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IN SILENTIUM

Cum tacet, haud quicquam differt sapientibus amens: Stultitiae est index linguaque
voxque suae. Ergo premat labias, digitoque silentia signet. Et sese Pharium vertat
in Harpocratem.

Escreveu Alciato: Quando se cala o nécio, em nada se diferencia dos sábios. Pois
que o índice de sua estultícia está na sua língua e voz. Tão logo, portanto, guarde
silêncio, cerrando com os dedos o lábio, se converterá num outro Harpócrates.
Comentário:
A rasa ignorância, com ser rasa, não encontra contrário que a impeça de vazar pela
boca fora. Heitor Pinto, humanista português, por isso que falava da discreta
ignorância, alertou os asnos em pele de Thóth. A curiosidade instintiva, sem mais
guia que o apetite leva aos sucessos do pai Adão. E quão longe está a curiosidade
nécia da do filósofo, que se não impressiona com o primeiro movimento de
espanto. O falar e buscar ambos são da mesma parelha. A natureza de um parece
buscar o outro. A ignorância do sábio escuta e a do estulto, fala e grita.
Emblema LXIV
IN EVM QVI IPSI DAMNVM APPARAT

Capra lupum sponte meo nunc ubere lacto, quod male pastoris provida cura iubet.
Creverit ille simul, me me post ubera pascet: Improbitas nullo flectitur obsequio.

Em vulgar, Alciato: Eu, a cabra, dou meu leite e este lobo agora crio com minha
teta, não de minha vontade, mas por obra de meu descuidado pastor, pois que
apenas haja crescido a fera, serei eu seu pasto, depois de o ter sido minhas tetas. A
maldade não se abranda com nenhum obséquio.

Comentário: Mui a propósito o rifão castelhano: “Cría cuervos y te sacarán los


ojos”. Donde o acerto daquilo que disse Diego López, que nenhuma coisa pode ter
o homem pior que o desagradecimento, pelo que fazer bem ao ingrato é obra
perdida. Tal o significado primeiro da cabra que alimenta seu algoz.

O símil é grego, e por isso prenhe de significação. Amamentar o feroz matador


com o leite das próprias tetas o mesmo é dizer que delir a própria vida em cuidados
para com o futuro matador. Não poderia haver expressão mais forte. Pois que, em
geral, em a natureza, as fêmeas alimentam (alere) a própria cria, não a alheia.
Tomar para si o ingrato, portanto, fazendo-lhe obséquios longe está da caridade
verdadeiramente cristã.

É verdade que hoje se derribou a virtude da caridade e em seu lugar imperante se


entronizou um simulacro, que há nome filantropia. Instituição essa que tem
restabelecido o sono aos pecuniosos. Mas o problema é ainda anterior, e repoisa
na hierarquia das virtudes. Desde há muito se olvidou que a prudência é mãe das
mais virtudes (“prudentia dicitur genitrix virtutum”). Isto, contudo, não é de hoje,
e pode ser rastreado já em Francisco de Vitória e João de Santo Tomás, como bem
apontou Pieper. Geralmente nascem os grandes erros doutrinais quando se trocam
às coisas seus lugares, reservados cuidadosamente pelo Criador (ou pela Natura
aos incréus). Pois que Deus formou o mundo debaixo de três proporções: “Omnia
in numero, et pondere, et mensura disposuisti”; a saber: conta, peso e medida.
Medidas há que não são para esquecidas, tal o caso da prudência.
A verdade do que se diz aqui pode ser autorizada por Salomão, que mandara
atássemos a Lei de Deus nos dedos de nossa mão: Liga eam in digitis tuis. Tal
passagem nada tem de obscura, com a claridade de Dionísio Cartusiano: “Liga eam
in digitis; idest operibus cum discretione associa”... Cortando o símil, e
simplificando o que de metafísico há que diferencia mãos e dedos, poder-se-ia
sintetizar: Atar-se a Lei de Deus não só na mão, senão especialmente nos dedos,
porque na mão se significa só o obrar, nos dedos, o obrar com discrição. Eis aqui
a parábola dos talentos. Deus não pede que façamos tudo, mas pede façamos cada
um conforme suas forças e conforme seu ofício e préstito. Aqui se nos depara um
dos mais graves problemas da intelectualidade contemporânea, a
proporcionalidade. Quando falece o senso das proporções, está a razão humana
ameaçada, pois que a mesma razão é dotada de medida, por isso que é regra
(regula) dos atos humanos.

A volta foi grande, mister é retornar. A fábula toca na diferença entre o bonum
utile e o bonum honestum, em se tratando da prudência. Aqui está, portanto, a
pedra lídia, que há de separar a moderação pequeno-burguesa do ideal cristão de
homem prudente. Numa prudence francesa de mais de século quem sabe
aprenderíamos com La Fontaine a evitar o perigo fugindo às ocasiões que o gerem.
Mas hoje seria prudente ajudar a todos que nos fazem dano, sob pena de incorrer
num dos ismos que pululam no imaginário dos sedizentes cultos. Tal espírito
mórbido se deixa ver sobretudo na grande questão do encarceramento. Querem
eles que sejamos todos gordas cabras, alimentando os devoradores capitaneados
pelas mais poderosas facções do país. Logo, o problema propriamente de ordem
filosófica, o bem da prudência não está no honesto, que é a natureza do objeto a
que tende a ação, mas sim na forma. Assim pode passar por prudência a cobardia
de se alimentar o próprio algoz, sem cortar pela raiz o mal (bom é que se entenda
figurativamente, por não achar aqui o desprevenido um “fascismo”).

Ora, a virtude nada mais é do que uma capacidade perfeita. Logo, quem diz
prudência, diz necessariamente capacidade perfeita de decisão. Pelo que não pode
haver Justiça, Temperança e Caridade sem poder de decisão. É por isso que Santo
Tomás, lido na antiga moralidade, não duvidou dizer: “Omnis virtus moralis debet
esse prudens” (ou seja, toda virtude é necessariamente prudente).

Dada a definição de prudência, é de notar que a razão prática atuante nela é uma
consciência da situação – consciência circunstancial. Assim, está relacionada aos
meios e caminhos, à província das realidades concretas, pelo que se diferencia do
senso moral. Logo, na medida em que a prudência é uma consciência,
A fábula da cabra pode parecer banal. Ela, contudo, encerra não só a cosmogonia
dum povo, mas seu padrão moral. É verdade que se pode resumir a fábula a um
comentário raso, atacando uma generalidade, ou seja, atacando o ingrato. Mas isto
nada tem de ver com filosofia. O julgar da cabra encerra um mundo, porque o
fabular pressupõe realidade. Como dissera o escritor português Rebelo da Silva: O
que se conta de outros como fábula, acontecera-lhe a ele em realidade.

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