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Freud e a teoria social

O patológico fornece a visibilidade do que está em jogo nas condutas sociais


gerais
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Sofrimento: os sujeitos devem estabelecer um compromisso


entre suas exigências de satisfação e o que é socialmente
permitido

Vladimir Safatle
Freud é um autor fundamental no esforço de constituir um
campo de reflexão sobre a modernidade. O recurso a ele foi uma
constante em várias correntes de pensamento do século 20 e a
razão para tal constância era evidente: longe de se colocar
apenas como uma clínica do sofrimento psíquico, a psicanálise
freudiana procurou, desde seu início, ser reconhecida também
como teoria das produções culturais para desvendar a maneira
com que sujeitos mobilizam sistemas de crenças, afetos, desejos
e interesses para legitimar modos de integração a vínculos
sociopolíticos. Freud afirmava que “mesmo a sociologia, que
trata do comportamento dos homens em sociedade, não pode
ser nada mais que psicologia aplicada. Em última instância, só
há duas ciências, a psicologia, pura e aplicada, e a ciência da
natureza”.
Partir do patológico sem reduzir o social
Não se trata aqui de reduzir a dimensão do social ao psicológico.
Na verdade, esse recurso à psicanálise apenas realizava a
intuição do sociólogo alemão Max Weber a respeito da
necessidade de explicar como a racionalidade dos vínculos
sociais depende fundamentalmente da disposição dos sujeitos
em adotar certos tipos de conduta.
Em ​A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo​, Weber
lembrava como a racionalidade econômica do capitalismo
dependia fundamentalmente da disposição dos sujeitos em
adotar os tipos de conduta ligados a um modo de ser que
remetia à ética protestante do trabalho e da convicção, estranha
ao cálculo utilitarista, e cuja gênese deve ser procurada no
calvinismo. Sem essa ética internalizada, os sujeitos nunca
desenvolveriam disposições para trabalhar, poupar e acumular
do modo que o capitalismo exigia. No caso de Freud, essa
análise das disposições individuais nascia de uma maneira
peculiar. Em vez de partir do que deveria ser normal a todos os
sujeitos, Freud partia da análise daqueles que, de certa forma,
portavam as marcas do fracasso da razão, daqueles que guiavam
suas condutas de maneira “patológica” e “irracional”. No
entanto, o que Freud procurava era transformar a compreensão
do patológico no modo de acesso ao verdadeiro mecanismo do
comportamento normal. O que não poderia ser diferente para
alguém que acreditava que a conduta patológica expõe, de
maneira ampliada, o que está realmente em jogo no processo de
formação das condutas sociais gerais. É dessa forma que
devemos interpretar uma metáfora maior de Freud: “Se
atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas não
arbitrariamente. Ele se parte, segundo suas linhas de clivagem,
em pedaços cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam
determinados pela estrutura do cristal”. O patológico é esse
cristal partido que, graças à sua quebra, fornece a
inteligibilidade do comportamento definido como normal.
Por exemplo, Freud nunca cansou de lembrar que “um ser
humano se torna neurótico por não poder suportar a frustração
(Versagung) imposta pela sociedade com seus ideais culturais”,
sem que essa impossibilidade o leve ao ponto de negar todo e
qualquer interesse por tais ideais. Para assumir tais ideais, os
sujeitos devem estabelecer certo compromisso entre suas
exigências individuais de satisfação e aquilo que é socialmente
permitido. Tal compromisso exige, necessariamente, aceitar
certa frustração, submeter-se a certa coerção e conflito. Esse é,
para Freud, um traço geral dos processos de socialização. No
entanto, os neuróticos vivem tal compromisso como fonte
profunda de sofrimento psíquico. Entender as causas de tal
sofrimento psíquico nos permite, por outro lado, apreender a
verdadeira natureza dos compromissos presentes em todo
processo de assunção de ideais, normas e valores sociais. Dessa
forma, poderemos partir da frustração patológica para, ao final,
encontrar seus traços em todo comportamento normal.
Notemos um dado fundamental aqui. Quando alguém está
doente, cremos que sabemos isso porque comparamos sua
situação com uma situação normal da qual disporíamos
previamente. Ou seja, a doença nos aparece como uma
derivação do normal. No entanto, Freud faz praticamente o
inverso. Ele parte do sofrimento vivenciado pelo doente que
procura amparo clínico. Em vez de simplesmente curá-lo, ele
procura inicialmente mostrar como seu sofrimento expõe
conflitos e processos gerais na constituição de todo e qualquer
indivíduo. Isso lhe permite problematizar uma noção
demasiadamente normativa e sublimada de normalidade.
No entanto, não se trata com isso de simplesmente negar a
distinção entre normal e patológico. Podemos dizer que, no caso
de Freud, temos uma diferença qualitativa fundamental entre
normal e patológico. Se é verdade que o patológico permite a
visibilidade de processos e conflitos presentes no
comportamento normal, é porque o patológico transforma em
motivo de quebra aquilo que o comportamento normal é capaz
de suportar sem cindir-se e dissociar-se.Por exemplo, a
ambivalência entre amor e ódio na relação com o objeto de
desejo, assim como a erotização da autoridade, é um traço que
encontramos em todo comportamento. Mas é na neurose
obsessiva que tal ambivalência e tal processo são vivenciados
para produzir necessariamente sintomas, inibições e angústia.
Ou seja, há uma diferença qualitativa na vivência de processos
estruturalmente semelhantes. Eles ganham visibilidade, como
os sulcos do cristal quebrado, porque começam a produzir
fenômenos que não produziriam em algo que poderíamos
chamar de uma situação normal (e que nada mais é do que a
ausência de certos sintomas, inibições e angústias em outras
situações patológicas, já que não há sujeitos sem sintomas de
sofrimento psíquico).Mas dizer que o patológico é o ponto que
fornece a visibilidade do que está em jogo nas condutas sociais
gerais significa, necessariamente, dizer que “normal” e
“patológico” são categorias que podem ser utilizadas para
compreender fatos sociais. Proposição aparentemente
temerária, a não ser que mostremos que a verdadeira crítica
social pode ser algo como uma “análise de patologias do social”.
Talvez essa seja a lição que podemos tirar ao tentar trazer Freud
para o domínio da teoria da sociedade.
Da necessidade de críticas totalizantes
Nesse sentido, podemos dizer que o recurso a Freud nos
permite compreender que uma crítica social é indissociável da
análise dos procedimentos de socialização que visam conformar
sujeitos a formas de vida aspirantes a uma validade que não se
reduz apenas aos domínios da tradição e do hábito. Por um
lado, sabemos como os dispositivos de formação e de
individuação presentes nas dinâmicas de socialização são
legíveis a partir daquilo que compreendemos como sendo
processos de identificação mimética e de investimento libidinal.
Até porque socializar é, fundamentalmente, “fazer como”, atuar
a partir de tipos ideais que servem de modelos de identificação e
de polo de orientação para os modos de desejar, julgar, falar e
agir. Mas sabemos também que essa identificação com tipos
ideais não pode ser descrita simplesmente a partir de
considerações sobre as pressões de conformação presente em
núcleos elementares de interação social (família, instituições
sociais, mídias). Freud compreendeu que as estruturas
elementares que orientam o que está em jogo nesses núcleos de
interação são figuras privilegiadas da razão. As exigências de
racionalidade presentes nesses núcleos são, necessariamente,
manifestações privilegiadas do que estamos dispostos a contar
como racional. No entanto, nunca deixará de colocar a questão:
“o que é necessário perder para se conformar a exigências de
racionalidade presentes em processos hegemônicos de
socialização e de individuação?”, ou, ainda, “qual o preço a
pagar, que tipo de sofrimento devemos suportar, qual o cálculo
econômico necessário para viabilizar tais exigências?”.
Essa questão está claramente enunciada em trechos como, por
exemplo: “Grande parte das lutas da humanidade
centralizam-se em torno da tarefa única de encontrar uma
acomodação conveniente, ou seja, um compromisso (Ausgleich)
que traga felicidade entre reivindicações individuais e culturais;
e um problema que incide sobre o destino da humanidade é o de
saber se tal compromisso pode ser alcançado através de uma
formação determinada da civilização ou se o conflito é
irreconciliável”. Pois devemos nos perguntar o que deve
acontecer ao sujeito para que ele possa se pautar por um regime
de racionalidade que impõe padrões de ordenamento, modos de
organização e estruturas institucionais de legitimidade. Como
deve se organizar sua economia libidinal para que ele possa ser
reconhecido, como sujeito agente, por estruturas institucionais
que aspiram garantir a racionalidade de nossas dinâmicas
sociais. Toda discussão freudiana clássica da imbricação entre
socialização e repressão, que encontramos em textos como O
Mal-estar na Civilização, é apenas o ponto mais visível desse
problema.
Essas perguntas são fundamentais por nos levarem a uma visão
renovada do que pode ser a crítica social. Sendo os núcleos de
interação social modos de realização de formas de
ordenamento, de determinação de validade do que estamos
dispostos a contar como racional, então a verdadeira crítica
social deverá ser uma análise das formas de vida que se
perpetuam por meio dos modos institucionais de reprodução
social.
No entanto, como bem nos lembra Axel Honneth, sabemos
desde ao menos Rousseau que tal análise pode nos levar à
denúncia ampla do caráter distorcido das formas de vida na
modernidade ocidental. Nesse caso, ela se transforma em crítica
da natureza patológica de tais formas de vida com suas
exigências de autoconservação e reprodução social. Notemos
que, aqui, uma forma de vida poderia ser chamada de
“patológica” por produzir um sofrimento social advindo da
impossibilidade de dar conta de exigências de reconhecimento
dos sujeitos em suas expectativas de autorrealização. Ou seja,
nesse caso, a estrutura conceitual e valorativa “normal”, cuja
internalização constitui sujeitos agentes, produtores de
deliberações racionais, já seria “patológica”, pois indissociável
da perpetuação de uma situação de sofrimento advinda, ao
menos no caso de Rousseau, da perda de um horizonte
originário que se confunde com a natureza como plano positivo
de doação de sentido.
Se deixarmos de lado a temática rousseauísta do retorno à
origem, é bem possível que esse esquema esteja animando algo
da intuição freudiana. Trata-se de se perguntar se o sofrimento
social que produz patologias não expõe, de maneira mais clara,
o funcionamento dos processos de formação de subjetividades
normais. Trata-se, ainda, de investigar se isso não nos obrigaria
a perguntar pelos conflitos que estão por trás dos sistemas de
normas e regras que compõem a vida social e, principalmente,
por novas maneiras de gerir tais conflitos.
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