Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Alexandre Koyré, Karl Popper, entre outros, não atribuíam à ciência o caráter de
"instância última" do espírito humano. Estes, inclusive, afirmam que a ciência também
se alimenta de fatores não científicos e de princípios falseáveis, criticáveis. O
posicionamento de Olavo não é uma novidade no meio acadêmico.
Em seguida menciona os pressupostos que sustentam a ciência, cuja
observância, segundo o autor, não se dá por "testes científicos". Citaremos um pensador
caro a Olavo, Ortega y Gasset, para corroborar tal tese. "A ciência experimental é um
dos produtos mais improváveis da história" (GASSET, 1987, p.98). Destarte, sua
origem e desenvolvimento não são universalmente aceitos como necessários e alheios à
crítica. Mas Olavo não segue a argumentação histórica do espanhol, e sim uma análise
crítica do vocabulário científico.
"Só para dar um exemplo elementar, sem as palavras 'sim' e 'não' nenhum
raciocínio lógico é possível. Nenhuma ciência pode nos dizer o que
significam" (CARVALHO, 2009).
"Qualquer definição lógico-formal que se ofereça para elas [as palavras 'sim'
e 'não'] será sempre puramente tautológica, nada dizendo em si mesma e
baseando enfim toda a sua compreensão no apelo à experiência pessoal do
ouvinte ou leitor. Se dizemos, por exemplo, que o sentido de 'sim' é anuência,
concordância, aceitação etc., nada afirmamos exceto que dizer sim é dizer
sim. Do mesmo modo, o 'não' não pode ser definido como rejeição,
impugnação etc., pela simples razão de que o sentido dessas palavras consiste
precisamente em dizer não. O único significado possível da palavra 'sim' é o
da responsabilidade moral integral que uma pessoa assume ao declarar
alguma coisa" (CARVALHO, 2009).
1
seja, um método cujos resultados estão sujeitos a margens de erro, estatísticas, mas que
não deve ser abandonado ao menor sinal de vazamentos.
Olavo não considera, porém, o princípio kantiano segundo o qual "conceito sem
intuição é vazio, intuição sem conceito é cega"; mais precisamente a primeira parte. A
"responsabilidade moral" de quem afirma ou nega diz respeito à disposição do diverso
na intuição. E esse é o caminho que acreditamos que Olavo não tomou, deixando assim
sua argumentação manca de uma das pernas. Ele não considera o intellectus, a
inteligibilidade, e somente a razão. Voltaremos adiante a este problema.
Olavo continua seu raciocínio dizendo que termos como “igualdade”,
“diferença”, “causa” e “relação”, não podem ser definidos por "nenhuma ciência", e dá
a solução logo abaixo.
Ora, qual termo não é assim definido após o segundo Wittgenstein? Por qual
motivo “igualdade”, “diferença”, “causa” e “relação” perderiam seu valor dentro de um
glossário científico se sua constituição de sentido estivessem baseadas na realidade e em
sua experiência pelos indivíduos? Sobre o quê a razão decidirá sem seu correlato
intuitivo? Nos utilizaremos de uma citação de um livro didático, disponível para toda
escola pública no Brasil, evidenciando assim a postura antidogmática e antidoutrinária
de nossos professores, para embasar nossa argumentação contra este princípio olaviano.
Para Wittgenstein, "O termo linguístico não poderia mais ser explicado por meio de uma
análise lógica, mas apenas a partir de seu uso social" (COTRIM; FERNANDES, 2016,
p.315). Qualquer aluno de ensino médio que se interesse por filosofia sabe disso e não
há aqui discordância em relação ao texto de Olavo. Entretanto, se a intenção de Olavo é
lançar as bases de uma "gramática sintética a priori", nem Kant a subscreveria, uma vez
que o prussiano abre mão dos dados da psicologia, cuja fluidez e intermitência não
serviriam de base para nenhuma ciência1. Pode-se argumentar que Olavo não menciona
os dados da psicologia. O que seria então essa "experiência humana responsável"? Uma
experiência puramente metafísica? Estamos em terreno husserliano, portanto. Mas
Husserl não deixa de ser fenomenólogo e tudo mais o que o termo implica, se voltando
para a experiência intersubjetiva e concreta na fase final de sua vida, após perder muito
tempo em partes rarefeitas da filosofia. No que diz respeito aos assuntos tratados pelo
texto em questão, parece que Olavo está sozinho em suas convicções filosóficas.
2
ciência não trabalha com verdades universais e incontestáveis. Seus critérios são sempre
reavaliados.
"A teoria da ciência aristotélica tem como algo de básico que toda ciência
consiste de uma cadeia de proposições, que versam sobre os elementos de
determinado domínio, disposta de tal maneira que cada proposição ou é um
princípio (= proposição não demonstrada) ou é teorema (= proposição
demonstrada) dessa ciência. Por tal razão, a ciência não é constituída apenas
de proposições demonstradas. Uma proposição pode, segundo Aristóteles,
pertencer ao conhecimento científico seja porque é demonstrada, seja por
integrar o conjunto das verdades primeiras e fundamentais"
(ALCOFORADO, 1994, p.45).
Realmente há, em Aristóteles, toda uma cadeia de princípios que devem reger o
labor científico. Princípios estes que nem sempre passam por comprovação empírica, e é
justamente esta limitação que a ciência moderna tenta suplantar, buscando na realidade
a precisão que a axiomática aristotélica/escolástica impedia de ser alcançada. François
Jacob mostra essa mudança de postura que cientistas modernos - no exemplo citado, os
do ramo da biologia, mas que por extensão se aplica a todos os outros do mesmo
período - tiveram que encarar para superar a ideia de que a ciência possui um quadro
2
"Alguns intelectuais partem de uma proposição inicial, de uma certa expectativa, de uma proposta que
se apresenta a um problema específico [...] e, ao fim de seus empreendimentos, suas pesquisas os
conduzem a conclusões diametralmente opostas" (BARROS, 2017, p.15). A mesma ideia de hipótese
também se verifica em Aristóteles, que Olavo diz conhecer bem. "Na acepção técnica que lhe dá
Aristóteles, uma hipótese é a proposição que enuncia uma suposição de existência. As hipóteses são
princípios peculiares a cada ciência e que postulam (não provam) a existência do gênero que constitui o
objeto de investigação dessa ciência" (ALCOFORADO, 1994, p.49). Se Olavo se baseia em Aristóteles
para afirmar seja a posição hierarquicamente superior da razão ou da Filosofia em relação à ciência (pois
é guardiã dos conceitos de que a ciência se vale), seja o caráter falível da ciência justamente por se valer
de conceitos filosóficos que ela mesma não consegue dissecar, Olavo desconhece a natureza provisória,
portanto passível de erro e de reavaliações, das hipóteses que são, também em Aristóteles, princípios
anteriores à pesquisa científica. Se a ciência não deve ser "instância última e suprema no julgamento de
todas as questões públicas e privadas", tampouco a Filofia que estabelece o quadro referencial da ciência
(hipótese, proposição, princípio, etc.) que também pode ser reavaliado, porque sujeito a falhas, no
decorrer da pesquisa.
3
referencial que deve ser mantido intocado, por mais que as descobertas empíricas o
contradigam.
"Se os sistemas e o método possuem cada um sua lógica interna, esta não tem
nenhuma ligação com a realidade da natureza. Devem recorrer a um elemento
exterior que não se baseia unicamente na estrutura visível dos seres mas na
permanência desta estrutura através das gerações. O conceito de espécie
nasce, assim, no final do século XVII, da necessidade sentida pelos
naturalistas de fundar suas classificações na realidade da natureza" (JACOB,
1983, p. 57 - 58).
Olavo se esquece, porém, que a razão também possui uma história. Nas palavras
de Emerich Coreth,
4
não mais conhece por mediação conceitual, mas supraconceitualmente, de
modo imediato" (1973, p.46).
São Tomás de Aquino, muito caro a Olavo, já dizia que a razão, em termos de
apreensão das leis que regem o mundo (sendo ela a última palavra nos assuntos que lhe
dizem respeito, uma vez que a ciência, para Olavo, só trabalha no cercadinho que a
razão lhe reservou), é superada pelo inttelectus, que "é a capacidade mais elevada de
percepção espiritual imediata". Desassociá-los, todavia, é cometer erro mais grave.
Olavo diz que "o método científico se tornou independente da razão", embora
inverta as funções da razão e do inttelectus. A "totalidade", objeto da razão, para Olavo,
é, na verdade, objeto para o inttelectus, em Tomás de Aquino, uma vez que a ratio se
volta para a multiplicidade que está contida na totalidade. Se ratio é "a razão que
distingue, forma conceitos, delimita e separa as coisas, e, logo, está ordenada ao
limitado, mensurável e numerável", em quê ela difere do método científico, que se vale
da idiografia, da separação e decomposição das partes? A "infinitude" evocada por
Olavo está ligada não à razão, mas ao intellectus, que "é a faculdade de percepção
espiritual imediata, ordenada não mais aos opostos, mas à unidade, não mais ao finito,
mas ao infinito, e que não mais conhece por mediação conceitual, mas
supraconceitualmente, de modo imediato". Pode-se argumentar que Olavo apenas
inverte as funções dos pressupostos, que suas ideias acerca desses assuntos ainda têm
alguma validade; não obstante esta última frase: o inttelectus "não mais conhece por
mediação conceitual, mas supraconceitualmente, de modo imediato". O que significa
que o âmbito do inttelectus, da intuição, da percepção imediata e, porque não, da atitude
científica voltada para questões concretas, não é o âmbito da linguagem, do conceito. É
supraconceitual, ou seja, é território do "indizível", que Olavo toma por "místico".
Indizível porque novo, hipotético, ilimitado, anterior à conclusão racional que o
classifica, legando-o o estigma do "sim" ou do "não". Se "O conhecimento científico
[...] é uma subdivisão especializada da capacidade racional geral e tem nela o seu
fundamento, não podendo julgá-la por seus próprios critérios", é porque tais critérios,
tais conceitos, pertencem à razão, que está "ordenada ao limitado, mensurável e
numerável". Cabe a ela nomear, conceituar e mostrar a aplicabilidade dos conceitos
científicos na vida cotidiana. A ciência não está contra a razão. Alguns pensadores é que
não aceitam que a razão se torne rêmora da ciência (como defende Bachelard) ou da
História (como pensa Hegel, para quem a Filosofia é "coruja de Minerva que alça voo
somente no crepúsculo") . Não se trata de lhe atribuir um papel menor. Quem faz mais
pela saúde dos oceanos? Tubarões ou rêmoras?
Em seguida Olavo resume o que ele entende por prática científica, resgatando,
por fim, um princípio, no mínimo, cartesiano.
Impossível aqui não pensar nas ideias de Descartes (outro reformador dos
fundamentos da ciência, de seu vocabulário, enfim). Independentemente se Descartes
foi ou não o norte de Olavo nesta passagem de seu texto, o mundo subjetivo tomado
como ponto de partida de apreensão do mundo nos leva a uma supressão das diferenças
5
entre inttelectus e ratio - o mesmo problema enfrentado por Husserl em sua virada
transcendental.
Anteriormente citamos esta frase de Olavo: "o método científico se tornou
independente da razão". Se é a razão "que distingue, forma conceitos, delimita e separa
as coisas, e, logo, está ordenada ao limitado, mensurável e numerável", podemos
associá-la a ciência, como fizemos acima. Nesses termos, um dos gurus de Olavo,
Ortega y Gasset, estaria do lado de seu remoto discípulo.
"Me surpreende a facilidade com que se esquece, ao falar da técnica, que seu
coração é a ciência pura [...] Já se pensou em todas as coisas que precisam
continuar vigentes nas almas para que possam continuar existindo
verdadeiramente 'homens de ciência'? Será que se acredita de verdade que
enquanto existirem dollars existirá ciência? Esta ideia com que muitos se
tranquilizam não passa de mais uma prova de primitivismo" (GASSET,
1987, p.98).
6
"Será o historiador da ciência Alexandre Koyré a fornecer a explicação mais
convincente do atraso tecnológico do mundo clássico. Até mesmo os
engenheiros gregos e romanos, capazes de criar estruturas de incomparável
ousadia, foram incapazes de intuir a importância de aumentar e enobrecer a
experiência e a técnica (teknè) com a ciência (epistème), para transformá-la
assim em tecnologia" (MASI, 2014, p.265).
Após tantas incongruências, resta espaço para mais uma: os porta vozes da
ciência, "para as quais todos os discursos são válidos de algum modo" (CARVALHO,
2009) - nota-se aqui a referência ao desconstrutivismo pós moderno de um Derrida - são
os mesmos que proferem "proclamações absolutistas de 'fatos científicos' imunes a toda
discussão" (idem). Que autor bipolar da "desconstrução" é esse? Ao menos uma citação
seria esclarecedora.
7
"Há noções do senso comum que, do ponto de vista da práxis, podem ser tão
proveitosas quanto as do meio científico, dependendo do contexto em que se
aplicam" (COTRIM; FERNANDES, 2016, p.83).
Referências