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A EUCARISTIA NO MONACATO PRIMITIVO

José Luis Olivares, OSB


Abadia da Ssma. Trindade
Las Condes, Santiago, Chile

Introdução

Antes de começar, gostaria de agradecer publicamente ao Pe. Abade Enrique,


primeiramente pela organização deste EMLA, e também por me ter confiado esta conferência
com a qual esta reunião se inicia, e também por haver-me facilitado o trabalho, entregando-
me suas anotações sobre esse assunto, que me serviu de base para a elaboração dessas
páginas.

Sem dúvida, para o monacato de nossos dias, a celebração eucarística e a recepção da


Comunhão é um aspecto fundamental em nossa existência, o ponto culminante de nossa vida
litúrgica diária. Seguindo os ensinamentos do Concílio Vaticano II, embebidos pela riqueza do
movimento litúrgico e dos ensinamentos do magistério pontifício do início do século XX sobre
a importância da Eucaristia diária e a recepção frequente da Comunhão, praticamente nenhum
de nossos mosteiros coloca perguntas sobre a insondável riqueza que a prática eucarística
atual nos proporciona.

No entanto, é necessário conhecer a história da práxis eucarística do monacato


primitivo, uma vez que o próprio Concílio Vaticano II nos convida a retornar às fontes. E
conhecendo essas fontes originais, poderemos fazer, com conhecimento e bom discernimento,
as opções e variações necessárias para vivermos melhor nossa vida monástica.

Penso que devo fazer, em primeiro lugar, um esclarecimento, e é sobre o próprio título
desta conferência, isto é, o que entendemos por Monacato Primitivo. Sem dúvida, nos vários
autores e historiadores contemporâneos, existe uma certa unidade em considerar o monacato
primitivo como o monacato pré-beneditino. Mas, ao interpretarmos os fatos, a classificação
dos períodos está sempre sujeita a certas liberdades. Gostaria de tomar esta liberdade agora
para classificar como Monacato Primitivo ou Antigo, neste tema específico da praxis
eucarística, o monacato que se desenvolveu até o final do século VI, isto é, até Gregório
Magno e a propagação do Livro dos Diálogos no Ocidente.

Todos os autores e historiadores concordam que, desde a metade do século VIII, o


monacato ocidental desenvolveu um veio sacerdotal muito acentuado e uma vivência
eucarística que se prolongou, com muito poucas variações, até a reforma do Concílio Vaticano
II1. A Eucaristia diária, nesse período após o século VIII, não significava necessariamente, para
as monjas ou os irmãos conversos, a Comunhão diária, pois, como indiquei anteriormente,
esta se difundiu na Igreja e na vida monástica a partir do início do século XX.

Para se chegar a essa unidade na percepção e na vivência da Eucaristia no Ocidente, foi


necessário um tempo intermediário, entre o final do século VI, ou seja, São Gregório Magno e
seu Livro dos Diálogos, e a metade do século VIII, um período que poderia ser chamado
“tempo de decantação”, no sentido de que foi o tempo necessário de assimilação dos

1
Cf. LAFONT, G. L’Eucharistie dans la vie monastique. Em: Collectanea Cisterciensia 44, 1982, p. 4.

1
ensinamentos eucarísticos de São Gregório Magno e o paulatino assumir de uma unidade na
práxis celebrativa.

O Monacato Primitivo, por outro lado, tanto no Oriente quanto no Ocidente, refletia
uma diversidade quase total em sua vivência eucarística, como veremos pelos testemunhos
que as regras e os escritos monásticos desse período nos deixaram. O apreço pela Eucaristia
não era vivido desde de uma prática comum, mas, sem dúvida, esse apreço existia. Também
não é possível falar sobre a vivência da Eucaristia no Monacato antigo sem fazermos referência
ao que a própria Igreja como um todo vivia como práxis eucarística.

Não pretendo realizar um trabalho que seja uma nova contribuição, nem tampouco
uma investigação histórica exaustiva, pois grandes especialistas se dedicaram a esse tema no
passado e seus trabalhos são insuperáveis. O que pretendo nesta conferência é simplesmente
colocar novamente esse tema no presente de nossa reflexão, sempre com o propósito de viver
e celebrar melhor nosso encontro com Cristo na Eucaristia.

Até agora, não encontrei concretamente livros escritos sobre esse assunto. Existem, no
entanto, artigos de revistas ou coleções e capítulos de alguns livros sobre história monástica.
Não é um assunto sobre o qual haja muita coisa escrita, nem no Monacato Primitivo, nem no
Monacato atual. Outros temas como espiritualidade, organização comunitária, obediência ou
busca de Deus, Lectio Divina, humildade, entre muitos outros, são aqueles que hoje ocupam
seções inteiras de nossas bibliotecas monásticas.

Assim, creio que seria melhor começar esta reflexão a partir do ponto no qual, em
minha opinião, cessou o tema eucarístico do Monacato Primitivo: São Gregório Magno e o
Livro dos Diálogos.

1. São Gregório Magno e o Livro de Diálogos.

São Gregório Magno escreve o Livro dos Diálogos, também chamado em muitos
manuscritos De Vita et Miraculis Patrum Italicorum et de aeternitate animarum, entre os anos
593 e 594. Hoje, pode-se dizer com certeza que poucos livros tiveram tanta popularidade
durante a Idade Média como este livro, e que poucos também influenciaram tanto a cultura e
a literatura posteriores. E não apenas no Ocidente, mas em todo o mundo, pois desde o século
VIII existia uma versão grega dos Diálogos, traduzida pelo próprio Papa Zacarias2.

É verdade que existem testemunhos anteriores de São Gregório sobre a Eucaristia


diária, mas fazem parte da grande diversidade de formas adotadas pela práxis eucarística no
Monacato Primitivo. Estes testemunhos eram conhecidos, mas não tiveram a influência que
este livro teve, e a diversidade de manifestações na práxis eucarística no Monacato Primitivo
se manteve. O grande impulso que a Eucaristia diária recebeu foi devido à difusão deste livro
de São Gregório Magno e à influência que exerceu não apenas nas igrejas locais, mas
especialmente no Monacato.

Os textos que se referem à Eucaristia diária são basicamente dois. Ambos pertencem
ao livro IV dos diálogos.

No breve capítulo 58 deste quarto livro, São Gregório relata:

2
Cf. COLOMBÁS, G. M., San Benito su Vida y su Regla. BAC, Madrid 1954, p. 135.

2
“Assim, um homem de vida venerável, Cássio, bispo de Nárnia, que costumava
oferecer a Deus o sacrifício diário da Missa e que durante o próprio mistério do
sacrifício mortificava-se com abundantes lágrimas, recebeu o seguinte mandamento
do Senhor através do sonho de um presbítero seu: 'Continua fazendo o que estás
fazendo, continua realizando como estás realizando. Que teu pé não pare, que tua
mão não pare. Tu virás a mim no dia natalícioio dos apóstolos, e então eu te darei a
recompensa que mereces’. E Cássio, depois de sete anos, bem no dia natalício dos
apóstolos, depois de terminar a cerimônia solene da Missa e depois de receber o
mistério da santa comunhão, abandonou seu corpo”3.

E o segundo é o conhecido texto que deu origem às Missas gregorianas, assim


chamadas em homenagem ao próprio São Gregório. No capítulo 57 conta-se a história do
monge Justo, a quem São Gregório, sendo abade do mosteiro do monte Célio, excomungou
por uma falta e, vendo-se Justo neste estado de excomunhão, morreu. São Gregorio, então,
faz o seguinte:

“Mas tendo passado trinta dias desde a sua morte, meu coração começou a
compadecer-se do irmão falecido, e a pensar com profunda dor em seus suplícios e a
tentar ver se havia alguma maneira de tirá-lo disso. Então, chamando à minha
presença ao referido Precioso, prior de nosso mosteiro, disse-lhe com profundo pesar:
‘Já faz muito tempo que o irmão que morreu se vê atormentado pelo fogo. Devemos
ter alguma caridade para com ele e ajudá-lo, na medida do possível, a tirá-lo de lá. Vá,
então, e a partir de hoje e por trinta dias seguidos, dedica-te a oferecer o sacrifício da
Missa por ele, de modo que não passe um único dia sem que o sacrifício da hóstia
salutífera não lhe seja oferecido'. Ele se retirou imediatamente e obedeceu. Enquanto
estávamos ocupados em outros assuntos e sem levar em consideração os dias que se
passaram, uma noite o irmão que morreu apareceu para o irmão Copioso em sonhos.
Quando o viu, perguntou-lhe: ‘O que há, irmão? Como estás?’ E ele respondeu: 'Até
agora eu estava mal, mas agora estou bem, porque hoje mesmo recebi a salvação'.
Copioso, saindo imediatamente, revelou o sonho aos irmãos do mosteiro. Os irmãos
contaram cuidadosamente os dias, verificando que Justo lhe havia aparecido no
mesmo dia em que se completara a trigésima oferenda eucarística oferecida por ele. E
como Copioso não sabia o que os irmãos estavam fazendo por Justo, e os irmãos
ignoraram, por sua vez, o sonho que Copioso teve dele, a coincidência mostrou
claramente que o irmão que havia morrido havia escapado do suplício graças à hóstia
salutífera"4.

Essa história do monge Justo é precedida, neste mesmo capítulo, por outra história
semelhante, muito menos conhecida. Trata-se de um venerável presbítero de Civitavecchia,
pároco da igreja de São João; este, cada vez que precisava de banhos termais, ia a Aquae Tauri
e ali era assistido por um servo de maneira muito diligente, prestativa e caridosa. Como isso
acontecia com muita frequência, quis agradecer-lhe por sua caridade, trazendo-lhe a
Comunhão. Depois de haver tomar banho, quis dar-lhe como presente o Pão consagrado, mas
o homem, aflitíssimo e muito triste, respondeu-lhe:

3
SÃO GREGÓRIO MAGNO. Livro dos Diálogos. IV, 58. Em: GREGÓRIO MAGNO, Vida de San Benito y otras
historias de santos y demonios. Diálogos. Editorial Trotta, Madrid 2010, p. 272.
4
SÃO GREGÓRIO MAGNO. Livro dos Diálogos. IV, 57,14-16. Em: Op. Cit. 271-272.

3
“Por que me dás isso, pai? É Pão sagrado e não posso comê-lo. Na verdade, eu, a quem
vês diante de ti, já fui em outro tempo o proprietário deste lugar, mas por causa de
minhas culpas, fui designado para cá depois da minha morte. Mas se queres me
ajudar, oferece este Pão a Deus todo-poderoso por mim, para interceder pelos meus
pecados. E então saberás que foste escutado, quando vires tomar banho aqui e não
me encontrares mais”5.

O santo sacerdote chorava por ele e, muito angustiado, ofereceu por ele, por sete dias
seguidos, a Hóstia salutífera e, quando voltou aos banhos após sete dias, não o encontrou
mais. Assim, pois, além de chamar de gregorianas às 30 missas em dias consecutivos, também
deveríamos chamá-las assim quando celebradas por 7 dias seguidos.

Essas histórias emocionantes e piedosas são muito mais do que isso. São uma
verdadeira doutrina sobre o valor redentor da Eucaristia e sua eficácia na salvação dos
falecidos. Mas, como São Gregório queria escrevê-las com essa forma simples do Diálogo, elas
se tornaram ainda mais populares e se difundiram como doutrina por todo o orbe cristão.
Como sempre, Gregório, com sua sabedoria pastoral, soube fazer chegar a todos as verdades
mais profundas, com as palavras simples de histórias simples. A partir deste texto, a práxis
eucarística começa sua separação entre o Oriente e o Ocidente6.

2. A experiência eucarística na Igreja primitiva.

A primeira pergunta que surge é por que contextualizar a vivência eucarística


monástica no quadro mais geral da práxis eclesial da Eucaristia. A resposta óbvia é porque o
monacato faz parte da Igreja e, portanto, vive inserido nela. Mas, a essa resposta simples,
creio que seja necessário acrescentar alguns pontos de aprofundamento.

Na opinião de Dom Adalbert de Vogüé, o fato de a Eucaristia quase não ser


mencionada nas antigas Regras se deve ao fato de não ser este um tema propriamente sobre o
qual compita aos autores dessas regras monásticas legislar, mas que, antes, trata-se de um
bem de toda a Igreja e, portanto, corresponde à hierarquia presidi-la e regulá-la. Os
legisladores monásticos nada têm a acrescentar a isto e aderem a ela, como determina a
hierarquia7.

Portanto, segundo a opinião de De Vogüé, não é apenas que o monacato faça parte da
Igreja, mas que o ponto particular da práxis eucarística era vivido pelos monges antigos da
mesma maneira que os fiéis o viviam, sendo a hierarquia da Igreja, presbíteros e bispos, os
encarregados da legislação, ou melhor, a vivência dessa práxis e a sua normativa. É por isso
que esse tópico é pouco mencionado nas Regras e escritos monásticos, uma vez que para os
monges, que em nada viam nesse fato um menosprezo pela Eucaristia, tratasse de algo que
simplesmente não lhes competia regular.

Por outro lado, o período que nos ocupa, séculos IV a VI, é também o período em que
os ritos da Eucaristia se desenvolveram, vindo-se a estabelecer-se as fórmulas eucológicas nos
primeiros sacramentários no Ocidente e nas anáforas orientais. A vida monástica não pertence

5
SÃO GREGÓRIO MAGNO. Livro dos Diálogos. IV, 57,6. Em: Op. Cit. 267.
6
Dom Adalbert de Vogüé analisa mais detalhadamente este tema em seu artigo Eucharistie et vie monastique.
Em Collectanea Cisterciensia 48, 1986, entre as pp. 125 e 128.
7
Cf. DE VOGÜÉ, A., La règle de Saint Bênoit, Tome VII, Commentaire doctrinal et spirituel. Les éditions du Cerf,
1977, p. 245.

4
à história primigênia da Igreja, mas ao segundo período da Igreja antiga, quando o mundo
romano já havia iniciado seu processo de cristianização. Não havia martírio gerado por
perseguições do poder público nem proibição de reuniões de oração. É um mundo no qual ser
cristão é algo tolerado e até apreciado. Naquele primeiro período da Igreja, ter um livro com
os textos eucológicos, além de ser algo economicamente custoso, era também uma possível
prova em processos criminais contra os cristãos. As orações eucarísticas se conservavam na
memória daqueles que celebravam e não eram comunicadas a quem não houvesse sido
recebido na Igreja pelo batismo. O processo de gestação da Eucaristia nestes primeiros
séculos, com suas características celebrativas e seu desenvolvimento teológico, gerou, no
momento em que o monacato primitivo nasceu, um desenvolvimento muito mais forte, uma
reflexão muito mais profunda na teologia patrística e também os relatos mais detalhados de
um Ordo Missae, isto é, uma forma ritual concreta de se celebrar a Missa. É a época em que já
não é mais necessário celebrar em lugares escondidos, em casas particulares que serviam de
igrejas (domus ecclesia), mas sim, onde já era possível construir edifícios próprios e adequados
para a celebração cristã (domus ecclesiae).

As características da Eucaristia desses séculos são as que também passarão à práxis


eucarística do Monacato Primitivo.

Em primeiro lugar, trata-se de uma celebração comunitária. Esta celebração estava


enquadrada numa convivência-refeição da qual todos os fiéis participavam. Esta refeição
sempre tinha um caráter sacro. Nas Igrejas locais menores, era uma reunião na qual todos
participavam, desde o bispo, com os presbíteros e diáconos, assim como todos os fiéis. É por
isso que Hipólito diz que no domingo o bispo distribua, se possível, por sua própria mão a
comunhão a todo o povo8. Esta presença do bispo se tornará, pouco a pouco, cada vez mais
difícil à medida que as igrejas locais crescem, de modo que o fermentum enviado aos
presbíteros e suas comunidades que não podiam participar da missa dominical da catedral,
virá a manifestará de forma concreta essa unidade e comunhão de toda a comunidade em
torno do bispo e da celebração do domingo9. No Monacato Primitivo, tanto a Eucaristia
dominical quanto a Comunhão fora da Missa terão essa marca comunitária, assim como, pelo
menos no monacato cenobítico, a refeição que se seguia à Comunhão.

Na Igreja antiga, talvez como consequência das perseguições, era normal os fiéis
levarem para casa o Pão Consagrado, para que pudessem comungar nos dias em que não havia
celebração comunitária10. Hipólito chama a atenção para que se tome cuidado em se receber a
Eucaristia antes de se comer qualquer outro alimento11. Ou seja, tenham o cuidado de manter
o jejum eucarístico, como diríamos em termos atuais. É o mesmo que São Bento dirá sobre o
leitor semanário, como veremos mais adiante.

A Igreja Antiga viveu a Eucaristia também no sentido batismal. É preciso lembrar que a
unidade dos sacramentos da iniciação cristã está testemunhada abundantemente na
Antiguidade. Portanto, além da espiritualidade batismal propriamente dita, devemos
acrescentar a espiritualidade do sacramento da Confirmação para entendermos esse termo
em sua plenitude. Os monges antigos tentaram viver a exigência e a radicalidade dessa
espiritualidade batismal, que incluía a vivência eucarística.

8
Cf. HIPÓLITO, A Tradição Apostólica, 22. Em: Anàmnesis 3/2. La Liturgia, Eucaristia: teologia e storia della
celebrazione. Roma, Marietti, 19942. P. 26.
9
Cf. Scienza Liturgica. Manuale di Liturgia. III. La Eucaristia. Casale Monferrato, Piemme. 2003 3. p. 118ss.
10
Cf. DE VOGÜÉ, A., Eucharistie et vie monastique, p. 121.
11
Cf. HIPÓLITO, Op.Cit., 36-37. En. Scienza Liturgica, p. 118.

5
Um último aspecto vivido pelos monges é o desenvolvimento de uma tipologia pascal
da Eucaristia, especialmente em relação à celebração dominical. Já desde o tempo dos
apóstolos, como se vê refletido em seus escritos, está claro que a morte de Cristo cumpriu o
significado profético da Páscoa do Êxodo e, portanto, esta última já não tem razão de ser. Com
o desenvolvimento da teologia patrística, a conotação pascal da Eucaristia, como morte e
ressurreição de Cristo, se afirmará cada vez mais12. Esse valor da Eucaristia como Páscoa não
se limitará apenas à Páscoa anual, mas será celebrada semanalmente no domingo e até
durante a semana. Esta celebração pascal semanal está testemunhada magistralmente por São
Justino:

“E celebramos esta reunião geral no dia do sol, por ser o primeiro dia em que Deus,
transformando as trevas e a matéria, fez o mundo, e também o dia em que Jesus
Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos; pois é sabido que ele foi crucificado no
dia anterior ao dia de Saturno, e no dia seguinte ao dia de Saturno, que é o dia do sol,
apareceu a seus apóstolos e discípulos, nos ensinando as mesmas doutrinas que vos
expomos para o vosso exame”13.

Os monges antigos, embora não tenham uma norma comum, geralmente celebraram
o domingo como um dia pascal, e muitos deles com a celebração eucarística no próprio
mosteiro.

Outros aspectos da Eucaristia que foram menos assumidos pelos monges, ao menos
explicitamente, foram o aspecto sacrificial ou mistérico, que os Padres, por outro lado,
desenvolveram.

Um último aspecto eclesiástico que deve ser levado em conta, para não se julgar certas
práticas monásticas, que hoje seriam consideradas como faltas, é o fato de que o preceito
dominical, ou seja, a obrigatoriedade da participação na Missa de domingo, ainda não era
formulado como preceito. Pouco depois, aparece formulada como norma local em um
conselho espanhol, o de Elvira (300-306), que no cânon 21 pune aqueles que, estando na
cidade, não vão à igreja por três domingos14. Desta norma ao preceito dominical muito tempo
ainda deverá passar.

3. São Bento e a regra do mestre.

No início da seção sobre a Missa e a Comunhão, em seu comentário doutrinal sobre a


Regra de São Bento, Dom Adalbert de Vogüé destaca que, para a mentalidade dos monges de
nosso tempo, acostumados a considerar a Eucaristia como o ponto culminante de sua vida
litúrgica cotidiana, é extremamente estranho não encontrar nenhuma referência à Missa no
código litúrgico da Regra. Ele continua dizendo que, quando comparada a outros Ordos
litúrgicos da antiguidade, isso não é nada estranho, já que muitas das regras antigas não
contêm menção alguma à Eucaristia ou à Comunhão fora da Missa, e as poucas que
mencionam o tema fazem-no, como São Bento, quase marginalmente15.

De fato, São Bento menciona na Regra a Missa e a Comunhão, não no Ordo litúrgico,
como se poderia esperar, mas em outras passagens da Regra, como o capítulo XXXVIII, Do
Leitor Semanário: “Este, ao entrar em seu ofício ( que começa no domingo) peça a todos que

12
Cf. Anàmnesis 3/2. p. 37.
13
SÃO JUSTINO, Primera apología, 67,8. En: RUIZ BUENO, D., Padres Apologetas Griegos. Edición bilingüe
completa. BAC, Madrid, 19963. p. 259.
14
Cf. KIRCH, C., Enchridion Fontium Historiae Ecclesiasticae Antiquae. Herder, Barcelona, 1947. p. 202.
15
Cf. DE VOGÜÉ, A., La règle de Saint Bênoit, p. 240s.

6
rezem por ele, depois da Missa e da Comunhão, para que Deus afaste dele o espírito de
vanglória" e "O monge leitor da semana tomará um pouco de vinho com água antes de
começar a ler por causa da Sagrada Comunhão e para que não seja penoso suportar o
jejum”16; no capítulo LXII, Dos Sacerdotes do Mosteiro: "Sempre fique no lugar que lhe
corresponde por seu ingresso no mosteiro, exceto no ministério do altar..."17; no capítulo LX:
Dos sacerdotes que desejam viver no mosteiro: "Conceda-lhes, contudo, que se coloquem
depois do abade, que abençoem e celebrem a Missa, desde que, no entanto, façam-no com a
autorização do abade"18; no capítulo LXIII, Da ordem na comunidade: "Portanto, de acordo
com a ordem que tiver estabelecido, ou que tiverem os irmãos, apresentem-se para a paz, a
comunhão, para entoar os salmos e estarem no coro"19; e finalmente no capítulo LIX, Dos
Filhos dos Nobres ou dos Pobres que são oferecidos: "e juntamente com a Oblação,
envolverão o mesmo pedido e a mão da criança com a toalha do altar" e "Mas aqueles que não
possuem absolutamente nada, escrevam simplesmente a petição e ofereçam seu filho junto
com a Oblação na frente das testemunhas”20. É verdade que, além dessas breves menções
sobre a Missa e a Comunhão, há outras que são colaterais, como as menções ao Altar do
oratório: “e traçando o noviço um sinal, coloque-a com suas próprias mãos sobre o altar” “Mas
não receba a carta que o abade tirou de cima do altar”21.

Segundo De Vogüé, a partir desses textos da Regra, que sendo muito breves, não
condizem com a importância do tema, parece certo que no Mosteiro de São Bento havia uma
celebração dominical da Eucaristia, no oratório do Mosteiro, como se depreende de RB
XXXVIII, 2. Mas também parece certo que não existia uma celebração diária da Eucaristia,
como se depreende do horário, tão exatamente detalhado por São Bento, que não contém
nem fixa um horário para esta celebração22.

São Bento, como se depreende dos textos acima mencionados, parece, sim, ter
adotado uma prática corrente em muitos mosteiros de sua época, e como também vimos na
seção sobre a vivência na Igreja, ela já era praticada desde o tempo das perseguições. Refiro-
me à Comunhão diária fora da missa. Esta era uma interpretação prática da petição diária do
Pai Nosso: "O pão nosso de cada dia dá-nos hoje". Segundo De Vogüé, os fiéis leigos
praticavam essa Comunhão fora da Missa como um rito privado. Lembremo-nos do texto de
Tertuliano já citado, que lembra os fiéis a comungarem antes de comerem qualquer outra
coisa. Esse rito privado, em mosteiros como o do Mestre, e aparentemente também no de São
Bento, era um rito comunitário, realizado no oratório do mosteiro, provavelmente após o
Ofício que precedia imediatamente a refeição, que também revestia um caráter comunitário.

Na Regra do Mestre, a comunhão é descrita nos capítulos XXI e XXII, de uma maneira
muito mais detalhada do que o faz São Bento. Comunga-se no Oratório, sob as duas espécies,
durante o Ofício imediatamente anterior à refeição comunitária, sendo a Comunhão
distribuída pelo próprio abade, que é um leigo, que comunga primeiro. Esses capítulos têm
uma preocupação especial com os semanários da cozinha, que são substituídas em alguns
momentos, para poderem ir ao oratório, depois do abade e antes da comunidade. Esse rito da
Comunhão fora da Missa era precedido por um rito da paz e breves momentos de oração
antes e depois de se recebê-la. O texto responde à pergunta dos discípulos sobre como devem
comungar os semanários da cozinha e o celeireiro.

16
RB XXXVIII, 2 e10.
17
RB LXII, 5-6.
18
RB LX, 4
19
RB LXIII, 4
20
RB LIX, 2 e 8.
21
RB LVIII, 20 e 29.
22
Cf. DE VOGÜÉ, A., La règle de Saint Bênoît, p. 241s.

7
“Pois bem, quando no oratório todos estiverem diante do abade para a Comunhão,
uma vez que todos tenham recebido a paz e depois de ter comungado o abade,
ninguém ainda deverá comungar depois dele, mas imediatamente os prepósitos
daqueles irmãos semanários pedirão permissão para sair, a fim de trazerem os seus
semanários ao oratório para a Comunhão, substituindo-os fora enquanto isto”23.
“Depois que tiverem saído, entrem logo depois os semanários depois de haverem
lavado as mãos, rezem por alguns momentos e depois da oração darão a paz apenas
ao abade; somente para ele, pois se dessem-na para todos, haveria um atraso na
refeição da comunidade”24. "Portanto, após uma breve oração, eles se aproximarão
diretamente para receberem a Comunhão e beberem do Cálice, e voltando a orar
brevemente, dirão o versículo em voz baixa e o abade concluirá"25.

O Mestre descreve uma ordem para a Comunhão que não é a que estamos
acostumados na Regra de São Bento. Em vez de comungarem por ordem conventual de
ingresso no mosteiro, comungam por ordem os decanos, começando com o prepósito da vez,
e depois de cada um deles sua respectiva decania. Nesta mesma ordem se colocarão no coro26.

“Depois de comungar o abade, comungue aquele prepósito que, por sua vez,
corresponder estar junto do abade; será seguido sua decania, um por um. Quando
tiverem acabado, comungue o outro prepósito, que também será seguido por sua
decania, um por um”27. “Pois no oratório, devem se colocar e, assim, aproximarem-se
da comunhão, como lhes for ordenado. O irmão que se orgulhar acerca da Comunhão
e não quiser receber a Comunhão, deixe-o e que se abstenha. E quando desejar, não
lhe seja permitido comungar”28.

O Mestre propõe que a Missa dominical seja celebrada na igreja paroquial,


provavelmente porque não contava com sacerdotes no mosteiro e porque ele próprio era
leigo. Mas o estabelece como uma nota marginal, ao referir-se ao descanso no domingo.

"Mesmo depois da Missa na Igreja, cada um, de acordo com seus gostos ou
preferências, lerão o que quiserem, a seu critério"29.

Em outros capítulos, também se refere à Comunhão, especialmente às condições para


se recebê-la. Quando se refere, por exemplo, a um monge que viaja, em que condições deve
ou não aceitar quebrar o jejum e quando deve esperar voltar ao oratório para comungar30. E
não somente se refere a condicionantes corporais, como o jejum, mas também a morais, por

23
RM XXI, 1-2. Para estas citações, utilizo a versão de Ildefonso M. Gómez, Regla del Maestro-Regla de S.
Benito. Edición sinóptica. Colección Espiritualidad monástica, fuentes y estudios 18. Ediciones Monte Casino,
Zamora, 1988.
24
RM XXI, 4-5.
25
RM XXI, 7.
26
Cf. RM XXII, 13-14
27
RM XXII, 1-2.
28
RM XXII, 4-6.
29
RM LXXV, 5. Usa o termo ecclesia e não oratorio, que é o que designa o lugar da oração no mosteiro.
30
Cf. RM LXI, 14.

8
exemplo, os sonhos ou poluções noturnas, que impedirão o monge de comungar até o terceiro
dia, depois de haver confessado a sua falta31.

O Mestre trata o tema da Missa e da Comunhão de formamuito mais abundante do


que São Bento. Ele detalha partes do ritual que São Bento mal menciona, como o rito da paz
que antecede a Comunhão. Nada é dito na Regra sobre ir à Missa na igreja paroquial, porque
São Bento permite aos monges sacerdotes celebrarem a Missa, explicando claramente que
não é bom para o monge sair do Mosteiro. Certamente chama a atenção que a Comunhão seja
recebida sob as duas espécies, e nada ser dito sobre como as espécies consagradas fossem
guardadas. Sobre esse ponto em particular, elaborarei uma teoria nas conclusões. Finalmente,
entre a Regra do Mestre e a Regra de São Bento, existem semelhanças e diferenças, mas uma
mesma e profunda fé na Eucaristia.

Como concluir esta seção, sem citar a descrição feita por São Gregório no segundo
livro dos Diálogos, da morte de São Bento, reconfortado com a Comunhão Eucarística:

“E como a enfermidade se agravasse dia após dia, no sexto dia, ele fez com que seus
discípulos o levassem ao oratório, e ali fortaleceu sua saída deste mundo, tomando o
Corpo e o Sangue de Cristo e apoiando seus débeis membros entre as mãos de seus
discípulos, ficou em pé com as mãos levantadas para o céu e, no meio de sua oração,
exalou seu último suspiro”32.

4. Testemunhos sobre a Celebração Eucarística.

Embora não fosse muito frequente, sim, houve correntes monásticas no Monacato
Primitivo que favoreceram a vivência da Missa diária. A maioria dos legisladores monásticos,
no entanto, preferiam a herança da tradição da Igreja antiga, que celebrava a Eucaristia aos
domingos e nas festas dos santos. Esta situação especial das festas dos santos também está
presente no Ordo Litúrgico da Regra, que intitula da mesma maneira os capítulos XI e XIV:
"Como realizar as vigílias aos domingos" e "Como celebrar as vigílias nos natalícios dos
Santos”, fazendo menção expressa no capítulo XIV para que sejam celebradas como o
domingo.

"Nas festas dos santos e com qualquer solenidade, celebre o Ofício como dissemos
para o domingo”33.

Após um primeiro momento, a Missa também começou a ser celebrada em outros


dias, aos sábados ou sextas-feiras ou mesmo às quartas-feiras34. Santo Agostinho já explica
essa diversidade em sua Carta 54, e autores como Desprez indicam que os monges
provavelmente são os primeiros a participarem dessas missas diárias mencionadas pelo Santo
de Hipona35.

31
Cf. RM LXXX, 7. A isto também se refere São Basílio na Questão 309 das Pequenas Regras. Cf. SÃO BASÍLIO,
Les Règles Monastiques. Éd. de Maredsous, Maredsous, 1969. p. 343.
32
SÃO GREGORIO MAGNO. Livro dos Diálogos. II, 37,2. Em: Op. Cit. p. 131.
33
RB XIV, 1.
34
Cf. DESPREZ, V., Le Monachisme primitif. Des origines jusqu’au concile d’Éphèse. Spiritualité Orientale 72.
Abbaye de Bellefontaine, 1998, p. 567s.
35
Cf. DESPREZ, V., Le Monachisme primitif. p. 569.

9
“Existem outras práticas que variam segundo os distintos lugares e países. Assim, por
exemplo, alguns jejuam no sábado e outros não. Alguns comungam todos os dias o
Corpo e o Sangue do Senhor, outros comungam apenas em certos dias. Alguns não
deixam passar um só dia sem celebrar, outros celebram apenas no sábado e no
domingo. Se consideramos essas práticas e outras semelhantes que possam surgir,
todas são de celebração livre. Em tudo isso, a melhor disciplina para o cristão é ajustar-
se à maneira que for observada na igreja onde se encontra. Pois o que não é contra a
fé ou contra os bons costumes, deve ser considerado como indiferente e observado
em solidariedade com aqueles entre os quais se vive”36.

Como sabemos, a maioria dos monges antigos não era sacerdote. A celebração da
Eucaristia variava de acordo com as circunstâncias de cada comunidade ou grupo de eremitas.
Assim, por exemplo, nas colônias semi-eremíticas do Baixo Egito, Nítria e Escete, a Eucaristia
era celebrada aos sábados e domingos, nas quais os monges compareciam. Na Koinonia
pacomiana, os monges iam à igreja do povoado no sábado à noite e no domingo de manhã os
presbíteros vinham celebrar na igreja do mosteiro37.
“No domingo, ou quando se fizer a Oblação, estarão presentes todos os
hebdomadários, porque é preciso sentar-se no lugar do chantre e responder ao que
salmodia”38. 14

"Excetuados o prepósito da casa e os anciãos do mosteiro que têm algum título para
desempenhar essa função, ninguém deverá salmodiar aos domingos e na sinaxe na
qual a Oblação será oferecida"39.

"Quem deixar a sinaxe na qual a Oblação é oferecida, sem a permissão do superior,


será repreendido imediatamente”40.

Outros eremitas que viviam mais longe das colônias eremíticas ou dos centros
povoados, participavam muito menos da Eucaristia. Em parte, esse problema foi resolvido
pelos sacerdotes itinerantes, que exerciam esse ministério especial para os eremitas. Para
ilustrar esse serviço, cito a história do eremita Maris, relatada por Teodoreto de Ciro:

“Como fazia muito tempo que eu desejava participar do místico e espiritual sacrifício,
ele me pediu que fizesse ali (uma cabana perto da aldeia Omero) a oferenda do dom
divino. Concordei de bom grado, porque não estava muito longe, e pedi que levassem
os vasos sagrados, servi-me como altar das mãos dos diáconos e ofereci ali o místico e

36
SÃO AGOSTINHO, Carta 54. A las consultas de Jenaro. Capítulo 2. Em: Obras de San Agustín. Edición bilingüe.
Tomo VIII. Cartas. BAC, Madrid, 1958. p. 309 y 311.
37
Cf. DESPREZ, V., Le Monachisme primitif. p. 567s.
38
PACOMIO, Preceitos, 15. Em: DESEILLE, P., El espíritu del Monacato Pacomiano. Colección Espiritualidad
Monástica 19. Monasterio de Las Huelgas, Burgos, 1986. p.13. A versão em castelhano não corresponde
numericamente a seu original francês, visto que em vez de Preceitos 15, aparece como Preceitos 14. O mesmo
ocorre nas outras citações.
39
PACOMIO, Preceitos, 16. Em DESEILLE, P., El espíritu del Monacato Pacomiano. Preceitos, 17, p. 14.
40
PACOMIO, Preceitos, 18. Em DESEILLE, P., El espíritu del Monacato Pacomiano. Preceitos, 19, p. 14.

10
divino sacrifício da salvação. Ele, cheio de alegria espiritual, pensou ter visto o próprio
céu e manifestou haver jamais experimentado semelhante alegria”41.

Em alguns casos, os eremitas, ordenados sacerdotes, puderam manter suas vidas


solitárias, e somente em ocasiões particulares eles assistiam à Missa do Bispo e do restante do
presbitério. Nesse sentido, a história do monge Macedônio é especialmente ilustrativa e quase
engraçada. É bonito como ele chama o domingo e a celebração eucarística dominical: o Dia da
Festa do Senhor, os Sagrados Mistérios e a Festa Litúrgica.

“Quando o grande Flaviano foi consagrado pastor do grande rebanho de Deus e teve
conhecimento da virtude daquele homem (Macedônio) – já que seus louvores eram
transmitidos em todos os lugares de boca em boca – ele o fez vir do cume da
montanha sob o pretexto que uma acusação havia sido apresentada contra ele.
Enquanto se celebravam os sagrados mistérios, ele o levou até o altar e o incluiu entre
os sacerdotes. Quando a liturgia terminou e alguém lhe explicou o que havia
acontecido (a ordenação sacerdotal), pois não havia se dado conta de nada, primeiro
ficou com raiva e lançou impropérios contra todos; depois começou a perseguir o
bispo e todos os que o rodeavam com o bastão no qual se apoiava para caminhar por
causa da sua velhice. É que ele pensava que a ordenação o iria separar do cume de sua
montanha e da forma de vida que ele levava com prazer. Com muita dificuldade,
alguns amigos conseguiram acalmar a raiva dele naquela ocasião, mas quando ao final
da semana chegou o dia da festa do Senhor, o grande Flaviano o mandou chamar,
convidando-o a participar com todos os demais na festa litúrgica. Não vos é suficiente
– disse-lhes – o que já fizestes comigo que quereis ainda fazer-me sacerdote
novamente? Embora lhe dissessem que não era possível dar a mesma ordenação duas
vezes, ele não cedeu e não veio até que o tempo e os amigos conseguiram convencê-
lo”42.

Nas comunidades cenobíticas, a Missa dominical nem sempre está regulamentada no


horário, como sabemos pelo ocorrido no caso de São Bento e sua Regra. Nas regras de
Aureliano de Arles, por exemplo, fica a juízo do abade ou da abadessa determinar em que dias
deve ser celebrada a Missa, propondo uma comunhão após Tércia aos domingos e festas, visto
que nem sempre esses dias tinham a celebração da Eucaristia43.

Finalmente, deve-se lembrar que a Comunhão não necessariamente acompanhava a


celebração da Missa. Por isso muitas regras e escritos monásticos falam de Missa e Comunhão,
não apenas porque a Comunhão poderia ser recebida fora da Missa, mas porque mesmo
celebrando-se a Missa, podia não se receber a comunhão. Já mostrei alguns casos previstos na
Regra do Mestre e na de São Basílio. Alguns, como indica Desprez, também se abstinham por
consciência de sua indignidade, comungando apenas uma vez por ano, uma prática que
Casiano reprova44. Entre esses casos de indignidade, o mais extremo é o de Abba Matoés e seu
irmão, que, ordenados sacerdotes, nunca celebraram a Missa, porque se consideravam em
culpa.

41
TEODORETO DE CIRO, Historias de los Monjes de Siria, XX,4. Editorial Trotta, Madrid, 2008. p. 147.
42
TEODORETO DE CIRO, Historias de los Monjes de Siria, 13,4. Em: Op. Cit. p. 122s.
43
Cf. AURELIANO DE ARLES, Regula ad Monachos, PL 68, 396B e Regula ad Virgines, PL 68, 406B: “Post
tertiam vero, Pater noster dicite, et psallendo omnes communicent. Sic et in festivitatibus facite. Missae vero
quando sancto abbati (sanctae abbatisae) visum fuerit tunc fient”.
44
Cf. DESPREZ, V., Le Monachisme Primitif. p. 570.

11
“Certa vez o abba Matoés foi desde Raithu à região de Magdolos. Seu irmão estava
com ele. O bispo agarrou o ancião e ordenou-lhe sacerdote. Quando eles estavam
comendo juntos, o bispo disse: ‘Perdoe-me, abba, sabia que não querias isso, mas me
dispus a fazê-lo para receber tua bênção’. O ancião, com humildade, disse-lhe: ‘É
verdade, minha alma não queria, mas o que mais sinto é que devo me separar de meu
irmão. Não posso levar isso sozinho de fazer todas as orações’. O bispo lhe disse: 'Se
sabes que ele é digno, eu o ordeno'. Abba Matoés respondeu: ‘Não sei se é digno; mas
só sei isso: que ele é melhor que eu’. Ele também o ordenou. E ambos morreram sem
se aproximarem do santuário para fazer a Oblação (Missa). Dizia o ancião: ‘Confio em
Deus, que não terei um juízo grave por causa da ordenação, pois não faço a Oblação.
Pois a ordenação é para aqueles que não têm culpa’”45.

5. Testemunhos sobre a recepção da Comunhão fora da Missa.

Há muitos testemunhos nos escritos monásticos antigos sobre a recepção da


Comunhão fora da Missa. O mais famoso, e que todos os autores sempre citam, é a Carta 93
de São Basílio, dirigida à patrícia Cesária, sobre a Comunhão. Nela, dá detalhes de sua própria
experiência no mosteiro, tanto na assiduidade da recepção (quatro vezes por semana, mais
nas festas dos santos), quanto na forma concreta de recebê-la (por sua própria mão). Ele
também dá alguns dados sobre os monges anacoretas do deserto, pondo-os em relação com
as tradições de sua Igreja local.

“Certamente, nós comungamos quatro vezes por semana: no domingo, na quarta-


feira, em parasceve (sexta-feira) e no sábado e em outros dias, se for a comemoração
de algum santo. E que alguém se veja forçado, em tempo de perseguição, a receber a
Comunhão com sua própria mão, não estando presente o sacerdote ou o ministro, é
supérfluo mostrar que de maneira alguma trata-se de algo grave, porque o confirma
um longo costume com sua prática. Porque todos os monges que vivem nos desertos,
onde não há sacerdote, conservando a Comunhão em casa, a recebem por si mesmos.
Em Alexandria e no Egito, todos, inclusive os seculares, geralmente têm a Comunhão
em sua casa e comunga por si mesmo quando quer”46.

Outro texto interessante de São Basílio é a Questão 172 das Pequenas Regras, que
trata do tema da disposição interior para se receber a Comunhão.

"Com que temor ou com que inteira persuasão ou com que afeto devemos receber o
Corpo e o Sangue de Cristo". E citando numerosos textos bíblicos, conclui dizendo:
"Quem participa do Pão e do Cálice deve ter tal disposição e preparação"47.

Na Questão 310 das Pequenas Regras, ele se pergunta se convém celebrar numa casa
comum a Oblação. A resposta é que, assim como não devemos comer uma refeição comum na
igreja, tampouco devemos manchar a ceia do Senhor em uma casa comum48. São Basílio

45
Los Dichos de los Padres del Desierto. Colección alfabética de los Apotegmas. De Elizalde, M. (ed.).Ediciones
Paulinas, Buenos Aires, 1986. Abba Matoes 521, p. 159.
46
SÃO BASÍLIO, Carta 93 da 2° série. Em: SOLANO, J., Textos Eucarísticos Primitivos I. Hasta fines del siglo IV.
BAC, Madrid, 19782. p. 405s.
47
SÃO BASÍLIO, Pequeñas Reglas, Cuestión 172. Em: SOLANO, J., Textos Eucarísticos Primitivos. p. 401s.
48
Cf. SÃO BASÍLIO, Pequeñas Reglas, Cuestión 310. Em: SÃO BASÍLIO, Les Règles Monastiques. p. 344.

12
também tem outras passagens sobre a Comunhão e, embora não dêem testemunho direto
sobre a vida monástica, mostram que tratou do tema muitas vezes49.

São Jerônimo, em seu prefácio à tradução latina das obras pacomianas, menciona a
Comunhão, sendo esta, possivelmente, a primeira menção em âmbito latino desse fato. Deve-
se notar que é essa ordem conventual pacomiana a que São Bento aplica em sua Regra, e não
a da Regra do mestre, como vimos mais acima.

“Quem quer que entre no mosteiro primeiro, senta-se primeiro, caminha à frente
primeiro, recita o salmo primeiro, estende na mesa a mão primeiro, comunga primeiro
na igreja e não se prefere ente eles a idade, mas a antiguidade da profissão”50.

Cassiano é outra testemunha privilegiada, sempre citada pela questão da Comunhão


fora da missa. Em primeiro lugar, deve-se notar que esse rito de Comunhão cotidiana fora da
Missa explicaria algumas aparentes contradições nos textos monásticos de Cassiano, que falam
tanto de uma Comunhão diária quanto de uma Comunhão semanal ou bissemanal.

Quanto à Comunhão dominical, contra aqueles monges que, por se considerarem


indignos, comungam apenas uma vez por ano, expressa o valor curativo da Eucaristia51:

"É muito mais razoável receber os sagrados mistérios cada domingo como remédio
para nossas doenças, com coraçõe humilde, crendo e confessando que não
merecemos tamanho benefício"52.

Também dá testemunho desta Comunhão dominical nas Instituições, nas quais pela
primeira vez se alude à substituição de alguns Ofícios por este rito d Comunhão dominical (ou
talvez Missa).

“Mas não devemos tampouco ignorar que aos domingos não se celebra mais que um
único Ofício antes do almoço. Nele, em reverência à própria assembleia e à Comunhão
dominical, executam-se com mais solenidade e fervor os salmos, orações e leituras, e
acreditam que com isso também cumpriram ao mesmo tempo Tércia e Sexta”53.

E no que diz respeito à Comunhão diária, ele dá testemunho tanto nas Instituições
como nas Conferências:

“Com quanta maior pureza convirá guardar nosso corpo e nossa alma, aqueles que
devemos receber diariamente a Carne Sacrossanta do Cordeiro!54"

"Em seguida, dizemos: ‘Dá-nos hoje o nosso pão supersubstancial’, que, segundo outro
evangelista, é: ‘Nosso pão de cada dia’... A palavra ‘cotidiano’ indica que sem pão nos é
impossível viver um único dia na vida sobrenatural. Quanto ao termo ‘hoje’, mostra
que devemos alimentar-nos com ele diariamente e que não será suficiente tê-lo

49
Entre outros, Regras Morais 21. Em: SOLANO, J. Textos Eucarísticos Primitivos. p. 400.
50
SÃO JERÔNIMO, Prefacio às obras pacomianas em latim, 2. Em: SAN JERÓNIMO, Obras Completas II.
Comentário a Mateus e outros escritos. Edição Bilingue. BAC, Madrid, 2002. p. 537.
51
Daqueles que só querem comungar uma vez por ano, diz que caem em uma arrogância muito maior, pois
creem que ao final de um ano são dignos da comunhão. Cf. CASSIANO, Conferências XIII, 21. In: CASSIANO, J.,
Colaciones II. Rialp, Madri, 1998. p. 426.
52
CASSIANO, Conferências XIII, 21. Em: CASSIANO, J., Colaciones II. p. 426.
53
CASSIANO, Instituições III, 11. Em: CASSIANO, Instituciones Cenobíticas. Volumen 1. Prefacio y Libros I-IV.
ECUAM, Buenos Aires, 1995. p. 53.
54
CASSIANO, Instituçõees VI, 8. Em: CASSIANO, Instituciones. Rialp, Madrid, 1957. p. 242.

13
recebido ontem, se não o recebermos igualmente hoje. Que a necessidade cotidiana
que dele temos nos advirta que devemos fazer esta oração em todo o tempo. Porque
não há dia em que este pão não seja necessário para nos fortalecermos em nosso
homem interior”55.

“Como se quiséssemos saber como nossos pais estavam todos sob uma nuvem e foram
batizados por Moisés no mar, e como todos comeram o mesmo pão e beberam a
mesma bebida espiritual que brotava da pedra, que era Cristo. Esta exposição significa
por alegoria que esta história é uma figura do Corpo e Sangue de Cristo, que
recebemos todos os dias”56.

Cassiano descreve nas Conferências o ato de penitência de Pafnúcio, que se humilhava


à porta da igreja, sem entrar nem receber a Comunhão no sábado e no domingo, apesar de ser
inocente da culpa pela qual se prostrava em terra. Este é também o gesto de penitência que
São Bento propõe aos excomungados, que permaneçam prostrados à porta do oratório. Desta
vez, trata-se de uma comunhão bissemanal, testemunhada também nas instituições.

"A tal ponto que no sábado e no domingo ia à igreja bem de madrugada, não para
receber a Sagrada Comunhão, mas para prostrar-me à porta e implorar perdão"57.

“Por isto, fora das reuniões da tarde e da noite, não se faz entre eles nenhuma
celebração pública durante o dia, exceto aos sábados e domingos, quando eles se
reúnem na hora de Tércia para receberem a Sagrada Comunhão"58.

Infelizmente, entre os monges, houve também desvios morais ou heréticos acerca da


Eucaristia. Na História Lausíaca, relata-se o caso do monge Valens, que, inflado de orgulho e
presunção, desprezava até a Comunhão dos Mistérios e chegou a tal ponto de demência que,
entrando na igreja, onde os irmãos haviam se reunido, disse que não tinha necessidade da
Comunhão, posto que havia visto a Cristo naquele mesmo dia, quando na verdade se tratava
do anticristo59.

Em muitos casos, a separação do mundo degenerou em ruptura com a Igreja, devido a


seus compromissos com a sociedade. Assim, os monges que aderiam a heresias tais como os
Eustacianos ou os Messalianos consideravam os sacramentos como algo sem valor, ou ainda
os Pelagianos que não lhes atribuíam a capacidade de transformá-los pela graça sacramental.
No outro extremo, aos Priscilianos foi-lhes proibido, no Concílio de Saragoça, que levassem
consigo a Eucaristia, pois havia grave risco de profanação pelo uso mágico que dela faziam60.

Assim como houve casos de abuso ou menosprezo da Eucaristia, houve também, pelo
contrário, casos de uma mística demasiado elevada. Na mesma História Lausíaca, Paládio nos
relata o caso de São Macário, que era presbítero, e que, no momento em que devia distribuir a
Comunhão, percebeu que nunca havia dado comunhão ao asceta Marcos e depois vê que ele a

55
CASSIANO, Conferências IX, 21. Em: CASSIANO, J., Colaciones I. Rialp, Madrid, 19982. p. 439s.
56
CASSIANO, Conferências XIV, 8. Em: CASSIANO, J., Colaciones II. p. 97.
57
CASSIANO, Conferências XVIII, 15. Em: CASSIANO, J., Colaciones II. p. 241.
58
CASSIANO, Instituições III, 2. Em: CASSIANO, Instituciones Cenobíticas. p. 42.
59
Cf. PALÁDIO, Histoire Lausiaque. Spiritualité orientale 75. Abbaye de Bellefontaine, Bégrolles-en-Mauges,
1999. XXV, 2.5.p. 134s.
60
Cf. DESPREZ, V., Le Monachisme Primitif. p. 572.

14
recebe pelas mãos de um anjo, que a tira do altar e lha dá. Deste anjo ele não pôde ver mais
do que a mão61.

6. Conclusão.

O tema da Eucaristia, embora haja muitos testemunhos, não é um tema desenvolvido


com amplitude nas Regras e nos escritos monásticos antigos. A porcentagem de menções
sobre a Eucaristia e a Comunhão em relação a outros temas que esses escritos tocam é muito
baixa. É uma temática que os legisladores ou escritores monásticos deixaram para a Igreja,
tanto em seu desenvolvimento eucológico-ritual, como no teológico. É por isso que em muitas
Regras, como a de São Bento, por exemplo, ela sempre aparece como tema colateral, dentro
de outro tema principal.

Por outro lado, o antigo Monacato sempre viveu essa temática eucarística em
profunda relação com a Igreja local. Não foram poucas as comunidades que inclusive
compareciam à Missa dominical com a comunidade paroquial ou diocesana. Muitos mosteiros
ou colônias de eremitas que careciam de presbíteros dependiam dos ministros da Igreja local
para a celebração da Eucaristia. Além disso, seguindo a prática comum da Igreja, havia um rito
de Comunhão fora da Missa, que, segundo a região ou a comunidade concreta que a
celebrava, variava desde a recepção diária à recepção semanal dos Sagrados Mistérios.

Essa múltipla variedade de formas em que se celebrou a Eucaristia ou se recebeu a


Comunhão fora da Missa é característica de todo o monacato antigo, tanto no Oriente quanto
no Ocidente. Este período multiforme acaba com a publicação do livro dos Diálogos, de São
Gregório Magno, no final do século VI. A partir deste momento, o monacato ocidental inicia
um período em que paulatinamente chegará a uma celebração diária da Missa e à recepção da
Comunhão, separando-se da práxis do Oriente. O final deste período intermediário ou de
assimilação das doutrinas gregorianas terminará em meados do século VIII, quando a
uniformidade da práxis e da doutrina eucarística atingirá sua plenitude nos mosteiros do
Ocidente.

No monacato antigo, a Comunhão fora da Missa foi uma prática bastante difundida.
Essa Comunhão, como consta em alguns dos testemunhos que mencionei, era sob as duas
espécies, isto é, o Corpo e o Sangue. Como explicar essa situação, principalmente em relação
ao Cálice? Uma possível teoria explicativa seria relacioná-la com a Comunhão fora da Missa
que até hoje se celebra nas Igrejas bizantinas, especialmente na Quaresma, quando,
juntamente com o ofício de Vésperas, se celebra a liturgia dos Pré-santificados. Temos que ter
em mente que, nos distintos Ritos Litúrgicos, as práticas rituais mais antigas foram
conservadas no tempo da Quaresma e do Tríduo Pascal. Nesta celebração dos Pré-santificados
que mencionei, comunga-se sob as duas espécies. A reserva eucarística é feita com o Corpo,
sobre o qual se verte o Sangue com uma colherzinha. Depois, no momento da Comunhão,
prepara-se um novo cálice com vinho e água, e se faz a inmixtio com o Corpo untado do
Sangue de Cristo. E com ambos se comunga. Poderia ter sido uma das maneiras em que se fez
no Monacato antigo o rito de Comunhão fora da Missa.

Mencionei numerosas fontes, mas houve muitas que não pude mencionar e que, no
entanto, são fontes primordiais do Monacato. O motivo principal é que eu não tive a

61
Cf. PALÁDIO, Histoire Lausiaque. XVIII, 25. p. 113.

15
possibilidade real de ter o texto original para corroborar as citações propostas pelos autores
das diferentes publicações consultadas.

Por outro lado, limitei-me nestas páginas a mostrar a práxis eucarística dos monges
antigos. Deve-se notar que houve também doutrina eucarística, isto é, princípios de
elaboração teológica, mas neste trabalho eu tive que optar por continuar em uma única via de
desenvolvimento. Por exemplo, é interessante como se propõe, neste sentido, a Eucaristia
como alimento para a luta espiritual dos monges contra as paixões e vícios, e até contra os
demônios62. Mas como disse, trata-se de algo que não pude aprofundar nesta conferência. Fica
como desafio para outro no futuro.

Finalmente, reiterar que, apesar das numerosas formas pelas quais os monges antigos
viveram sua relação com a Eucaristia, essa foi parte importante de suas vidas, e o que na
prática parecia diverso, era igualadado pela profunda e idêntica fé com que cada um deles a
viveu.

62
Basta citar o Apoftegma de Abba Pastor que diz: “Está escrito: ‘Como o cervo deseja as fontes das águas,
assim minha alma deseja a ti, ó meu Deus. Com efeito, os cervos no deserto engolem muitos répteis e, como o
veneno os queima, eles desejam ir beber nas fontes para refrescar o ardor do veneno das serpentes. Da mesma
forma, os monges que permanecem no deserto são abrasados pelos demônios malvados e suspiram pelo
sábado e o domingo, para irem às fontes das águas, ou seja, o Corpo e o Sangue do Senhor, para se purificarem
da amargura do maligno". Em: Los dichos de los Padres del desierto. p. 185.

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