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juridicamente interesses econômicos e mercantis da classe

dominante.
Em comparacão com a traumática emancipacão da
América espanhola, a do Brasil foi pacífica, o que tem ser-
vido para alimentar os mitos sobre a cordialidade do brasi-
leiro, entendendo-se este termo como sinônimo de passivi-
dade. O processo que resultou na independência do Brasil
foi tão tranqüilo que nem o chefe de Estado mudou na pas-
sagem de um status para outro. De fato, a instalacão da -
Corte no Rio de Janeiro criara um efetivo centro de poder
na América portuguesa e a expansão do café, justamente na
região da capital, não demoraria a fornecer o necessário res-
paldo econõmico a uma hegemonia político-institucional.
Peru e México, que poderiam ter ocupado uma posicão
similar na América espanhola, tinham sua atividade econô-
mica baseada na extracão de metais preciosos, os quais, no
século da revolucão industrial, já não possuíam mais o signi-
ficado econômico que os caracterizara na era mercantilista.
Finalmente, há outro dado importante. Um forte in-
teresse comum uniu as diferentes fracões da oligarquia
brasileira em torno de um centro de poder e de um monarca
- a abolicão indolor do monopólio e a construcão pacífica I O que foi o caudilhismo
de um Estado nacional seriam as melhores garantias de que No instável e difícil meio século que se seguiu à
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a propriedade e a escravidão ficariam intocadas. Ao contrá- emancipação, um fato se destacou na América espanhola:
rio da América espanhola, o Brasil teve no escravismo a a progressiva militarização das instituições, resultado direto
única base de seu sistema social e a necessidade de mantê-lo da importância que assumira a luta armada no processo de
veio a ser um ponto fundamental de coesão da classe domi- independência. Mas esta não foi a única conseqüência resul- 1
nante nacional. Não houve no Brasil, como no resto da tante da forma assumida pela separação da América Colo- I
América Latina, uma solucão de continuidade entre o rom- nial hispânica em relação à Metrópole. Articuladas com ela
pimento com a Metrópole e o início de um Estado nacional e igualmente importantes foram a submissão das massas po-
- foram dois momentos que integraram um mesmo proces- pulares, o férreo domínio da elite criolla e a tendência à so-
so po l ítico. lução violenta nos impasses políticos.
A geração militarizada que substituiu os generais idea-
listas da guerra emancipatória atuou sempre nos conflitos
I intraclasse dominante, servindo a uma ou outra facção e
sempre impedindo que tais conflitos abrissem espaço às
manifestações populares. Formou-se, ao longo do séc. XIX,
um militarismo que se ligou mtimamente e permanentemente
aos interesses das elites: no começo. dos latifundiários, her-
deiros diretos da hacienda colonial, e, num segundo momen-
I Oeste, ocorrida na mesma época em que floresceu o caudi-
Ihismo ao sul do Rio Grande, foi também uma história de
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to, do capital estrangeiro, quando este comecou a penetrar
na economia do continente.
violência anárquica, ambições particularistas e arbitrarieda-
des de todo tipo. Finalmente, o "barbarismo" e a "incapaci-
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A ausência de um poder político institucionalizado na dade política" inerentes ao caudilhismo não são caracterís-
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fase posterior a independência abriu espaco a s múltiplas ma- ticas que se possam atribuir a todo um povo indiscriminada-
nifestacões autonomistas do latifúndio e foi assim que sur- mente. Foram, isso sim, marcas registradas de uma elite em
giram os caudilhos, líderes locais que funcionaram como nome da qual foi realizada a independência e que se manti-
porta-vozes das diferentes frações da classe dominante em nha no poder com a conivência dos interesses do capitalis-
variados momentos, valendo-se do amplo espaço que Ihes mo internacional.
permitia a falta de Estados juridicamente organizados. Com Vivendo uma fase em que nenhum setor da economia
os caudilhos, fortaleceu-se uma tradição que se perpetuaria primário-exportadora conseguia preponderar, de modo a ,
mesmo depois da América espanhola ter definido seus possibilitar, em torno dele, a organização de um Estado na-
Estados e fronteiras: acima de leis ou instituições, com seu cional, a América espanhola recém-emancipadafracionou-se
discurso ideológico, há o capricho de um chefe, com seu ar- em inúmeras células de poder local e o caudilhismo cons-
bítrio e sua capacidade de arregimentar forps. No âmbito tituiu-se na expressão de um militarismo pulverizado, com
do caudilhismo se uniram o autoritarismo da dominacão po- exércitos formados à base da fidelidade paternalística da
Iítica e a anarquia da ordem institucional e, na base, desta- massa rural submissa. Na opinião de Décio Freitas, o caudi- ,
cou-se a prevalência de um modo de producão ainda pré- Ihismo não foi nem o barbarismo avesso à civilização e nem
capitalista. Ao cabo, ficou, como herança perigosa, a vali- a reacão popular às tiranias de governos centrais sobre as 1
dade da intervenção militar como um poder arbitra1 perma- províncias. Zorrilla, situando o caudilhismo no âmbito de
nente na esfera política. Depois de superada a fase propria- um capitalismo ruralizado, com suas lutas intraclasse domi-
mente caudilhesca, o personalismo e o militarismo conti-
nuariam a ser elementos políticos mais dinâmicos e persis-
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nante, observa que o poder militar do caudilho esteve em
íntima conexão com sua popularidade, a qual lhe permitia
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tentes que os debates parlamentares ou a respeitabilidade utilizar o campesinato como base de apoio e massa de ma- I
das Const ituicões.
Agust in Cueva observou que o caudilhismo tornou-se
nobra, gerando o que chamou depopulismo oligárquico. Li-
der pseudo-popular numa fase de muitos conflitos locais e
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um dos ingredientes favoritos da mitologia da "incapacida- i Estados nacionais ainda embrionários, o caudilho refletiu,
de política" latino-americana, se contraposta à posicão em síntese, a fragilidade jurídica das instituições, a depen- i
"evoluída" dos Estados Unidos, onde as instituições teriam dência das massas rurais submetidas ao latifúndio e o precá-
sido sempre respeitadas. Acerca do problema, é preciso obser- rio desenvolvimento das forças produtivas.
var que, numa sociedade de classes como é a norte-americana,
os conceitos de legalidade e de legitimidade são muito flui- Estados: nacionais e liberais
dos. Em outras palavras, a sociedade norte-americana, com Foi a partir dos meados do séc. XIX que a fracionada '
todo o seu legalismo, é um regime de elites, idêntico aos da I América espanhola teve condições de evoluir rumo à
América Latina, onde o arbítrio e os pronunciamentos institucionalização de Estados nacionais. Antes de mais !
militares tradicionalmente preponderaram sobre os refina- nada, o fato resultou de uma conjunção das necessidades do
mentos jurídicos. Por outro lado, a história da conquista do capitalismo internacional e as possibilidades do continente.
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O capitalismo precisava de mercados e fontes de matérias- l
i Constituicões e partidos políticos (normalmente um conser-
primas e o continente se revelou capaz de fornecer ambos. vador e um liberal). Na prática, deve-se dizer que as fórmu-
Desse modo, constituir-se em Estados nacionais tornou-se las liberais, importadas como panacéia mágica, pouco signi-
a condição política capaz de viabilizar a integracão desta i ficaram numa América de massas índias, negras e mestiças
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parte do mundo ao emergente contexto capitalista hege- humilhadas e submetidas a interesses de oligarquias nacio-
mônico. Os países capitalistas adiantados se transformaram nais e estrangeiras. Capitalismo externo e oligarquias inter-
em compradores de artigos primários e vendedores de arti- nas manipulavam os estamentos burocráticos do Estado -
gos manufaturados e os países latino-americanos, entre eles sobretudo o militar - a seu bel-prazer. Fraçõesde uma mesma
o Brasil, se abasteciam com as manufaturas estrangeiras e oligarquia, os partidos careciam de qualquer representativi-
vendiam suas matérias-primas para os países centrais. Em dade. Atrás da fachada liberal, o que havia era um Estado
todo o continente consolidaram-se, a partir de então, as excludente e repressivo. Basicamente, o liberalismo se cons-
classes dominantes monocultoras, co-participantes de um tituiu no instrumento jurídico capaz de atender a interesses
contexto de expropriacão e dominacão, encerrando definiti- econômicos e a isso se limitou o seu papel: em nome dele, o
vamente a conturbada era do caudilhismo. Estado não intervinha nas relacões de trabalho e assegurava,
O que foi dito acima evidencia a articulacão dialética desse modo, a continuação da miséria secular.
entre o político e o econômico: o surgimento de Estados Com a vigência da ideologia liberal, todas as formas
nacionais, ao mesmo tempo que cumpriu a funcão de viabi- produtivas pré-capitalistas se viram submetidas ao interesse
lizar a insercão de toda a América Latina no contexto capi- superior da economia dominante. Tal ideologia funcionou
talista hegemônico, foi resultado direto da possibilidade como a justificativa intelectual para a implantação jurídica
dessa inserção. A organizacão econômica do continente, do conceito de propriedade privada absoluta, isto é, a aqui-
voltada a u m centro dinâmico externo, trouxe como resul- sicão por compra como único ato capaz de legalizar a posse
tado necessário um período de modernizacão acelerada, de terra. A transformação da terra num bem capitalista re-
inclusive com a participacão de capital estrangeiro, interes- gido pelas leis do mercado provocou, em diversos países,
sado em que este processo se implementasse. Surgiram fer- a expulsão dos índios de suas antigas reservas comunais. Tal
rovias, ampliou-se a rede de estradas, aparelharam-se os por- I ocorreu no México, El Salvador, Colômbia, Venezuela, Bo-
tos, construíram-se silos, usinas e instalacões frigoríficas e a
atividade produtora fixou-se nos artigos de que mais neces-
I Iívia e Chile. E também no Brasil, onde o avanco das frentes
pioneiras do café levou os latifundiários a expulsarem pos-
sitava o capitalismo internacional. Com respeito a esse últi- seiros e índios e tomarem-lhes as terras, com a devida co-
mo aspecto, o capital estrangeiro chegou a montar enclaves bertura legal.
produtivos dentro de alguns países, apossando-se, literal- Assim como a exploracão do trabalho social e a ex-
mente, da atividade mais importante, como ocorreu com o propriacão de populações nativas evidenciam os interesses
petróleo e certos minerais estratégicos para o processo de ocultos por detrás do discurso liberal, da mesma forma a
industrialização, deixando ao controle local apenas as áreas dependência dos setores de monocultura em relação a
tradicionais e menos lucrativas. empréstimos, financiamentos e mercados externos deixa
A modernizacão latino-americana, entretanto, não se 1 claro a limitacão da soberania nacional recém-obtida. Em
circunscreveu ao âmbito infra-estrutural. No nível político, última instância, as maiores diferencas entre a nova situação
incluiu a institucionalizacão das tradicionais fórmulas libe- e o anterior status colonial limitavam-se a dois aspectos. Em
rais: governos presidencialistas, órgãos representativos, primeiro lugar, não havia mais a imposicão de manter um
relacionamento econômico exclusivo com uma única potên- 1 mantida, no séc. XIX, pelos países que exportaram café
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cia européia, em regime de monopólio. Pelo contrário, o (Brasil, Colômbia, Venezuela e países centro-americanos) e
continente passava a condição de condomínio de diversos
acúcar (regiões antilhanas, México, Peru e Brasil).
países do Velho Mundo, embora a Inglaterra detivesse uma
A insercão de toda a América Latina nos quadros do
natural primazia. Em segundo lugar, os novos países ha-
1 capitalismo internacional trouxe, ao longo da fase oligárqui-
viam-se tornado formalmente independentes e, portanto,
ca, diversas conseqüências. Entre estas podem ser citadas:
não estavam mais submetidos à administracão direta da Eu-
um certo desenvolvimento urbano, o incremento demográ-
ropa, apesar desta, na prática, continuar sendo o centro
fico, certa expansão das camadas sociais médias, um relati-
econômico e cultural. Assim, o fato da administracão direta
vo progresso dos mecanismos burocráticos e administrativos
ter passado às elites criollas veio a ser o dado que permitiu
e uma crescente europeizacão do aparelho ideológico e cul-
ao continente aparecer ante o mundo como um conjunto de
tural. Contudo, o militarismo das instituicões nunca deixou
Estados soberanos.
de circunstancialmente emergir, revelando persistir subter-
Ao longo do séc. XIX, à medida que foram se consoli-
raneamente. Derrubando governos ocasionalmente progres-
dando como Estados liberais, oligárquicos e não-democráti-
sistas ou atuando nos conflitos intraclasse dominante, a cor-
cos, as nacões latino-americanas passaram a extrair e pro-
poracão militar latino-americana criou uma imagem negati-
duzir preferencialmente aqueles artigos de interesse direto
va de co-responsabilidade na instabilidade institucional do
dos países centrais e de suas indústrias em expansão. Ao in-
continente, ligando-se, invariavelmente, a oligarquias inter-
vés de especiarias tropicais e metais preciosos, comecaram a
nas e/ou externas, em detrimento de aspirações populares e
ser exportados guano (Peru), trigo (Argentina, Chile), pro-
nacionais.
dutos pecuários (Uruguai, Argentina), salitre (Chile), cobre As atividades econômicas monoprodutoras vigentes
(Chile), estanho (Bolívia), petróleo (Venezuela, Peru, Méxi- implicaram a exploracão extrema das massas, marginaliza-
co), borracha e algodão (Brasil) e alguns artigos para alimen-
das das decisões e condenadas ao trabalho até a exaustão,
tacão como milho e batata (Equador). Num excelente estu-
perpetuando os problemas da era colonial. Nas haciendas
do sobre as atividades econômicas de exportacão na Améri-
sob controle de oligarquias internas e nos enclaves estran-
ca Latina da fase oligárquica, Fernando Henrique Cardoso
geiros a miséria dos trabalhadores era a mesma. Em certos
dividiu-as em economias nacionalmente controladas e eco-
casos, vigoraram relacões de tipo mais capitalista, mas, na
nomias de enclave. No primeiro caso (Brasil, Colômbia e
maioria dos casos, encontramos a plena vigência de relacões
países platinos, por exemplo), a oligarquia interna manteve
pré-capitalistas ou semicapitalistas, o que propiciava a do-
o controle sobre o setor dinâmico destinado ao mercado ex-
minacão patriarcal da oligarquia e a submissão das massas
terno. No segundo (Bolívia, Venezuela e países centro-ame-
através de vínculos de fidelidade pessoal. É interessante
ricanos. por exemplo), o capital estrangeiro se apropriou da
observar que nas economias de enclave os trabalhadores
atividade exportadora mais importante, montando enclaves
estavam completamente dissociados do mercado interno na-
autônomos e dinâmicos dentro de nacões juridicamente
cional, pois o enclave Ihes fornecia, diretamente de fora, os
soberanas.
artigos de subsistência. Ao contrário do que ocorria nos paí-
Como todas as tipologias, claro que esta também é su-
ses com economias nacionalmentecontroladas, onde a dispo-
jeita a discussões, mas não deixa de ser um importante ins-
1 nibilidade interna de capital era logicamente maior e os tra-
trumento de análise e debate. Restaria ainda lembrar que a
I balhadores não se achavam tão radicalmente isolados do
tradicão colonial de exportacão de especiarias tropicais foi I contexto nacional, o que se refletia em termos de potencia-
lidade de mercado. Oportunamente serão analisadas as con-
seqüências que tais fatos trouxeram para o processo de in-
dustrialização da América Latina.
Por ora basta deixar registrado que, integrando-se de
variados modos no contexto capitalista internacional, o
continente viveu, dos meados do séc. XIX até a I Guerra
Mundial, nas palavras possivelmente irônicas de Sérgio De
La Pena, "os anos alegres de incorporação í. . .) ao mundo
da abundsncia".

XI. A América hispânica na fase oligárquica:


inventário de países

I México
Poucos anos após a instalacão da república, em 1834,
Santa Ana tomou o poder como ditador. Entrando em
guerra com os Estados Unidos, evidenciou-seo total despre- 1

praro do país, que, como resultado do conflito, perdeu o 1


Texas, o Novo México e a Califórnia. O México tornava-
se assim a primeira vítima do avanco militar norte-america- ,
no rumo ao sul do Rio Grande. Certamente daí nasceu o
antigo - e tão atual ainda - ditado mexicano: "Pobre do
México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Uni-
dos!"
Entre 1864 e 1867, com apoio dos setores mais con-
servadores, notadamente o clero, a Franca instalou um im-
pério no país, pondo no trono um infeliz aventureiro que
terminaria fuzilado: Maximiliano de Habsburgo. A vitória
de Benito Juarez sobre essa invencão de Napoleão III desa-
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