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Macêdo, Cibele Mariano Vaz de; Andrade, Regina Gloria Nunes. Mangueira: a cultura comunitária e o Centro
Cultural Cartola
Resumo
O presente trabalho analisa as relações entre os processos de investigação e de intervenção no campo comunitário, enfatizando duas questões
centrais: a) se a investigação (pesquisa) deve conduzir a ações que também sejam comprometidas com a realidade e a transformação social; e
b) se o processo de intervenção em comunidade gera conhecimentos socialmente relevantes. Para isso procede-se a uma reflexão sobre os
dilemas e desafios éticos que estão presentes nas práticas comunitárias: a) relacionados às exigências metodológicas e de produção de
conhecimento; b) ligados à “sensibilidade cotidiana e histórica”. Indaga-se se a intervenção psicossocial capta os processos de participação e
conscientização. Finaliza-se com uma exposição de aspectos importantes para a congruência metodológica e política entre intervenção e
investigação psicossocial em comunidade, na perspectiva da Psicologia Social Comunitária Latino-Americana.
Palavras-chave: Investigação-intervenção em Psicologia Social Comunitária; Ética e práticas comunitárias; Relação profissional-comunidade.
Abstract
This paper analyzes the relationships between the processes of investigation and intervention in the community field, emphasizing two central
questions: (a) if the investigation (research) should lead to actions that are also committed to reality and social change; and (b) if the community
intervention process generates socially relevant knowledge. For it the paper proceeds to a reflection on the dilemmas and ethical challenges
that are present in community practices: (a) related to methodological requirements and to the production of knowledge; (b) linked to “daily
and historical sensibility”. It asks if psychosocial intervention captures the processes of participation and awareness. It ends up with an exposure
of significant aspects to the methodological and political congruence between intervention and psychosocial research in community from the
perspective of Latin American Social Community Psychology.
Keywords: Research-intervention in Social Community Psychology; Ethics and community practices; Professional-community relationship.
Resumen
Este trabajo analiza las relaciones entre los procesos de investigación e intervención en el ámbito de la comunidad, haciendo hincapié en dos
1
Doutora (2013) e Mestre (2009) em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Psicoterapia de Criança,
Casal e Família (2008), em Gestalt-terapia (2006) e Graduada em Psicologia (2003) pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
Pesquisadora Associada ao Núcleo de Estudos Relações Raciais: memória, identidade e imaginário, na PUC-SP. Professora na Universidade
Ibirapuera e na Universidade Santo Amaro. E-mail: cibelevaz@gmail.com
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Graduada em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (1974). Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia (1965).
Doutorado em Comunicação Social pela ECO Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988). Professora Titular da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia - Pós-graduação em Psicologia Social. Atualmente é pesquisadora visitante da UERJ - Coordenadora
do Convênio CAPES-COFECUB com a Université Lille.
Macêdo, Cibele Mariano Vaz de; Andrade, Regina Gloria Nunes. Mangueira: a cultura comunitária e O Centro
Cultural Cartola
cuestiones centrales: (a) si la investigación (pesquisa) debe conducir a acciones que también están comprometidos con la realidad y el cambio
social; y (b) si el proceso de intervención comunitaria genera conocimiento socialmente relevante. Para tanto el documento procede a una
reflexión sobre los dilemas y desafíos éticos que están presentes en las prácticas en la comunidad: (a) en relación con los requisitos
metodológicos y de la producción de conocimiento; (b) ligados a “la sensibilidad cotidiana y histórica”. Se pregunta si la intervención
psicosocial captura los procesos de participación y toma de conciencia. Se termina con una exposición de los aspectos importantes de la
congruencia metodológica y política entre la intervención y la investigación psicosocial en la comunidad desde la perspectiva de la Psicología
Social Comunitaria Latinoamericana.
Palabras clave: Investigación-intervención en Psicología Social Comunitaria; Ética y prácticas de la comunidad; Relación profesional en la
comunidad.
Macêdo, Cibele Mariano Vaz de; Andrade, Regina Gloria Nunes. Mangueira: a cultura comunitária e o Centro
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Griô significa contador de histórias. Trata-se de uma figura transmissão oral, preservar e valorizar a história cultural da
mitológica africana nômade que percorre as comunidades comunidade da Mangueira, formada, sobretudo, por
transmitindo conhecimentos pela oralidade e pelas manifestações afrodescendentes, abordando desde as suas raízes africanas até a
da cultura popular. Com a Ação Griô, o CCC objetiva, pela produção cultural contemporânea.
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Disponível em: www.mangueira.com.br. Acessado em: 20 jul. de apelidos.
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2009. Disponível em: www.mangueira.com.br. Acessado em: 20 jul. de
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Disponível em: www.mangueira.com.br. Acessado em: 20 jul. de 2009.
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2009. Arengueiro significava, na gíria carioca, pessoa encrenqueira e
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Por questões éticas, a identidade das crianças que participaram brigona.
do Grupo Operativo foi preservada e seus nomes substituídos por
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e Abelardo da Bolina. O nome e as cores – verde e Morro, lançado em março de 1935. A autora
rosa – foram escolhidos por Cartola. Ficaram, assim, menciona a matéria de capa da primeira edição, cuja
organizados o desfile de carnaval e o espaço de manchete era Samba; o texto referia-se à importância
sociabilidade entre a comunidade e a cidade. do samba para a cidade do Rio de Janeiro e para a
A Escola ganhou prestígio depois que o samba própria existência do jornal, dedicado ao samba. Tal
deixou de ser foco de repressões policiais. A era do iniciativa serve para corroborar o pensamento de
rádio, nos anos 1930, estimulou a passagem do Maia e Krapp (2005), assim como o de Constant
samba para o asfalto (Constant, 2007). Ainda assim, (2007), acerca do sentimento de orgulho e
a Mangueira nunca teve facilidade para organizar o pertencimento a um grupo social dos habitantes da
desfile do carnaval. Foi um longo período até que a Mangueira, presente desde os anos 1930.
Escola saísse de sua precária sede no Buraco Quente, A riqueza simbólica da Mangueira é inegável e
passasse para o clube da fábrica Cerâmica, até vem expressa na construção/reconstrução de
conseguir construir, em 1972, sua quadra atual, mapeamentos e imaginários que perpassam grupos e
conhecida como o “Palácio do Samba”. regiões locais, na linguagem por meio de gírias e de
A Estação Primeira alçou a Mangueira ao vícios de linguagem, compreendidos por todos os
mundo, por conferir a ela status de patrimônio moradores. É um espaço simbólico que propicia
cultural e local de nascimento ou moradia de grandes entendimento entre jovens ou velhos, ou entre
poetas do samba. Por sua trajetória dos bairros moradores de diferentes regiões da Mangueira. Maia
populares e das favelas à sociedade como um todo, o e Krapp (2005) relatam a possibilidade de, ao passar-
samba se destaca como principal elemento se por becos e ruelas, desfrutar-se das histórias
integrador desse processo. Sem dúvida, a música e a cotidianas, compartilhadas pela expressão oral dos
Escola de Samba constituíram-se, ao longo do habitantes.
tempo, como mediadores do diálogo entre a favela e As relações sociais na Mangueira são marcadas
a cidade, ao desempenharem uma adesão de por particularidades que lhes dão identidade própria.
realidades sociais heterogêneas. Maia e Krapp (idem) destacam as formas ampliadas
Observam-se, com frequência, crianças do CCC do estabelecimento da intimidade, da propriedade e
cantando os sambas-enredo da Mangueira. Algumas da divisão do espaço.
delas, enquanto pintavam a atividade Lugares que eu
conheço do Grupo Operativo, se deixavam embalar Uma mesma casa expande-se e divide-se inúmeras
pela música. Maurício (11 anos) cantava o samba- vezes durante sua existência; uma laje não é um mero
enredo de 2008, 100 anos de frevo [...], quando elemento construtivo, mas um espaço em branco a ser
Camila (10 anos) comentou: “Esse ano a Mangueira preenchido com o casamento de um filho, o
nascimento de um neto ou a dificuldade de um amigo
tem que fazer bonito e ganhar, porque, desde 2000 (MAIA & KRAPP, 2005, p. 39).
sem ganhar, não dá mais”. São inúmeros os
exemplos de que a Estação Primeira está presente na A maneira como as relações na Mangueira são
vida dos moradores da Mangueira. estabelecidas, de forma a reforçarem a produção de
Por ser considerada uma referência no cenário uma cultura plural, criativa e de resistência aos
cultural carioca, o orgulho de ser mangueirense fica processos de massificação e totalização, permite ao
evidente no discurso dos moradores. Constant mangueirense conceber um sentido específico para o
(2007) relata que “ser da Mangueira” significa muito local.
mais que apenas habitar uma favela ou ser filiado a A Mangueira consolidou-se, na cena carioca,
uma escola de samba; “ser da Mangueira” significa como berço rico em cultura, criatividade e força para
pertencer a um grupo social rico em seus valores e superar dificuldades – poucos recursos, repressão
cultura. Consoante entendimento apresentam Maia e policial e atuação do tráfico – sem nunca deixar que
Krapp (2005), ao afirmarem que há, por parte dos suas manifestações culturais desaparecessem. Isso
moradores, um evidente sentimento de orgulho em foi possível por intermédio de iniciativas pessoais,
pertencer à Mangueira. Orgulho que não está coletivas e institucionais, ao serem implantados
vinculado ao orgulho da Escola de Samba, do qual diversos projetos sociais direcionados aos
se distingue, por estar relacionado ao local onde moradores.
vivem.
No decorrer dos anos, as cores verde e rosa
foram além da representação da Escola de Samba e Angenor de Oliveira – Cartola: a
tornaram-se capazes de remeter as pessoas à inspiração
Mangueira como um todo. Constant (2007) cita
como exemplo que evidencia a identidade e o Foi em 1919 que a história da Mangueira
orgulho em pertencer à Mangueira o Jornal A Voz do
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recebeu uma nova personagem que a marcaria para 2004). O senhor Sebastião escolheu uma das casas
sempre. Angenor de Oliveira, ainda menino, mais bonitas para a família morar. Mas as
acompanhado da família, chegava para viver no dificuldades financeiras fizeram com que Cartola
local. Mas essa história começou em um domingo de precisasse trabalhar; apesar de ser o terceiro filho de
primavera, no dia 11 de outubro de 1908, na Rua dez irmãos, era o filho homem mais velho.9
Ferreira Viana, número 9, no Catete, dia em que Empregou-se em uma gráfica, passava todo seu
nascia Angenor, auxiliado por uma parteira, filho de salário para o pai pagar as despesas familiares.
Sebastião Joaquim de Oliveira e Aída Gomes de Sonhava em trabalhar na construção, admirava a
Oliveira, negros, ex-escravizados e possibilidade de trabalhar em cima dos andaimes e
semialfabetizados. poder ver as meninas passando. Conseguiu o
Assim como o pai, que decidiu aprender a ler e trabalho de servente, mas, como sempre foi vaidoso,
a escrever sozinho (decidiu sair do analfabetismo incomodava-se com o cimento caindo em seu cabelo.
quando, no dia de seu casamento com dona Aída, o Começou a trabalhar com um velho chapéu-coco e
juiz falou que era uma vergonha um rapaz tão bonito passou a usá-lo mesmo quando não estava
não saber escrever), Cartola foi um autodidata, trabalhando (Ramalho, 2004). O chapéu se tornaria
aprendeu a tocar violão sozinho e foi poeta sem ter a sua marca, sua referência; Cartola, o apelido
estudado literatura (Barboza & Oliveira Filho, 2003; adquirido na adolescência, o nomearia até o fim da
Ramalho, 2004). vida.
Depois de servir como cozinheiro ao senador Dr. Com a morte de dona Aída, o senhor Sebastião
Nilo Peçanha, o avô materno de Cartola, o senhor abandonou a Mangueira e o filho rebelde. Aos 12
Luís Cipriano Gomes, em 1916, foi trabalhar como anos, Cartola ficou morando sozinho num barraco
encarregado na Fábrica Fiação Tecelagem e (Barboza & Oliveira Filho, 2003). Acompanhado
Tinturaria Aliança, em Laranjeiras (Diniz & Bonito, por Carlos Cachaça, seu amigo inseparável, futuro
2004). A fábrica têxtil foi uma das indústrias que, em parceiro de composições e futuro concunhado,
1900, recebeu incentivo do Governo para construir começou a frequentar as rodas de samba da
casas para seus então mil funcionários (Abreu, Mangueira. Aprendeu a gostar da malandragem, seu
2008). Uma das casas da vila operária foi ocupada herói era o velho Massu, que viria a ser o primeiro
pela família de Cartola. mestre-sala da Mangueira. Com ele aprendeu o que
O período em que morou em Laranjeiras era ser malandro: “Malandro não trabalhava, se
desenvolveu em Angenor duas paixões. A primeira, vestia bem, tocava violão, jogava remada e vivia à
pelo Fluminense, pois acompanhou toda a custa de mulher” (idem, p. XVI).
construção da sede do clube. E a segunda, pelos Aos 17 anos caiu doente,10 uma vizinha mais
ranchos carnavalescos do bairro (Diniz & Bonito, velha, casada e com uma filha de dois anos, foi quem
2004). Entretanto, o seu preferido era o Rancho se encarregou de cuidar dele, dona Deolinda da
Arrepiados, o maior destaque do carnaval, cujas Conceição. O marido dela, Astolfo, percebeu que a
cores, verde e rosa, influenciaram uma escolha feita mulher andava diferente, e ela revelou sua paixão
por Cartola alguns anos mais tarde. No Rancho por Cartola. Abandonada pelo marido, dona
Arrepiados, Cartola tocava cavaquinho, que Deolinda foi com a filha viver com ele; viveram
aprendeu vendo o pai tocar. juntos até quando ela morreu (Barboza & Oliveira
Menino muito vaidoso, gostava de estar bem Filho, 2003; Ramalho, 2004). A vida com Deolinda,
vestido. Muito mais velho, com quase setenta anos, que trabalhava passando, lavando e cozinhando,
ainda dizia: “Antes de o meu avô morrer, não havia permitiu que Cartola deixasse o trabalho de pedreiro
pretinho mais bem vestido do que eu em todo o em segundo plano para compor suas primeiras
bairro de Laranjeiras. Depois que ele morreu é que músicas, entre um gole de cerveja e outro nos
as coisas pioraram muito para mim” (Barboza & botecos da Mangueira (Ramalho, 2004).
Oliveira Filho, 2003, p. 31). Talvez por saudade dos ranchos carnavalescos
Em 1919, a morte do senhor Luís Cipriano da infância, ou pelo fato de ele e de seus amigos não
obrigou a família de Cartola a abandonar a vila serem bem-vindos aos blocos da Mangueira, por se
operária e mudar-se para a Mangueira, que contava, comportarem mal, por beberem, falarem palavrões,
à época, com quase cinquenta barracos (Ramalho, brigarem e namorarem demais, Cartola decidiu unir-
9 10
Cartola nasceu entre Lucília e Sebastião, seus nove irmãos eram, No filme com o título Cartola, lançado em 2007 em
em ordem de nascimento: Isaura, Lucília, Sebastião, Luís, Irene, homenagem ao músico, dirigido por Lírio Ferreira e Hílton
Maria Madalena, Dagmar, Arquimedes e Alcídes. Quando senhor Lacerda, há o depoimento de Arthur de Oliveira que diz que essa
Sebastião ficou viúvo, casou-se novamente e teve mais um casal doença que acometeu Cartola, aos dezessete anos, foi resultado de
de filhos: Hirohito e América. Hirohito suicidou-se um mês depois suas incursões aos bordéis da cidade.
da morte de Cartola (Barboza & Oliveira Filho, 2003).
Macêdo, Cibele Mariano Vaz de; Andrade, Regina Gloria Nunes. Mangueira: a cultura comunitária e o Centro
Cultural Cartola
se a Carlos Cachaça, José Espinguela, Saturnino Ainda em 1940, Cartola e Paulo da Portela
Gonçalves e Marcelino e juntos fundaram o Bloco fundaram o programa A Voz do Morro, na Rádio
dos Arengueiros (Constant, 2007). Cruzeiro, onde eles se apresentavam com outros
Em 1920, nascia, no Estácio de Sá, a Escola de sambistas, cantando composições próprias ou de
Samba Deixa Falar, que virou Unidos de São Carlos outros compositores. Em 1941, formou também,
e, depois, Estácio de Sá. Cartola percebeu que, se os com Paulo da Portela e agora com Heitor dos
blocos da Mangueira se unissem e não mais Prazeres, o Conjunto Carioca, chegando a se
disputassem entre si, também poderiam fundar uma apresentar por um mês na Rádio Cosmos, em São
Escola de Samba. Desse modo, como resultado da Paulo (Barboza & Oliveira Filho, 2003).
mudança de comportamento dos Arengueiros a favor O grande compositor sustentou a sua posição de
da união, comandados por Cartola, os principais liderança na Estação Primeira até 1946. A partir de
blocos carnavalescos da Mangueira fundaram a então, começou a perder a autoridade e foi ficando
Estação Primeira de Mangueira (Ramalho, 2004). cada vez mais isolado. Cartola teve meningite e
Cartola teve presença decisiva desde os Deolinda cuidou dele. Porém, logo que se recuperou,
primeiros anos da escola de samba. Foi ele quem ela morreu de parada cardíaca. A morte da
escolheu as cores verde e rosa, o que seria uma companheira, em 1948, deixou Cartola muito triste;
homenagem aos carnavais da infância no Rancho fez duas músicas em homenagem a ela: Sim e Rolam
Arrepiados. Escolheu também o nome da escola, dos meus olhos. Foi nesse mesmo ano que a
Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, Mangueira entrou, pela última vez, na avenida com
como ele mesmo gostava de explicar: “Eu resolvi um samba, Vale do São Francisco, de sua autoria e
chamar a Estação Primeira porque era a primeira de Carlos Cachaça, ficando somente com o quarto
estação de trem, a partir da Central do Brasil, onde lugar (Ramalho, 2004).
havia samba” (Ramalho, 2004, p. 3). No ano de 1949, Ramalho (2004) relata que o
Fundou ainda a ala dos compositores; a fato de Hermes Rodrigues ter assumido a presidência
Mangueira foi a primeira escola de samba a ter essa da Estação Primeira e ter mudado as regras para a
ala. Foi o primeiro diretor de harmonia e o escolha do samba-enredo era o que faltava para fazer
compositor, com Carlos Cachaça, do primeiro com que Cartola deixasse a Mangueira e sumisse por
samba-enredo da escola, Chega de Demanda alguns anos. Chegou a ser considerado morto e
(Constant, 2007). Entre os anos de 1928 e 1948, tornou-se figura mitológica. Viveu em Nilópolis e
venceram onze disputas de samba-enredo e foi com depois no Caju, período em que emagreceu, perdeu
seus sambas que a Escola foi tricampeã nos anos de dentes, apareceram os primeiros sintomas da
1932 (A Floresta – Cartola e Carlos Cachaça), 1933 rinofíma – o nariz começava a escurecer –, doença
(Uma segunda-feira no Bonfim da Bahia – Cartola e que precisou ser operada mais tarde.
Carlos Cachaça) e 1934 (Divina Dama/República da Preocupado com o amigo, Carlos Cachaça o
Orgia – Cartola). O samba Não quero mais (Cartola, convidou para passar a tarde com ele e sua esposa,
Carlos Cachaça e Zé da Zilda) foi campeão do Menina. O convite fez com que Cartola
carnaval em 1936. reencontrasse Euzébia Silva do Nascimento, Zica, a
Em 1931, Cartola vendeu seu primeiro samba, cunhada do parceiro. Não demorou muito do início
prática corrente num momento da história em que do romance até decidirem viver juntos, em 1952
não se falava em direito autoral. Entretanto, o (Ramalho, 2004). Zica não se conformava com o fato
interessado em comprar o samba de Cartola, Mário de Cartola estar afastado da música, então o
Reis, famoso cantor da época, teve de insistir muito convenceu a voltar para a Mangueira.
para Cartola descer o morro e cantar Infeliz sorte e Em consequência da meningite, Cartola não
teve ainda que aceitar a exigência de Cartola de que pôde mais trabalhar como pedreiro. Passou por
a música permanecesse de sua autoria (Ramalho, vários empregos, inclusive o de lavador de carros na
2004). Quem acabou cantando a música foi Garagem Oceânica, em Ipanema. Um dia, tomando
Francisco Alves, que ficou melhor em sua voz. café num botequim ao lado da garagem, o jornalista
Em 1940, foi convidado por Villa-Lobos para e produtor de rádio, Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte
participar das gravações com o maestro Leopoldo Preta, o reconheceu e o relançou, proporcionando-
Stokowski (1882-1976), com Donga, Pixinguinha, lhe a gravação de seu disco, o primeiro aos sessenta
João da Baiana, Heitor dos Prazeres, Zé Espinguela e seis anos (Ramalho, 2004; Constant, 2007).
e outros. As gravações foram feitas a bordo do Navio A partir de 1961, sua casa e de Zica tornou-se
Uruguai, ancorado no píer da Praça Mauá, e um ponto de encontro de sambistas. Mais tarde
resultaram em dois álbuns de quatro discos de 78 abriram um restaurante, onde podiam unir a música
rpm, lançados pela Columbia, nos Estudos Unidos de Cartola às receitas de Zica. Inaugurado em 1963,
da América. na Rua da Carioca, 53, o Zicartola foi um sucesso, e
Macêdo, Cibele Mariano Vaz de; Andrade, Regina Gloria Nunes. Mangueira: a cultura comunitária e o Centro
Cultural Cartola
tornou-se local de encontro de gerações e de estilos “Cartola não existiu, foi um sonho que a gente
musicais, virou moda entre representantes do samba teve”está pintada em uma das paredes de permanente
e novos compositores da geração pós-bossa nova homenagem ao compositor, feita todos os dias, desde
(Constant, 2007). que foi inaugurado, em 2001, por dona Zica, e por
Foi somente na década de 1970 que Cartola foi seus netos Pedro Paulo e Nilcemar Nogueira, o
reconhecido pela crítica musical. Em entrevista ao Centro Cultural Cartola.
jornal O Globo, desabafou: “Eu já tinha até pensado A criação do Centro Cultural Cartola objetivou
que ia morrer sem gravar um disco. Tava até realizar um desejo dele, relatado por dona Zica,
perdendo a vontade de cantar, vendo tanta gente que pouco antes da morte dela, em 2003: “Cartola queria
gravava e só não chegava a minha vez. Quando o que todas as crianças da comunidade pudessem ter
disco saiu, voltei a fazer música correndo” um espaço e não vivessem à margem da sociedade.
(Ramalho, 2004, p. 32). Seu primeiro Long Play, Tenho certeza de que ele estaria muito satisfeito em
Cartola, gravado em 1974, pelo selo Marcus Pereira, saber que sua imagem está vinculada a uma ação
rendeu-lhe todos os prêmios do ano. Em 1976, como essa” (Ramalho, 2004, p. 39). Zica foi a
gravou o segundo LP, com o mesmo título Cartola; primeira presidente de honra do CCC, e continua
entre as músicas estava As rosas não falam. sendo in memorian.
Motivado pelo reconhecimento e pelo aumento Eleger o Cartola como patrono do CCC reflete o
dos shows, compôs, nesse período, seus maiores desejo de manter viva a sua história. Além de um dos
clássicos: Acontece, O mundo é um moinho e grandes compositores e divulgadores do samba,
Autonomia. De origem simples e pouca escolaridade, constituiu-se como referência por sua luta contra as
tinha a formação primária incompleta, o que não o dificuldades sociais. Por sua cultura e arte, Cartola
impedia de compor versos elaborados, frutos de sua conseguiu inserir-se na sociedade, transformar sua
sensibilidade lírica apurada. Entretanto, Cartola condição de vulnerabilidade, ser reconhecido e
confessava ler as poesias de Castro Alves, Olavo reverenciado.
Bilac, Camões e Guerra Junqueiro para melhorar
suas letras (Ramalho, 2004). Não eram composições Centro Cultural Cartola: memória,
óbvias: falavam de amor, mas não eram vulgares ou
melodramáticas. Suas melodias rendiam-lhe cultura e cidadania
admiração e elogios.
Em 1977, gravou seu terceiro LP, Cartola-verde É dentro do contexto socioespacial da
que te quero rosa, dessa vez pelo selo RCA Victor, Mangueira que o CCC se encontra. Fundamentado
com igual sucesso de crítica. Ainda em 1977, na obra musical de Cartola o CCC constitui uma
descobriu um câncer e o operou no mesmo ano; organização não governamental (OnG), sem fins
assim como de outras vezes, não seguiu o tratamento lucrativos, com o objetivo de promover
indicado pelo médico. Em 1978, decidiu mudar-se desenvolvimento social e cultural. Conta com
para Jacarepaguá, para ter mais tranquilidade; o parcerias com o poder público e privado para realizar
assédio constante na Mangueira tirava-lhe o sossego atividades culturais, musicais e esportivas,
para compor. No mesmo ano, lançou seu show solo, direcionadas às crianças, jovens, adultos e idosos
Acontece. Em 1979, quando gravava seu quarto LP, moradores da Mangueira e de bairros vizinhos,
Cartola – 70 anos, também pela RCA, foi acometido visando ao desenvolvimento e reconhecimento de
por outro câncer, que causaria a sua morte. Passou os valores culturais e do sentimento de pertencimento
últimos anos de sua vida escrevendo, até que a aos locais em que vivem.
doença se agravou e morreu, aos setenta e dois anos, Desde 2003, o CCC ocupa a área de sete mil
no dia 30/11/1980. metros quadrados do antigo complexo do Instituto
Não teve filhos biológicos com Zica, mas adotou Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que foi
Ronaldo, cuja mãe deu à luz na casa deles e foi cedida pelo Ministério da Cultura. Como Nilcemar
embora sem levar o menino. A filha do primeiro Nogueira descreve:
casamento de Zica, Regina, também foi adotada por
Cartola, e os filhos dela, Pedro Paulo e Nilcemar, O Centro Cultural Cartola está localizado na favela da
eram considerados por Cartola como seus netos Mangueira, no Rio de Janeiro, em um prédio
desativado do IBGE. O espaço foi cedido pelo
(Ramalho, 2004). Ministério da Cultura e ocupa uma área de sete mil
Foi reconhecido como o compositor que mais metros quadrados e, apesar de não ter suas obras
divulgou o nome da Mangueira, sendo consagrado concluídas, desenvolve várias atividades como as
entre os mais importantes nomes da música oficinas de música e de teatro que resgatam um pouco
brasileira. Recebeu homenagens ainda em vida e da memória de um dos ícones da música popular
depois da morte. A frase de Nelson Sargento
Macêdo, Cibele Mariano Vaz de; Andrade, Regina Gloria Nunes. Mangueira: a cultura comunitária e o Centro
Cultural Cartola
11
Entrevista ao site Gol de Letra: http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,AA1284910-5606,00html.
14
http://www.goldeletra.org.br/Secao.6,materia.31.aspx#. Entrevista concedida por Nilcemar, no dia 16/07/2008, ao Viva
12
Entrevista concedida por Nilcemar, no dia 04/02/2004, ao o site Favela:
Gol de Letra: http://www.vivafavela.com.br/publique/cgi/public/cgilua.exe/we
http://www.goldeletra.org.br/Secao.6,materia.31.aspx#. b/templates/htm/princi.
13 15
Entrevista concedida ao Globo.com, em 25/09/2006: Idem.
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positivos quanto ao território que habitam na CCC, assim como a história de sua fundação, seus
Mangueira. As discussões decorrentes das atividades objetivos e a vida de Cartola, acredita-se que a
possibilitaram-nas expressar sua visão de mundo e as descrição histórica da Mangueira serviu tanto para
expectativas em relação ao futuro. exemplificar o processo de desenvolvimento de uma
favela carioca quanto para contextualizar o espaço
Conclusões no qual o CCC está inserido. A Mangueira foi
entendida como campo social de referência para a
reelaboração de práticas e narrativas, configurando-
Este trabalho não foi o único desenvolvido no se como território que resiste aos processos de
Centro Cultural Cartola. Nos Livros Territórios sem massificação e naturalização da violência, por meio
fronteiras: o social no contemporâneo (2014) e de práticas culturais variadas.
Território Verde e Rosa: Construções Psicossociais Iniciativas como as oferecidas pelo Centro
no Centro Cultural Cartola (2010) estão relatados Cultural Cartola surgem como alternativa a esse
vários outros trabalhos ali realizados desde 2004. cenário que sustenta estigmas como ser pobre, negro,
Um dos fatos mais importantes é que antes de serem favelado, bandido, entre tantos outros. O CCC
realizados estes trabalhos são submetidos à direção admite a existência da violência e do tráfico,
do CCC e ao Comitê de Ética e Pesquisa da UERJ e entretanto apresenta aos seus frequentadores muito
são realizados com objetivos fixos, limitados em mais a se buscar: cultura, arte e histórias de vida, de
tempo, mas com resultados múltiplos. superação de dificuldades, de sucessos e de
Nesse sentido, as atividades do CCC constituem conquistas da Mangueira.
meio para a integração de uma rede de referências,
na qual crianças e jovens aprendem, pela cultura, a
exercitarem sua cidadania, ao valorizarem suas Referências
produções e reconhecerem a produção do outro, a
conviverem com vitórias e derrotas, a vencerem pelo
esforço pessoal e a desenvolverem a independência, Abreu, M. (2008). A evolução urbana do Rio de
a autoconfiança e a responsabilidade por seus atos. É Janeiro. Rio de Janeiro: IPP, 2008.
um trabalho que vai além de evitar o envolvimento
com o tráfico e o crime e que, ao fortificar as
Andrade, R. & Vaz, C. (orgs.) (2010). Território
relações, a cultura proporciona o livre exercício de
Verde e Rosa: Construções Psicossociais no
escolhas mais conscientes e responsáveis. Nesse Centro Cultural Cartola. Rio de Janeiro:
sentido, em uma conversa com Nilcemar sobre os Companhia de Freud/FAPERJ.
objetivos do CCC, ela declara:
O objetivo do CCC é a cidadania, a identidade cultural Abreu, M. (2014). Territórios sem fronteiras: o
e social, mostrar para as crianças que elas podem fazer social do contemporâneo. Rio de Janeiro:
escolhas... Eles começam pelo violino, que é algo Companhia de Freud/FAPERJ.
distante da realidade deles, para eles saberem que, se
conseguem tocar violino, quando eles descobrem que Barboza, M. & Oliveira Filho, A. de. Cartola: os
não é difícil, eles sabem que podem qualquer coisa.
tempos idos. (2003). Rio de Janeiro: Gryphus.
Percebe-se que o CCC está envolto na
possibilidade de ocupar o espaço da cidadania pela Bleger, J. (1993). Temas em psicologia: entrevista e
apropriação positiva da identidade de ser grupos. São Paulo: Martins Fontes.
mangueirense, o que se dá por meio da interação
social estabelecida por suas atividades, que Constant, F. (2007). Tantinho, memória em verde e
influenciam a relação com o processo educacional, rosa: Estudo do Processo de Construção de uma
com a promoção do lazer e com o conceito de Memória da Favela da Mangueira. 2007. 225 f.
democracia. Na atividade Minha história no CCC do Dissertação (Mestrado em História, Bens
Grupo Operativo, Cristina (13 anos) escreveu sobre Culturais e Projetos Sociais) – Centro de
sua experiência e sobre o que acha importante: “O Pesquisa e Documentação Histórica, Fundação
que eu mais gosto de fazer no CCC é [sic] dos cursos Getúlio Vargas. Rio de Janeiro.
e o que eu acho interessante é que o CCC tem
ajudado a tirado [sic] as crianças das ruas e fazendo Costa, M. (2002). Samba e Solidariedade: capital
das crianças grandes músicos”. social e parcerias nas políticas sociais da
Após abordar a formação da Mangueira para Mangueira. Rio de janeiro: fabrica de Livros.
apresentar o campo social em que está inserido o
Macêdo, Cibele Mariano Vaz de; Andrade, Regina Gloria Nunes. Mangueira: a cultura comunitária e o Centro
Cultural Cartola
Costa, M. (2002). Sinergia e capital social na comunicação, arte e cultura. (pp. 31-45). Rio de
construção de políticas sociais: a favela da Janeiro: EdUERJ.
Mangueira no Rio de Janeiro. (2003). Rev.
Sociol. Polit., Curitiba, 1(21). Recuperado de Osório, L. (2003). Psicologia Grupal: uma nova
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art disciplina para o advento de uma era. Porto
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Pichon-Rivière, E. (2000). O processo grupal. São
Paulo: Martins Fontes.
Diniz, E. & Bonito, Â. (2004). Crianças famosas –
Cartola. São Paulo: Callis.
Ramalho, M. (2004). Cartola. São Paulo: Moderna.