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Comentário acerca do texto "A ciência contra a razão" de Olavo de Carvalho

Por Augusto Seixas. Historiador, mestre em Filosofia pela UFG e


Professor de escola pública.

Olavo de Carvalho, em texto intitulado "A ciência contra a razão" (Diário do


Comércio, 7 de janeiro de 2009), afirma, logo de início, que

"Aquilo que hoje se chama orgulhosamente de 'ciência', pretendendo-se com


isso designar a instância última e suprema no julgamento de todas as questões
públicas e privadas, nem é uma entidade univocamente reconhecível, nem
muito menos um conhecimento que tenha em si seu próprio fundamento".

Alexandre Koyré, Karl Popper, entre outros, não atribuíam à ciência o caráter de
"instância última" do espírito humano. Estes, inclusive, afirmam que a ciência também
se alimenta de fatores não científicos e de princípios falseáveis, criticáveis. O
posicionamento de Olavo não é uma novidade no meio acadêmico.
Em seguida menciona os pressupostos que sustentam a ciência, cuja
observância, segundo o autor, não se dá por "testes científicos". Citaremos um pensador
caro a Olavo, Ortega y Gasset, para corroborar tal tese. "A ciência experimental é um
dos produtos mais improváveis da história" (GASSET, 1987, p.98). Destarte, sua
origem e desenvolvimento não são universalmente aceitos como necessários e alheios à
crítica. Mas Olavo não segue a argumentação histórica do espanhol, e sim uma análise
crítica do vocabulário científico.

"Só para dar um exemplo elementar, sem as palavras 'sim' e 'não' nenhum
raciocínio lógico é possível. Nenhuma ciência pode nos dizer o que
significam" (CARVALHO, 2009).

Há aqui clara menção ao princípio da não contradição que, diga-se de passagem,


não se ocupa em definir o significado das palavras "sim" e "não", mas descartar
premissas indefiníveis, contraditórias. No entanto, este princípio já não corresponde à
realidade inaugurada pela relatividade, já pressuposta nos argumentos lógicos de
Antístenes, para quem "Sócrates é velho e jovem ao mesmo tempo". Desde meados do
século XIX até Bohr e Heisenberg, a ciência não se afasta, mas se vale daquilo que para
a lógica formal clássica seria considerado contradição.

"Qualquer definição lógico-formal que se ofereça para elas [as palavras 'sim'
e 'não'] será sempre puramente tautológica, nada dizendo em si mesma e
baseando enfim toda a sua compreensão no apelo à experiência pessoal do
ouvinte ou leitor. Se dizemos, por exemplo, que o sentido de 'sim' é anuência,
concordância, aceitação etc., nada afirmamos exceto que dizer sim é dizer
sim. Do mesmo modo, o 'não' não pode ser definido como rejeição,
impugnação etc., pela simples razão de que o sentido dessas palavras consiste
precisamente em dizer não. O único significado possível da palavra 'sim' é o
da responsabilidade moral integral que uma pessoa assume ao declarar
alguma coisa" (CARVALHO, 2009).

O relativismo ontológico de Willard Van Orman Quine não nega que a


linguagem está inserida num contexto. "Gavagai", por exemplo, pode significar várias
coisas, inclusive "coelho", numa língua que se deseja aprender, mas não há garantias de
certeza. Por isso a ciência é, para Quine, "um navio que se conserta em alto mar", ou

1
seja, um método cujos resultados estão sujeitos a margens de erro, estatísticas, mas que
não deve ser abandonado ao menor sinal de vazamentos.
Olavo não considera, porém, o princípio kantiano segundo o qual "conceito sem
intuição é vazio, intuição sem conceito é cega"; mais precisamente a primeira parte. A
"responsabilidade moral" de quem afirma ou nega diz respeito à disposição do diverso
na intuição. E esse é o caminho que acreditamos que Olavo não tomou, deixando assim
sua argumentação manca de uma das pernas. Ele não considera o intellectus, a
inteligibilidade, e somente a razão. Voltaremos adiante a este problema.
Olavo continua seu raciocínio dizendo que termos como “igualdade”,
“diferença”, “causa” e “relação”, não podem ser definidos por "nenhuma ciência", e dá
a solução logo abaixo.

"Podemos, é claro, fixar significados lógico-formais para essas palavras, bem


como para muitas outras, mas somente como um recorte convencional
operado em cima daquilo que elas significam na experiência humana
responsável" (CARVALHO, 2009).

Ora, qual termo não é assim definido após o segundo Wittgenstein? Por qual
motivo “igualdade”, “diferença”, “causa” e “relação” perderiam seu valor dentro de um
glossário científico se sua constituição de sentido estivessem baseadas na realidade e em
sua experiência pelos indivíduos? Sobre o quê a razão decidirá sem seu correlato
intuitivo? Nos utilizaremos de uma citação de um livro didático, disponível para toda
escola pública no Brasil, evidenciando assim a postura antidogmática e antidoutrinária
de nossos professores, para embasar nossa argumentação contra este princípio olaviano.
Para Wittgenstein, "O termo linguístico não poderia mais ser explicado por meio de uma
análise lógica, mas apenas a partir de seu uso social" (COTRIM; FERNANDES, 2016,
p.315). Qualquer aluno de ensino médio que se interesse por filosofia sabe disso e não
há aqui discordância em relação ao texto de Olavo. Entretanto, se a intenção de Olavo é
lançar as bases de uma "gramática sintética a priori", nem Kant a subscreveria, uma vez
que o prussiano abre mão dos dados da psicologia, cuja fluidez e intermitência não
serviriam de base para nenhuma ciência1. Pode-se argumentar que Olavo não menciona
os dados da psicologia. O que seria então essa "experiência humana responsável"? Uma
experiência puramente metafísica? Estamos em terreno husserliano, portanto. Mas
Husserl não deixa de ser fenomenólogo e tudo mais o que o termo implica, se voltando
para a experiência intersubjetiva e concreta na fase final de sua vida, após perder muito
tempo em partes rarefeitas da filosofia. No que diz respeito aos assuntos tratados pelo
texto em questão, parece que Olavo está sozinho em suas convicções filosóficas.

"Também não o pode a metodologia científica se tomar como pressuposto a


validade do conhecimento científico em vez de fundamentá-lo desde suas
raízes [...] O conhecimento científico — e mais ainda aquilo que hoje se
entende popularmente como tal — é uma subdivisão especializada da
capacidade racional geral e tem nela o seu fundamento, não podendo julgá-la
por seus próprios critérios" (CARVALHO, 2009).

É tarefa da filosofia sempre revisitar os pressupostos que fundamentam a


ciência, como o fizeram Kant, Husserl, Frege, entre outros. Do contrário, filosofia e
ciência seriam ainda áreas da teologia. Seu caráter incompleto é o que lhe dá validade. A
1
"Recorrer à psicologia, está dito no Curso de lógica [de Kant], seria 'tão absurdo quanto tirar a moral da
vida. Não se trata das regras contingentes (como pensamos), mas das regras necessárias que devem ser
tiradas do uso necessário ao entendimento de que sem nenhuma psicologia encontra-se em si'"
(CAVAILLÈS, 2012, p.4).

2
ciência não trabalha com verdades universais e incontestáveis. Seus critérios são sempre
reavaliados.

"Ou os termos usuais da linguagem científica expressam o conteúdo mesmo e


a própria estrutura do conhecimento científico, ou este último é em si um
conhecimento indizível e místico cuja tradução em palavras permanece
sempre externa, aproximativa e imperfeita" (CARVALHO, 2009).

Quantas vezes um cientista descobriu algo que não imaginava descobrir? Se a


linguagem científica comporta o saber científico, não haveriam revisionismos,
descobertas, surpresas ou novidades que ultrapassam os limites do vocabulário
científico, que, sim, sempre será aproximativo, pois palavras e coisas são instâncias
diferentes2. Nem por isso o saber científico é místico. A mística está ligada ao
hermetismo esotérico, e não exotérico. Se de início uma descoberta científica parece ter
natureza mágica, logo a própria ciência trata de desmistificá-la se estiver numa etapa em
que isso é possível. A mística, ao contrário, se contenta em permanecer no meio do
caminho. É certo que pensadores como Koyré mostraram a natureza mística das
convicções de homens como Copérnico, mas fez isso para evidenciar a mística também
presente em correntes de pensamento pretensamente materialistas, como o marxismo e o
positivismo. A ciência, como já foi dito aqui, se vale também de princípios não
científicos. É sabido que

"A teoria da ciência aristotélica tem como algo de básico que toda ciência
consiste de uma cadeia de proposições, que versam sobre os elementos de
determinado domínio, disposta de tal maneira que cada proposição ou é um
princípio (= proposição não demonstrada) ou é teorema (= proposição
demonstrada) dessa ciência. Por tal razão, a ciência não é constituída apenas
de proposições demonstradas. Uma proposição pode, segundo Aristóteles,
pertencer ao conhecimento científico seja porque é demonstrada, seja por
integrar o conjunto das verdades primeiras e fundamentais"
(ALCOFORADO, 1994, p.45).

Realmente há, em Aristóteles, toda uma cadeia de princípios que devem reger o
labor científico. Princípios estes que nem sempre passam por comprovação empírica, e é
justamente esta limitação que a ciência moderna tenta suplantar, buscando na realidade
a precisão que a axiomática aristotélica/escolástica impedia de ser alcançada. François
Jacob mostra essa mudança de postura que cientistas modernos - no exemplo citado, os
do ramo da biologia, mas que por extensão se aplica a todos os outros do mesmo
período - tiveram que encarar para superar a ideia de que a ciência possui um quadro

2
"Alguns intelectuais partem de uma proposição inicial, de uma certa expectativa, de uma proposta que
se apresenta a um problema específico [...] e, ao fim de seus empreendimentos, suas pesquisas os
conduzem a conclusões diametralmente opostas" (BARROS, 2017, p.15). A mesma ideia de hipótese
também se verifica em Aristóteles, que Olavo diz conhecer bem. "Na acepção técnica que lhe dá
Aristóteles, uma hipótese é a proposição que enuncia uma suposição de existência. As hipóteses são
princípios peculiares a cada ciência e que postulam (não provam) a existência do gênero que constitui o
objeto de investigação dessa ciência" (ALCOFORADO, 1994, p.49). Se Olavo se baseia em Aristóteles
para afirmar seja a posição hierarquicamente superior da razão ou da Filosofia em relação à ciência (pois
é guardiã dos conceitos de que a ciência se vale), seja o caráter falível da ciência justamente por se valer
de conceitos filosóficos que ela mesma não consegue dissecar, Olavo desconhece a natureza provisória,
portanto passível de erro e de reavaliações, das hipóteses que são, também em Aristóteles, princípios
anteriores à pesquisa científica. Se a ciência não deve ser "instância última e suprema no julgamento de
todas as questões públicas e privadas", tampouco a Filofia que estabelece o quadro referencial da ciência
(hipótese, proposição, princípio, etc.) que também pode ser reavaliado, porque sujeito a falhas, no
decorrer da pesquisa.

3
referencial que deve ser mantido intocado, por mais que as descobertas empíricas o
contradigam.

"Se os sistemas e o método possuem cada um sua lógica interna, esta não tem
nenhuma ligação com a realidade da natureza. Devem recorrer a um elemento
exterior que não se baseia unicamente na estrutura visível dos seres mas na
permanência desta estrutura através das gerações. O conceito de espécie
nasce, assim, no final do século XVII, da necessidade sentida pelos
naturalistas de fundar suas classificações na realidade da natureza" (JACOB,
1983, p. 57 - 58).

Essa "lógica interna" da ciência, previamente estabelecida independente da


realidade a qual se aplica, já não figura no labor científico atual, o que já deslegitima a
tentativa de Olavo de lhe dar uma nova vivacidade. Mas continuemos analisando o texto
de Olavo e o que aparentemente está em questão nele: o ato de abrir ou lançar mão da
intuição ou de seus dados no processo de construção do conhecimento.

"A razão é, em primeiro lugar, a capacidade de abrir-se imaginativamente ao


campo inteiro da experiência real e virtual como uma totalidade e de
contrastar essa totalidade com a dimensão de infinitude que a transcende
imensuravelmente. O finito e o infinito são as primeiras categorias da razão, e
não me refiro aos equivalentes matemáticos desses termos, que são apenas as
traduções deles para um domínio especializado. Dessa primeira distinção
surgem inúmeras outras, como inclusão e exclusão, limitado e ilimitado,
permanência e mudança, substância e acidente e assim por diante. Sem essa
imensa rede de distinções e inclusões que constitui a estrutura básica da
razão, o método científico seria um nada. É ainda mais estúpido imaginar
que, uma vez formado historicamente, o método científico se tornou
independente da razão e pode prescindir dela ou julgá-la segundo seus
próprios critérios. É a razão, e não o método científico, que confere sentido
ao próprio discurso científico, o qual por sua vez não pode dar conta dela no
mais mínimo que seja. A 'ciência' não pode jamais ser a autoridade última em
nenhum assunto exceto dentro dos limites que a razão lhe prescreva, limites
estes que por sua vez continuam sujeitos à crítica racional a qualquer
momento e em qualquer circunstância do processo científico" (CARVALHO,
2009).

Olavo se esquece, porém, que a razão também possui uma história. Nas palavras
de Emerich Coreth,

"Em Tomás de Aquino, ratio passa a significar a capacidade do pensamento


conceitualmente discursivo, ou seja, do pensamento racional no sentido mais
estrito de mediação e conclusões, enquanto que intellectus é a capacidade
mais elevada de percepção espiritual imediata, a capacidade de intuir o
imediatamente dado, o ser, as leis do ser e os conteúdos da essência. Mas os
dois elementos, em última análise, não se opõem, antes pertencem ao mesmo
todo e relacionam-se mutuamente, já que a imediatez do intelecto, pela
mediação da razão, deve chegar à expressividade conceitualmente articulada
e diferenciada. Assim, conforme S. Tomás, a ratio se refere à multiplicidade,
e daí procura chegar sinteticamente à unidade do conhecimento. O
intellectus, ao contrário, apreende imediatamente a unidade e totalidade, na
qual a multiplicidade está contida e a partir da qual deve ser desdobrada
analiticamente. A mesma dualidade é retomada por Nicolau de Cusa,
significando ratio a razão que distingue, forma conceitos, delimita e separa as
coisas, e, logo, está ordenada ao limitado, mensurável e numerável, ao passo
que intellectus é a faculdade de percepção espiritual imediata, ordenada não
mais aos opostos, mas à unidade, não mais ao finito, mas ao infinito, e que

4
não mais conhece por mediação conceitual, mas supraconceitualmente, de
modo imediato" (1973, p.46).

São Tomás de Aquino, muito caro a Olavo, já dizia que a razão, em termos de
apreensão das leis que regem o mundo (sendo ela a última palavra nos assuntos que lhe
dizem respeito, uma vez que a ciência, para Olavo, só trabalha no cercadinho que a
razão lhe reservou), é superada pelo inttelectus, que "é a capacidade mais elevada de
percepção espiritual imediata". Desassociá-los, todavia, é cometer erro mais grave.
Olavo diz que "o método científico se tornou independente da razão", embora
inverta as funções da razão e do inttelectus. A "totalidade", objeto da razão, para Olavo,
é, na verdade, objeto para o inttelectus, em Tomás de Aquino, uma vez que a ratio se
volta para a multiplicidade que está contida na totalidade. Se ratio é "a razão que
distingue, forma conceitos, delimita e separa as coisas, e, logo, está ordenada ao
limitado, mensurável e numerável", em quê ela difere do método científico, que se vale
da idiografia, da separação e decomposição das partes? A "infinitude" evocada por
Olavo está ligada não à razão, mas ao intellectus, que "é a faculdade de percepção
espiritual imediata, ordenada não mais aos opostos, mas à unidade, não mais ao finito,
mas ao infinito, e que não mais conhece por mediação conceitual, mas
supraconceitualmente, de modo imediato". Pode-se argumentar que Olavo apenas
inverte as funções dos pressupostos, que suas ideias acerca desses assuntos ainda têm
alguma validade; não obstante esta última frase: o inttelectus "não mais conhece por
mediação conceitual, mas supraconceitualmente, de modo imediato". O que significa
que o âmbito do inttelectus, da intuição, da percepção imediata e, porque não, da atitude
científica voltada para questões concretas, não é o âmbito da linguagem, do conceito. É
supraconceitual, ou seja, é território do "indizível", que Olavo toma por "místico".
Indizível porque novo, hipotético, ilimitado, anterior à conclusão racional que o
classifica, legando-o o estigma do "sim" ou do "não". Se "O conhecimento científico
[...] é uma subdivisão especializada da capacidade racional geral e tem nela o seu
fundamento, não podendo julgá-la por seus próprios critérios", é porque tais critérios,
tais conceitos, pertencem à razão, que está "ordenada ao limitado, mensurável e
numerável". Cabe a ela nomear, conceituar e mostrar a aplicabilidade dos conceitos
científicos na vida cotidiana. A ciência não está contra a razão. Alguns pensadores é que
não aceitam que a razão se torne rêmora da ciência (como defende Bachelard) ou da
História (como pensa Hegel, para quem a Filosofia é "coruja de Minerva que alça voo
somente no crepúsculo") . Não se trata de lhe atribuir um papel menor. Quem faz mais
pela saúde dos oceanos? Tubarões ou rêmoras?
Em seguida Olavo resume o que ele entende por prática científica, resgatando,
por fim, um princípio, no mínimo, cartesiano.

"Tudo isso é impossível sem as categorias da razão, obtidas não desta ou


daquela experiência científica, nem de todas em conjunto, mas do próprio
senso da experiência humana como totalidade ilimitada. A experiência
humana, tomada como totalidade ilimitada, é a mais básica das realidades, ao
passo que o objeto de cada ciência é uma construção hipotética erigida dentro
de um recorte mais ou menos convencional dessa totalidade" (CARVALHO,
2009).

Impossível aqui não pensar nas ideias de Descartes (outro reformador dos
fundamentos da ciência, de seu vocabulário, enfim). Independentemente se Descartes
foi ou não o norte de Olavo nesta passagem de seu texto, o mundo subjetivo tomado
como ponto de partida de apreensão do mundo nos leva a uma supressão das diferenças

5
entre inttelectus e ratio - o mesmo problema enfrentado por Husserl em sua virada
transcendental.
Anteriormente citamos esta frase de Olavo: "o método científico se tornou
independente da razão". Se é a razão "que distingue, forma conceitos, delimita e separa
as coisas, e, logo, está ordenada ao limitado, mensurável e numerável", podemos
associá-la a ciência, como fizemos acima. Nesses termos, um dos gurus de Olavo,
Ortega y Gasset, estaria do lado de seu remoto discípulo.

"Me surpreende a facilidade com que se esquece, ao falar da técnica, que seu
coração é a ciência pura [...] Já se pensou em todas as coisas que precisam
continuar vigentes nas almas para que possam continuar existindo
verdadeiramente 'homens de ciência'? Será que se acredita de verdade que
enquanto existirem dollars existirá ciência? Esta ideia com que muitos se
tranquilizam não passa de mais uma prova de primitivismo" (GASSET,
1987, p.98).

O problema é que, diferentemente do espanhol, Olavo não entende que razão e


ciência se confundem. Não percebe que os dollars aqui representam as necessidades
humanas mais básicas e primitivas. A ciência não sucumbe, por ser universal e correlata
da razão, a tais necessidades imediatas. Mas podemos relacionar a técnica de Gasset
com o suposto "apego à autoridade da 'ciência', tal como hoje se vê na maior parte dos
debates públicos" (CARVALHO, 2009), pois este, como aquela, aludem à práxis, ao
materialismo, ao mecanicismo. Gasset alerta para o fato de que a técnica não se dissocia
da ciência, o que para Olavo já é um fato, pois, para ele, "o método científico se tornou
independente da razão". Para ambos isso é um problema. Mas Gasset é coerente. Olavo,
não. Pois enquanto o espanhol bem observa que o homem massificado percebe o avanço
da técnica, porque diz respeito à sua vida cotidiana, este homem não percebe que a
ciência é seu motor, e que esta precisa de homens não massificados para continuar
comandando o avanço técnico. O homem massa só iria se dar conta disso quando a
técnica deixasse de evoluir, já que não haveriam cientistas ou filósofos para fazer o
trabalho intelectual necessário para sua evolução. O homem massificado assim o é
justamente por não perceber essa coexistência entre práxis e ciência. Por seu turno,
Olavo denuncia um "apego à autoridade da 'ciência', tal como hoje se vê na maior parte
dos debates públicos". Seria Olavo exemplo de homem massificado, portanto primitivo,
anunciado por Ortega y Gasset?
Olavo publica seu texto em 2009, mas, aparentemente, escreveu em meio aos
efeitos da Segunda Revolução Industrial ou da Primeira Guerra Mundial, entre 1880 e
1929. Talvez esteja se referindo ao reconhecido e explícito interesse brasileiro pelo
assunto, justo no segundo mandato do Lula. Não fosse um comunicado à imprensa por
parte do Senado, durante o governo petista, que desmentiu o número exorbitante de
publicações de artigos científicos brasileiros em revistas do Brasil e do mundo3. Uma
notícia da qual poderíamos nos orgulhar, mas que não passou de uma mudança na base
de dados do Institute for Scientific Information (ISI) que criou a sensação de que o
Brasil passou a publicar mais artigos científicos de um dia para o outro. Portanto, se
Olavo percebeu um repentino apego à ciência por parte dos brasileiros em 2009, o
governo logo tratou de nos desencantar.
Se Olavo mencionasse a Grécia Antiga, onde teknè e epistème não se
misturavam, seu pensamento encontraria fundamentos sólidos.
3
https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/inovacao/investimento-inovacao-tecnologica-
finep-pesquisadores-brasil/producao-cientifica-no-brasil-um-salto-no-numero-de-publicacoes.aspx -
acessado em 05/07/2019. 22:43.

6
"Será o historiador da ciência Alexandre Koyré a fornecer a explicação mais
convincente do atraso tecnológico do mundo clássico. Até mesmo os
engenheiros gregos e romanos, capazes de criar estruturas de incomparável
ousadia, foram incapazes de intuir a importância de aumentar e enobrecer a
experiência e a técnica (teknè) com a ciência (epistème), para transformá-la
assim em tecnologia" (MASI, 2014, p.265).

Nesse período, sim, havia a submissão da práxis à razão. O trabalho intelectual


era diametralmente oposto ao manual, destinado quase exclusivamente a escravos.
Olavo não percebe que a submissão do intelecto, da práxis, da técnica ou do método
científico à razão, no mundo moderno, não nos leva ao mesmo patamar grego onde
técnica e ciência se distinguiam. Desde a revolução científica do século XVII, a técnica
se transformou em tecnologia (teknè somada a epistème), o moderno se diferenciou do
medieval, e as Revoluções Industriais foram possíveis. Se Olavo tenta restabelecer o
lugar central da razão, dissolvendo o inttelectus e evocando um subjetivismo que muito
lembra o psicologismo de Wundt, podemos chamá-lo de cartesiano. E Descartes é um
dos pais justamente do método mecanicista criticado por Olavo, da visão de mundo que
tende a reduzi-lo ao materialismo, ao logicismo, que tenta a tudo calcular.

"No racionalismo, desde Descartes, o conhecimento racional se restringe à


simples ratio no sentido do pensamento conceitual lógico-matemático,
suprimindo-se, portanto, a diferença entre razão e intelecto, reduzindo ambos
à razão. O puramente racional é posto de modo absoluto: perde assim seu
fundamento na percepção do ser pelo intelecto" (CORETH, 1973, p.47).

Após tantas incongruências, resta espaço para mais uma: os porta vozes da
ciência, "para as quais todos os discursos são válidos de algum modo" (CARVALHO,
2009) - nota-se aqui a referência ao desconstrutivismo pós moderno de um Derrida - são
os mesmos que proferem "proclamações absolutistas de 'fatos científicos' imunes a toda
discussão" (idem). Que autor bipolar da "desconstrução" é esse? Ao menos uma citação
seria esclarecedora.

"O culto da 'ciência' começa na ignorância do que seja a razão e culmina no


apelo explícito à autoridade do irracional" (CARVALHO, 2009).

Sabe Olavo o que é razão?


Na tentativa de entender qual o real objetivo e o alvo da crítica de Olavo em seu
texto, talvez o que captamos seja sua tarefa de nos convencer que a razão (que
concluímos ser uma variação não declarada da epistème grega) está acima da ciência
(que também mostramos não se dissociar da ideia de ratio, como se Olavo dissesse: "a
razão está acima da razão", ou "a ciência está subordinada à ciência"). E isso baseado
num subjetivismo que desconhece suas origens e possibilidades, se lembrarmos que é
Descartes que subordina o intelecto a razão abrindo caminho assim para o mecanicismo
que Olavo acredita ser fruto justamente da separação, e não da junção, do método
científico e da razão. Para combater o cientificismo que diz verificar no mundo
contemporâneo, Olavo, contraditoriamente, se utiliza do procedimento que gerou o
cientificismo.
Mas onde estão os porta vozes da ciência absolutista? Qual o alcance de seu
poder? Se suas línguas ferinas se fazem ouvir nas páginas que nossos filhos leem em
sala de aula, doutrinados pelo reducionismo materialista, em nossos livros didáticos não
haveriam afirmações anticientificistas como esta:

7
"Há noções do senso comum que, do ponto de vista da práxis, podem ser tão
proveitosas quanto as do meio científico, dependendo do contexto em que se
aplicam" (COTRIM; FERNANDES, 2016, p.83).

Utilizando-se de uma argumentação semelhante àquela dos marxistas


frankfurtianos que condenavam a razão instrumental iluminista, Olavo de Carvalho não
traz novidades em seu texto, tampouco ideias claras e distintas.

Referências

ALCOFORADO, Paulo. A teoria aristotélica de ciência. In: VERTENTES, São João


del-Rei, n. 3, jan./jun. 1994, p. 44-51
BARROS, José D'Assunção. As hipóteses nas Ciências Humanas: aspectos
metodológicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
CARVALHO, Olavo de. "A ciência contra a razão". In: Diário do Comércio, 2009.
CAVAILLÈS, Jean. Obras completas de Filosofia das Ciências. Trd. Abner Chiquieri.
Rio de janeiro: Forense Universitária, 2012.
CORETH, Emerich. Questões fundamentais de hermenêutica. Trad. Carlos Lopes de
Matos. São Paulo: EDUSP, 1973.
COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de Filosofia. Material
didático. São Paulo: Saraiva, 2016.
GASSET, José Ortega y. A rebelião das massas. Trad. Marylene Pinto Michael. São
Paulo: Martins Fontes, 1987.
JACOB, François. A lógica da vida: uma história da hereditariedade. Trad. Ângela
Loureiro de Souza. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
MASI, Domenico de. O futuro chegou. Trad. Marcelo Costa Sievers. Rio de janeiro:
Casa da Palavra, 2014.

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