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Parte IV:

Prescrições de
Doutores Raiz 1

Zora Neale Hurston2

A medicina folk é praticada por um grande número de pessoas. Nos “trabalhos”, isto
é, nas serrarias, alambiques de aguarrás, nos campos de mineração e usualmente entre as
camadas mais baixas, os médicos [do sistema oficial] não são chamados para prescrever
remédios para doenças sociais. Quase todos os curandeiros praticam “raízes”, mas alguns
dos doutores raíz não são doutores hoodoo3. Um desses últimos em Bogalusa, Louisiana, e
um em Bartow, Florida, gozam de uma enorme clientela. Eles fazem remédios e multidão de
pessoas brancas e de cor procuram ansiosamente suas curas. As seguintes são algumas
prescrições colhidas por aqui e por ali em Flórida, Alabama e Louisiana:

1
N da T: O seguinte texto faz parte de Mules and Men, uma coleção de relatos autoetnográficos da autora, publicada no ano 1935.
Em primeiro lugar, chama a atenção o impulso autoetnográfico como forma de construção epistemológica diametralmente oposta
da construção do cânone antropológico masculino, europeu, cis e fundado na elaboração sistemática de uma arquitetura científica
baseada na neutralidade. Por outra parte, vale a ressalva efetuada pela professora Sandra Fernandez Erikson nas reuniões do
projeto RECânone: as receitas – tanto as culinárias quanto as medicinais – são saberes eminentemente femininos que dificilmente
foram considerados importantes dentro da construção dos clássicos antropológicos. Porém, consideramos que há nas entrelinhas
destas narrativas uma gramática cultural de extraordinária riqueza para a problematização antropológica. As notas de tradução
que contém os nomes de espécies animais e vegetais, assim como remédios, foram revisadas a partir da relação aproximada entre
as denominações próprias da região e seus correspondentes científicos ou especializados.
2
Zora Hurston, Mules and men [1935], Harper & Collins Ebooks. Part IV. Prescriptions of root doctors. P. 281 - 85. Tradução de
Ana Gretel Echazú Böschemeier dentro do projeto RECânone/PROEX 2019.2/UFRN. Email para contato: gretigre@gmail.com.
Correção e contextualização do texto por parte de Nicole Washburn - Antropóloga da Arizona University. Email para contato:
nicolewashburnart@gmail.com. Revisão do português: Maria Clara Fernandes dos Santos – Graduanda em Ciências Sociais UFRN.
Email para contato: mariaclarasf_@hotmail.com
3
N da T: Hoodoo é uma forma tradicional de magia popular afro-americana praticada nas Américas. Seu praticante é chamado de
conjure (conjurador) ou rootwoker (raizeiro).
GONORREIA
a. Cinquenta centavos de iodeto de potássio em dois quartos de água. Ferver até ficar
um quarto da mesma. Adicionar duas colheres de sais de magnésio. Engolir a grandes sorvos
três vezes ao dia.
b. Cinquenta centavos de iodeto de potássio e um quarto de salsaparrilha4. Tomar três
colheres de chá, dissolvidas na água, três vezes ao dia.
c. Uma boa mão cheia de raízes de maracujá; um quartilho de xarope de cana5; meia
tampa de fumo tabaco de mascar [marca] Brown’s Mule bem cortado. Adicionar cinquenta
centavos de iodeto de potássio. Tomar três vezes ao dia, como tônico.
d. Torrar cascas de ovo, misturar com água e beber o chá.
e. Para Running Range6: Pegar a raiz da amora preta armênia7, capim8, e colocar juntos
para ferver. Colocar uma pitada de óxido azul9 e uma pitada de sabão de lavar roupas.
Despejar tudo isso em um quarto de água. Beber meio copo três vezes ao dia e beber meio
copo de água após.
f. Um quarto de água, um punhado de raiz de amora10, uma pitada de alume, uma
pitada de sabão amarelo. Ferver juntos. Finalmente, adicionar nove gotas de aguarrás. Beber
essa água até que ela desça na bexiga.

SÍFILIS
a. As cinzas de um bom cigarro, cinquenta centavos de valor para pomada azul 11.
Misturar e colocar nas feridas.
b. Pegar o coração de um tronco podre e pulverizá-lo finamente. Amarrá-lo em um
pano de coar. Lavar as feridas com um bom sabão de castela e colocar o pó do caule em cima
delas.
c. Quando há ereção sem orgasmo (buboes12), cubra as áreas inchadas com uma
mistura de aracnídeos13 amassados, isso ajudará a que aconteça [a ejaculação].
d. Pegue um chiclete de bola, cigarro, refrigerante e arroz. Queime o chiclete e o
cigarro e torre o arroz. Reduza isso a pó. Passe pela peneira e misture com vaselina. Está

4
N da T: Smilax aspera. Nesse e nos casos que seguem, temos procurado as espécies botânicas que mais se assemelhavam à
descrição dada pela autora, vingando no sul dos Estados Unidos.
5
N da T: Sorghum vulgare.
6
N da T: Tipo específico de gonorreia (clap).
7
N da T: Rubus armeniacus.
8
N da T: Genérico sheepweed, “erva de ovelha”, no original.
9
N da T: Provavelmente óxido de ferro.
10
N da T: Morus nigra.
11
N da T: Provavelmente esteja se referindo ao “Blue Star Ointment”, um remédio popular de farmácia elaborado na base de
cânfora, analgésico local e Aloe vera.
12
N da T: No original, blue balls e depois a sua versão oralizada, buboes.
13
N da T: No original, daddy-long-legs e granddaddies. Provavelmente da espécie Pholcidae, comuns nas casas de madeira.
pronto para ser usado. e. Ferva a casca do carvalho vermelho14, raiz de sabal15, raiz de figo16,
duas pitadas de alúmen de potássio, nove gotas de aguarrás, dois quartos de água junto e
reduzir ao fogo até um quarto. Beber meio copo cada vez (não beber outra água).

PARA PROBLEMAS NA BEXIGA


Um pingo de água fervente, duas colheres de linhaça, duas colheres de cremor tártaro.
Beba meio copo pela manhã e meio copo à noite.

FÍSTULA
Casca de árvore-do-estoraque17 e verbasco18 cozidos em banha. Fazer um bálsamo.

REUMATISMO
Pegar folhas de verbasco (cinco ou seis) e deixe de molho em um quarto de água. Beba
três ou quatro copos (do tamanho dos de vinho) por dia.

INCHAÇO
Óleo de rosa branca19 (quinze centavos), óleo de lavanda20 (quinze centavos), Jockey
Club21 (quinze centavos), madressilva22 (quinze centavos). Esfregar.

PARA COMBATER CEGUEIRA


a. Colocar junto poeira de ardósia e açúcar em pó. Soprar nos olhos (Ele deve estar
finamente pulverizado para remover a película).
b. Procure alguém para caçar um bagre. Tire a sua bile e coloque-a em uma garrafa.
Pingue uma gota em cada olho. Tire uma parte da pele. Assim, ficará limpo.

14
N da T: Quercus coccínea.
15
N da T: Serenoa repens.
16
N da T: Ficus carica.
17
N da T: Liquidambar styraciflua.
18
N da T: Verbascum thapsus, também chamado de “pavio da bruxa”.
19
N da T: Rosa alba.
20
N da T: Lavandula angustifólia.
21
N da T: Provavelmente produto comercial. Origem desconhecida.
22
N da T: Lonicera japônica.
TRISMO23
a. Tire a unha. Bata na ferida e tire dela todo o sangue que for possível. Então pegue
um pedaço de bacon, um pouco de tabaco e uma moeda de um centavo e amarre-os à ferida.
b. Tire a unha e leve ela até uma árvore verde que esteja do lado da saída do sol, e
sarará.

FLUXO24
Uma noz moscada ralada, uma pitada de alum em um quarto de água (cozimento).
Beber meio copo três vezes, todos os dias.

DOENTE DA BARRIGA
Faça um chá de arroz torrado e folhas de louro (seis). Beba um copo de cada vez. Não
beba outro tipo de água.

ATAQUE NERVOSO25
Pegue uma moeda de prata de um quarto que tenha a cabeça de uma mulher.
Coloque-a de cabeça para cima numa caneca e encha-a até a metade de leite doce. Adicione
nove partes de alho. Ferva e dê para beber após coar.

REMÉDIO PARA PURGAR


Chá de Jack of War26 , uma colher. Colocar em um copo d á́ gua com uma pisca de
bicarbonato e já está pronto para ser bebido.

PERDA DO JUÍZO
Folhas de azeda27, folhas de louro, raiz de salsaparrilha. Pegue a casca e corte-a
finamente. Faça um chá. Pegue uma colher desse chá e coloque-o dentro de dois copos
d´água, coe e adoce. Separe um pouco para você beber e dê outro pouco para o paciente.
Coloque uma folha de figueira e carvalho venenoso28 em um sapato. (Pegue as folhas da

23
N da T: Contractura dolorosa da musculatura da mandíbula.
24
Nota da autora: Menstruação [abundante].
25
Nota da T. No original, coisas vivas na barriga.
26
N da T: É possível que seja cannabis, como homenagem a Jack Herer, o Imperador da Cannabis Norte-Americana que serviu na
Guerra da Coréia. Mais informações: https://www.leafly.com/news/politics/searching-jack-herer-emperor-american-cannabis.
Acesso em 23-08-2019.
27
N da T: Rumex acetosa
28
N da T: Toxicodendron diversilobum.
figueira de uma árvore que não tenha dado frutos. Arranque-as sem que ninguém saiba
disso).

PARA FAZER UM TÔNICO


Um quarto de vinho, três pingos de arroz cru, três de pó de canela (perto de uma colher
de chá cheia), cinco peças pequenas de casca de granada29 de mais ou menos o tamanho de
uma unha, cinco colheres de sopa de açúcar. Após ferver, deixe assentar por meia hora e
peneire. Dosagem: uma colher de sopa. (Quando chegar à estação das granadas, colha todas
as cascas que você possa para poder usar em outros momentos do ano).

VENENOS
Há vários estágios do envenenamento. Quando um doutor raiz diz para um dos seus
pacientes “Você tem sido envenenado até quase morrer”, isso não significa necessariamente
que o veneno tenha sido engolido. Ele pode querer dizer isso, mas essas ocasiões são raras.
Geralmente está se referindo a que algum trabalho tem sido realizado no paciente. O
paciente pode ter sido: (1) “enterrado no cemitério”; (2) “jogado no rio”; (3) “pregado de
uma árvore”; (4) colocado dentro de uma serpente, coelho, sapo ou galinha; (5) enterrado
no seu próprio quintal; (6) ou pendurado e castigado. Suco de beladona30, extrato de uva-de-
rato31, e suco de algodão bravo32 têm sido usados como venenos vegetais, assim como
aranhas, vermes e insetos pulverizados são usados como venenos animais. Tenho ouvido de
um caso em que o saco de veneno da cascavel foi colocado no balde de água de um inimigo.
Mas esse tipo de envenenamento é raro. É firmemente mantido que nesses casos o saber do
médico comum não pode fazer bem nenhum aos pacientes. O que ele precisa é um doutor
de “duas cabeças”. Isto é, um doutor raiz.
Em alguns casos, o homem hoodoo realiza a cura onde o médico comum falha, pois a
fé trabalha com ele. Frequentemente, o paciente está em boa forma. Ele tem medo de ter
sido enfeitiçado, e não há nada que o médico comum possa fazer para remover esse medo.
Além disso, alguns venenos de uma ordem mais baixa, como aqueles vindos de répteis
decompostos e similares, não foram listados na farmacopeia Americana. O médico comum
nunca irá suspeitar sobre a presença deles e não estará preparado para tratar ao paciente
caso ele se encontre naquela situação.

29
N da T: Punica granatum.
30
N da T: Atropa belladonna.
31
N da T: Phytolacca americana.
32
N da T: Ipomoea carnea.

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