Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Há vários modos, que são interligados, de examinar meu tema, as relações entre
o uso de substâncias psicoativas, as “drogas”, e a criação poética. Prosseguindo o que já
examinei em outra ocasião1, destaco cinco dentre eles:
1. O inventário de quem tomou o que (por exemplo, a droga e os poetas
vitorianos);
2. Relatos de efeitos das drogas, como aqueles de Thomas de Quincey,
Theóphile Gautier e Charles Baudelaire;
3. A droga presente, diretamente ligada à criação poética, como em
“Kublah Khan” de Samuel Taylor Coleridge e inúmeros outros poemas,
inclusive de Allen Ginsberg e outros poetas beat, e de Henri Michaux;
4. O debate promovido por autores que tomaram drogas sobre a legalidade
ou não desse hábito; as críticas ao tratamento policial, notadamente em
Antonin Artaud, Allen Ginsberg e Octavio Paz;
5. A experiência das drogas constitutiva de uma poética ou uma estética,
como em Baudelaire, Ginsberg, Michaux, Paz.
Tratarei do último desses tópicos. Mesmo assim, o assunto sobra. Possibilitaria
um ciclo de palestras ou curso que ainda pretendo ministrar. Mas não deixarei de passar
pelos demais, além de abrir com um poema de Baudelaire que, expressando uma poética
e uma visão de mundo, também pode ser lido como relato sobre a experiência da droga.
É o “Hino à beleza”:
1
Palestra “Drogas e literatura” promovida pelo Coletivo DAR no auditório da Escola de Enfermagem da
USP a 20 de agosto de 2013, registrada em http://www.youtube.com/watch?v=3MirDCbFxOQ e
http://www.youtube.com/watch?v=9omYAf8XBVI A gênese dessa palestra foi minha declaração, quando
da proibição da “Marcha da maconha” em 2011, de que aceitaria convites para tratar do tema.
2
2
Todos os peomas de As flores do mal na tradução de Ivan Junqueira.
3
diversidade de substâncias, éter (que ele já havia usado bastante) e maconha inclusive,
terminando com capítulos sobre como é enlouquecer.
Também interpretaria outros poemas de Baudelaire através do mesmo
procedimento. Todos aqueles nos quais é proclamada a gnose da poesia, a identificação
romântica de poesia e conhecimento, desde o início da série “Spleen e Ideal” que abre
As Flores do Mal:
3
Sobre Davy, http://en.wikipedia.org/wiki/Humphry_Davy
4
Também é pista beat haver chegado, através do excelente The Beat Hotel de
Barry Miles, ao Impasse du Doyenné em Paris : um beco que não existe mais, adjacente
à atual Rue de Rivoli, na altura do Louvre; ponto de encontro dos « Jeune France » ou
« bouzingots » (bebuns, em português corrente4), românticos radicais que, em um
casarão arruinado, promoviam reuniões temperadas com bebidas, ópio e haxixe. Relata
Miles :
É com efeito neste período da embriaguez que se manifesta uma finura nova,
uma acuidade superior em todos os sentidos. O olfato, a vista, o ouvido, o tato
participam igualmente desse processo. Os olhos visam o infinito. O ouvido
distingue sons quase inapreensíveis no meio do mais vasto tumulto. É então que
começam as alucinações. Os objetos exteriores tomam lentamente,
sucessivamente, aparências singulares; deformam-se e transformam-se. Depois,
chegam os equívocos, os enganos e as transposições de idéias. Os sons
revestem-se de cores, e as cores contém uma música. Dir-se-ia que tudo isso é
natural e que qualquer cérebro poético, em estado são e natural, concebe
facilmente essas analogias. Mas eu avisei já o leitor de que não havia nada de
positivamente sobrenatural na embriaguez do haxixe; simplesmente, as analogias
ganham então uma vivacidade não acostumada; o penetram, invadem, esmagam
o espírito sob o seu caráter despótico. (p. 382)
“Os sons revestem-se de cores, e as cores contém uma música”: mas Baudelaire
não disse isso em outras passagens de sua obra? Sim – inclusive no matricial soneto
“Correspondências”:
7
É o poema das sinestesias, dos cheiros que são cores que são sons que são
sensações táteis, lembranças e emoções Como observei em outras ocasiões
(especialmente em Willer, 2008 e 2010), correspondências nunca foram, para
Baudelaire, fenômenos restritos à esfera da percepção, associações que habitam a
sensibilidade exacerbada do poeta. Ele as via como propriedades do “templo”, o
“bosque de segredos”. Compunham a organização oculta da realidade, com o valor de
princípios que regem o Universo.
Há mais sobre correspondências em Os paraísos artificiais. No capítulo
seguinte, intitulado “O Homem-Deus”, relata como o espetáculo “mais natural e trivial”,
o primeiro objeto visto, se torna “símbolo falante: Fourier e Swedenborg, um com as
suas analogias, o outro com as suas correspondências,5 encarnaram-se no vegetal e no
animal que surge diante de vossos olhos e, em lugar de ensinarem pela voz, doutrinam-
vos pela forma e pela cor.” (p. 391) Deveria grifar “pela forma e pela cor”: o binômio é
uma chave da crítica de arte de Baudelaire.
Associado ao êxtase, o paralelo entre o poeta e o mago (justificando o que foi
observado sobre cosmovisão): “A gramática, a própria árida gramática, torna-se
qualquer coisa como uma feitiçaria evocatória, as palavras ressuscitam revestidas de
carne e de ossos.”
Baudelaire passaria a vida repetindo a fórmula ou princípio das
correspondências. Está em outros poemas de As flores do mal – naqueles em
homenagem à mulher amada ou desejada, de exaltação do corpo, como “O Perfume”,
5
Os itálicos são de Baudelaire.
8
A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma
comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas.
Quanto mais as relações das duas realidades aproximadas forem distantes e
justas, tanto mais a imagem será forte, mais força emotiva e realidade poética ela
terá. (Breton, 2001, p. 35)
[...] não se pode silenciar quanto ao fato de que Baudelaire havia fumado o
haxixe, e que havia lido E. T. A Hoffmann e Charles Fourier.
É, ao que parece, por volta de 1843 que Baudelaire se dedicou ao haxixe. Ele
terá visto, na Presse do 10 de julho de 1843, o artigo de Gautier sobre a
embriaguez produzida por essa droga. Na segunda vez, nota o célebre
folhetinista, “meu ouvido se havia prodigiosamente desenvolvido; eu escutava o
10
barulho das cores. Sons verdes, azuis, amarelos chegavam-me por ondas
perfeitamente distintas.” por sua vez, e nas mesmas condições, Baudelaire
experimenta, diz ele em 1851, “os equívocos os mais singulares, as
transposições ... as mais inexplicáveis... Os sons têm uma cor, as cores têm uma
música.
Ele reencontra assim, favorecido pelo excitante artificial, as sinestesias às quais
a leitura de Hoffmann o havia familiarizado. (Pommier 1932, p. 6)
Sem recorrer ao ópio, quem não viveu essas horas admiráveis, verdadeiras festas
para o cérebro, em que os sentidos mais atentos percebem sensações mais
vibrantes, em que o céu de um azul mais transparente se afunda como um
abismo mais infinito, em que os sons tilintam musicalmente, em que as cores
falam e os perfumes evocam mundos de idéias? Pois bem, a pintura de Delacroix
me parece ser a tradução desses belos dias do espírito. Ela está revestida de
intensidade e seu esplendor é privilegiado. Como a natureza percebida por
nervos ultra-sensíveis, ela revela o sobrenaturalismo. (p. 787)
Passagens como essas induzem a ver Baudelaire saindo diretamente de uma das
sessões do Clube dos Haxixins de Gautier, qual hippie precursor, antecipando o
“desregramento dos sentidos” de Rimbaud, excitado, talvez com o branco dos olhos
estranhamente avermelhado, no estado que ele descreveu – “Aquela palidez, os lábios
recolhidos, os olhos dilatados!” (p. 379) – para apreciar quadros expostos em salões,
museus e galerias.
Com relação a outras ocasiões em que tratei do assunto, desta vez trago a
experiência alucinógena para o centro da questão. Talvez não exagere, ao fazê-lo.
Sabemos, através da observação da vida e do que se passa ao redor, que algumas
tragadas, mesmo da prosaica e popularizada maconha de hoje, podem desencadear
mudanças; essas incluem desde a euforia, êxtase e iluminação até – e aqui cabe emitir
sinais de alerta – distúrbios sérios. Mas, não obstante a suposição haver sido endossada
por estudiosos, cabe alguma discussão. Terá mesmo o uso de haxixe e ópio contribuído
tão decisivamente para desencadear uma revolução estética? Nessa hipótese, atribuindo-
se tamanha importância às drogas psicoativas, essas provocaram um terremoto, uma
sucessão de revoluções – mais ainda em épocas recentes, quando, a despeito da
proibição, se ampliou o repertório e oferta não só de maconha, mas de LSD, cogumelos,
daime etc.
11
Nas suas Confissões, De Quincey afirma com razão que o ópio, em lugar de
adormecer o homem, o excita, mas que só o excita na sua via natural e que,
assim, para julgar das maravilhas do ópio, seria absurdo referir-se alguém a um
vendedor de bois, pois este só sonhará com bois e pastagens. (p. 389)
***
Deixemos que os perdidos se percam: temos mais o que fazer que tentar
recuperação impossível e ademais inútil, odiosa e prejudicial. Enquanto não
conseguirmos suprimir qualquer uma das causas do desespero humano, não
teremos o direito de tentar a supressão dos meios pelos quais o homem tenta se
livrar do desespero. (Artaud 1983, p. 24)
O vizinho de Kerouac, morador no mesmo prédio de paredes de adobe, era Bill Garver,
parceiro de Burroughs em roubar bêbados, furtar em restaurantes e traficar. Marginal
culto: “na cadeia, ele era sempre o bibliotecário, é um grande erudito, de muitas
maneiras. Com um interesse maravilhoso por história e antropologia e tudo relacionado
com a poesia simbolista francesa, acima de tudo Mallarmé”. Citando Garver, Kerouac
trata de assistência a dependentes:
MANDALA
Deuses dançam em seus próprios corpos
Novas flores se abrem esquecendo a Morte
Olhos celestiais acima do desconsolo da ilusão
Eu vejo o alegre Criador
Faixas se elevam em um hino aos mundos
Bandeiras e estandartes tremulando na transcendência
Uma imagem permanece no final com miríades de olhos na Eternidade
16
Não deixa de ser perturbador que a desaparição das potências divinas coincida
com a aparição das drogas como doadoras da visão poética. O demônio familiar,
a musa ou o espírito divino cedem o lugar ao láudano, ao ópio, ao haxixe e, mais
recentemente, às drogas mexicanas: o peiote (mescalina) e os cogumelos
alucinógenos. A Antiguidade conheceu muitas drogas e as utilizou com fins de
contemplação, revelação e êxtase. O nome original dos cogumelos sagrados do
México é teononáncatl, que quer dizer “carne de deus, cogumelo divino”. Os
índios americanos e muitos povos do Oriente e África ainda empregam as drogas
com fins religiosos. Eu mesmo, na Índia, em uma festa religiosa, tive
oportunidade de provar uma variedade do haxixe chamada bhang; todos os
participantes, sem excluir as crianças, comeram ou beberam essa substância. A
diferença é a seguinte: para os crentes essas práticas constituem um rito; para
alguns poetas modernos e para muitos pesquisadores, uma experiência. (p. 141)
Será ... ? Ou, no caso de alguns poetas modernos, a resposta a essa disjuntiva,
culto ou experiência, não seria “ambos”?
Mas havia dito que passaria por cima de tudo isso que acabo de comentar – e
que ainda pretendo examinar em maior detalhe. Mais importante é o que nos oferece o
comparatismo literário. Em especial, confrontar o que Baudelaire escreveu a respeito
em Paraísos Artificiais e um relato capital de Ginsberg, na entrevista à Paris Review.
Aliás, o que Ginsberg conta sobre contemplar quadros de Cézanne pode até mesmo
ajudar a compreender mais do que ocorreu com Baudelaire diante de obras de Delacroix
e outros que o impressionaram; ou, reciprocamente, Baudelaire entenderia
perfeitamente do que Ginsberg falava:
parte o efeito que se tem quando alguém mexe numa veneziana, reverte as
venezianas – há uma mudança repentina de luz, um vislumbre nas telas de
Cézanne. Isso ocorre algumas vezes quando as telas se abrem para a terceira
dimensão e se parecem com objetos sólidos no espaço, não planos, mas
tridimensionais. E também são os enormes espaços que se abrem nas paisagens
de Cézanne. E é em parte essa qualidade misteriosa ao redor de suas figuras,
como a sua mulher ou os jogadores de cartas, ou o carteiro, ou quem quer que
seja, um dos personagens locais de Aix. Eles algumas vezes parecem enormes
bonecos de madeira tridimensionais. Muito bizarro, muito misterioso. (Cohn, p.
132)
É a gênese de uma poética e um poema: “Eu usei muito desse material nas
referências do final da primeira parte de Uivo: a “sensação de Pater Omnipotens
Aeterna Deus.” A última parte de Uivo foi uma homenagem à arte; e, especificamente,
uma homenagem ao método que descobri em Cézanne.”
Havia citado as observações de Breton sobre arrancar os “subentendidos
espiritualistas” da analogia. Ginsberg os restaura – mas na forma de religiosidade
herética, não-institucional, pessoal, como seguidor que foi de Blake.
O relato da descoberta de Cézanne e das petites sensations ocupa umas sete
páginas da edição consultada de sua entrevista. O pintor, para Ginsberg, ao reproduzir
algo, “está olhando para seus próprios olhos”; supera a dualidade de sujeito e objeto; é
um santo, no sentido panteísta do termo no poema “Nota de rodapé para Uivo”; um
yoguin; o criador de telas que equivalem a haicais. Assim, através da contemplação e
estudo de Cézanne, Ginsberg chegou a uma formulação análoga à imagem poética de
Reverdy aqui citada:
19
De alguma maneira, adaptei o que pude dele ao ato de escrever. Mas isso é muito
complicado para explicar. Exceto que, pondo de maneira simples, como Cézanne
não usa linhas de perspectiva para criar espaço, mas justapõe cor em cima de
outra cor (é um elemento do seu espaço), eu tive a idéia, talvez um pouco hiper-
refinada, de que pela inexplicada falta de linhas de perspectiva, pela justaposição
de palavra sobre palavra, pode-se criar um espaço entre palavras – como um
espaço em branco na tela – onde a mente preencheria com a sensação de
existência. Trocando em miúdos, quando Shakespeare diz “No terrível vazio e
meio da noite”, algo acontece entre “terrível vazio” e “meio”. Isso cria um
inteiro espaço de breu noturno. É muito estranho como ele consegue isso,
através dessas palavras postas juntas. (p. 136)
Tudo isso serve para banir a superstição de que Ginsberg e outros beats eram
incultos, supondo incompatibilidade de boemia desenfreada e pesquisa – aliás, a pecha
também havia sido aplicada a Baudelaire, por Maxime du Camp (conforme cita
Benjamin em seu ensaio famoso). Mas o importante é mostrar como Ginsberg projetou
as justaposições de Cézanne para expressar-se através de imagens poéticas:
BIBLIOGRAFIA:
ARTAUD, Antonin: Escritos de Antonin Artaud, tradução, notas e prefácio de Claudio
Willer, Porto Alegre: L&PM, 1983 (e reedições);
21