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A viabilidade do jornalismo cidadão na mídia brasileira

Guilherme Felitti

Professor Luís Carlos Petry


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Tecnologias da Inteligência e Design Digital
Priscila Aprígio está caída no chão de bruços, com a blusa branca empapada por uma poça de
sangue que se forma na altura dos seus pulmões e uma multidão de desconhecidos ao seu redor,
falando alto e procurando ajuda em telefones celulares.

É março de 2007. A estudante de 13 anos havia sido baleado em questão de minutos na saída de
uma agência bancária no bairro do Ibirapuera, onde uma frustrada ação rápida de assalto ao banco
acabara em tiroteio entre os responsáveis pelo crime e agente da Polícia.

Priscila havia sido (mais uma) vítima de uma bala perdida e sua história estava, nos próximos dias,
chegaria a milhões de brasileiros que não presenciaram a grotesca cena em uma tarde abafada de
São Paulo, por alguns telefones celulares nos bolsos de testemunhas.

No final da mesma semana, o tradicional programa Fantástico, da rede Globo, exibiu uma
reportagem exemplificando e explicando a história de Prisicila. Havia, porém, uma diferença
substancial em comparação aos quadros que juntavam celebridades do canal, assuntos políticos da
semana e a cobertura esportiva dos últimos dois dias.
http://jornalnacional.globo.com/Jornalismo/JN/0,,AA1474593-3586-645975,00.html

As cenas de Priscila eram amadoras. A reportagem de pouco mais de quatro minutos em horário
nobre da televisão brasileira não contava com imagens captadas por profissionais com anos de
estrada no manejo de uma câmera ou na apuração de detalhes no fervor do acontecimento.

Foram as imagens capturada, de maneira tosca e limitada, pelos celulares de três diferentes
testemunhas, que levaram a milhões de espectadores na noite daquele domingo, dia 4 de março de
2007, narrados com fatos contados pelas próprias testemunhas pelo programa.

Não é a primeira vez em que a grande mídia, estabelecida como principal provedora de informações
e notícias para um público acostumado ao papel de reles consumidor, usa conteúdo criado ou
captado pelo olhos da audiência.

A filmagem mais conhecido do assassinato do então presidente norte-americano John Kennedy, em


22 de novembro de 1963 em Dallas, foi registrada por Abraham Zapruder, um fabricante ucraniano
de roupas femininas nos Estados Unidos que resolveu filmar a passagem do político pela cidade por
ser partidário dos Democratas.
http://www.youtube.com/watch?v=1G_Zxup7esU

Mesmo que houvesse dezenas de câmeras na situação, foi a Böwe Bell & Howell de Zapruder que
apontava o melhor ângulo do momento em que a bala atirada por Lee Harvey Oswald entrou pela
parte de trás da cabeça de Kennedy, matando-o quase que automaticamente.

Tanto pela qualidade como pela amplitude do registro feito por Zapruder tornaram o filme de 26
segundos sem qualquer som a obra amadora mais valiosa da História ao ser comprada pelo governo
norte-americano por definitivo em 1999 por 16 milhões de dólares.
http://query.nytimes.com/gst/fullpage.html?res=9D0CE7D71730F936A3575BC0A96F958260

Pela combinação entre baixa penetração de câmeras, motivada ainda pela novidade que eram
filmadoras na época, com a importância do evento e a qualidade das imagens registradas, o caso de
Zapruder se mostra como uma rara exceção.
Outros vídeos amadores de grandes incidentes que merecem atenção na chamada Grande Mídia já
registrados não receberam tratamento financeiro condizente com a projeção dada pela mídia ao
material multimídia.

Exemplos não faltam. Há o vôo 4590 da Air France que teve o tanque de combustível estourado
após o choque do pneu da aeronave, furado por uma peça na pista de aterrissagem do Aeroporto
Internacional Charles de Gaulle, na França, capturado em chamas em plena queda pela câmera da
esposa de um caminhoneiro espanhol.
http://www.youtube.com/watch?v=BEHoaYMsP9Q

Há também as imagens de usuários do metrô londrino, fugindo desesperados pelos trilhos após um
ataque terrorista coordenado na capital da Inglaterra, em julho de 2005, que estão longe de primar
pela qualidade, seja pelo baixo sensor da câmera, pela empoeirado ambiente ou pela falta de
destreza do usuário, mas que trás a visão das vítimas sob uma ótica em que Grande Mídia se
mostrou incapaz de registrar nos antigos moldes de produção de conteúdo.

Adam Stacey foi o responsável pela imagem mais memorável dos incidentes que mataram 52
pessoas. Nela, Staceu cobre o nariz com a blusa na saída de um vagão do metrô, com as portas
semi-abertas ao fundo onde outros passageiros escapam para os trilhos.

Ao contrário da exclusividade do filme de Zapruder (ou da imagem em movimento do Concorde em


chama, negociado sob acordo secreto com agências de notícias), a foto de Stacey foi publicado na
sua conta do serviço Moblog e, por estar disponível sob um licença Creative Commons, pôde ser
publicada em jornais de todo mundo que só tinham de citar a fonte. Gratuitamente.
http://moblog.co.uk/view.php?id=77571

A audiência de transformou pelo simples acesso a tecnologia. O que o vídeo online “The future of
media” chama de prosumers (mistura dos termos em inglês “consumer” com “producer”) se
transforma em realidade a partir do momento em que mais de um bilhão de telefones celulares,
muitos deles com capacidades fotográficas, chegam ao mercado, segundo dados de 2007 da
consultoria Gartner.
http://www.casaleggioassociati.it/thefutureofmedia/
http://www.gartner.com/it/page.jsp?id=612207

A penetração de tecnologia faz também com que o “prosumer” adote suas próprias regras na hora da
divulgação de conteúdo. A massificação de ferramentas telecomunicações que permitem a captura e
registro de imagens estáticas e vídeo, além de sua publicação em tempo real, quebra o exclusivismo
que ajudou a dar o preço milionário ao vídeo de menos de trinta segundo de Zapruder.

Como diz Dan Gillmor em seu livro “We the media”. “Esta evolução - do jornalismo como palestra
para o jornalismo como conversa ou seminário – obrigará que várias comunidades se interessem e
adaptem. (...) Não podemos mais ter mais do mesmo. Não podemos mais tratar notícias como
commodity, amplamente controladas por grandes instituições. Não podemos mais, como sociedade,
limitar nossas escolhas”.

“Os blogs nunca vão tomar o lugar do jornalismo, mas vão continuar fazendo parte da paisagem.
Quanto ao jornalismo cidadão, vai constituir uma maneira rápida e eficaz de revelar um
acontecimento, mas nem por isso tornará obsoleto o jornalismo tradicional (Cauthorn, 2007,
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2503200711.htm)”, defende o pesquisador Robert
Cauthorn, demolindo uma potencial pretensão do jornalismo cidadão em substituir o jornalismo
tradicional.

A ascensão do jornalismo feito por amadores com ferramentas tecnológicas, classificado pelo nome
de “jornalismo cidadão”, exige também uma transformação no papel do profissional de imprensa,
empregado ou não pela Grande Mídia, que este artigo não se propõe a discutir.

A complementação do jornalismo tradicional com conteúdo criado ou captado pelos usuários exige
também, além da transformação do profissional da mídia de exclusivo criador a gerenciador de
diversas fontes, da introdução de um novo método comercial que lide com a avalanche de material
amador com pertinência jornalística frente ao modelo de negócios do veículo dentro da Grande
Mídia.

O grande foco da tese é estudar a viabilidade de serviços de compartilhamento de conteúdo criado


pelo usuário que se foca em material jornalístico que pode ser aproveitado por veículos tradicionais
no Brasil.

Estudo prévio deste novo modelo econômico aponta para três possíveis soluções dentro do atual
cenário jornalístico.

Por um lado, grandes conglomerados de mídia já estabelecidas no mainstream nacional vêm


experimentando a possibilidade de programas internos em que leitores são convidados a
compartilhar conteúdos captados, mediante um pagamento negociável.

Não são poucos os exemplos, tanto de programas do tipo como de aproveitamento de conteúdos
jornalísticos decorrentes destas iniciativas. O portal Globo.com, por exemplo, oferece pelo VC no
G1 a possibilidade de publicação de vídeos, em sua maioria, registrados pelo usuário que façam
sentido em cobertuas pontuais.

O VC no G1 já colocou no ar um vídeo de leitor mostrando uma casa em chamas após o acidente


com um jato que caiu na região de Santana, na Grande São Paulo, após levantar vôo do aeroporto
Campo de Marte no dia 5 de novembro de 2007.
http://g1.globo.com/VCnoG1/0,,MUL169467-8491,00-
VIDEO+LEITOR+FILMA+CASA+EM+CHAMAS+APOS+QUEDA+DE+JATO+EM+SP.html

Outro destaque, usado inclusive na página principal do portal Globo.com, foi a fotografia da
fumaça em forma de cogumelo formada por uma suposta explosão na Usina Elevatória de Traição,
que causou blecautes na Zona Sul de São Paulo no dia 04 de março de 2008.
http://chaquente.com/2008/03/04/jornalismo-cidadao-na-globocom-e-no-uol/
http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM798332-7823-
APAGAO+NOS+SINAIS+DE+TRANSITO+TUMULTUAM+TRANSITO+EM+SAO+PAULO,00
.html

Na segunda possibilidade, serviços que oferecem ferramentas online para que usuário compartilhem
conteúdo próprio podem se transformar em gigantescos diretórios de material multimídia passível
de contar com casos pontuais que podem ser aproveitados pelo jornalismo.

A popularidade do Flickr para fotos como do YouTube para vídeos coloca ambos os serviços,
comprados por Yahoo e Google, respectivamente, como os dois serviços potencialmente mais
relevantes para a publicação e popularização de jornalistas cidadãos.

Em 11 de outubro de 2006, o jogador de beisebol Cory Lidle chocou seu avião contra um prédio em
Nova York. Antes mesmo das agências de notícias terem fotos do acidente, o portal Yahoo usou
uma fotografia tirada pelo usuário Jonathan Keller dos dois andares do prédio em chamas para
ilustrar sua página inicial, o que fez com que o arquivo de Keller fosse visualizado mais de 10 mil
vezes em dias.
http://www.flickr.com/photos/83369484@N00/267217423
http://www.flickr.com/photos/83369484@N00/267217431/in/photostream/
http://www.nytimes.com/2006/10/11/nyregion/12crashcnd.html

O acordo, revelado em entrevista do fundador do Flickr, Stewart Butterfield, ao IDG News Service,
é o primeiro passo de uma estratégia que o serviço de fotografias deverá tomar no futuro,
automatizando o gerenciamento de arquivos para “tornar o processo ainda menos manual”
(Butterfield, 2007, http://pcworld.uol.com.br/reportagens/2007/03/13/idgnoticia.2007-03-
13.2276006135) e saber separar fotos que podem ser interessantes para determinados nichos
conforme suas necessidades.

Do lado do YouTube, o exemplo do estudante Jamal Albarghouti, que fez o filme onde pode-se
escutar os barulhos de tiros da Polícia que mataram o atirador Cho Seung-Hui dentro da faculdade
Virginia Tech, no massacre que resultou em 33 mortes em 16 de abril de 2007, é um dos mais
retumbantes.

O próprio YouTube traz imagens das reportagens da Grande Mídia que aproveitaram o conteúdo
captado por Jamal e de qualidade jornalística bastante questionável, mas que se provavam como o
registro mais próximo da ação suicida que qualquer câmera profissional havia registrado.
http://www.youtube.com/watch?v=ALKWV9t0mYI

Por fim, há serviços que se apresentam como plataformas que agregam conteúdo criado pelo
usuário e os oferecem a agências de notícias e veículos tradicionais, usando como modelo principal
de negócios uma porcentagem sobre a negociação dos materiais amadores.

“Quando sua foto é realmente quente – quer dizer, quando você tem um furo genuíno – nós a
venderemos por nosso sistema exclusivo de leilão para nossa extensa rede de contatos na mídia”,
explica o FAQ do francês CitizenSide. “Após a publicação inicial, faremos nosso melhor para
vender a foto de novo e de novo em acordos não exclusivos para diferentes publicações. Cada vez
(em que a foto for publicada), o responsável é pago”.
http://www.citizenside.com/index.aspx

Pelos termos do serviço, o CitizenSide fica com 15% de qualquer fotografia publicada por um
jornalista cidadão e vendida a veículos tradicionais. À primeira vista, a comissão parece tímida. A
questão é que tanto a natureza escalonável da internet como a crescente expansão de aparelhos
móveis com capacidades multimídia torna o setor como potencialmente vantajoso para a exploração
de centenas de diversos “furos”, como o serviço chama o material amador.

O CitizenSide, porém, é mais uma aposta do que um serviço consolidado – a principal dúvida sobre
sua viabilidade decorre da massa crítica que um serviço do tipo exige para que haja um número
mínimo de fotos (ou “furos”) que consiga não apenas sustentar a operação do serviço, mas, numa
espécie de círculo vicioso, remunere suficientemente o usuário que o tente a voltar ao CitizenSide.

Seria um modelo como o proposto pelo CitizenSide possível no mercado brasileiro de internet,
tradicionalmente minguado de investimentos de capital de risco e ainda bastante dependente de
outras operações que cubram prováveis prejuízos nos primeiros meses (ou anos) de operação de
novos empreendimentos (basta lembrar operadoras de telefonia financiando os primeiros grandes
portais brasileiros)?

O primeiro exemplo deste artigo, onde a bala perdida que atingiu Priscila Aprígio em São Paulo,
representa uma ousadia jornalística de um programa tradicional – ao confiar nas imagens feitas por
celulares, o Fantástico abre mão da qualidade em nome do exclusivismo das imagens obtidas.
Por mais que veículos online, como Globo.com, Terra, Estadão Online e UOL, e canais de TV,
como a Globo, estejam se arriscando na utilização do conteúdo como enriquecimento de apurações
feitas por jornalistas profissionais, o aproveitamento do conteúdo criado pelo usuário brasileiro
parece ainda restrito a programas específicos em que veículos preferidos pelo “prosumer” se
beneficiarão do seu conteúdo.

Uma contextualização mais detalhada da questão, acompanha pelo debate mais profundo sobre a
viabilidade comercial de serviços atrelados a grande conglomerados ou que se apresentem como um
intermediário entre “prosumer” e Grande Mídia, será apresentada na tese final do mestrando.

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