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CONNEL, Raewyn. PEARSE, Rebecca. Gênero na vida pessoal.

In: Gênero – uma


perspectiva global. São Paulo: Editora nVersos, 2015. P.189-219

Este capítulo examina algumas questões que emergem do domínio da intimidade e reflete
sobre como podemos compreender o que acontece ali. (p.189)
Pam Benton morreu de câncer de mama, doença quase que totalmente de mulheres.
Médicos em maioria homens tem atitudes e estilos de interação que homens profissionais
costumam ter. Pam foi encaminhada para um centro de oncologia e fez quimioterapia. O
médico acreditava que se as mulheres usassem os seios para o que foram designados, não
teriam tantos problemas. O médio sabia que há evidências que provam que mulheres que
tiveram filhos jovens e amamentaram tem menos chances de terem câncer. O oncologista
transformou esse resultado como um insulto de gênero por dizer que as mulheres “servem
para ter bebês” e que estariam pedindo para ter câncer (p.190)
Tal exemplo mostra a quão íntima e inevitável é a política de gênero em âmbito pessoa.
Essa questão sobre poder e desigualdade são de vida e morte, como o tratamento de câncer
e os partos.
Após a retirada do seio, Pam contratou um serviço de apoio a pacientes de mastectómica,
os principais serviços foram fornecimento de um seio artificial visita de mulheres que
davam conselhos de como se vestir e se arrumar de forma que mantivesse uma aparência
normal, com feminilidade atraente e conselhos de como restaurar a normalidade na
família e esperar o (esperado) nojo sexual do marido. (p.191)
Essa política coloca mulheres de volta na cultura de uma feminilidade heterossexual,
sobre negar que a normalidade foi suspensa. Responsabilizam mulheres sobre
necessidades emocionais de outras pessoas. Restauram os serviços normais aos homens.
(p.191)
Política de gênero quase sempre tem uma noção de intimidade e envolve relações sociais
mais amplas. Empreender mudanças pode afetar negativamente a imagem de si que as
pessoas têm como algo estimado, aquilo que assumem sobre suas relações pessoais, sua
incorporação social e seus hábitos cotidianos de conduta.
Em um caso, quando um cliente solicitou a trabalhadora de rua e pagou adiantado, ela o
levou a um quarto alugado, onde ele se recusou a colocar camisinha. Uma disputa surgiu
sobre o dinheiro; o cliente na ocasião “ameaçou gritar a acordar os vizinhos,
envergonhando o dono da casa”. A ameaça foi eficaz, porque isso revelaria o trabalho
sexual da mulher e atrapalharia os arranjos que lhe permitiam ganhar a vida. Mesmo uma
mudança tão básica quando usar camisinha envolve luta. (p.193)
“Quando as ativistas do Movimento da Libertação da Mulher diziam “o pessoal é
político”, estavam afirmando algo que ainda procede. Há políticas de gênero em nossos
relacionamentos e decisões mais íntimos. As lutas não são suscetíveis à tentativa de
apagar o que havia antes; as complexidades são muitas, o preço da mudança pode ser alto
e, às vezes, ficamos cansadas e só queremos nos esquecer disso. Mas essa política da
intimidade está sempre no plano de fundo da política da esfera pública e não pode ser
abandonada”. (194-195)
CRESCER GENERIFICADO: A SOCIALIZAÇÃO EM PAPÉIS SEXUAIS E A
PSICANÁLISE
Quando a teoria dos papéis sexuais era o principal quadro dos estudos de gênero, havia
uma visão bem direta sobre como as pessoas adquirem o gênero. A ideia era de que os
“papéis sexuais” eram adquiridos pela socialização. Diversos “agentes de socialização”,
notavelmente a família, a escola, os grupos de convivência e a mídia de massas, tomavam
nas mãos a criança em desenvolvimento. Por meio de um número imenso de pequenas
interações, esses agentes transmitiam à menina ou ao menino as “normas” sociais ou
expectativas de comportamento. Isso poderia ser feito ao imitarem “modelos” admirados,
como um pai pode ser para um menino; ou poderia ser feito de maneira gradual. A
cumplicidade com as “normas” levaria a recompensas ou “sanções positivas”. (195)
Com reforços positivos e negativos, a maioria das crianças aprenderia o comportamento
apropriado a seu gênero, internalizando as “normas”. (196)
Há algo a ser dito sobre essa história de como o gênero é adquirido, mas também há muito
problemas com ela; tão severos, na verdade, que o modelo da socialização deveria ser
abandonado. É muito monolítico (o mundo não consiste em culturas bem
homogeneizadas). O moderno de socialização em papéis de gênero toma por normativo
aquilo que é dominante. Há sempre múltiplos padrões de masculinidade e feminilidade
para complicar o processo de aprendizado (p.196)
Em segundo lugar, o modelo de socialização supõe que aprender o gênero seja uma
questão de adquirir traços, isso é, regularidades de caráter que produzem regularidades
de comportamento. Em terceiro lugar, o modelo de socialização pressupõe que o aprendiz
seja passivo e os agentes de socialização, ativos. O modelo de socialização parece deixar
escapar o prazer que é óbvio em boa parte do aprendizado de gênero, a resistência com
que muitos jovens enfrentem as definições hegemônicas do gênero e a dificuldade em
construir identidades e lidar com padrões de conduta de uma ordem de gênero marcado
pelo poder, violência e por sexualidades alienadas. Em quarto, o modelo de socialização
reconhece apenas uma dimensão de aprendizado. (198)

UM BALANÇO MELHOR: APRENDIZADO CORPORIFICADO

Um bom balanço sobre como adquirimos o gênero precisa reconhecer ambas as


contradições do desenvolvimento e o fato de que os aprendizes são ativos, não passivos.
Precisa reconhecer a ação dos corpos no mundo social, uma vez que o aprendiz ativo é
corporificado. Precisa reconhecer o poder e a complexidade das instituições que ocupam
o mundo do aprendiz. Precisa oferecer uma visão sobre as competências de gênero
aprendidas e os diferentes projetos de vida nos quais são usadas. Precisa reconhecer a
mudança histórica a respeito de todas essas coisas. (p.199)

Em alguma medida, o prazer envolvido em aprender o gênero é um prazer corporal, um


prazer na aparência e na performance do corpo. Mudanças corporais como a menarca, a
primeira ejaculação, a mudança da voz dos meninos e o desenvolvimento dos seios nas
meninas são importantes, mas seus significados seguem sendo ambíguos até que recebam
uma definição pelo simbolismo de gênero da sociedade. (p.199)
Visto que a prática de gênero envolve corpos, mas não é biologicamente determinada, o
comportamento aprendido pode ser hostil ao bem-estar físico dos corpos. (200)
O modelo de socialização estava certo sobre a importância da família, da escola e da
mídia da vida das crianças, mas falhou em reconhecer a complexidade interna dos regimes
de gênero dessas instituições. (200)
Em uma escola, professores e grupos de colegas apresentam um leque de padrões variados
de masculinidade e feminilidade às crianças (200)
Muito do aprendizado de gênero dos jovens consiste em aprender o que podemos chamar
de competência de gênero. (201)
Jovens também aprender como se distanciar de certa identidade de gênero (202)
O aprendizado de gênero toma vários formatos. Desde cedo, nesse processo, o que é
aprendido é conectado com outras partes do aprendizado. As crianças aprendem sobre –
e criam em suas próprias vidas – configurações das práticas de gênero em suas vidas
pessoais às quais chamamos “feminilidade” e “masculinidade”. (202)
Configurações de gênero, sendo padrões de atividade, não estáticas. A masculinidade e
feminilidade são “projetos”. São padrões de uma projeção para a vida a partir do presente,
para o futuro, trazendo novas condições ou eventos à existência. (202)
Essas trajetórias usuais da formação de gênero são o que os pesquisadores assimilam
como padrões de masculinidade e feminilidade nas histórias de vida e em pesquisas
etnográficas. (203)
Projetos de gênero não são unidimensionais nem agradáveis, podendo envolver custos
bastante altos. (203)
A diversidade de masculinidades e feminilidades mostrada por muitas das pesquisas sobre
gênero implica diferentes trajetórias de formação de gênero. Desigualdades de classe,
diversidade étnica, diferenças regionais, origem nacional e migração criam diferentes
experiências de infância. Mudanças sociais cruciais podem alterar relações entre pais,
mães e crianças. (204)
Conforme a ordem de gênero muda, novas trajetórias se tornam possíveis. (205)
Talvez a forma mais comum de compreender a presença do gênero na vida pessoal seja
por meio do conceito de “identidade de gênero” (206)
O conceito de “identidade de gênero” formulado por Stoller levou, então, a uma
concepção de identidade como algo necessariamente plural em vez de unitário. (207)
A tendência tem sido, então, falar em múltiplas identidades de gênero e sexuais. Alguns
psicólogos, por exemplo, mapearam os estágios de aquisição de uma “identidade
homossexual”. O conceito de identidade tem sido cada vez mais usado em reinvidicações
de indivíduos sobre quem são em termos de suas diferenças em relação a outros (p.209)
As pessoas se tornam membro de um movimento social ao reivindicar uma identidade
que o movimento representa. (p.209)
Mesmo as identidades que os movimentos sociais têm tomado por base, demonstram ser,
investigando de perto, menos sólidas do que se pode pensar. (p.209)

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