Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
1
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e
06 de agosto de 2014, Natal/RN.
2
Este trabalho contou com o auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq).
1
Por esse caminho, a “paisagem” pode ser aproximada a uma categoria de
pensamento, organizada conforme sentidos coletivamente compartilhados. Isso nos leva
a uma segunda consideração: não é possível atribuir validade universal a esta categoria.
Enquanto parte de contextos específicos de significação, a concepção de
“natureza” articulada por tais imagens corresponde a sentidos que necessariamente
variam. Sentidos que, em linhas gerais, dizem respeito a concepções de “espaço” e de
“entorno”.
Diante disso, a problematização da “paisagem” aqui proposta será realizada a
partir de duas frentes: a histórica e a teórica.
De um lado, serão examinadas algumas formulações do geógrafo, orientalista e
filósofo Augustin Berque a esse respeito. Elas partem de duas referências centrais: o
verbete “paisagem”, de sua autoria, inscrito no Dictionnaire des sciences humaines
(2006); e o artigo “Paysage, milieu, histoire”, do livro
Cinq propositions pour une théorie du paysage (1994). Trata-se, como veremos, de um
exercício de historicização deste termo.
De outro, a perspectiva teórica do antropólogo Tim Ingold sobre a “landscape”
será trazida para um diálogo com Berque. Essa discussão tem como base algumas
formulações centrais do autor presentes nos livros The perceptions of the environment
(2000) e Being Alive (2011).
O embate entre as abordagens desses dois autores produz como efeito um
estranhamento em relação à “paisagem”. Torna-se claro como não é possível confiná-la
em termos de sentidos precisamente delimitados. Por essa razão, propõe-se percorrer o
caminho oposto: a saber, “abrir” esta categoria, conformando-a como alvo de
indagações interessadas em sua qualidade de “categoria nativa”.
2
Participa de uma parcela importante de tais contribuições um olhar histórico
sobre o termo “paisagem”. Conforme sugere Maderuelo (2005), as origens da palavra
“paisagem” dizem respeito a nomenclaturas administrativas de territórios e províncias.
Remeteria a uma época relativamente recente seu enquadramento nos termos de uma
percepção “pictórica” de espaços naturais. Esta mudança nos sentidos articulados pela
palavra “paisagem” teria origem em um distanciamento capaz de conformar o entorno
como objeto de contemplação. “Paisagem”, por este caminho, remeteria menos às
formas dadas de um ambiente natural do que a uma determinada capacidade de
olhar, cultivada nos mesmos termos que a habilidade de ler e apreciar obras de
arte (Maderuelo, 2005).
A idéia da paisagem como produto de um olhar “socialmente construído” pode
ser identificada na atenção direcionada por Norbert Elias aos processos de
transformação característicos da França do século XVII. O fenômeno social
do deslocamento em direção à vida na corte e, mais adiante, nas grandes cidades, se
faria acompanhar de uma percepção diferente em relação à vida campestre, tornada
objeto de uma contemplação distanciada e fundamentalmente nostálgica. O autor
remete a esta experiência de ruptura em relação ao campo a emergência de
uma sensibilidade romântica em direção a ambientes naturais, em termos da qual estes
passam a ser apreciados como “paisagem”:
Por sua vez, é na produção de pinturas de paisagens que esta sensibilidade será
desenvolvida (Maderuelo 2005, Schama 1996), conformando um gênero pictórico
autônomo. Não é possível, no entanto, reduzir às imagens de natureza assim produzidas
toda a transformação envolvida na formação de um “olhar paisagista”. Nicolas Green o
remete à condição insalubre da vida nas metrópoles: a seu ver, esta experiência estaria
relacionada a uma outra percepção do campo, agora tido como fonte de saúde (Green,
1996).
Seriam estes os fundamentos sociológicos da proliferação tanto de pinturas de
paisagem quanto de fenômenos que lhe seriam contemporâneos, tais como o
crescimento do turismo e da valorização da vida fora da grande cidade. Porém, tomar
3
a paisagem como fruto de um olhar socialmente construído não parece suficiente para
responder a todas as perguntas que o uso deste termo implica.
Afinal, por mais construídas que sejam, paisagens são vivenciadas como
realidades que existem para além da subjetividade de quem as contempla. Ao recusar
seu estatuto de objeto, a paisagem por tais abordagens parece recair em outro extremo.
Como então explicar este fenômeno?
Antecipando algumas questões centrais sobre esta temática, as idéias de Simmel
em “A Filosofia da Paisagem” (1913) conformam uma perspectiva que pode servir
como antídoto a esta ambivalência, entre dimensões subjetivas e objetivas – ou
“naturais” e “construídas” – nas quais as reflexões sobre paisagem tenderiam a recair.
Simmel propõe uma perspectiva que parte de certa distância em relação aos dois
referidos extremos, e os torna foco de problematização.
A seu ver, somente em termos analíticos se poderia falar da paisagem com base
em uma distinção entre dimensões objetiva e subjetiva. De acordo com ele, a paisagem
é sim efeito de uma construção – mas de uma construção entendida como
um trabalho complexo, que consiste em um processo espiritual de composição estética.
Este trabalho efetua a mediação entre a “projeção” e a “experiência” da paisagem.
Nas palavras do autor, “a nossa consciência, para além dos elementos, deve
usufruir de uma totalidade nova, de algo uno, não ligado às suas significações
particulares nem delas mecanicamente composto – só isso é a paisagem” (Simmel,
2009:p.5).
A paisagem, de acordo com Simmel, emerge de um trabalho de composição que
produz fenômenos da experiência como totalidade. Para explicar este processo, o autor
lança mão da idéia de stimmung. O termo, traduzido como “disposição anímica”
(2009:13), se refere ao elemento deste trabalho de composição responsável pela
sensação de inseparabilidade entre a experiência subjetiva e o caráter objetivo do
entorno. Esta composição se dá no interior do exercício cotidiano da contemplação,
dizendo respeito a uma capacidade abrangente de o espírito operar e compor
esteticamente – capacidade que, de modo algum, estaria restrita ao exercício do pintor
de paisagens:
4
está viva e se tornou operante, por embrionária que seja, a forma
artística” (Idem:11).
É nesse sentido que, conforme o autor argumenta, não seria possível situar na
Antiguidade ou na Idade Média um “sentimento de paisagem”: “o próprio objeto ainda
não existia nessa decisão psíquica e nessa transformação autônoma” (2009:7).
5
forme symbolique de l’émergence du monde moderne, objectifié sous
le regard de se sujet.3” (Idem).
3
(...) a perspectiva terá sido a ‘forma simbólica’ da emergência do sujeito moderno.
Correlativamente, a descoberta da paisagem terá sido a forma simbólica da emergência do
mundo moderno, objetivado sob o olhar desse sujeito. (minha tradução)
4
“(...) a visão naturalista da paisagem como um pano de fundo neutro e externo às atividades
humanas, e a visão culturalista de que toda paisagem é uma ordenação cognitiva ou simbólica
específica de espaço” (minha tradução).
6
Sua perspectiva sobre a paisagem se insere nessa crítica. Ela remete a um
posicionamento que, mais adiante, será definido pelo autor através da noção de
“lógica de inversão”. Conforme sugere em Being Alive (2011):
“By way of inversion, beings originally open to the world are closed
in upon themselves, sealed by an outer boundary or shell that protects
their inner constitution from the traffic of interactions with their
surroundings. (…) Life having been, as it were, installed inside things,
I want to restore these things to life by returning to the currents of
their formation.” (2011:p.68)
5
“Como chegamos a tal conceito abstrato e rarefeito para descrever o mundo em que vivemos?
Meu argumento é que ele resulta da operação do que denominei lógica de inversão. (...) Em
poucas palavras, a inversão transforma as trajetórias em termos das quais a vida é vivida em
fronteiras dentro das quais é encerrada.”(2011:145) – minha tradução.
7
Um ponto que merece ser destacado é que esta concepção de paisagem
não se refere exatamente a “entorno” ou “ambiente”6. Antes, “paisagem” diria respeito à
forma assumida pelo ambiente enquanto interação entre organismos, cuja
forma específica corpo deriva desse engajamento. Por sua vez, Ingold lança mão da
idéia de taskscape para designar a forma que seria gerada através da execução, por parte
dos seres humanos, de suas atividades, nas quais é preciso a todo momento dirigir a
atenção ao entorno.
A taskscape conforma um passo na direção de introduzir o tempo na paisagem –
não um tempo cronológico ou histórico, mas sim aquele no qual as tasks se
desenvolvem. Por este caminho, o autor acrescenta a idéia de movimento à de paisagem,
que se encontraria em permanente formação dentro de um
entrelaçar de temporalidades, correspondentes às tasks eciclos dos variados organismos
em interação uns com os outros.
Por esta perspectiva, não faria sentido tomar a paisagem como uma forma
concluída e, assim, sujeita à contemplação. Tampouco se poderia dizer que seres
humanos atuam sobre um mundo constituído. Ambos constituem-se mutuamente, e suas
formas são geradas nesse movimento. Nesse sentido, falar em “paisagem” implica
necessariamente falar em tempo. Nas palavras do autor,
“in dwelling in the world, we do not act upon it, or do things to it;
rather, we move along with it. Our actions do not transform the world,
they are part and parcel of the world’s transforming itself. And that is
just another way of saying that they belong to time.” (2000:200)7.
6
“(...) to think of environment in this sense is to regard it primarily in terms of function, of what
it affords to creatures (…) with certain capabilities and projects of action. Reciprocally, to
regard these creatures as organisms is to view them in terms of their principles of dynamic
functioning, that is as organized systems (...). The concept of landscape, by contrast, puts the
emphasis on form (…)”(2000:193).
7
“(...) ao habitar o mundo, não agimos sobre ele, ou fazemos coisas a ele; antes, nos movemos
junto com ele. Nossas ações não transformam o mundo, elas são parte e parcela da
transformação em si do mundo. E isso é apenas outra forma de dizer que elas pertencem ao
tempo” – minha tradução.
8
representação de paisagem é também submetida a uma releitura: o autor elege a obra A
colheita, do artista Pieter Bruegel, como uma pintura capaz de reunir as propriedades
da landscape por ele concebida8.
Este é um ponto importante, já que ele traz a possibilidade
de a “paisagem” como “pintura” não remeter estritamente a uma concepção “cartesiana”
de entorno. Representações pictóricas de paisagem podem ser encontradas em contextos
simbólicos que dificilmente podem ser aproximados à chamada “lógica de inversão”.
A paisagem à chinesa
8
É interessante considerar que este pintor constitui um dos precursores do paisagismo
flamengo, correspondendo a uma percepção “ainda não autonomizada” de paisagem.
9
ainsi parcourue d’um écheveau de lignes de forces, qu’un même trait de pinceau a filé
au cours des siécles de poème em image, poursuivant l’intention du paysage et
l’accomplissement du monde.” (1994:21).
A “paisagem à chinesa” segundo Berque dispõe de certos aspectos que podem
ser aproximados aos da landscape de Ingold. Não parece simplesmente possível atribuir
a tal experiência de paisagem a lógica cartesiana, na medida em que a noção de
distanciamento que a subjaz não possui lugar nesta cosmologia. Vale ressaltar que, a
esse respeito, Berque afirma que a oposição entre “mundo físico” e “mundo fenomenal”
seria inconcebível no caso da China clássica. Aqui, a cosmologia e a paisagem sempre
se confirmariam reciprocamente (1994:24).
É importante, por sua vez, lembrar que Berque segue um horizonte específico ao
focalizar a pintura de paisagem na China clássica. Ele problematiza o pressuposto da
universalidade da paisagem. O autor se interessa em desestabilizar a percepção objetiva
da paisagem como substrato universal – herdada pelas ciências humanas das naturais –
para, através da abordagem histórica, concebê-la como uma dentre outras modalidades
possíveis de percepção e interação com o entorno.
A seu ver, a “paisagem” não seria uma forma universal de percepção do
mundo. Ele enumera cinco critérios que determinariam a existência ou não da categoria
paisagem em diferentes sociedades. São os seguintes: a existência de tratados sobre
paisagem; de uma ou mais palavras designando esta noção; de representações pictóricas
de paisagem; evocações literárias da mesma; e, finalmente, de
jardins ornamentais (2006:857).
Partindo desses critérios, apenas o Ocidente moderno e a China clássica
poderiam ser apontados como civilizações paisagistas. No que diz respeito a outros
contextos sociais e simbólicos, o autor sugere que o modo como neles se interage com o
entorno deve ser investigado nos termos específicos em que é concebido.
Neste ponto, a natureza das formulações de Berque não se distancia muito de
uma proposição teórica sobre a paisagem. Ao lançar critérios para avaliar sua presença
em diferentes cosmologias, o autor delineia limites para uma definição desse termo.
10
antropológico, o que exatamente se pode aprender, com base em uma conceituação
teórica da “paisagem”, a respeito do modo como nas diferentes sociedades as pessoas
concebem sua relação com o entorno?
Sugiro que, se pensada em termos etnográficos, esta questão pode trazer como
efeito a possibilidade de a “paisagem” ser investigada enquanto uma “categoria nativa”
ou, em outras palavras, enquanto termo que articula modos de imaginar a relação com o
entorno.
Se conformada como uma “categoria nativa”, a “paisagem” pode servir de
entrada a diferentes experiências de entorno. Os efeitos desta perspectiva para a
abordagem histórica são familiares à Antropologia: o que esta categoria, assim
focalizada, pode elucidar são “modalidades” de conceber o entorno que, longe de se
restringirem a determinadas épocas e lugares, podem ser surpreendidas nos mais
variados contextos (Lévi-Strauss, 2008).
Este ângulo permite iluminar aspectos que distinguem a “paisagem” na China
clássica da “paisagem” na Europa moderna. Por mais numerosas e convincentes que
sejam suas similaridades, há diferenças evidentes entre as concepções de entorno
articuladas pela idéia de “paisagem” em cada uma dessas cosmologias.
Ao ser adotada, a perspectiva etnográfica sobre a “paisagem” traz ainda um
efeito de distanciamento em relação ao conteúdo de abordagens teóricas. Enquanto uma
“categoria nativa”, a “paisagem” que participa de tais elaborações pode ser vista como
parte de uma determinada lógica de entorno.
Com base nesta consideração, podemos lançar certas perguntas à “teoria da
paisagem” de Tim Ingold. Até que ponto sua “landscape” remete unicamente a um
diálogo com uma lógica cartesiana de entorno, comportando nada mais que o resultado
de uma intenção de criticar a percepção ocidental e moderna de “paisagem”? De onde,
afinal, esta crítica emerge? Será que não possui fundamento em uma determinada
experiência de entorno?
Ao desenvolver suas proposições teóricas, Ingold com freqüência se inspira em
experiências anteriores de descrição etnográfica. Há algumas passagens em sua obra que
colocam em relevo o provável “fundamento etnográfico” de suas idéias: nelas, ele
menciona aspectos do trabalho de campo que realizou junto a lapões. No entanto, na
conformação da “landscape” esta inspiração não aparece de forma explícita.
Talvez a “paisagem” teorizada por Ingold diga respeito à experiência de entorno
específica de um contexto etnográfico. Pode ser que, ao constituir a categoria
11
“paisagem” em termos de noções como as de “engajamento” e “processo”, o
antropólogo esteja se empenhando em uma tentativa de oferecer, à lógica moderna de
“espaço” e “natureza”, uma experiência “outra” de entorno.
Este modo de se valer da etnografia pode, por sua vez, ser problematizado. Além
de ser remetida a uma determinada “lógica nativa”, a definição de “paisagem” proposta
por Ingold pode ainda ser submetida a historicização.
Se aproximado à perspectiva teórica de Ingold, o olhar histórico de Berque é
capaz de situá-la em um contexto discursivo mais amplo, caracterizado por um
panorama de reflexões interessadas em elaborar sob novos sentidos a relação entre seres
humanos e entorno no ocidente moderno.
De acordo com o autor, a emergência simultânea da fenomenologia e da
ecologia no século XX evidencia o desenvolvimento de uma perspectiva “relacional”
sobre o entorno. Trata-se de um efeito da gradual conformação de uma postura crítica
diante das rupturas do paradigma dualista e substancialista instituído a partir do século
XVII. Por este caminho, a percepção da paisagem como uma forma “externa” oferecida
à visão cederia cada vez mais lugar à sua concepção como entidade relacional. De
acordo com Berque, a paisagem surge com a modernidade, mas é morta por ela
(1994:23).
A seu ver, a dilaceração do mundo como, de um lado, físico e, de outro,
fenomenal o engajaria em rupturas que tenderiam a torná-lo insustentável. A percepção
moderna, cartesiana, de entorno, se apresenta por esta perspectiva como “uma utopia
que pretendeu substituir a unidade real do mundo ambiente” (Idem:25).
Se aproximada a esta abordagem, a “paisagem” de Ingold se revela então como
parte de reflexões interessadas em conceber o entorno por caminhos diferentes em
relação à lógica cartesiana. Por sua vez, a historicização de Berque exibe contornos
teóricos capazes de, em alguns sentidos, aproximar suas idéias às de Ingold. Lançando
mão da noção de “meio” para designar a relação de uma sociedade com seu
entorno, Berque propõe uma releitura da noção de paisagem através de uma perspectiva
que reintegre dimensões “subjetiva” e “objetiva”. Nas suas palavras, “le paysage
n'existe en dehors de nous, qui non plus n'existons pas hors de notre paysage.
C'est porquoi parler du paysage est toujours quelque peu une autoréférence” (1994:27).
12
Referências Bibliográficas
Berque, A. “Paysage, milieu, histoire” In: Cinq propositions pour une théorie du
paysage. Paris. ChampsVallon. 1994.
________.“Paysage”. In: Le dictionnaire dessciense humaines.Paris.PUF.2006.
Green, N. “Looking at the landscape: class formation and the visual”. In: The
Anthropology of Landscape. (EricHirsch; Michael O’Hanlon. Eds.). London: Clarendon
Press, 1996.
13