou a aventura, o drama é adequado
vítimas de violência e cenas de crimes; a prolifera- questões, ou de outras similares. É importante, para configurar imagens desses efeitos. A escolha
ção, em televisão aberta e fechada, de espetáculos mesmo que não seja alcançado um consenso, que de Sofia, de Alan J. Pakula, e Hiroshima, mon amour,
de lutas que deliberadamente manejam imagens perguntas sobre o ato de matar e o significado da de Alain Resnais, são exemplos de obras dramá-
de sangue e ossos quebrados; a produção em série morte possam ser formuladas, a cada leitura de ticas que conferem visibilidade à danificação da
de narrativas, no cinema e na televisão, centradas Rubem Fonseca, a cada página de Alberto Guzik, vida pela guerra. O segundo filme traz um roteiro
na visibilidade de corpos agredidos. diante de cada filme de ação, ou de cada cena de extraordinário, elaborado por uma escritora capaz
Essa escala de visibilidade da violência provoca uma tragédia de Shakespeare. São perguntas que de confrontar corajosamente temas complexos,
questionamentos. Para a sociedade contemporânea, aperfeiçoam as capacidades de relacionamento Marguerite Duras. Assim como em obras cine-
o que o ato de matar significa? Ele resulta de uma humano, por darem visibilidade a preocupações e matográficas, a violência é um elemento presente
perda de consciência, ou faz parte do que social- dificuldades vivenciadas, às vezes silenciosamente, em textos literários. Ela pode ser encontrada em
mente é considerado normal? Na opinião de pessoas por quem está próximo. variadas épocas, em obras de diferentes idiomas.
à nossa volta, todas as vidas são resguardadas por Cabe perguntar por que representações da vio- A literatura é um campo no qual a tensão entre
um direito sagrado, ou algumas vidas importam lência física (e, mais especificamente, do ato de ética e violência se expressa de variados modos.
mais do que outras? É legítimo que alguém mate, matar) são absorvidas, consumidas e multiplicadas Entre Shakespeare e Dostoiévski, Primo Levi e
descumprindo a lei, se tiver uma razão considerada na escala atual. Existe, para diversos segmentos Roberto Bolaño, Graciliano Ramos e Guimarães
aceitável? Quando um ser humano mata outro, ele de público, prazer na contemplação da destruição Rosa, são encontradas imagens de efeitos de prá-
14
PERNAMBUCO, SETEMBRO 2019
CAPA
ticas violentas, que motivam questionamentos. para que o tratamento tenha êxito. Esse é apenas Penal. Nesse conto, o único nome próprio indicado
Dentro das variações históricas das relações entre um exemplo, entre muitos outros possíveis, de é o da delegada, Mirtes. Em uma leitura apressada,
a literatura e o ato de matar, algumas perguntas uma situação em que a possibilidade de morrer é isso poderia deixar a impressão de uma superio-
podem ser importantes. Entre elas, cabe formular condicionada por injustiças sociais. Deixar grupos ridade ou uma autoridade. No entanto, o policial é
uma incerteza primária: por que alguém mata uma sociais em situações de extrema vulnerabilidade, irônico ao afirmar que Mirtes “não é um bom nome”
pessoa? E a partir desta, outras dúvidas podem ser por doenças, fome ou falta de habitação, significa para essa profissão. Esse comentário expressa uma
enumeradas. Que desejo é esse, que torna um ser tornar a probabilidade de morrer, dentro desses inquietação, que abre margem para a indiferença
humano alvo de eliminação? Existe algo específico, grupos, uma responsabilidade da sociedade e do e a desobediência. Contrariamente à postura da
na constituição de seres humanos que, por alguma Estado. Por essa linha de reflexão, isso significa delegada, que sustenta sua posição no texto da
razão, em algum momento, admitiram a ideia de que os grupos sociais que têm maiores recursos legislação, o protagonista decide agir por iniciativa
matar outros? econômicos determinam a intensidade de níveis própria. É relevante que o protagonista e o cafetão
Para formular a primeira pergunta é necessário de mortalidade entre os menos favorecidos. A sus- não tenham nomes próprios. Nesse aspecto, eles
um ajuste da percepção. O ato de matar teria de tentação de desigualdade econômica é um fator de são semelhantes entre si. Ambos fazem parte, ao
deixar de ser observado como um fenômeno co- ampla mortalidade. Uma reflexão ética apontaria menos no interior dessa narrativa, de um universo
mum, e passar a ser percebido como estranho. Seria que, se todos os indivíduos merecem que suas vidas de anônimos.
necessário, após assistir a uma cena de violência sejam respeitadas, a possibilidade de morrer não A violência aparece, explicitamente, na cena em
em um noticiário, percebê-la como um enigma deveria variar dessa maneira. Nenhum indivíduo que o policial procura um homem, descrito como
que resiste à compreensão, e não como parte de deveria ser considerado descartável para a socie- “cafetão sádico”, e o encontra na casa dele, com
uma rotina habitual. dade. E nenhum preconceito deveria ser usado três mulheres. Esse homem pede para o prota-
Essas perguntas poderiam ser tratadas como in- como argumento para exclusão. A possibilidade gonista sair, ameaçando de registrar uma queixa,
convenientes, por diversas razões. No senso comum, de construção e consolidação de relações sociais e afirmando que “violência policial é crime”. O
circula a premissa de que, se alguém é violento, está pacíficas, em termos éticos, está diretamente ligada policial encosta sua arma na cabeça do homem, e
desequilibrado, descontrolado ou, numa palavra, com o respeito às vidas individuais. em seguida atira; primeiro, nos genitais, e depois, na
louco. Essa premissa supõe que a civilização seria O conto Justiça, de Rubem Fonseca, publicado cabeça. Depois, ameaça as mulheres, determinando
pacífica, e que o ato de matar irromperia como ex- no livro Histórias curtas, de 2015, tem como prota- que elas deixem a prostituição, pois, caso contrário,
ceção. Nessa perspectiva, se alguém deseja a morte gonista um policial. A obra é polissêmica, e pode ele vai praticar a mesma violência com elas.
de outro, deve ser removido da vida em sociedade. despertar interpretações variadas. O texto inclui A conversa com a delegada assinala que o policial
Uma pessoa violenta, de acordo com essa linha de elementos que são comuns a narrativas sobre cri- faz parte de um sistema com regras, ainda que essas
pensamento, deveria ser presa, ou internada em mes – um assassinato, uma cena de crime, uma regras possam resultar na absolvição de criminosos.
uma instituição, para que sua violência não atinja delegacia, referências a investigações. No entanto, Para os leitores habituados a situar a polícia ao lado do
os que são considerados civilizados. a composição não segue os padrões de ordenação bem, e os criminosos ao lado do mal, Rubem Fonseca
Um olhar atento encontra à nossa volta, sem tradicionalmente esperados para esse gênero. Dois propõe um desafio, que consiste em refletir sobre um
dificuldade, um outro horizonte de produção da aspectos são importantes para compreender a espe- dualismo moral. As regras garantiram ao cafetão uma
violência, que é a prática em acordo com as leis. cificidade desse conto. O primeiro consiste no fato absolvição; para o policial, essa absolvição foi um
Se um soldado está em um campo de guerra, sua erro; a punição, para ele, seria uma correção desse
violência é funcional, servindo a um propósito
de Estado. Para essa hipótese de compreensão, é
esperado que a violência seja um monopólio do
Que desejo torna erro. Portanto, ele estaria acima da lei, ocupando
uma função que a lei, na opinião dele, não teria
conseguido cumprir. O assassinato do cafetão, para o
Estado. A legislação deve definir as condições de
exercício válido da violência (por segurança na-
cional ou por proteção da soberania, por exemplo),
outro humano um policial, é uma ação que compensaria a lei, isto é, se
as regras não levaram à punição do criminoso, o pro-
tagonista entende que suas ações individuais podem
para fazer cumprir as leis. Nesse horizonte, um
representante da lei tem autorização para empregar alvo? Variações estabelecer essa punição. Nesse sentido, o título do
conto aponta para uma compreensão da justiça que,
históricas nas
recursos violentos; a violência então corresponde ultrapassando os limites da legislação, é feita com
a um padrão de normalidade, ou mais do que isso, as próprias mãos. Ao realizar esse ato, o policial está
de normatização. efetivamente agindo como um criminoso. O prota-
relações da literatura
Essas duas maneiras de formular o problema gonista constitui uma ambivalência: ele próprio age
estão diretamente ligadas a convenções da narra- como um criminoso, ao matar fora dos parâmetros
tiva de ação. Trata-se de distinguir qual violência é da legislação, embora sua ação esteja alinhada com
legítima, e serve a valores aceitos. Se ela é legítima,
como no caso de um soldado em campo de guerra,
o ato de matar pode ser reconhecido como heroico.
com o ato de matar o que ele acredita ser uma forma de justiça para as
mulheres exploradas. Em razão da polissemia da
obra, podem ser despertadas nos leitores reações
Para aquela que é ilegítima, como no caso de um ato
criminoso, a sociedade estabelece regras de puni-
ção. Noutras palavras, a sociedade pode distinguir os
pedem perguntas muito variadas. Duas questões por exemplo, podem
surgir: (a) o assassinato do cafetão é, segundo algum
critério, uma ação válida que expressa um senso
atos de violência entre válidos e inválidos, e utilizar de que o policial é, ele próprio, um assassino, que legítimo de justiça? (b) o respeito ao valor da vida do
essa diferença para atribuir significado a esses atos. mata à revelia da lei. O segundo aspecto é a pers- cafetão, vida simplesmente considerada como uma
Forças históricas se transformam, valores morais pectiva através da qual o leitor toma conhecimento vida de um ser humano, deveria ter sido preservado
se reordenam, de modo que um ato violento que, da estória. O protagonista é também o narrador. pelo policial, como uma razão para não realizar o as-
50 anos atrás, era considerado legítimo e legal, hoje Esses dois aspectos condicionam a apresentação sassinato? Como o narrador é o próprio protagonista,
pode ser considerado um ato criminoso. Com o cres- dos episódios narrados. tudo o que o leitor sabe sobre os acontecimentos é
cimento, em muitos países, das políticas públicas de Os três primeiros parágrafos de Justiça expõem mediado pelo seu ponto de vista particular. É preciso
defesa de direitos humanos, têm ocorrido profundas opiniões do narrador a respeito do abuso de mu- compreender esse ponto de vista.
mudanças nas maneiras como sociedades lidam lheres por parte de homens. Inicialmente, o texto O que prevalece no conto é uma percepção po-
com o ato de matar. No caso do Brasil, com uma aborda a figura do “cafetão”, que explora prostitutas. sitiva do assassinato, em razão de que o matador é
história marcada por vivências de autoritarismo, Em seguida, esse tema se estende a situações di- o próprio narrador, que delimita, descreve e avalia
movimentos sociais de reivindicação de direitos versas, incluindo funcionárias de lojas, empregadas o que acontece na estória. Poderíamos pensar que
civis, em diversos casos, contrariam tendências domésticas e professoras. No parágrafo posterior, Rubem Fonseca pretendeu explorar uma ironia,
autoritárias que, ao longo da história, defendem o discurso retoma a figura do cafetão, para carac- ao caracterizar um policial como um assassino, e
exclusão ou aniquilação de grupos. Uma reflexão terizá-lo como sádico. De acordo com o texto, um escolher o mesmo como narrador. Essa construção
ética a respeito da reivindicação de direitos pode cafetão tem prazer em assistir ao sofrimento de permite perceber, digamos, por dentro, como a
incluir a afirmação do respeito social pelo valor de uma mulher e em praticar o mal. mente do assassino opera. Um leitor que, eventual-
cada vida individual. Ao ler os cinco parágrafos seguintes, o leitor mente, se identificasse com o personagem, estaria
Se cada vida humana é única e merece ser res- toma conhecimento do ambiente de trabalho e talvez caindo numa armadilha, pois admitiria um
peitada, então cada pessoa merece que seja garan- da delegada. Diante da inquietação exposta pelo espelhamento com um assassino.
tido o seu direito a viver. Quando a legislação de protagonista a respeito de que criminosos tenham Ao enunciar que “as mulheres estão conseguin-
um país desequilibra as chances de sobrevivência, sido absolvidos, a delegada apresenta informações do posições de mando e de poder”, o policial se
através de desigualdade econômica, são estabele- sobre o Código Penal. Nesse trecho, está apresentada aproxima de formas discursivas conhecidas, em
cidas diferenças entre grupos sociais. Fatores como a frustração do policial com relação à legislação. Essa alta circulação nas mídias, referentes a transfor-
o acesso à saúde pública, à educação e aos direitos frustração fundamenta, como se fosse uma justi- mações nas relações entre gêneros. Seria um en-
trabalhistas podem definir, para cada indivíduo, ficativa que o leitor pudesse considerar plausível, gano, no entanto, acreditar que o enunciado seria
o alcance de suas capacidades de preservação da o interesse do personagem em matar. uma representação consistente de uma posição
própria vida. A legislação pode, através de dese- O policial afirma que “as mulheres estão con- favorável a mudanças sociais, ou supor que uma
quilíbrios, permitir ou legitimar que alguns grupos seguindo posições de mando e de poder” e que posição feminista faça parte das convicções do
sociais estejam em grau de vulnerabilidade muito considera isso “bom”. Essa opinião está associa- personagem. A inconformidade com os cafetões na
maior do que outros. Em termos concretos, esses da ao fato de que ele trabalha em um ambiente parte inicial do conto, que supostamente serviria
desequilíbrios levam a definir, por exemplo, quem coordenado por uma mulher. Enquanto ele não como motivação para decidir matá-los, sugeriria
tem, quando atingido por uma doença grave, cujo se conforma com absolvições de criminosos, a que o incômodo é apenas com os homens e que,
tratamento exige medicamentos caros, as condições delegada constitui uma voz que respeita o Código para ele, as mulheres ligadas a cafetões são sempre
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LUÍSA VASCONCELOS
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CAPA
O conto de Rubem
Fonseca pode ser
um discurso cínico
sobre a hipocrisia da
lei, ou uma ironia,
por ver o assassino
de forma positiva
e não em decidir se ele deve continuar vivo. O ato de em miniatura no universo de Justiça, é infernal, pois rapazes que forma uma espécie de gangue. Quando
matar à revelia da legislação aproxima o protagonista potencialmente qualquer um poderia ser alvo de está acompanhando esse grupo, Adonias entra em
de fenômenos como os linchamentos, as ações de uma visita do policial. A única voz que poderia ser acordo com os valores defendidos por seus com-
milícias ou os assassinatos planejados por vingança. tomada como contraposição no texto seria a da panheiros. De acordo com o texto, o líder do grupo
É possível ter uma outra compreensão do conto, delegada, em defesa do Código Penal. Fica claro, defende o seguinte: “que é preciso limpar os lixo: as
que não envolve ironia. O texto poderia ser lido porém, que o protagonista não está nada preocupado bicha, os preto, os judeu, os comunas, e só então as
como uma expressão cuidadosa de um cinismo. em seguir a orientação dessa autoridade ou respeitar coisas vão entrar no eixo, e daí gente como nós, eu
Nessa perspectiva, o ato de matar à revelia da lei, o sistema formal de justiça. Não há dialética no e você e os mano, nós vamos poder ter a vida que
sendo mantida a imagem de um policial em busca conto de Fonseca, e a disposição para a violência nós merece”. A expressão “limpar os lixo” remete a
de justiça, demonstraria hipocrisia com relação aos é constitutiva da sociedade ali desenhada. um princípio de pureza, de acordo com o qual os que
valores defendidos pela delegada Mirtes. Um prazer O conto Adonias, de Alberto Guzik, foi publicado forem considerados inferiores devem ser excluídos.
em ler Justiça poderia resultar, talvez, para uma parte no livro O que é ser rio e correr?, de 2002. Vale a pena A posição defendida tem afinidades com elementos
do público, de um reconhecimento da força do ci- fazer uma aproximação entre esse conto e o texto de do nazismo e do fascismo. A enumeração apresenta
nismo. É como se o conto pudesse ser tomado como Fonseca, em razão de que podem ser encontradas grupos que historicamente foram alvos de persegui-
metonímia de um país caracterizado pela violência, semelhanças entre eles; nos dois casos, o protago- ção e destruição em regimes autoritários. Discursos
atravessado pela hipocrisia e pela desconsideração nista realiza um assassinato. Por outro lado, saltam e práticas de homofobia e de racismo são reiterados
de vidas de seres humanos individuais. aos olhos muitas diferenças entre os textos. Na obra constantemente no país, na atualidade. A perseguição
Essa hipótese de leitura do conto como um dis- de Guzik, o discurso do narrador está em terceira a comunistas remete, por exemplo, a ideias defendi-
curso malicioso e cínico, que reforça os estímulos pessoa, de modo que não é pelo ponto de vista do das pelo regime militar, no Brasil, durante a ditadura.
para que o leitor sinta prazer em confirmar uma protagonista que os episódios chegam ao conhe- A frase pode ser associada também ao período da
visão genérica e negativa do país, isto é, que o país cimento do leitor. O personagem-título, Adonias, Segunda Guerra Mundial, no qual o regime nazista
não tem saída, é formalmente sustentada, pelo não tem uma profissão ligada ao cumprimento da na Alemanha perseguiu e matou milhões de judeus.
fato de que o protagonista é também o narrador. lei, o que o distingue do policial construído por O escritor Alberto Guzik consegue, ao formular essa
Rubem Fonseca construiu uma situação na qual o Fonseca. A leitura da narrativa de Guzik evoca uma sentença, constituir no personagem que a enuncia
mundo está delimitado pela mente de um homem questão formulada anteriormente: por que alguém uma espécie de síntese de forças destruidoras do pas-
individualista, cínico e violento. Mergulhar nes- mata uma pessoa? sado e do presente. Ao se integrar ao grupo, Adonias
se mundo significa estar confinado dentro dele, A violência emerge pela inserção do protagonista adere a esse pensamento excludente.
pois não há nenhuma abertura para a mudança em um grupo social que valoriza a destruição de Em frente a esse grupo, na rua, passa um garoto,
de ponto de vista. A vida social, tal como reduzida seres humanos. Adonias integra um conjunto de que é empurrado por um dos rapazes. Adonias grita
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Em seu conto,
Alberto Guzik
conecta destruição
e autodestruição ao
criar um assassino
que se coloca no
lugar da vítima
para o garoto, descrito como “magro e fraco”: “Que qualquer justificativa. No caso de Adonias, o ato de considera heterossexual, e o pretexto para o as-
foi, bicha, tá querendo briga?”. O narrador, nos matar é movido por uma vontade de agredir, de dar sassinato foi a homofobia). Porém, assim como
detalhes, configura a desproporção entre os agentes socos e pontapés e, ao final da cena, a escolha do não foi definido, na rua, que o garoto era de fato
de violência e a vítima, incapaz de reagir a eles. A alvo parece ter sido arbitrária, inteiramente casual, homossexual, o próprio Adonias, perto de sua mãe,
cena apresenta as agressões físicas impetradas pelos pela coincidência de que naquele momento um confronta a sua virilidade. Ele se debate com uma
rapazes, entremeadas com manifestações de dor e garoto com aparência vulnerável apareceu sozinho, decisão profissional: participar ou não de um filme
sofrimento do garoto. O seu lamento (“Pelo amor na rua, na frente do grupo. pornográfico com cenas de sexo entre homens.
de... Nossa Senhora...”) estabelece contraste com o O conto de Alberto Guzik é mais longo do que o Imagens de Laurence Olivier no filme Hamlet con-
registro de que Adonias “chuta e bate mais que os texto de Rubem Fonseca. A construção do prota- tribuem para lançar Adonias em indeterminações
outros, com feroz alegria”. A escuta de um som de gonista é detalhada, e o ato de matar tem antece- sobre o seu desejo.
sirene faz com que o grupo disperse, e Adonias fuja dentes e desdobramentos, configurando um perso- O texto de Alberto Guzik suscita reflexões éticas,
sozinho da cena, enquanto gritos são enunciados, nagem mais complexo do que o policial de Justiça. pois a construção do personagem Adonias admite
anunciando a morte da vítima: “assassinos”. O leitor pode observar que Adonias é um homem a autocrítica, a desilusão, e o reconhecimento de
Por que matar? Nesse caso específico, poderia ser muito atento a comportamentos que podem ex- que as percepções podem mudar com o tempo. É
sustentado que Adonias é incentivado pelos princípios pressar, direta ou indiretamente, desejos sexuais. uma narrativa em que a passagem do tempo oferece
fascistas da gangue. Trata-se de um grupo que sai a Ele trabalha como ator de filmes pornográficos. condições para rever ações do passado, como se a
andar na cidade para “assustar umas bichas”. Impor- Suas memórias de infância estão marcadas por consciência percebesse os seus próprios limites. A
ta, nesse sentido, chamar a atenção para o fato de que elementos sexuais. As tensões referentes ao sexo imagem da reciprocidade, no extremo, tem uma
o garoto não era conhecido, e a atenção se voltou para estão articuladas com a maneira como agride sua camada suicida: Adonias seria capaz de matar al-
ele de modo imediato e irrefletido. Isto é, não existia vítima na rua. No entanto, em sua segunda metade, guém exatamente como ele próprio; ele poderia
nenhuma indicação de que a vítima fosse de fato um o conto elabora uma perspectiva que subverte o ser aquele que recebe os socos e pontapés. Essa
homossexual. Essa ausência de referências concretas ritmo da narrativa e desloca a atenção do leitor conexão entre destruição e autodestruição permite
sobre a vida do garoto expressa que a violência foi para outro ambiente. questionar o ato de matar em si mesmo. O texto
praticada independentemente de que a vítima fosse Adonias surge no interior do apartamento, no alcança um patamar de reflexão que não aparece em
gay ou não. O prazer na violência independe de uma 18° andar de um prédio danificado, onde mora Fonseca: a compreensão de que, se o ato de matar
justificativa racionalizada, independe mesmo dos com sua mãe doente. Esta dorme em um “sofá for considerado válido por setores da sociedade,
preconceitos e do discurso excludente. É como se a arrebentado”, enquanto ele come sem satisfação à revelia da lei, nada impede que ele se espalhe
homofobia representasse um pretexto momentâneo uma refeição guardada. Adonias, enquanto ouve a indiscriminadamente e atinja, como vítimas, as
para exercer a violência física, mas esta dispensasse mãe resmungar, tem de lidar com uma ordem de mesmas pessoas que o validam.
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ESPECIAL
no meio
narrativas que constroem o imaginário da capi-
tal federal. Por meio do mapeamento de autores
negros, mulheres, trabalhadores e moradores da
periferia do Distrito Federal, o estudo de 2017,
coordenado pela professora Regina Dalcastagnè,
da história
mostra que não teríamos como falar de Brasília
sem sentir pulsar forte o que a margeia, muito
menos ignorando as narrativas feitas de concreto e
poeira. O primeiro elemento marca as edificações
levantadas feito catedrais simbólicas e o segun-
Produções literárias do do, as regiões pobres que receberam centenas
de trabalhadores de todo o país, ainda anônimos
HANA LUZIA
crônicas escritas
alunos veem a possibilidade real de serem não ção de autores indígenas, como Célia Xakriabá,
apenas leitores, mas autores também. É muito 29, e mestre em Educação (UnB), cuja obra dá
difícil ter indiferença em relação a ess a literatura ênfase às experiências das comunidades indíge-
que afeta, fazendo crítica social, falando de classe,
raça e etnia”, avalia.
A pesquisadora, cria de Brazlândia, acredita que,
sobre Brasília por nas e tradicionais. Outro nome é Ian Wapichana,
22, nascido em Boa Vista (RR) e hoje morador do
Riacho Fundo. No longo poema Por onde andares, ele
se há uma marca na produção dos autores no e do
DF, ela está na relação que estes estabelecem com
a cidade. A distância não é apenas geográfica, é
Clarice Lispector nos conduz por esses lugares em que não sabemos
bater à porta de Brasília. Uma espécie de saudação
a tudo que corre por fora da imagem principal.
também econômica e cultural e, ao mesmo tempo locais, a organização das cidades em torno de cen- Há outras cidades por aqui, não as conhecemos, só sabemos
em que reflete problemas do restante do país, faz tros culturais, e a organização de jovens em praças que de lá tiram o nosso elixir, escreve. O sobrenome
uma curva diferenciada, porque muitas cidades fazem surgir novos bens culturais, literatura oral Wapichana é referência à sua etnia, do norte de
ainda estão se desenvolvendo, se comparadas ao e música. Entre os saraus do DF, o Sarau-Vá, que Roraima. O autor descende de uma família de
restante do Brasil. Para Lucena, a literatura que ocorre na Praça da Bíblia (Ceilândia), é um dos escritores e também se fortalece por meio do ati-
tem pungência hoje no DF é a da periferia e cita consolidados pelo rap. A efervescência de saraus e vismo no Santuário dos Pajés, terra com registro
São Sebastião, Ceilândia, Sobradinho, Taguatinga slams descentralizados seguem uma lógica parecida indígena desde 1957 onde foi construído o Bairro
e Samambaia como locais de referência. “Ela surge com o que acontece com grandes centros como São Setor Noroeste, uma das mais caras da capital.
das fricções nos locais, seja por pertencimento ou Paulo. O pioneirismo, entretanto, não é da pauliceia: O conflito em torno da disputa das terras de uso
despertencimento, nessa dualidade entre centro o primeiro Slam das Minas, de 2015, é do DF, idealizado tradicional pela comunidade se arrastou por 13
e periferia”, define. pela escritora e editora tatiana nascimento. anos, até 2018, quando a Terracap, órgão respon-
Quando a periferia cresce, busca se desenvolver Bruna Lucena defende que, na contramão das sável pela averbação de terras na capital federal,
culturalmente, independentemente das ações do visitas aos pontos turísticos de Brasília, é possível e os indígenas assinaram acordo de demarcação
poder público. O crescimento do rap em alguns fazer uma “travessia das quebradas” para ver a de 32 hectares.
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ESPECIAL
HANA LUZIA
A produção do
DF ou de Brasília
mostra tensão entre
o que o país tentou
ser e o que se tornou
por não enfrentar
seus problemas
gras em seus textos. Em diversos trabalhos, como
em Não vou mais lavar pratos, um novo protagonismo
é assumido. “Sinto muito / Depois de ler percebi a
estética dos pratos / A estética dos traços, a ética,
a estática / Olho minhas mãos quando mudam
a página dos livros / Mãos bem mais macias que
antes / Sinto que posso começar a ser a todo ins-
tante / Sinto qualquer coisa”. Autora e eu lírico
anunciam a representação de uma voz feminina e
negra, cada vez mais presente e cumprindo aquilo
que, na sua visão, é uma das funções da literatura:
“inventar outras realidades, desesperadamente,
para que a poiesis permita a sobrevivência e a res-
piração dos povos”.
Outra narradora negra, a do romance Por cima do
mar, puxou sua autora pela mão e a levou para a
Ceilândia, propondo nova perspectiva para quem
se acostumou a olhar a margem a partir do centro.
Jornalista, nascida no Rio de Janeiro, mas criada
em Brasília desde criança, Deborah Dornellas,
60, cresceu junto com a capital. A construção de
Brasília e seu desenvolvimento movido às cus-
tas de exclusão, desigualdades sociais e racismo
estrutural repetem o que é feito em todo o país
e surgem em seu romance. Por cima do mar não é
condescendente com os idealizadores das grandes
obras em concreto. Ele se interessa pelas histórias
que estão fora de Brasília, mas são atravessadas
por sua espacialidade, como a da personagem Lígia
Vitalina, negra, pobre, moradora da Ceilândia,
que consegue furar a barreira de contenção que
separa privilegiados e excluídos e frequentar a
UnB. “Lecionei na Ceilândia à noite. Era 1985.
Não olharia Brasília pela perspectiva do plano. E
queria uma narradora que fizesse uma trajetória
centros e o distanciamento dos grandes complexos indizível sentido do amor, parte da história do marido, intelectual”, explica a autora.
editoriais. “Isto nos torna dependentes e con- com quem foi casada por 35 anos, para entender Deborah começou a escrever o romance por vol-
correntes de outros Estados e dos caminhos de melhor esse período sobre o qual ele falava muito ta de 2013, quando as discussões sobre o conceito
viabilização de seus próprios escritores”, ava- pouco. José passou acerca de um ano detido. Após de “lugar de fala” ainda eram incipientes para o
lia Alberto Bresciani, 58, autor de Fundamentos de seu falecimento, em 2012, a escritora começou grande público. Conta que se cercou de leituras e
ventilação e apneia e finalista do APCA de 2015 com uma pesquisa em arquivos e por fontes que con- referências de intelectuais negras para exercitar
Sem passagem para Barcelona. Autor de uma escrita viveram com seu marido no período, em busca de o que batizou de “lugar de escuta”, consciente
que transcende cartografias e temporalidades, um retraçado dessa história. Rosângela observa por ser uma mulher branca e de classe média. O
Bresciani defende uma Brasília que não surge nos que, apesar de não se tratar de uma autobiografia, livro é pautado por uma agenda antirracista e,
livros e é turva para boa parte do Brasil. “Gostaria gênero de que autores contemporâneos tão bem ao apresentar um protagonismo não relaciona-
que surgisse a consciência de uma cidade como têm se apropriado, o livro cruza fatos das histórias do à meritocracia, desloca o olhar do leitor para
as outras, com iguais problemas urbanos, com as de José e da própria autora. “Nós não depuramos outra Brasília e outro país possíveis. “A história
mesmas questões sociais. Uma cidade com rico a ditadura, de modo algum. É como se houvesse da escravidão determina nossa história inteira.
patrimônio arquitetônico, com artistas promis- um gap, uma grande falha, uma falta”, afirma. Há a topografia do lugar, mas há principalmente
sores de todas as idades e que se, eventualmente, um apartheid geográfico e social”, diz. Assim, a
importa personagens duvidosos, também tem NOVOS PROTAGONISMOS personagem negra, filha de um candango, faz
exportado nomes icônicos, por exemplo, para a Um dos mais recentes romances a escolher Brasília uma trajetória de estudos, encontra suas raízes
música popular brasileira”, diz. como espaço ficcional de representação é As margens ancestrais em viagem a Angola e promove dois
Carioca radicada em Brasília, Cristiane Sobral do paraíso, primeiro romance de Lima Trindade, encontros; o primeiro do Brasil com a África e o
acrescenta que uma das marcas da capital é a publicado pela Cepe Editora, a mesma deste Per- segundo, o do país consigo mesmo.
amálgama de culturas, a criação de outros campos nambuco. Trindade parte de perspectivas de três Não à toa, os muitos recortes possíveis da pro-
criativos, segundo ela, “com uma lógica própria, personagens “anônimos” da grande narrativa que dução do DF ou de Brasília, essa “ilha rodeada
sem mar, irônica, úmida, seca, com lago artificial, se tornou a construção de Brasília. Leda, Zaqueu e de Brasil por todos os lados”, como diz Sobral,
profunda onde ninguém imagina, definitivamente Rubem, saídos do Juazeiro da Bahia, Rio de Janeiro mostram uma tensão comum entre o que o país
periférica, uma cidade cosmopolita, ativista e mís- e Anápolis, são metáfora dos muitos que migraram tentou ser e o que se tornou ao insistir no não
tica”. Já a escritora Rosângela Vieira Rocha, 66, há para a capital. O sonho que alicerçou sua invenção, enfrentamento dos seus próprios problemas. Um
52 anos na capital, refere-se à Brasília como sua período em que se passa o romance, foi interrom- dos muitos esforços dessa literatura é para não
cidade de adoção e conta que, apesar de períodos pido pelo golpe de 1964 e depois disso,Brasília se desistir, ainda mais no momento atual, em que a
em outras cidades, sempre foi impelida a voltar. transforma num lugar associado aos desmandos circulação dos seus múltiplos retratos espelha de
“Há uma sensação de pertencimento. Sou daqui e do poder e à corrupção. certa maneira o restante do país.
de Inhapim (MG), onde nasci”, conta. Com 13 livros Personagens comuns ou novos protagonismos
publicados, seis para adultos e sete infantojuve- também podem ser vistos na obra de Cristiane So- NOTA DA EDIÇÃO: O verso que está na ilustração
nis, Rosângela é uma das autoras que voltou seu bral, entre poesia, contos e teatro, seja pela autoria desta página é do poeta brasiliense Marcos Fabrício,
olhar recente para uma experiência da ditadura. O negra e engajada, seja pela dicção de mulheres ne- presente na antologia bRASÍLIA iNSPIRA pOESIA – bip.
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS
RESENHA
Pela janela
sonhar ilimitado é preparada no sono // (quando)
Ramon Ramos as portas se // abrem.
Se abrem como quem sai e explora e como quem
Reunida pela primeira vez de forma completa, a permite entrar. O amadurecimento poético de Euni-
entreaberta,
obra poética de Eunice Arruda — iniciada em 1960 ce Arruda também é expresso por certas alterações
na Coleção dos Novíssimos de Massao Ohno com de suavidade e encantamento. Se nos primeiros
É tempo de noite — será publicada pela editora Patuá livros há um peso maior em relação ao véu obscuro
neste semestre sob o título Visível ao destino. da vida — mais melancólico e entristecido Quando
a concisão
Antes de falecer, em 2017, Eunice deixou como as lágrimas já / se tornaram nos olhos / o único brilho —; ao
última publicação seu Debaixo do sol, de 2010, que passo que sua poesia avança, podemos observar
de certa forma funciona como roteiro de leitura que a própria tristeza, posto que bela, é também
para sua obra completa. Sobre este livro, à época colocada nas estrias do poema, nesse lugar de “en-
da primeira publicação, a crítica e poeta Beatriz trenuvens”, cambiante entre o dito e o não dito.
Criada a partir de uma Amaral aponta ser exatamente nesta faixa de depuração
de linguagem e transformação semântica que percorre
É o que vemos no poema Lendas (de Risco, 1998),
ao pontuar não desilusões, uma vez que não che-
depuração da linguagem e
a poesia de Eunice, cujo olhar sensível e crítico jamais garam a existir, mas anti-ilusões. O eu lírico se
abandona a concisão. coloca depois do vivido, com olhar externo diante
A estética da concisão, percebida como procedi- de si mesmo, deposto de emoções; fala do fogo
da transformação semântica, mento pilar dessa poesia, é ratificada de modo mais
explícito em Há estações (2003) e Olhar (2008), ambos
como quem passa pomada na cicatriz, não como
quem busca água para um incêndio. O amor mostrou
obra da poeta Eunice Arruda compostos apenas por haicais. Estruturam-se, esses
livros, pela passagem de tempo entre estações (meio
a face / em sua face / naquele verão / fortes chuvas molharam
a terra / e a colheita se fez farta exata / harmonia / entre o que
Isabel Lucas
VIAGEM AO PAÍS DO FUTURO
KARINA FREITAS
Escrevo para o
coisas e depois vai embora. Eu ia andar de bicicleta que é o mesmo que dizer quem foi que olhou para
com eles, me davam roupas, comia com eles. Eu era o céu primeiro.”
um filho preto da família. Dei alguma sorte aí. Todo o É uma poesia oral, com sátira, crítica social, que
O lugar de Vidas
secas não está
precisamente no
mapa. É por ali.
Por lugares onde
animais e homens
partilham espaço
prefeitura local começou a oferecer às crianças um “O que Graciliano Ramos retrata ficcionalmente é
real por cada saco de gafanhotos que apanhassem, e uma crítica às mazelas, principalmente do interior
as crianças encheram os seus sacos, levaram-nos à do país. Ele trata criticamente uma região que ainda
prefeitura e ganharam um real.” padece de muitos dos problemas ali colocados. Essa
Palmeira dos Índios fica entre o sertão e o agreste autoridade de Graciliano acaba se mantendo”, refere
alagoano, paisagem menos árida do que a do Sertão Thiago Mio Salla, especialista na obra de Graciliano
profundo, entre juazeiros, a caatinga, ladeiras de terra Ramos, autor do livro Graciliano Ramos e a cultura política,
vermelha, vedações de paus sem cor. É numa espécie antes de avançar para a contemporaneidade literária
de morro de ruas estreitas onde carros, carroças e mo- do autor que se estreou na ficção com Caetés, em 1933,
torizadas fazem gincana e razias a quem passa. Fica a aos 42 anos, e se destacou com os romances S. Bernardo
350 quilómetros do Recife, onde vive Miró, e a 2400 (1934), Angústia (1936), Vidas secas (1938), o livro de
de São Paulo, onde mora Ricardo. Maceió, a capital crónicas Viagem (1954) e Memórias do cárcere, publicado
do estado de Alagoas, é mais perto, 130 quilómetros postumamente, sobre o período em que esteve preso
e duas horas de carro. Mas cada uma das três cidades sem acusação formada num processo considerado ka-
representa a mesma lonjura em relação à grande pa- fkiano. “Ele tem uma contenção formal, uma precisão
rábola universal dos que se deslocam lentamente, na na escolha lexical e ao mesmo tempo uma espécie de
mudez, no mesmo silêncio dos que caminham como revolta, um posicionamento crítico em relação àquilo
Fabiano, Sinhá Vitória e os meninos. que retrata. Como se fosse uma contenção formal e
Parar numa dessas ruas, numa praça, ficar num uma revolta temática.”
banco de café é escutar solilóquios apressados, diá- O lugar de Vidas secas não está situado precisamente
logos em que duas ou três palavras servem para dizer no mapa. É por ali. Por lugares onde animais e homens
o necessário a uma acção prática, ou então esperar; partilham o mesmo espaço. Vacas, cabras, cães, urubus
uma espera que pode parecer eterna, dormente, pela — sempre os urubus —, cobras, preás, gatos, burros e
palavra seguinte de alguém a contar uma história. Tudo éguas. Uns pastam, outros escondem-se, outros ainda
tem um tempo próprio, uma lógica que não encaixa passeiam-se ou deitam-se ao sol, competindo todos
na linguagem dos homens e das mulheres da cidade pela escassez de alimento no verão, sem saber bem
grande. É a secura de que falava Graciliano em 1938, qual é o predador de qual. É nesse terreno que Fabiano
e não se limita à escassez de água de um território, e Sinhá Vitória se movimentam ao longo do livro nar-
mas ao que isso impõe a quem nele vive. Mas o que rado na terceira pessoa, dividido em 14 partes pensadas
nos diz Vidas secas sobre o Brasil actual? para poderem ser lidas de modo autónomo, cada uma
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seguindo a perspectiva de uma das personagens. “... “Ele está retratando um conjunto de personagens rosto comprido. “Ele achava que o livro não era para
ele não era homem: era apenas um cabra ocupado aos quais a fala, ou a comunicação, é de alguma a minha idade, que era muito pesado.”
em guardar coisas dos outros. Vermelho, queima- forma vetada; ela é muito restrita, muito limitada. Luiza tinha 22 anos quando o pai morreu, em 1953, e
do, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; A impossibilidade de comunicar, a dificuldade em reviu com ele muitos dos seus livros. “Ele lia as provas
mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais falar, ou o lugar de fala completamente tolhido, não mandadas pela editora e eu cotejava com o original,
alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos só pelas condições mesológicas dali, se pensarmos enquanto ele ia sempre fazendo alterações, com uma
brancos e julgava-se uma cabra.” É Fabiano. Que diz na seca, mas por uma conjuntura económica, polí- pena na mão. Ele modificava muito”, conta, comen-
a si mesmo: “Você é um bicho, Fabiano.” Aquele que tica e social que acaba levando essas pessoas a não tando a exigência, confirmando o lado austero, mas
na fuga encontra uma casa e que entra nela, porque já terem voz, ou a ter a voz interditada. Em parte, essa rindo com o sentido de ironia ou humor que está em
chove, mas sabendo que enquanto ali estiver será um contenção formal é um esforço de verosimilhança”, alguns dos relatórios que escreveu enquanto prefeito de
servidor do senhor dessa casa que está longe. “A sina sublinha Thiago Mio Salla, referindo-se também ao Palmeira dos Índios, para onde foi viver depois de uma
dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, modo como forma e conteúdo trabalham no mesmo tragédia familiar para ajudar o pai, um comerciante,
à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado sentido. “Graciliano vai retratar um sertanejo que e acabou por se casar pela primeira vez.
pela seca. [...] Às vezes utilizava nas relações com as tem parcos recursos comunicativos, representando- Eram relatórios enviados ao governador de Alagoas.
pessoas a mesma língua com que se dirigia aos bru- -o de modo verossímil...”, continua, numa compa- Num, de 1930, ano do segundo mandato, escreve:
tos — exclamações, onomatopeias. Na verdade, falava ração entre o escritor de Alagoas e outros autores. “Possuímos uma teia de aranha de veredas muito
pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da “Uma das críticas que Graciliano fez à literatura pitorescas, que se torcem em curvas caprichosas,
gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, romântica brasileira era de aparecerem sempre sobem montes e descem valles de maneira incrível.
mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.” uns sertanejos bem-falantes, que começavam a O caminho que vai de Quebrangulo, por exemplo,
Do confronto da obra com um dos locais que a terá filosofar. Nessa perspectiva, ele é completamen- original produto de engenharia tupi, tem lugares que
inspirado sobressai uma espécie de mudez, o silêncio te outro; quer produzir um retrato realista dessa só podem ser transitados por automóvel Ford e por
que está na constituição daquelas personagens. É a tal parcela da população que praticamente não fala, lagartixa. Sempre me pareceu lamentável desperdício
mudez de desajuste, como se não houvesse linguagem ou fala muito pouco, porque tem poucos recursos consertar semelhante porcaria.”
verbal que sirva. E é preciso estar atento aos gestos, para se expressar.” Muito do que Graciliano Ramos viu e ouviu nestas
às expressões, à interacção de cada elemento com a “Vidas secas foi o único livro que o meu pai não me paragens terá servido para compor o cenário de Vidas
paisagem, os animais, o céu e os sinais que ele vai deixou rever com ele”, afirma Luiza Ramos Amado secas. Mas não há um lastro de sarcasmo no texto lite-
dando de sol ou de chuva, de serenidade ou prenún- na sala da sua casa em São Paulo. Dos oito filhos de rário. Nisso os relatórios são um deleite: “Encontrei em
cio de tempestade. Céu e chão forçados a um diálogo Graciliano é a única viva. Aos 89 anos, está rodeada decadência regiões outr’ora prósperas; terras aráveis
permanente e dramático, do qual o último está sempre de objectos que lembram a vida e a obra do pai. Há entregues a animaes, que nellas viviam quase em
dependente do primeiro de forma derradeira. nela e nele traços físicos comuns: o nariz fino, o estado selvagem. A população, minguada, ou emi-
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falta de linguagem
enquanto lugar concreto e mitificado ou simbólico
que a literatura ajudou a construir e o cinema foi fi-
xando no imaginário. O Sertão não é apenas estranho
a estrangeiros porque em relação ao Sertão, o litoral
leste, o centro e o sul do imenso país que é o Brasil só
o conhece de longe, do que ouve falar, do que lê, do
é algo político na
que viu no grande e no pequeno ecrã; ou dos que de lá
foram chegando aos milhares, numa longa diáspora, obra de Graciliano
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que existiam mundos diferentes da fazenda, mun- um momento em que conta o que acontecia com parte falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e
dos maravilhosos na serra azulada. Aquilo, porém, dessa população. Ela migrava. Porquê? Porque não livros, mas não sabia mandar: pedia. Esquisitice um
era esquisito. Como podia haver tantas casas e tanta tinha condições económicas para se manter naquele homem remediado ser cortês. Até o povo censurava
gente? Com certeza os homens iriam brigar.” Havia lugar. Há uma relação directa entre a experiência dele aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele: ‘Ah!
o espanto. “Não conheciam altares, mas presumiam como prefeito, como homem público, como um ser- Quem disse que não obedeciam?’”
que aqueles objectos deviam ser preciosos.” E o des- tanejo que pensa a realidade local e o que ele traz para Fabiano teme pelos filhos perguntadeiros; sabe-
conforto. “A multidão apertava-o mais do que a roupa, a obra. Os relatórios procuram jogar um foco de luz doria é capaz de dar num vício e não dar em nada.
embaraçava-o.” E a conclusão. “Comparando-se aos sobre essa população; ou pelo menos ela é mencio- Só que seu Tomás pode não ter muito, mas tem uma
tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior.” No nada, passa a existir. É uma preocupação recorrente cama de verdade, como aquela com que Sinhá Vitória
entanto, a contradição, sempre. “Estava convencido nele: olhar para esse lugar que ele chama arruinado, sonha. Tomás voltará no fim, já que este é um roman-
de que todos os habitantes da cidade eram ruins.” E os miserável, essa figuração do Sertão como um espaço ce circular. No último capítulo, quando vislumbram
meninos, os filhos? Deslumbrados com a quantidade no qual essa situação se dá não exclusivamente por a continuidade da fuga para lá do grande Sertão e a
de coisas. “Provavelmente aquelas coisas tinham uma questão geográfica, mesológica, que tem que possibilidade de ir para um grande centro urbano, o
nomes. O menino mais novo interrogou-o com os ver com o clima: ela tem que ver maioritariamente pai vê a educação como elemento importante para
olhos. Sim, com certeza as preciosidades que exibiam com a exploração de que as pessoas são alvo”, conclui os filhos. “Tomás da bolandeira é um personagem
nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham Thiago Mio Salla. estudado”, lembra Thiago. “Só que não desfruta de
nomes. Puseram-se a discutir a questão intrincada. Nos relatórios, Graciliano Ramos fala da política, uma condição económica superior. Ele usa algumas
Como podiam os homens guardar tantos nomes? Era da “politicalha”, refere que a primeira medida que palavras que deixam Fabiano atordoado. Ele escuta,
impossível, ninguém conservaria tão grande soma de tomou foi um saneamento na prefeitura para afastar acha aquela palavra bonita, quer usar, mas não tem
conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam funcionários que não trabalhavam ou só viviam para o repertório para conseguir aplicar aquele termo com
distantes, misteriosas.” fazer política e não a função que lhes cabia. “Ele teve a devida exactidão, com a devida coerência e fica um
O plano da falta de linguagem é necessariamente uma vida pública muito actuante. Mas a história deu termo solto. Ele não sabe, mas admira. Gostaria de
político em Graciliano Ramos. Além de escritor, foi mais atenção ao desempenho em Palmeira dos Índios, ter aquilo, mas não tem. Tomás da bolandeira, na
prefeito numa cidade complicada, ciente da quase talvez por ser um cargo executivo. É o antípoda do que medida em que está mais para esse pólo da educação,
impossibilidade de representação política dos que a gente sabe dos políticos tradicionais. Desde medidas é mais feminino; não é tão másculo. Não é cabra
têm pouca voz, porque a linguagem que uns falam elementares de limpeza. Era muito comum nas cidades macho, é mais frouxo.”
não é a mesma que falam os outros. Na literatura, ele ver animal pastando e praça, porco correndo no meio Thiago ri-se, e quem leu Vidas secas sorri com vonta-
revela essa impossibilidade de comunicação. Volta- da rua, cachorros...”, diz ainda Thiago. de, pensando no homem a quem chamavam o Velho
mos a Thiago Mio Salla. “É verdade. Se formos para Numa segunda-feira de manhã, vende-se de tudo Graça, que morreu novo, aos 62 anos, mas era o mais
outro livro como S. Bernardo, há ali uma figura um tanto no mercado de rua, sobretudo fruta, legumes, ve- velho da Geração de 1930, a que deu grandes nomes
ou quanto diferente. S. Bernardo já está numa região getais. Uma mulher tem para vender apenas feijão à literatura brasileira do século XX. Muitos encontra-
mais viçosa, é mais no agreste, não é o semi-árido, descascado; noutra banca improvisada, dois rapazes ram-se em Maceió. Caso do grande amigo José Lins
a fazenda é próspera depois da acção interventiva do tiram a maçaroca de milho da palha como as que Nil do Rego, Rachel de Queiroz, o dicionarista Aurélio
ambicioso Paulo Honório (que se casa com a profes- vende numa rua de Euclides da Cunha, já no sertão Buarque de Holanda, o pintor Santa Rosa.
sora para legitimar um poder que quer ter), mas ele baiano. Assa-as num fogareiro e vende-as a dois José Lins do Rego e Rachel de Queiroz foram, aliás,
também é uma personagem à qual faltam recursos reais cada. Tem 15 anos, não está na escola. Diz que autores de alguns dos livros mais notáveis sobre o Nor-
formais literários. Ele põe-se a falar, só que a fala dele vai estar. Mas não diz porque não está nem porque deste. Casos de Menino de engenho e Fogo morto, de Zé Lins,
é toda entrecortada; é uma personagem que veio de irá estar. Simplesmente cruza as mãos em cima do em que relata o declínio do universo dos engenhos
baixo e ascendeu socialmente, capitalista voraz, um boné que traz na cabeça. de cana do açúcar com a mão-de-obra esclavagista
modelo sertanejo de capitalista, que toma o poder Fora da prefeitura e na prefeitura, Graciliano Ramos e a denúncia do papel dos negros nessa produção,
daquele espaço através de subterfúgios; mas a fala dedicou a maior parte da vida à educação — como ins- valorizando a linguagem popular.
dele é emperrada.” pector, secretário estadual e municipal. A preocupação Menino de engenho é história simples de um órfão,
Em Vidas secas e em S. Bernardo há silêncios, mas são com a educação está também no início do Vidas secas. Carlinhos, que vai da cidade para a fazenda do avô
silêncios distintos. Graciliano conhece um e outro da Fabiano admira e ao mesmo tempo desconfia da figura na Paraíba e se confronta com um mundo oposto
própria experiência. “Nos relatórios da prefeitura há de Tomás da bolandeira. “Seu Tomás da bolandeira ao que conhecia. “Eu acreditava em tudo isto, e
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Isabel Lucas
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muitas vezes fui dormir com o susto destes bichos destinados a mensalistas. É a sua casa. De manhã,
infernais. Na minha sensibilidade ia crescendo este sai do quarto, a mesma roupa, e monta uma banca
terror pelo desconhecido, pelas matas escuras, pelos colorida com chupa-chupas, rebuçados, gomas.
homens amarelos que comiam fígado de menino. E Parece numa feira imaginária onde hão-de chegar
até grande, rapaz de colégio, quando passava pelos clientes imaginários. “Já tá indo? Vige Maria, não tem
sombrios recantos dos lobisomens, era assoviando parança, não?!” Foi o maior conjunto de palavras que
ou cantando alto para afugentar o medo que ia por lhe saiu em dois dias. De resto, olhava pelos óculos
mim. Os zumbis também existiam no engenho. Os embaciados. E foi a olhar que ficou quando a chuva
bois que morriam não se enterravam. Arrastava-se deixou de cair, acenando num adeus que caberia na
para o cemitério dos animais, à beira do rio, debaixo grande literatura nordestina de Graciliano Ramos,
dos marizeiros, onde eles ficavam para o repasto dos José Lins do Rego ou Rachel de Queiroz.
urubus. De longe sentia-se o hálito podre da carniça, Cosme aparece; é hora de jantar. Veio de dar aulas
e a gente via os comensais disputando os pedaços de numa cidade próxima e tem fome. Não há escolha
carne e tripas do defunto. O zumbi, que era a alma a uma segunda-feira. No meio do ruído brinca com
dos animais, ficava por ali rondando. Não tinha o a fama da cidade, citando alguém. “Palmeira dos
poder maligno dos lobisomens. Não bebia sangue, Índios é um desses ajuntamentos infelizes que tem
nem dava surras como as caiporas. Encarnava-se um padre, um juiz, um promotor e a pacatez mais
em porcos e bois, que corriam pela frente da gente. apaixonante de um turbilhão.” Outra pacatez, a do
E quando se procurava pegá-los, desapareciam por remanso, parece estar toda em Cosme Rogério, o
encanto.” Carlinhos irá para a cidade estudar, ter jovem estudioso de Graciliano Ramos, poeta, profes-
educação, e é de lá que conta as memórias. sor, performer, que voltou ao lugar de origem dos pais.
Quanto mais se viaja pelo Sertão, ou pelos sertões, “Nasci retirante. Nasci no Rio de Janeiro, os meus
mais estas imagens se fixam, com todos os odores, pais são naturais daqui, foram trabalhar para o Su-
luzes e sombras. Os caudais dos rios vão agora altos. deste. A minha mãe trabalhava como empregada
Os cemitérios de animais não se avistam, mas o doméstica, balconista; o meu pai tornou-se sargento
resto parece plausível, e muitas vezes visível. Numa da polícia do Rio. E depois fui morar em Francisco
das margens do rio S. Francisco, na fronteira entre Morato, no interior de São Paulo. Fiquei lá até 1988,
Alagoas e Sergipe, uma vaca é apanhada pela maré tinha cinco anos e meio, e cá estou desde então.”
cheia e não consegue atravessar o vasto mar de água. Tem 36 anos e passou a maior parte da vida em
Parece condenada entre a corrente e os penhascos à Palmeira dos Índios. Formou-se em Filosofia numa
volta. Tem chocalho, tem dono, tem medo. Os olhos das quatro universidades da terra. “Estudei aqui por
numa aflição. Até que mergulha e nada, então, cam- pressão da minha mãe que não queria que eu fosse
baleante, arriba acima, perdida entre a vegetação. para Maceió. Fez chantagem emocional. Historica-
Parece milagre sertanejo dado a ver a quem poderia mente, Palmeira sempre concentrou boas escolas
desconfiar das coisas se contam por ali. e continua a receber alunos de várias cidades.”
E Rachel de Queiroz foi a primeira mulher a me- Mesmo sem uma livraria? Cosme ri-se. “Quando
recer o respeito dos literatos nestas paragens com O me perguntam sobre Palmeira ser uma espécie de
quinze. O título marca o ano de uma das secas mais berço literário, com muitos escritores, digo que tem
mais escritores do que leitores.” Cosme deixa de se
Para Cosme, poeta rir. “Palmeira é uma cidade marcada pela loucura.
Ela é louca até na geografia. São dois relevos. A parte
plana da cidade que dá até ao Sertão é a grande
Graciliano seriam
“Se bem que eu não sou daqui, sou de São Paulo”,
precisa. E Cosme: “Como quase todo o mundo aqui
é forasteiro. Como Graciliano!”
experimentações
A primeira vez que Cosme teve contacto com
Graciliano foi através de um antigo Atlas de Educação
Moral e Cívica que reunia as grandes figuras da História
RESENHAS
ILANA LICHTENSTEIN / DIVULGAÇÃO
brilhar no escuro
a cavidade vital. Não kundalini / alcançando a e ao leitor: “Você também em espanhol, a própria
contei as ocorrências elevada onisciência / de já viu de perto como tradução da palavra romã.
desta palavra, mas tenho uma xota quente / até a posso perder o foco / É também a parte final
a viva sensação dessa lombar pulsando.” ser levada pro invisível deste livro como um
Em Romã, Júlia de Carvalho presença, que integra o
léxico passional do novo
Ambos são frutos
editoriais da Chão
das coisas / e depois
de muito me perder /
remanso. E seria como uma
certeza, uma convicção,
Hansen volta aos substantivos livro de Júlia de Carvalho de Feira, possuem em de lá trazer mensagens uma promessa, se estes
RESENHAS
NINA SUBIN / DIVULGAÇÃO
aquelas histórias
por sua ilha, buscando as Não se trata de reprimida em mulher é nem tirana vingativa e
ervas, as flores e as raízes qualquer história. Com que enfrenta as vontades sedutora, nem mocinha
que pode usar em suas quase três milênios de dos deuses. Esse longo inocente, mera vítima
José
CASTELLO www.facebook.com/JoseCastello.escritor
FILIPE ACA
Compulsão ao desastre
A melhor maneira de enfrentar o pessimismo é A “necropolítica” também é pessimista – Reconhece Saramago que, muitas vezes,
pensar o pessimismo. Disfarçá-lo, ou negá-lo, é também ela considera, como Saramago, que tudo é uma questão de perspectiva, ou de
sempre a pior solução. Trato então de procurar a humanidade não tem remédio. Só que, em posição. “Sou dos que dizem este copo está meio
em minha biblioteca um livro que me ajude a vez de investir na vida, ela aposta na morte. vazio, e não este copo está cheio pela metade”.
pensar o pessimismo que nos devasta. Logo Segundo seus defensores e praticantes – que Mesmo com essa visão deprimida do mun-
esbarro em As palavras de Saramago, organizado hoje se multiplicam em todo o mundo –, a so- do, é possível, ainda assim, reconhecer que
por Fernando Gómez Aguilera e editado pela ciedade está dividida entre “cidadãos” e “va- existe um copo a ser completado. E é este
Companhia das Letras em 2010. Uma seleção gabundos”. Os “cidadãos” seriam produtivos reconhecimento, mesmo penoso, que pode
de trechos de entrevistas concedidas pelo es- e propositivos, enquanto os “vagabundos”, nos fortalecer. “Este mundo não tem solução.
critor ao longo da vida. Nele, encontro o que em vez disso, não passariam de pilantras e Não merecemos a vida”, ele disse em outra
busco: na página 137, há um capítulo que se imprestáveis. Para esses defensores da morte, entrevista; contudo, sua vida e seus livros
chama justamente Pessimismo. Um caminho, a solução não estaria na construção de cami- desmentem essas palavras. Desmentem, ou
pedregoso, mas longo, se abre à minha frente. nhos de vida, mas, ao contrário, no extermínio as reviram? Saramago parece nos dizer que,
José Saramago se declarava, sem nenhum daqueles que eles veem como dejetos. Assim, muitas vezes, o reconhecimento da miséria
pudor, um pessimista. “Eu sou um pessimista, propagam-se pelo planeta, cada vez mais, é o único caminho para enfrentá-la.
creio que nasci em má hora, porque pode-se “zonas de morte”, nas quais a aniquilação se Em outra entrevista antiga, ele insiste: “Como
dizer que sou um pessimista desde sempre.” torna o último recurso da dominação. se pode ser otimista quando tudo isto é um es-
Contudo, e como todos sabem, Saramago foi, Apesar de seu pessimismo crônico, José tendal de sangue e lágrimas? Nem sequer vale a
também, um intelectual que nunca se esqui- Saramago, ao contrário, sempre apostou na pena que nos ameacem com o inferno, porque
vou de enfrentar a dor de seu tempo. Alguns, vida. Na vida e nas soluções que ela é capaz inferno já o temos. O inferno é isto”. Contudo,
perplexos, talvez possam perguntar: – Mas ele de nos oferecer. “O mal e o remédio estão romances fabulosos como Ensaio sobre a cegueira ou
não era um pessimista? Creio que as duas coi- em nós”, disse Saramago. “A própria espécie O evangelho segundo Jesus Cristo bastam como provas
sas, pessimismo e amor à vida, não se excluem. humana, que agora nos indigna, se indignou de que, da constatação do inferno, desta com-
Talvez até – contrariando nossos mais arrai- antes e se indignará amanhã.” Não há outra pulsão feroz à tristeza e ao desastre, e só porque a
gados preconceitos – ambas se fortaleçam. saída senão transformar o pessimismo – que aceitou e a encarou, Saramago conseguiu divisar
“Eu sou tão pessimista, que acho que a é devastador e é irreversível – em apego a vida. A morte ficou do lado dos zelosos “cida-
humanidade não tem remédio. Vamos de à vida. Em vida, e não em destruição. Os dãos” que, centrados em si próprios, se agarram
desastre em desastre e não aprendemos com indignados continuam a ser pessimistas; a um otimismo de salão, que é incapaz de ver
os erros”, Saramago disse, em outra entrevista. contudo, em vez de aceitar a morte como além das janelas de seus quartos. Este otimismo
Ainda assim, esta compulsão ao desastre, ele um destino, erguem-se para enfrentá-la. de fachada é, na verdade, a morte que, traiçoeira,
admite, pode ser enfrentada. Basta o que? Como? Voltando-se para a vida e apostando se disfarça. Ele é o verdadeiro desastre.
Basta agarrar-se à vida. Lamenta Saramago na tudo na tarefa de existir. Disse ainda Saramago em outra entrevis-
mesma entrevista: “Para solucionar alguns dos “Agora vivemos um tempo em que o ego- ta: “Gostaria de me encontrar com Voltaire e
problemas da humanidade, os meios existem ísmo pessoal tapa todos os horizontes”, disse lhe dizer que ele tinha razão ao ter sua cética
e, contudo, não são utilizados”. E por que, se Saramago, o pessimista. “Como podemos e pessimista opinião sobre o gênero humano”.
existem, se estão disponíveis, eles não são ser otimistas diante de um planeta onde as Nunca negou seu desânimo e sua tristeza. Nunca
utilizados? Ao ler as palavras de Saramago, pessoas vivem tão mal, a natureza está sendo maquiou sua desolação. Entretanto, em vez de
penso imediatamente no filósofo camaronês destruída e o império dominante é o do di- a eles se entregar, soube transformá-los em
Achille Mbembe, o mais enfático crítico do nheiro?” Acontece que, só porque aceitamos o trabalho. Tornou-se, desse modo, um inimigo da
que ele chama de “necropolítica”. Mas o que é pessimismo e a visão de mundo dolorosa que resignação e do conformismo. Vista nessa pers-
isto, “necropolítica”? Trata-se de uma política ele descortina, só por isso, temos a chance de pectiva, da criação e da superação, a compulsão
baseada não nos recursos da vida, mas na avistar um mundo que se expande e que se ao desastre não se torna tão maléfica. A vida
manipulação abjeta do extermínio e da morte. encorpa. Pessimista utópico, Saramago disse anda muito difícil, o mundo parece enlouque-
Uma política que, em nossas circunstâncias ainda: “Meu olhar é pessimista, mas esse é o cido, a maioria das pessoas guarda a aparência
sombrias e invertendo as coisas, acredita que olhar que quer mudar o mundo”. Os confor- de sonâmbulos. Mas é, ao encarar o desastre,
só a morte é capaz produzir vida. mados e os razoáveis nada querem mudar. que temos alguma chance de despertar.