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Literatura e Sociedade

em Estudos Acadêmicos

Marcela Ferreira da Silva


Claudia Vanessa Bergamini
(Organizadoras)
Literatura e Sociedade
em Estudos Acadêmicos
Conselho Editorial Técnico-Científico Mares Editores e Selos Editoriais:

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Literatura e Sociedade
em Estudos Acadêmicos

1ª Edição

Marcela Ferreira da Silva


Claudia Vanessa Bergamini
(Organizadoras)

Rio de Janeiro
Mares Editores
2016
Copyright © da editora, 2016.

Capa e Editoração
Mares Editores

Dados Internacionais de Catalogação (CIP)

Literatura e Sociedade em Estudos Acadêmicos /


Marcela Ferreira da Silva; Cláudia Vanessa Bergamini
(Organizadoras). – Rio de Janeiro: Mares, 2016.
310 p.
ISBN 978-85-5927-022-8
1. Análise e crítica literária. 2. Literatura I. Título.

CDD 801.95
CDU 82

2016
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores
Contato: mareseditores@gmail.com
Sumário

Introdução / Apresentação .................................................................. 9


A comédia Lisístrata de Aristófanes: A carnavalização das relações
sociais ................................................................................................ 16
Comentário às produções didáticas direcionadas ao Ensino Médio:
análise de um soneto de Gregório de Matos ..................................... 45
A negação do romance harmônico em Pirandello: Ecos da
Modernidade ..................................................................................... 60
Os textos de João do Rio: o olhar de um cronista sobre sua sociedade e
seu tempo ........................................................................................ 181
Machado de Assis e a crítica de seu tempo: contexto de formação da
vida literária brasileira ....................................................................... 88
O romance social de Dostoiévski e os movimentos sociais anticzaristas
........................................................................................................... 60
Uma conversa diária com Marques Rebelo: análise de crônicas
publicadas no periódico carioca Última Hora .................................. 200
No encalço do contemporâneo: considerações sobre a narrativa
brasileira das últimas décadas ......................................................... 223
Ainda é possível falar em geração? Um olhar para a narrativa brasileira
da década de 90 ............................................................................... 223
Construção da identidade: Confluências e singularidades em Esse não
é o presente que eu pedi (2015 e Meu irmãozinho me atrapalha
(2016)............................................................................................... 261
O Cortiço: Sociedade e Capitalismo em Aluísio Azevedo.................. 114
Sobre os autores .............................................................................. 282
Apresentação

Cada dia tem sua palavra de ordem, seu vocabulário,


seus acentos. (BAKHTIN, 2002)

Nas últimas décadas do século XX e início do XXI, assistimos a um


crescimento significativo de materiais acadêmicos publicados tanto de
forma impressa quanto digital. O que é um avanço para a produção e
circulação do conhecimento em diferentes áreas. Beneficiado
diretamente pelo desenvolvimento da tecnologia dos mass media, o
sistema literário também tem conseguido, como nunca, a ampliação
do seu público leitor, bem como a inovação dos novos meios de
produção, difusão e recepção da Literatura. Diante de cada contexto
social e histórico, a Literatura sabe dar respostas formais e temáticas,
ultrapassando seus limites e modificando até mesmo o conceito de
literariedade. Como defende Mikhail Bakhtin (2002, p. 370), ao atentar
para o texto em diálogo com o contexto, as representações das
linguagens são construídas por pessoas que pensam e atuam em
situações sociais concretas. Em outras palavras, todos enunciam de
um lugar de fala particular, marcado por questões extraliterárias que
precisam ser levadas em consideração quando se pretende analisar a
Literatura.

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Entretanto, apesar desse vertiginoso crescimento da circulação
do conhecimento, não é novidade que no país há muitas regiões que
carecem de infraestrutura, que não contam com a presença de
bibliotecas e, quando elas existem, muitas não contêm acervos
satisfatórios e atualizados. Sabe-se que é ampla a produção de
conhecimento acadêmico e, dessa forma, acredita-se que o saber
produzido pela academia deva chegar às mãos de quem de fato dele
carece fazer uso. Nesse sentido, a organização deste e-book, além de
ser uma resposta às contingências do momento, configura-se como
possibilidade àqueles que buscam ter em mãos discussões pertinentes
voltadas à Literatura.
Literatura e Sociedade em estudos acadêmicos é um livro
organizado de forma eclética e contempla diversas análises feitas por
jovens pesquisadores de diferentes universidades brasileiras. A
multiplicidade de enfoques e de possibilidades de interpretar o texto
literário é o elemento mais marcante do livro enquanto conjunto. A
referida multiplicidade se desdobra na gama de gêneros literários
tomados como corpus das pesquisas desenvolvidas, por exemplo, o
teatro, a poesia, a crônica, o conto e o romance. No conjunto desses
textos, também, pode-se observar a diversidade de autores
trabalhados. Levando em conta a temporalidade dos escritores
estudados, é possível ir da Antiguidade grega aos dias atuais e, ao
observar a espacialidade dos críticos, encontram-se autores da
Literatura no Brasil e de outros países. Além desses aspectos, pode-se

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ressaltar ainda que os textos reunidos, neste livro, ocupam-se de
aspectos imanentes ao texto, mas também de elementos que
envolvem outros subsídios do sistema literário, como recepção,
produção e difusão da literatura, construindo, dessa forma, uma
dimensão ampla dos estudos literários no contexto da
contemporaneidade.
Ao ler os artigos, a importância de cada um deles se torna
evidente, demonstrando a relação com o título deste livro, pois se
preocupam em discutir os modos como os textos literários dialogam
com o contexto e como expressam os anseios e problemas da
sociedade em distintos momentos. Em muitos casos, é perceptível que
esses problemas atravessam o tempo e chegam à
contemporaneidade, às vezes, transformados em novos
questionamentos que exigem da literatura uma resposta formal-
conteudística particular.
Assim, a leitura de cada um dos artigos revela-se como prazerosa
e importante fonte para aprofundar os conhecimentos. Em A comédia
Lisístrata de Aristófanes: A carnavalização das relações sociais,
propõem-se aproximações entre a forma de se conceber a sociedade,
à época de Aristófanes, ou seja, na Antiguidade, com os dias de hoje.
A autora, Kátia Vanessa Tarantini Silvestri, aponta para o fato de que
os papéis sociais são construções ideológicas inacabadas.
Posicionamento importante para a autora consiste em observar o

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papel social da mulher como algo ideologicamente construído tanto
na Grécia antiga quanto na sociedade contemporânea.
Com o artigo Comentário às produções didáticas direcionadas ao
Ensino Médio: análise de um soneto de Gregório de Matos, Claudia
Vanessa Bergamini levanta algumas situações quanto à transcrição da
linguagem e da estrutura de um poema para livros didáticos,
chamando a atenção ao fato de que nem sempre os materiais
didáticos têm preocupações em reproduzir de forma integral a
linguagem ou mesmo distribuir os versos e vocábulos de acordo com
o original, o que pode acarretar problemas de sentido e de
reconhecimento da estrutura do gênero. Além disso, a autora coloca
em questionamento instigantes conceitos para se pensar o ensino de
Literatura na escola brasileira atual.
Ândrea Quilian de Vargas busca no texto do italiano Pirandello
elementos que apontam para o declínio moral e existencial do homem
moderno, a formar uma sociedade caótica. Essa discussão está
contemplada no artigo A negação do romance harmônico em
Pirandello: Ecos da Modernidade. Na obra de Pirandello, aponta a
autora, está refletida a própria identidade de quem viveu e viu o
horror, o massacre, a morte, a instabilidade, gerada pelas catástrofes
que povoaram o século XX, sobretudo, a sua primeira metade.
Clarissa Mazon Miranda traz em Os textos de João do Rio: o olhar
de um cronista sobre sua sociedade e seu tempo o olhar de João do Rio
sob o Rio de Janeiro a revelar “as intersecções e correlações

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comparativas possíveis entre literatura, história e jornalismo.” Na sua
análise, a autora aproxima a obra de João do Rio ao movimento da art
nouveau, demonstrando a perspicácia do autor ao tratar dos dramas
urbanos e das marcas que o inexorável tempo deixou na arquitetura,
na literatura e na história da cidade.
Machado de Assis e a crítica de seu tempo: contexto de formação
da vida literária brasileira é titulo do estudo de Raquel Cristina Ribeiro
Pedroso, no qual aponta o olhar de Machado para os elementos que
compunham o cenário social do Brasil e, não raras vezes, eram
esquecidos pela maioria dos autores, que se voltavam a elementos
outros, recaindo sobre Machado a narrativa que se faz numa
reelaboração da experiência social. Em outras palavras, Machado não
se ocupa simplesmente de pintar a cor local, retratando os costumes
da época, mas, de forma crítica e irônica, faz refletir de maneira
profunda, por meio de seus textos, sobre a estrutura social brasileira.
Com Ludmilla Carvalho Fonseca nos deparamos com uma
instigante discussão sobre os temas sociais presentes em romances de
Fiódor Dostoiévski. O artigo, intitulado O romance social de
Dostoiévski e os movimentos sociais anticzaristas, volta-se a discutir os
movimentos sociais, “que buscavam combater a opressão do regime
autoritário dos czares”. A autora traz interessantes dados históricos e
culturais da Rússia do contexto em que viveu Dostoiévski, sem deixar
de lado a discussão dos elementos formais e temáticos da obra do
escritor que dialogam com o referido contexto.

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O nome do carioca Marques Rebelo, pouco discutido no cenário
crítico brasileiro, é apresentado por Cláudia Vanessa Bergamini, no
artigo Uma conversa diária com Marques Rebelo: análise de crônicas
publicadas no periódico carioca Última Hora. A autora analisa crônicas
ainda inéditas as quais “marcam um tempo e revelam o estilo de um
importante autor da Literatura Brasileira, que muito contribuiu com a
imprensa”.
Em No encalço do contemporâneo: considerações sobre a
narrativa brasileira das últimas décadas, Marcela Ferreira da Silva
discute a narrativa contemporânea, em um contexto em que a
Literatura e a Arte são tidas como mercadoria e forma de
entretenimento, fato que vai, segundo a autora, desestabilizar a noção
de arte perene tão valorizada por grande parte dos estudos críticos e
teóricos ao longo do século XX.
Marcela Ferreira da Silva, no artigo Ainda é possível falar em
geração? Um olhar para a narrativa brasileira da década de 1990,
analisa duas antologias e contistas que começaram a produzir na
década de 1990, a discussão aponta para as relações entre literatura,
indústria cultural e meios de comunicação de massa, observando
como, na última década do século XX, a multiplicidade de temáticas e
procedimentos formais são as marcas que vão desestabilizar a noção
de geração.
Com o artigo Construção da identidade: Confluências e
singularidades em Esse não é o presente que eu pedi (2015 e Meu

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irmãozinho me atrapalha (2016), Vanessa Cassia Sobrinho Quenehen
vale-se de conceitos da Literatura Comparada para analisar duas obras
de Literatura Infantil, as quais trazem como temática os conflitos
vividos pelo irmão mais velho quando este se depara com a chegada
do irmão mais novo.
No último capítulo do livro, intitulado O Cortiço: Sociedade e
Capitalismo em Aluísio Azevedo, Sílvio Takeshi Tamura faz a leitura de
uma das mais importantes obras do Naturalismo brasileiro. Além de
ressaltar as características literárias da obra, o autor do texto observa
que O cortiço também consiste em um importante documento para se
pensar o início da urbanização e do capitalismo no Brasil, compondo
um retrato cruel, caótico, violento e opressor, homólogo ao processo
de modernização no pós-Colônia, dando manutenção à segregação de
um grande contingente de brasileiros do final do século XIX e início do
século XX.
Dessa forma, deseja-se que o leitor, por meio da leitura dos onze
artigos que compõem esse livro, possa ter aprofundado seu
conhecimento sobre a Literatura produzida em diferentes
contingências contextuais e históricas, observando, como afirma
Antonio Cândido, em Literatura e Sociedade, que qualquer
interpretação da Literatura exige olhar para o texto literário fundindo
texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra.
As Organizadoras

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A comédia Lisístrata de Aristófanes: A carnavalização das
relações sociais

Kátia Vanessa Tarantini Silvestri

Introdução
O discurso literário e o discurso filosófico são gêneros muito
próximos, que se cortejam com grande reciprocidade. Discutem,
digamos assim, temas comuns como a existência humana, valores,
política, ética entre outros. Sabemos que Sartre, Rousseau, por
exemplo, são filósofos que usaram da literatura para expor suas
reflexões.
Aristófanes, poeta grego nascido em Atenas por volta de 455
a.C, apresentou sua peça Lisístrata em 411 a.C. Ao trabalhar com uma
tema que é real, a saber, a Guerra de Peloponeso, que já durava vinte
anos exterminado uma ampla parte da população grega.
Por meio da comédia e, vale dizer, de uma das peças mais
maliciosas de Aristófanes, o mundo é colocado de cabeça para baixo,
pois numa sociedade em que a democracia é uma forma degenerada
de poder e cidadania um conceito falho, Aristófanes inverte papeis, ri
do que não era classificado como risível. Desloca os papeis sociais e,
mesmo que somente em seu enredo, as mulheres, que não eram

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consideradas cidadãs, tornam-se as detentoras da possibilidade da paz
em meio uma guerra.
Na comédia apresentada por Aristófanes, uma mudança de
perspectiva ocorre: a ética e a busca da paz se apresentam a partir do
jogo do amor erótico e não mediante um vencedor e um perdedor.
Não há vencidos e derrotados na comédia de Aristófanes antes e
substancialmente, há, como veremos, uma defesa de remodelação da
sociedade grega da época, e uma severa crítica à forma como a própria
ética encontrava-se desvirtuada. Não obstante, toda a novidade é dita
pelas heroínas e não pelos heróis. É pela iniciativa de mulheres que
uma guerra que não afeta somente aos homens, é terminada. É uma
mulher que não mais representa o motivo da discórdia, como ocorre
nos mitos gregos, mas o exercício da ética e paz.
Sem anacronismo, Aristófanes não é um feminista, mas alguém
que não via na subjugação da mulher uma vivencia ética e um bem
para a sociedade. Como afirma Beauvoir (2009), a libertação da
mulher requer que ela se assuma como um ser assexuado.
Na peça de Aristófanes, é exatamente esse assumir-se como ser
assexuado que faz daquelas mulheres não mais o outro excluído de
uma sociedade, uma minoria, mas um agente ativo e, no caso
específico, ator político detentor de cidadania no sentido mais pleno
possível, o da liberdade da palavra que exige seu lugar na sociedade
por meio da ação que, para não perder o humor e a ironia da vida,
fazem uma greve de sexo.

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Gêneros discursivos nas entranhas sociais do ser mulher: o riso
subversivo
Em pleno século XXI que, se comparado cronologicamente ao
século V a.C, poderia nos fazer crer que conflitos de gênero e étnicos,
por exemplo, estivessem superados, nos apresenta outra realidade
não tão satisfatória. Na era em que há 48 opções de identidades de
gênero para nos identificarmos, o papel social mulher ainda enfrenta
grandes desafios. Ainda existe grande equívoco quanto ao
comportamento masculino e feminino, sendo este último,
erroneamente associado exclusivamente ao sexo feminino. Daí noções
que já se tornaram ditados populares ideologicamente oficiais como
“atrás de todo grande homem há sempre uma grande mulher”, ou
“homem não chora”. Essas noções, construídas socialmente,
reafirmam o etnocentrismo e todo tipo de preconceito.
A sociedade de hoje luta ainda por direitos iguais e busca,
principalmente na sociedade brasileira, superar a visão distorcida de
que feminismo, por exemplo, é uma ideia oposta à noção de feminino.
Por volta de 1980, no Brasil, era até perigoso se declarar feminista,
pois devido um senso comum fortíssimo, ser feminista era classificado
como ser feia ou lésbica ou ainda mal-amada. Um estereótipo
amplamente divulgado condenava até os homens que, de alguma
forma, se associavam a movimentos feministas.

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As duas ondas que explicam também o feminismo não só no
Brasil, mas no mundo nos diz que no caso da Primeira Onda, quando
mulheres lutavam especificamente por direitos políticos e
educacionais no final do século XIX e começo do XX a intolerância por
parte de diferentes segmentos da sociedade foi estrondoso, pois a
visão era de que as mulheres tinham um papel social que lhes cabia
predefinido. Muitos pensavam que as mulheres estavam querendo
abandonar o papel social de mãe, de esposa para vir a ter o papel social
de provedor, por exemplo, atribuídos historicamente aos homens. E
muitos homens se colocavam fortemente contra o movimento
feminista por não compreender que papeis sociais são atributos
humanos e não sinônimos de um sexo ou outro; que independem do
sexo.
A partir de 1960, o feminismo de Segunda Onda se desenvolve.
Seu foco foi o direito ao prazer, tão negado às mulheres na historia da
humanidade. No Brasil de 1960, o feminismo de Segunda Onda sofreu
grandes obstáculos devido a ditadura militar que por aqui ocorria.
Todavia, a Segunda Onda ganhou força e ampliou seu foco abarcando
a questão da violência, saúde, corporeidade além da sexualidade.
Dessa forma, o movimento feminista ultrapassa o nicho de luta de
mulheres, para uma luta de seres humanos por seres humanos. Por
uma luta de direitos e cidadania.
Porém, como construção social, a subjugação da mulher não
vem do nada. Há ao menos três fatos históricos que podem ser

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ressaltados. Quando pensamos em divisão social do trabalho a
primeira que se apresenta é a sexual. As mulheres, pela própria
biologia que carrega em si por nove meses uma vida nova e depois do
nascimento são a fonte de alimentação do rebento, deviam ficar
resguardadas nas cavernas enquanto os homens caçavam, por
exemplo. O ato de engravidar, dar à luz, amamentar foi a justificativa
para que a mulher ficasse no lar, pelo o que chamamos de atividades
reprodutivas (atividades domésticas e de cuidados), enquanto o
homem saia para explorar os arredores (atividades produtivas). O
cultivo do solo, fora o máximo de atividade fora do lar que, por muito
tempo, as mulheres puderam executar tanto pela proximidade com a
casa e com os filhos quanto pela maior garantia de proteção contra
animais selvagens e até mesmo de outros machos alfas.
Evidentemente, sabemos que as atividades reprodutivas foram
estereotipadas (ganham um tom de subjugação) como atividades
menores, decorrendo de menor valorização social, enquanto que as
atividades produtivas são as consideradas maiores, com valorização
social estabelecida. Mais precisamente, as atividades reprodutivas
foram naturalizadas, incidindo no determinismo biológico, cujo
resultado é uma a ideologia generalizante que afirma que a
desigualdade sexual origina-se na construção “natural” do ser fêmea
ou macho. Visão extremista que oculta ou mesmo ignora o fato de ser
a cultura uma construção simbólica, social e não natural no sentido de
uma decorrência direta da Natureza.

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Na Antiga Grécia, mulheres assim como escravos e crianças não
tinham cidadania. As mulheres eram consideradas de menor, num
sentido que podemos compreender de forma kantiana (2007),
durante toda a sua vida. De tal forma que era imprescindível um tutor,
também para usar o termo de Kant, que as guiasse por toda a vida. As
mulheres não tinham uma vida propriamente dita. Mal saiam de seus
aposentos e as mais jovens viviam ainda em maior reclusão. Os
ensinamentos domésticos eram passados das avós às netas e eram
fundamentais naquela sociedade visto que a função da mulher era se
tornar esposa e procriar.

O destino que a sociedade propõe historicamente


à mulher é o casamento. Em sua maioria, ainda
hoje, as mulheres são casadas, ou o foram, ou se
preparam para sê-lo, ou sofrem por não sê-lo. É em
relação ao casamento que se define a celibatária,
sinta-se ela frustrada, revoltada ou mesmo
indiferente ante essa instituição. (BEAUVOIR, 2009,
p. 407).

O casamento era um dever cívico, não envolvia


necessariamente laços efetivos, levando ao extremo a etimologia do
termo casamento – acasalar – para que a dinastia perpetuasse e os
filhos dessem, quando fosse a hora, um funeral a seus pais, visto que
a religião da época valorizava extremante o sepultamento, momento
em que os descendentes homenageariam a vida do morto.
Como uma das funções do casamento é dar filhos aos homens,
estes podiam aceitar ou rejeitar a prole. Caso fosse rejeitado, o recém-

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nascido era abandonado em praça pública independente da opinião
da mãe. Ou seja, o nascer de um filho só seria um laço efetivo e social
se o pai aceitasse a criança. Aceito e sendo homem, cabia ao pai a
tarefa de estabelecer os laços com a sociedade.
A tradição, que muitos casais ainda praticam de o noivo erguer
a noiva pelos braços para adentrarem no lar significava, já na época,
que a mulher não tinha direitos sobre aquele lar, mas que era levada
pelo marido, o verdadeiro detentor de direitos ali. O divorcio já existia
para os homens que facilmente poderiam deixar suas mulheres. Já
estas, mesmo abandonadas pelo marido continuavam a se manter
reclusas e eram vistas pela sociedade como as responsáveis pelo
divórcio por não terem sido a esposa que devia ser. Apesar de algumas
diferenças existirem em relação ao trato dispensado às mulheres entre
cidades como Atenas e Esparta e também entre as mulheres esposas
de homens ricos ou pobres, no geral, as mulheres só faziam o que os
homens de suas cidades lhes determinavam.
Aristóteles dizia que a mulher se define por uma carência de
certas qualidades. Na Idade Média, São Tomás de Aquino afirmava que
a mulher é um homem incompleto. No mito bíblico, a mulher surge
das costelas de Adão, que por serem supranumerárias não faria falta
uma delas, reafirma, portanto, a menoridade da mulher como para
toda a vida – um ser que nunca virá a ser autônomo.
No século XVIII, a subjugação da mulher, continua com um tom
mais moderado. Durante o Iluminismo, a luta pela autonomia é

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defendida, o ousar saber kantiano é um discurso destinado aos
homens no sentido que o próprio filósofo salienta haver uma
dificuldade para o belo sexo, assim como para toda a humanidade,
adentrar na maioridade:

O esclarecimento é a saída do homem da condição


de menor idade autoimposta. Menoridade é a
incapacidade de servir-te de seu entendimento
sem a orientação de um outro. (KANT, 2007, p.95).

Para Kant as mulheres são as civilizadoras de homens, todavia,


elas próprias não são capazes de julgamentos morais, pois diz ele “sua
filosofia não consiste em raciocinar, mas em sentir” (KANT, 1993, p.
50). O mesmo ocorre com Sofia de Rousseau (1995). Ao falar sobre a
educação de homens e mulheres, Rousseau afirma que as mulheres
devem ser educadas para agradar aos homens, já Emílio, seu modelo
masculino, deve ser educado para a autonomia.

[...] agrada-lhes, ser-lhes uteis, fazer-se amar e


honrar por eles [...], aconselhar, consolar, fazer-
lhes a vida agradável e doce. [...] Eis o dever das
mulheres em todos os tempos e o que lhes deve ser
ensinado desde a infância (ROUSSEAU, 1995, p.
502).

O que nos diz toda essa construção histórica sobre a mulher?


Responde Beauvoir: a mulher é o outro.

A humanidade é masculina, e o homem define a


mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não

- 23 -
é considerada um ser autônomo. [...] O homem é o
Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro. A categoria do
Outro é tão original quanto a própria consciência.
Nas mais primitivas sociedades, nas mais antigas
mitologias encontra-se sempre uma dualidade que
é a do Mesmo e do Outro”. (BEAUVOIR, 2009, p.
18).

A compreensão sobre a alteridade ficou por séculos resignada


aos caprichos do eu. O eu, senhor de si, definindo o outro. O eu
homem definindo o outro mulher. E podemos ainda dizer; o eu homem
branco definindo o outro mulher, o outro negro, o outro judeu etc.
A categoria do outro existe nas relações mais primitivas até as
dialéticas mais complexas. Todo eu, todo grupo, cria seus outros. O
desafio é compreender a categoria do outro, da alteridade não
simplesmente pela constituição que o eu lhe dá, mas como embate
discursivo, ideológico, tensões que estão nas entranhas das relações
sociais. Eu e Outro são categorias que não só se opõem, mas que se
constituem mutuamente. Bakhtin, em pleno século XX, afirma de
forma embrionária, que se há um que constitui o outro, é a alteridade
que convoca o eu. “[...] eu para mim sou esteticamente irreal”
(BAKHTIN, 2006, p. 174). É o outro que dá ao eu acabamento, que
sempre provisório, é a chave para a luta contra todo etnocentrismo,
egocentrismo e desigualdades forjadas pela constituição de minorias
ideologicamente definidas. Na mesma linha de raciocínio, corroboram
as palavras de Geraldi:

- 24 -
Depredação e recusa na relação com a alteridade
produziram desigualdades, e muitas do que
denominamos “diferenças sociais” são produções
destas desigualdades, já que as diferenças apenas
podem emergir entre semelhantes ou entre iguais.
[...] Diferença não é sinônimo de desigualdade.
Com diferenças muitas vezes escondemos
desigualdades. Diferenças só são percebidas nas
familiaridades compartilhadas; desigualdade são
recusas de partilha. (GERALDI, 2010, p. 114).

Eis que a pergunta se recoloca sobre o porquê um grupo se


impôs sobre outro, ou, em nosso exemplo, o porquê as mulheres
foram subjulgadas se, cada qual enquanto eu só se constituí em
relação a um outro?
A resposta tem de ser cuidadosa, pois facilmente se cai em
lugares como 1) O predomínio do macho branco europeu em
detrimento de todos os outros: mulheres, crianças, negros, judeus etc.
2) A maioria que domina as minorias, numericamente falando. Mas no
caso da subjugação da mulher não é um caso numérico. 3) A divisão
social do trabalho proletariado, mas antes mesmo do proletariado as
mulheres já existiam.
Eis que num raciocínio semelhante ao que Hanna Arendt
desenvolveu na reflexão sobre o holocausto, o deixar-se dominar,
subjulgar, humilhar, depreciar é também responsabilidade, diz
Beauvoir, das próprias mulheres e sua origem começa no biológico,
mas que de forma alguma pode definir atemporalmente o ser mulher,

- 25 -
pois ser mulher é uma construção, um gênero discursivo, que como tal
não está concluída.

Nem sempre houve proletários, sempre houve


mulheres. Elas são mulheres em virtude de sua
estrutura fisiológica; por mais longe que se
remonte na história, sempre estiveram
subordinadas ao homem: sua dependência não é
consequência de um evento ou de uma evolução,
ela não aconteceu. É, em parte, porque escapa ao
caráter acidental do fato histórico que a alteridade
aparece aqui como um absoluto. Uma situação que
se criou através dos tempos pode desfazer-se num
dado tempo: os negros do Haiti, entre outros, o
provaram bem. Parece, ao contrário, que uma
condição natural desafia qualquer mudança. Em
verdade, a natureza, como a realidade histórica,
não é um dado imutável. Se a mulher se enxerga
como o inessencial que nunca retorna ao essencial
é porque não opera, ela própria, esse retorno.
Como se entende, então, que entre os sexos essa
reciprocidade não tenha sido colocada, que um dos
termos se tenha imposto como o único essencial,
negando toda relatividade em relação a seu
correlativo, definindo este como a alteridade pura?
Por que as mulheres não contestam a soberania do
macho? Nenhum sujeito se define imediata e
espontaneamente como o inessencial; não é o
Outro que se definindo como Outro define o Um;
ele é posto como Outro pelo Um definindo-se
como Um. Mas para que o Outro não se transforme
no Um é preciso que se sujeite a esse ponto de vista
alheio. De onde vem essa submissão na mulher?
(BEAUVOIR, 2009, p. 20).

Apesar do desejo sexual e do desejo de perpetuar-se enquanto


espécie que liga o homem à mulher de forma que o homem venha a

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ter uma dependência da mulher, não libertou socialmente a mulher.
Como explica Hegel, na relação senhor e escravo o primeiro não
declara sua dependência. De forma paradoxal, o escravo interioriza
uma dependência do senhor e se coloca na situação de subjulgado. Eis
que o opressor e oprimido mantém uma relação doentia. Essa aliança
perversa termina se a mulher se colocar como sujeito, como eu e dizer
nós. É uma apropriação da palavra. É uma tomada de responsabilidade
que fará, afirma Beauvoir, que a aliança entre homens e mulheres seja
despolarizada e colocada em tensão real de igualdade de vozes.
Bakhtin (2006) nos diz que a monologia é sempre autoritária, oficial e
se funda na lógica do medo, da dominação e do ocultamento. A
monologia aqui é o discurso recorrente, oficial, supraestruturado
sobre o ser mulher. Um gênero secundário que precisa ser
desestabilizado constantemente, cotidianamente por gêneros
primários – as conversações entre familiares, amigos, as postagens, os
comentários, as aparentemente simplórias manifestações de
indignação do tipo ufa! Puxa! E precisa ser desestabilizado em nome
de relações humanas também pelas próprias mulheres. O quanto, as
mulheres, não reforçam essa monologia ao se recusarem se
reivindicarem como sujeito?

Assim, a mulher não se reivindica como sujeito


porque não possui os meios concretos para tanto,
porque sente o laço necessário que a prende ao
homem sem reclamar a reciprocidade dele, e

- 27 -
porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de
Outro. (BEAUVOIR, 2009, p. 22).

O diferente, no caso os dois sexos, se fundarem suas relações,


tal como se constituíram, no medo do diferente, há sempre opressão
e oprimidos. É necessário um cortejar a diferença, exigi-la, criá-la. Uma
visão do outro como alteridade – não há eu autossuficiente dominador
do outro; há sim, outro-eu, outricidade, alteridade.
Essa luta já é iniciada. Não está vencida. Quando me propus a
trabalhar com a comédia de Aristófanes, minha leitura dela é um
pouco diferente da de Beauvoir (2009), para quem “trata-se apenas de
uma comédia” (p. 21).
Ao analisar os discursos, e no caso o discurso da comédia, do
riso que como a visão carnavalesca do mundo,

destroem a seriedade unilateral e as pretensões de


significação incondicional e intemporal e liberam a
consciência, o pensamento e a imaginação
humana, que ficam assim disponíveis para o
desenvolvimento de novas possibilidades
(BAKHTIN, 2010, p.43)

Visa-se, portanto, um diálogo com a comédia de Aristófanes


cuja reflexão encontra no riso uma atitude que subverte os papéis os
lugares e as determinações pré-estabelecidas. Por essa perspectiva o
fazer rir tem um polo afirmativo, revigorante, transgrediente.
Nas histórias sobre o riso, lê-se que há ao menos dois polos: um
que degrada a alteridade menosprezando-a e monologizando-a, pois

- 28 -
visa à opressão e ocultamento das tensões sociais, o apagamento das
diferenças e inibição da ação autônoma. Porém, há uma outra
perspectiva do riso, a que inverte, debocha de todas tentativas de
opressão social fundadas numa noção hierárquica do poder. Como
discute Bakhtin, o poder do riso é o único inalienável. Não é um rir do
outro por sua fraqueza ou erro; é um rir de um fato social, de uma
coletividade que ri de seus opressores e ainda um rir de si mesmo. É
nesse sentido que o riso provocado por Aristófanes é um riso
libertador. Encontram-se os elementos carnavalescos em sua comédia
que definem, perante a estrutura bakhtiniana, o riso carnavalesco que
ultrapassa as barreiras impostas, a ideologia oficial – os modos de ser
e agir estipulados.
Que elementos carnavalescos são esses presentes em algumas
literaturas?

As Categorias carnavalescas – as do avesso


(“mundo ao avesso”, vida ao contrário”); a da
abolição da ordem hierárquica (livre contato
familiar entre os homens); a da mistura de valores,
pensamentos, fenômenos e coisas (sagrado e
profano, sublime e ínfimo, sábio e tolo etc); a da
profanação (sacrilégio carnavalesco, obscenidades
e sátira carnavalesca). (PONZIO, 2009, p. 172).

Veremos esses elementos na comédia Lisístrata ou a greve do


sexo analisando trechos e compreendendo que os escritos de uma
época refletem e refratam a sociedade que os origina e é por eles
originada. Essa tensão entre forças centrípetas e centrífugas é a

- 29 -
própria nervura das relações sociais que como tais não se estabilizam
ao ponto do imutável, estão sempre em movimento próprio ao gênero
que é sempre dado e novo.

O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é


novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce
e se renova em cada etapa do desenvolvimento da
literatura e em cada obra individual de um dado
gênero [...]. O gênero vive do presente, mas
sempre recorda o seu passado, o seu começo. É o
representante da memória criativa no processo de
desenvolvimento literário. (BAKHTIN, 2011, p. 121,
grifo do autor).

A subjugação da mulher não é a mesma, não é totalmente


outra (seria a superação), mas ainda é um desafio. Como gênero se
repete e se renova, como gênero faz parte da estrutura social, como
gênero reflete e refrata as relações cotidianas. Daí ser o tema ainda
atual – o gênero se renova – e ser desafio social, ser ainda reflexos de
uma sociedade nossa. Veremos que em 411 a.C e em 2016, o mesmo
gênero se apresenta nas respectivas sociedades: ser mulher. Além do
nicho feminista, dentro das reflexões filosóficas, linguísticas e
sociológicas é um tema que apesar de ser uma luta que cada mulher
precisa, como aponta Beauvoir, tomar as rédeas é um tema social
enquanto gênero discursivo, enquanto os discursivos que circulam e
formam assim como são formados socialmente.

A greve do sexo de Lisístrata e a carnavalização

- 30 -
Durante a guerra de Peloponeso, que ocorreu entre Atenas e
Esparta, e durou de 431 a 404 a.C, cuja disputa se dava pelo domínio
do poder político e militar entre as cidades, Lisístrata, uma mulher
ateniense declara sua própria guerra em nome da paz , da conciliação
e não do poder. Diz Lisístrata entusiasmada: “Então?! Se vocês
reconhecem que já foram aliados no passado, por que não fazem as
pazes? Se as brigas continuarem, os bárbaros se aproveitarão disse e...
perderemos a Grécia para eles!” (ARISTÓFANES, 2020, p. 132).
O tom político fortemente presente nas palavras de Lisístrata
usado como estratégia na argumentação com os homens e com a
definição de um outro, no caso os bárbaros, outros dos gregos, essa
passagem traz o propósito da guerra do sexo feito pelas mulheres que
por uma união singular, se firmaram como um nós e se fizeram ouvir.
O elemento carnavalesco aí presente é o sentido, o objetivo
que ultrapassa um interesse pessoal, mas traz uma luta maior, social.
As mulheres ao se rebelarem contra a condição social imposta,
lembremos que as mulheres não tinham cidadania, se constituem
como identidades que em nada tem a ver com a noção de idêntico.
Identidade é a constituição de si a partir da alteridade. Eis que as
alteridades são muitas e a identidade é volitiva, não coincide consigo
mesma. Antes, questiona o mesmo. Lisístrata e as demais mulheres
assumem uma identidade que não era a mesma até então a elas
permitida. Nesse trecho uma identidade política, ativa. E aí já temos
mais um elemento carnavalesco de riso subversivo: o dominado toma

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a palavra, cria diálogo, sai do lugar de monologia (só os homens
falavam), inverte os papeis, desestabiliza a relação padronizada entre
homens e mulheres.
Lisístrata e as mulheres do grupo conseguiram se fazer ouvir
com a greve do sexo. Elemento carnavalesco de conexão. Tudo no
corpo humano é elo. É diálogo. Todavia, na concepção carnavalesca do
corpo, os destaques para essas n conexões são atribuídas à boca, aos
olhos e às genitálias.
A greve do sexo é extremante carnavalesca ao percebermos
que 1) a mulher tinha como função social, dever cívico, mesmo não
sendo cidadã nos direitos, casar e dar ao homem e à sociedade futuros
filhos e membros respectivamente. Lembremos que o casamento não
estava necessariamente associado ao amor, aos laços afetivos. Ao se
recusarem fazer sexo, essas mulheres se recusam a cumprir com o
papel previamente distribuído. 2) Porém, o mais carnavalesco na
estratégia da greve é que todas as mulheres envolvidas gostavam do
sexo. Eis a questão: as personagens não fizeram a greve do sexo por
ser mais fácil a elas, partindo do pressuposto que em muitos casos,
devido a falta de laço afetivo que unia casais o sexo não fosse um
momento de maior prazer para essas mulheres. Na obra elas afirmam
em claro e bom tom sentirem muita falta de seus maridos e do sexo.
O que quero dizer é que na obra há essa inversão de valores, as
mulheres assumem o gostar do sexo, o querer o sexo e, nas palavras

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de Beauvoir, se assumirem como seres sexuados, ativos de produção
e não só reprodução.
A forma como as mulheres se unem para tomar a decisão
coletivamente para por um fim à guerra é ritualístico, é carnavalesco,
é na forma da festa. Um encontro sem hierarquia, mas organizado à
sua maneira, a maneira popular, evidenciando mais um dos elementos
carnavalescos que é a forma de relacionar-se mediante um coletivo,
um certo exagero com um tom leve, com gargalhadas, que de nada
tem de ingênuo ou niilista, mas que carrega em si a subversão de todas
os discursos que se estabilizam e se materializam nas ações,
pensamentos, falas etc.; no nosso exemplo, o papel social dado às
mulheres e, como não nos deixa esquecer Beauvoir, levado a frente
em muitas situações pelas próprias mulheres.
Nas palavras de Aristófanes:

Lisístrata: Não sobra tempo pra transar! Desde que


a guerra começou está difícil encontrar algum
homem pela cidade! Se continuar assim,
deixaremos de ser cortejadas! É por isso que criei
um plano! A nossa força de vontade acabará com
essa guerra!
Cleonice: Sou capaz de enfrentar qualquer coisa!
Mirrina: Pela paz, estou disposta a tudo, porém até
me cortar pelo meio feito um linguado!
Lampito: Para ter meu homem de volta, se for
preciso, escalo as montanhas mais altas! [...]
Lisístrata: O plano é este: não fazer sexo em
hipótese alguma!
(Decepção geral. Todas ficam chateadas e se
afastam de Lisístrata.)[...]

- 33 -
Mirrina: Abrir mão do sexo?! Prefiro ir pra gera! [...]
Cleonice: Topo qualquer parada, ando até sobre
brasas, mas não fico sem “aquilo” de jeito nenhum!
(ARISTÓFANES, 2002, p.60-61).

Depois de muita reclamação, as mulheres se convencem que


seria a melhor tática a greve do sexo para acabar com a guerra e ter,
como resultados, a paz e o prazer. Com um juramento que muitas
tiveram dificuldades para proferir, gaguejando e tentando até fugir do
encontro, finalmente, armadas com uma taça de vinho, à moda
dionisíaca, proclamam com gritos de vitória, a greve do sexo.

Lisístrata: Então vamos fazer um juramento. [...]


Lampito: Ótima ideia. [...]
Cleonice: De que maneira vamos jurar?
Lisístrata: Igual aos homens, colocando as mãos
sobre os escudos.
Cleonice: Mas escudo... lembra guerra e nós
queremos paz!
Lisístrata: Então como faremos? Já sei! Vamos usar
uma taça de vinho![...] Coloquem a mão sobre a
taça. [...] Uma de vocês repetirá tudo o que eu
disser! (todas colocam a mão sobre a taça). Não
deixarei nenhum homem ou amante... [...] Chegar
perto de mim...[...] ... Ficarei em casa sem
homem... [...] Enfeitada com túnica transparente
[...] Para que meu marido fique louco de desejo por
mim... [...] E se ele me tomar à força... [...] Ficarei
imóvel... [...] Não abraçarei, nem levantarei os pés
para o teto... [...] Nem farei qualquer movimento...
[...] Se eu cumprir esse juramento, que possa beber
desse vinho... [...] Mas se eu desobedecê-lo, que o
conteúdo desta taça se transforme em água.
(ARISTÓFANES, 2002, p. 65-70).

- 34 -
A estratégia de Lisístrata vai além. Juntas ocupam a acrópole,
deixando em casa filhos e deveres domésticos. Ao trancarem os
portões do pórtico da acrópole as mulheres detém o poder sobre todo
o tesouro da cidade e lá ficaram trancafiadas cheias de estratégias
eróticas para provocar os maridos até o ponto em que eles desistissem
da guerra.
Eis que alguns velhos, diz Aristófanes, ao perceberem que as
mulheres dominaram a acrópole se revoltam e tentam afugentá-las ao
acender uma fogueira na esperança que a fumaça as fizesse desistir.

“3º velho: (soprando a fumaça que sai da panela):


Pra caçar mulher, só com fogo bem acesso! Esta
fumaça é de matar! [...] 1º Velho: Vamos acender
algumas tochas e ir até a entrada da acrópole. Se
elas não abrirem as portas... morrerão
incendiadas! Que peso! (Malicioso). Vamos abaixar
os paus! (põe a lenha no chão; os outros velhos
fazem o mesmo)” (ARISTÓFANES, 2002, p.74, grifo
do autor).

As mulheres reagem com água e se afirmam, aos gritos, cidadãs


livres. No meio dessa confusão, o comissário aparece para resolver o
que para eles, homens velhos, era um absurdo visto vir toda essa ação
de mulheres. Os soldados são chamados para marcharem contra elas.
Estas se protegem com lanças e escudos e não cedem. Em meio à
tensão e o medo aparente dos soldados que jamais haviam se
deparado com tal cena, as mulheres propõem um diálogo. Mas o

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comissário não vê motivo algum prá dialogar com uma mulher e
Lisístrata enfurecida insiste:

Comissário: Eu, ficar quieto, enquanto você fala?!


Que pretensão!
Lisístrata: Quieto!
Comissário (exaltado): Uma mulher não pode exigir
que um homem se cale! Logo você, que usa saia!
Lisístrata: Não seja por isso: dou-lhe uma saia. É só
vesti-la e calar a boca!
(As MULHERES vestem o COMISSÁRIO com uma
túnica cor de rosa e amarram uma fita em seu
cabelo.)
Lisístrata: (dirigindo-se ao Comissário): Está ótimo!
Agora você é uma moça e ouvirá nossas opiniões.
(Entrega uma cesta a ele:) Pegue as agulhas, ajeite
o vestidinho e fique bordando. A partir de agora, a
guerra é assunto das mulheres! (ARISTÓFANES,
2002, p. 91-2).

A tensão entre o velho e o novo é mais um dos elementos


carnavalescos. Na perspectiva bakhtiniana do desdobramento das
relações sociais, ou seja, no movimento da vida, tudo é velho e novo
num constante jogo entre o dado e o por vir. Essa forma de
compreensão do movimento da sociedade questiona a imposição do
velho sobre o novo. O velho enquanto o dado, o discurso que
estabilizou-se, que se tornou oficial, prática, regra, costume etc. O
novo é a reviravolta, é o discurso que desestabiliza, põe o mundo de
cabeça para baixo, inverte a ordem, gera um encontro até então
negado socialmente.

- 36 -
O encontro entre eu e outro eu, em nosso exemplo, entre os
homens e as mulheres, os primeiros representando o dado e as
segundas o por vir.
A relutância do comissário em entrar no diálogo, é uma prática
da monologia, do eu ensimesmado, que se autoafirma senhor,
dominador e proclamador “Da Verdade”. A quebra com essa forma
autoritária, imposta, hierarquizada do eu (que no exemplo esse eu é o
macho branco dominador), se dá pela carnavalização extrema. As
vestimentas são também elementos carnavalescos, assim como o
linguajar e as armas de guerra. Ao vestirem o comissário de mulher,
ao impor a ele não o silêncio, mas a prática da escuta vê-se a alteridade
claramente quebrando com a imposição do eu e, como defende
Bakhtin, é o outro que me convoca a dizer. É o outro que me provoca
à ação. Embate discursivo é sinônimo de relações humanizadas,
politicamente democráticas, relacionalmente éticas, pois o eu não
começa nada nem termina nada, é imprescindível ao menos duas
consciências para haver o mínimo de diálogo, de vida.
Aristófanes, pela boca de Lisístrata diz que a ética estava
corrompida. Que não se educava os adolescentes para a cidadania
realmente, paz e democracia, mas para a guerra, pois como dever
cívico, deveriam escravizar e matar outros gregos e todos aqueles
definidos como bárbaros – os outros.
Com a reviravolta do diálogo no lugar do silenciamento e
monologia, com o riso libertador, com o encontro de alteridades (as

- 37 -
mulheres se uniram vindas de diferentes cidades como Esparta,
Corinto, Beócia e Atenas), um coletivo, um corpo maior (elemento
carnavalesco), um nós se constitui. E mais um elemento carnavalesco
da temporalidade se apresenta: o encontro é temporário, efêmero,
acaba em seguida. Seu propósito não é o estabelecer-se, mas a
reviravolta, a festa, o encontro de diferenças cuja intenção, daí o viés
político e ético, é destronar a seriedade patética, como diz Bakhtin,
por abaixo o medo e opressão, afirmar-se enquanto singularidade:

O sério é o oficial, autoritário, associa-se a


violência, às interdições, às restrições. Há sempre
nessa seriedade um elemento do medo e da
intimidação. [...] Pelo contrário, o riso supõe que o
medo foi dominado. O riso não impõe nenhuma
interdição, nenhuma restrição. Jamais o poder, a
violência, a autoridade empregam a linguagem do
riso. [...] Ao derrotar esse medo, o riso esclarecia a
consciência do homem, revelava-lhe um novo
mundo [...] ela podia formar para si uma verdade
diferente, não oficial, sobre o mundo e o homem...
(BAKHTIN, 2010, p. 78, grifo do autor).

A comédia de Aristófanes é inteiramente carnavalesca, o que


equivale dizer que é prenhe do riso libertador. Não é qualquer fazer rir
o riso que nasce da visão carnavalesca do mundo, é um riso que nasce
da consciência da opressão, do peso das relações hierarquizadas, do
sofrer imposto por todo discurso intimidador, severo, sério. É um riso
que nasce do ultrapassar lugares e funções pré-estabelecidas por eus
ensimesmados. E o ultrapassar carnavalesco é fundado no que há de

- 38 -
mais material, o corpo e suas imbricações. Daí a greve do sexo, o negar
a ligação, o encontro em nome de um encontro maior, mais popular,
coletivo. As mulheres limitam, por aquele período, o que era norma,
normal (esposas serem esposas perfeitas); recusam uma das conexões
entre os corpos em nome de mais conexões entre os corpos, pois não
há discurso ou ideologia desencarnada.

Por isso o papel essencial é entregue no corpo


grotesco àquelas partes, e lugares, onde se
ultrapassam as fronteiras entre dois corpos e entre
o corpo e o mundo, onde se efetuam as trocas e as
orientações recíprocas. Por isso os principais
acontecimentos que afetam o corpo grotesco, os
atos do drama corporal – o comer, beber, as
necessidades naturais (e outras excreções:
transpiração, humor nasal, etc.), a cópula, a
gravidez, o parto, o crescimento, a velhice, as
doenças, a morte, a mutilação, o
desmembramento, a absorção por um outro corpo
– efetuam-se nos limites do corpo e do mundo ou
nas do corpo antigo do novo, em todos
acontecimentos do drama corporal, o começo e o
fim da vida são indissoluvelmente imbricados.
(BAKHTIN, 2010, p.277, grifo do autor).

Nesse sentido, as armas de guerra das mulheres serem o sexo,


o erotismo de provocarem os homens com a falta de sexo e ter um
controle momentâneo da situação por meio dos artifícios de todo
corpo que superou a visão dualista, racionalista e se vê como grotesco:
fronteira e conexão exigida pela alteridade.

- 39 -
Cleonice: Mas o que podemos fazer? Como
estratégia de batalha só sabemos nos enfeitar na
frente do espelho e vestir (com malícia)... ou despir
nossas túnicas...
Lisístrata: Pois serão essas armas que usaremos:
lábios vermelhos, túnicas transparentes,
perfumes... (ARISTÓFANES, 2002, p. 52).

E a greve do sexo se mantém. Alguns dos maridos que estavam


em batalha começam a voltar e se deparam com o caos. As mulheres
seguem com seu juramento e não cedem aos desejos seus nem de seus
maridos. E uma doença se espalha pelas cidades.

(Entra o EMBAIXADOR de Esparta; a túnica dele


está repuxada na altura do sexo, simulando uma
ereção. [...]
Embaixador espartano: Trago noticias de Esparta!
Onde esta o ministro?
(Entra o ministro de Atenas)
Ministro ateniense (dirigindo-se ao embaixador
espartano): Chi! Pelo jeito você também não transa
há um tempão!
Embaixador espartano (indignado): Isso são
modos?! Sou o senhor embaixador! Trago
propostas de paz.
Ministro ateniense: você vem pedir trégua com
essa arma apontada sob a túnica?
Embaixador espartano (envergonhado): Mas não
estou armado...
Ministro ateniense (levantando a túnica do
embaixador): É uma grande “lança”!
Embaixador espartano (abaixando a túnica): Você é
maluco? Tira a mão daí!
Ministro ateniense: Não se envergonhe... A nossa
situação está igual à de vocês! [...]. Ah, já entendi!
É uma “paralisação sexual geral”! Não há outra

- 40 -
saída: precisamos firmar um acordo! Vá depressa e
dia aos espartanos para enviarem seus
representantes. Enquanto isso, vou fazer o mesmo
com nossa assembleia. (ARISTÓFANES, 2002, p.
122-124).

Lisístrata é chamada. Junto com outras mulheres colocam


espartanos e atenienses lado a lado puxando-os pelo sexo.

Lisístrata (entusiasmada): Espartanos e atenienses,


ao menos uma vez na vida, fiquem desarmados e
ouçam o que as mulheres têm a dizer! Vocês
precisam se unir para que a Grécia sobreviva!
(ARISTÓFANES, 2002, p. 130).

Com a liberdade da palavra1 conquistada pela greve do sexo,


Lisístrata discursa sobre o passado e futuro da Grécia, e os homens,
mesmo os velhos se reconciliam com as mulheres concordando com a
necessidade da paz.
A festa então começa. Esta que é o encontro com o diferente,
com o outro. Que é um dos elementos mais fortes da carnavalização
da vida, dos discursos, dos lugares, dos papéis, pois quebra com a
imposição, tudo que é alto é levado abaixo, rebaixamento de todas as
coisas, hierarquia suspensa.

1
Há uma diferença semântica trabalhada pelo Círculo bakhtiniano entre liberdade
de palavra e liberdade da palavra. A liberdade de palavra é o que está no lugar de
dizer habilitado pela lógica hierárquica. A liberdade da palavra é o assumir a
diferença não com indiferença. É o encontro de alteridades que do seu lugar único e
intransferível diz.

- 41 -
A festa é isenta de todo sentido utilitário (é um
repouso, uma trégua, etc). É a festa que, libertando
de todo utilitarismo, de toda finalidade prática,
fornece o meio de entrar temporariamente num
universo utópico. É preciso não reduzir a festa a um
conteúdo determinado e limitado (por exemplo, a
celebração de um acontecimento histórico), pois
na realidade ela transgride automaticamente esses
limites. (BAKHTIN, 2010, p. 241).

Mulheres e homens, espartanos e gregos festejam


transgredindo os limites do ser homem, do ser mulher.

Lisístrata (bem alto):


MU-LHE-RES! ATACAR! Agarrem seus maridos!
(os casais se abraçam). [...]
Embaixador espartano:
Cada um pegue sua mulher! Vamos sair do sufoco,
moçada!
(Todos saem dançando, cantando e jogando flores
para o alto). (ARISTÓFANES, 2002, p.133-134)

As obras literárias não são também desencarnadas. São


reflexos e refratam as relações da sociedade. São discursos que na
grande maioria das vezes questionam as ideologias oficiais, os lugares
predestinados. Podem fazer isso por diferentes gêneros discursivos,
Aristófanes o fez com a comédia ricamente carnavalesca em nossa
compreensão enfatizando também a feminilidade que, como adverte
Beauvoir (2009), “todo ser humano do sexo feminino não é, portanto,
necessariamente mulher; cumpre-lhe participar dessa realidade
misteriosa e ameaçada que é a feminilidade” (p. 16).

- 42 -
Cada época busca seu grau de evolução. Por isso é grande a
batalha travada pela arte cênica e literária de Aristófanes, que como
autor (homem) numa época em que nem no teatro as mulheres
podiam encenar e, às vezes, nem assistir, levou ao público (aos
cidadãos essencialmente formado por homens) tamanha
carnavalização de seus costumes, tradições e ritos questionando a
forma de ser do sexo masculino e, conferindo às mulheres de sua
época um outro acabamento, como pudermos notar de ativismo,
iniciativa, perspicácia e feminilidade sem perder, em momento algum,
o riso carnavalesco e o embate discursivo que existe em toda
sociedade em qualquer tempo, mesmo quando há fortes tentativas de
silenciamento e apagamento as ideologias circulam e se afetam
reciprocamente. De forma semelhante a Beauvoir, não há para
Bakhtin sujeito alienado, a teoria da vitimização também não lhe
parece correta. O que existe para ambos pensadores são construções
sociais opressoras, isso sim, mas sempre há resistência, êxodo e
ressignificações em todas as relações sociais. É um olhar aberto,
dialógico, carnavalesco que nos aproxima dessa compreensão e
possibilita a todos nós civis, pessoas, sujeitos novas autoavaliações,
novos olhares, novas formas de agir, de compreender e de estabelecer
relações sociais.
Referências

ARISTÓFANES. Lisístrata ou a greve do sexo. Rio de Janeiro, 2002.

- 43 -
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,
2006.

BAKHTIN, M. A Cultura popular na idade média e no renascimento: o


contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010.

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 2011.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro, 2009.

GERALDI, J. W. Ancoragens – estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro


& João Editores, 2010.

KANT, Immanuel. Considerações sobre o sentimento do belo e


sublime. São Paulo: Papirus, 1993.

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: “O que é o Iluminismo?”.


Petrópolis: Vozes, 1995.

PONZIO, A. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a


ideologia contemporânea. São Paulo: Contexto, 2009.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio ou da educação. São Paulo: Martins


Fontes 1995.

- 44 -
Comentário às produções didáticas direcionadas ao Ensino
Médio: análise de um soneto de Gregório de Matos

Claudia Vanessa Bergamini

Palavras iniciais
Ao adentrar o ensino médio, o aluno depara-se com o estudo
sistematizado da Literatura. Em um primeiro momento, as aulas são
direcionadas para o estudo da versificação, das rimas, das figuras de
linguagem, das diferenças entre a prosa, o verso e a prosa poética.
Trata-se de um período em que o aluno se vê diante da análise
estrutural de um texto. Ainda imaturo para tal atividade, não raras
vezes a desmotivação e o desinteresse imperam em sala de aula.
Apresentadas tais características formais, inicia-se o estudo das
escolas literárias, a começar pela primeira época lírica portuguesa, o
Trovadorismo, depois o Renascimento Cultural, com o Humanismo e o
Classicismo, até chegar ao período colonial brasileiro, momento em
que o nome de Gregório de Matos circula como principal expoente. O
ensino de Literatura prossegue no nível médio passando pelas demais
escolas e estéticas literárias, não somente do Brasil, mas também de
Portugal.

- 45 -
Apresentadas a partir de uma visão cronológica, as estéticas
literárias acabam sendo, para o aluno, manifestações que somente são
visíveis em um determinado contexto. Tal visão vem sendo sustentada
pelos materiais didáticos de forma exaustiva, a contribuir com a
concepção de que um estilo literário só circula naquele período. Daí a
dificuldade do aluno analisar poemas ou romances nos quais não se
têm definidas mascas da estética vigente. Cita-se, a exemplo, o
romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de
Almeida, cuja classificação sistemática o coloca como representante
do Romantismo, mas a leitura traz ao aluno dúvidas, uma vez que não
se podem reconhecer no enredo os elementos que didaticamente são
atribuídos às obras de tal período.
Dessa maneira, observa-se que o ensino de Literatura no nível
médio ainda se apresenta de forma limitada, justo porque se fia nessa
classificação cronológica. Outro ponto a ser observado no que se
refere ao ensino de Literatura no nível médio diz respeito ao modo
como os poemas são apresentados. Há materiais didáticos que
menosprezam questões ligadas à métrica ou a aspectos linguísticos,
sobretudo, quando se tem poemas do período colonial, em que o
vocabulário destoa do contemporâneo; assim, são feitas adaptações
semânticas que ora estão descontextualizadas ora implicam a perda
da métrica original do texto.
Nesse sentido, este artigo analisa a apresentação de um soneto
de Gregório de Matos, em dois materiais didáticos destinados ao

- 46 -
ensino médio. Ressalta-se que ambos são sistemas de ensino
renomados no Brasil. Verifica-se os aspectos ligados ao vocabulário, à
métrica e ao modo como o poema é abordado, descontextualizando-
o de seu período. Não se trata de tecer críticas ao material em análise,
tampouco de se propor que os materiais didáticos sejam edições
críticas; antes, porém, deseja-se enfatizar o papel da crítica textual
como área do conhecimento que respeita a língua, as formas, a
fonética, o tempo e o autor do texto.
A escolha do tema deste artigo se deu motivada por três
fatores. O primeiro deles se refere à larga experiência docente da
pesquisadora nas séries do ensino médio. Da atuação como
professora, surgiram as observações críticas em relação ao material
didático, sobretudo ao que se refere à adaptação da linguagem dos
poemas do período colonial ou mesmo das cantigas trovadorescas e
textos dramáticos de Gil Vicente. A adaptação, com vistas a aproximar
a linguagem do texto à realidade do aluno, acarreta problemas de
ordem diversa, a saber: divergências métricas, descontextualizações e
questões semânticas. Não raras vezes, a pesquisadora depara-se com
adaptações errôneas que em muito influenciavam, de forma negativa,
a aprendizagem, chegando a confundir o aluno em formação.
Por fim, o terceiro fator diz respeito ao curso Teoria e Crítica
Textual: Teoria e Prática, ministrado pelo professor Dr. Francisco Topa
no primeiro semestre de 2014. Trata-se de atividade inerente ao
Programa de Pós-Graduação – curso de doutorado – da Universidade

- 47 -
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP – Campus de Assis.
Ao longo das aulas, foi possível vislumbrar a necessidade de que
qualquer adaptação a um texto seja feita com zelo, sobretudo quando
este se direciona ao jovem em formação.
Diante dessa realidade, buscou-se, neste estudo, analisar o
modo de apresentação de um poema de Gregório de Matos, poeta que
melhor representa a poesia barroca em Língua Portuguesa. Tomam-se
dois materiais didáticos e analisa-se a maneira como foi apresentado
um soneto, cuja autoria é atribuída ao poeta baiano.
Cabe ressaltar que a obra de Gregório de Matos, como enfatiza
Topa (1999, p. 19), ficou inédita por quase dois séculos e, somente no
século XX, alcançou êxito. Feito que só ocorreu graças a duas
tentativas de edições integrais, uma de Afrânio Peixoto e outra de
James Amado. A partir desses autores, multiplicaram-se os estudos
sobre Gregório de Matos; porém, Topa (1999) esclarece que em
muitos deles se vê a falta de serenidade e de profundidade crítica para
falar do autor. Passados 15 anos do trabalho realizado por Topa sobre
os manuscritos de Gregório, tal estudo ainda se configura como o mais
substancial acerca do poeta barroco.
Inserido no século XVII, Gregório de Matos dedicou-se à
produção de textos que abarcam as vertentes religiosa, reflexiva e
amorosa, tem-se ainda a poesia satírica, por meio da qual ele se tornou
mais conhecido. A própria crítica contribuiu para que se pensasse que
a essência de Gregório de Matos estivesse na poesia satírica, Jose

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Veríssimo (1969), o primeiro a produzir a História da Literatura
Brasileira e que, de certa forma, acaba por influenciar as que vieram
depois, assevera que a parte séria das suas composições é
genuinamente do pior seiscentismo. Já Araripe Junior (1970) eleva a
produção do poeta, enfatizando que na sintaxe dos versos da última
fase do poeta há algo de pouco comum com aquela que praticavam os
poetas do seu tempo, como se vê no uso da regência direta, o parco
emprego do hibérbato e a clareza de pensamento, nem sempre
encontrada nos cultistas de então.
Os materiais didáticos dos quais partiu este estudo enfatizam
sobremaneira a sátira de Gregório, comentam de modo superficial a
poesia religiosa, apresentam um exemplo da lírica reflexiva, por meio
de um poema em que o eu-lírico reflete sobre a brevidade da vida, e
quanto à lírica amorosa, não se tem um exemplo sequer.
Direcionados a alunos do ensino médio, os materiais didáticos
que balizaram este estudo apresentam, então, comentários
superficiais ligados ao autor em tela, e mais superficiais ainda são as
atividades solicitadas, por meio das quais não se podem propor
reflexões ligadas à métrica, à presença das figuras de linguagem ou
mesmo ao sentido que expressões ou palavras remetem. Assim,
considera-se que o estudo da obra gregoriana, cujos vestibulares
solicitam com veemência, ocorre de modo superficial e vicioso,
considerando somente o aspecto biográfico ou satírico em detrimento
do estético ou semântico da obra do autor.

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Apresentação do soneto em análise
O soneto aqui analisado pertence à lírica reflexiva atribuída a
Gregório de Matos. A escolha por tal poema se justifica tendo em vista
a escassez de poemas apresentados nos materiais didáticos que,
conforme já sinalizado, enfatizam a sátira em detrimento a outras
vertentes. Além disso, trata-se de um soneto emblemático, o qual é
comumente empregado para o ensino da poesia reflexiva gregoriana,
como se fosse o único que escreveu o poeta baiano, o qual, conforme
registrou Topa (1999) em sua tese, produziu mais de 900.
Abaixo segue o soneto à maneira como está disponibilizado nos
materiais, os quais se identificam com as letras P e A.

Material Didático P

Discreta e formosíssima Maria

Discreta e formosíssima Maria,


Enquanto estamos vendo a qualquer hora,
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos e boca, o Sol e o dia;

Enquanto com gentil descortesia,


O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança brilhadora,
Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,


Que o tempo trota a toda ligeireza,

- 50 -
E imprime em toda flor sua pisada.

Ó não aguardes que a madura idade


Te converta essa flor, essa beleza,
Em terra, em cinza, em pó, em sobra, em nada.

Material Didático A

Discreta e formosíssima Maria,


Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:

Enquanto, com gentil descortesia,


O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,


Que o tempo trota a toda ligeireza
E imprime em toda a flor sua pisada.

Oh, não aguardes que a madura idade


Te converta essa flor, essa beleza,
Em terra, em cinza, em pó, em sobra, em nada.

A começar pelo título, observe que em P, o primeiro verso foi


empregado como título do poema, já em A isso não ocorre e não há
qualquer menção ao título do soneto. À época, não era comum atribuir
título a todos os textos, por isso, é bastante recorrente empregar o
primeiro verso como título, isso ocorre também com os sonetos
camonianos e mesmo com outros sonetos de Gregório. Mas em

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nenhum momento é tecido qualquer comentário sobre o título, nem
direcionado ao aluno, tampouco ao professor, que se vê sozinho
diante de tal situação.
No primeiro quarteto, observa-se que a letra maiúscula foi
empregada no início de todos os versos, quando, na verdade, trata-se
da mesma ideia e, portanto, somente no primeiro verso deveria ter
sido grafada a palavra ‘Discreta’ com letra maiúscula, além de Maria
por ser substantivo próprio.
Ainda no primeiro quarteto, depara-se com uma variação no
último verso. Enquanto em P, tem-se: ‘Em teus olhos e boca, o Sol e o
dia;”, em A, tem-se “Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:”. Nota-se que
em P a vírgula aparece depois de ‘boca’, já em A, ‘e boca o sol’ aparece
entre vírgulas. Entende-se que a pontuação deve ocorrer somente
depois da palavra ‘boca’, uma vez que a ideia contida nos versos é a
de que os olhos reluzem como o sol e a boca é quente e agradável
como o dia. A figura presente nesse verso é denominada zeugma, que
consiste na omissão de um verbo já mencionado anteriormente. Nesse
sentido, a ideia é a de que é possível ver a qualquer hora nos olhos e
na boca o sol e o dia.
Ao final do quarto verso do primeiro quarteto se verifica que P
transcreveu o verso com ponto e vírgula, já A preferiu os dois pontos.
Entende-se que o emprego do ponto e vírgula é mais adequado, uma
vez que o eu-lírico se dirige à Maria e a oração iniciada por ele no

- 52 -
segundo verso deste quarteto ainda continuará a ser construída no
quarteto seguinte, por isso, a preferência por essa pontuação.
No segundo quarteto, cujos versos deveriam se iniciar com
letra minúscula, em A ocorre o emprego de uma vírgula depois de
‘enquanto’, no primeiro verso, em P essa vírgula já não aparece.
Concorda-se com A, pois a pontuação ali enfatiza o modo como o ar
espalha o cabelo de Maria.
No que se refere à seleção vocabular, a palavra ‘brilhadora’,
presente em P, foi substituída por ‘voadora’ em A. Observa-se que no
contexto dos versos, ‘voadora’ seria a palavra mais adequada, pois o
ar é quem espalha a trança; portanto, o sentido de brilhadora não se
sustentaria no conjunto da estrofe.
Um aspecto negativo do material P é a ausência de uma
referência a palavras cujo entendimento dariam ao aluno uma visão
mais profunda do texto, em A, encontra-se um glossário no qual
quatro palavras têm seu significado explicado, a saber: discreta,
transcrita como inteligente, sagaz; adônis, personagem mitológica,
homem dotado de extrema beleza (nota-se que foi transcrita com letra
minúscula e não maiúscula como ocorre no texto); trança, cabelos;
fria, madrugada.
No primeiro terceto, os dois primeiros versos são transcritos da
mesma maneira, mas no terceiro verso, A não colocou vírgula depois
de ‘ligeireza’, já P colocou. Optou-se por suprimir a vírgula, pois a

- 53 -
conjunção ‘e’ que inicia o próximo verso já dá ritmo ao texto e une os
dois versos, portanto, a virgula não parece necessária.
No último verso desse terceto, em P se tem a supressão de um
artigo antes da palavra ‘flor’; já em A, tem-se ‘toda a flor’. Nota-se que
semanticamente a presença ou ausência do artigo altera o sentido do
que se diz, pois ‘em toda flor’, como em P, a ideia é a de que a marca
do tempo é impressa em toda flor, qualquer uma. Já em A, o sentido é
de totalidade, ou seja, na flor inteira. Assim, como flor é metáfora de
mocidade, a ideia é a de que Maria seria em tudo afetada pelo tempo
que vem com rapidez consumir a mocidade. Versão que se acredita ser
a mais conivente com o sentido do texto. Além disso, mais uma vez se
nota que em A e em P a letra maiúscula foi empregada em todos os
versos, mas não houve ainda emprego de pontuação que justificasse
tal recurso.
O segundo terceto inicia-se com letra maiúscula, em ambos os
textos, o que se justifica, pois o verso anterior recebeu ponto final, mas
somente a letra maiúscula deveria ter sido empregada no primeiro
verso e não em todos como ocorreu nas versões em análise. A
interjeição que aparece no primeiro verso foi grafada ‘Ó’ em P e ‘Oh’
em A. Por se tratar de uma interjeição, acredita-se que o mais
adequado seria ‘Oh!’, da forma como ocorre em ‘A’, mas com a
inserção do ponto de exclamação, visto se tratar de uma espécie de
advertência que o eu-lírico dirige à Maria.

- 54 -
Em relação à métrica, mesmo com a inserção do ‘a’ no terceiro
verso do primeiro terceto, não se observa alteração, todos os versos
são decassílabos heróicos.
Cabe ainda destacar que nenhum dos materiais demonstrou
preocupação em orientar, seja o aluno ou o professor, sobre a escrita
em letra maiúscula das palavras ‘Aurora’, ‘Sol’ e ‘Adônis’. Nesse caso,
entende-se que caberia uma nota explicativa ao leitor sobre tal
recurso, visto se tratar de elementos da natureza que ali se encontram
em destaque. No caso de A, já se ressaltou que, no glossário, a palavra
‘Adônis’ foi grafada com minúscula. Outra explicação que caberia se
refere à mulher a quem o eu-lírico se dirige, ou seja, Maria, que no
contexto barroco pode ser interpretada como referência religiosa, mas
no contexto do poema a palavra pode ter sido empregada de maneira
genérica, ou seja, referindo-se a qualquer mulher.
Diante dessas constatações, elaborou-se uma versão para o
poema, a qual se apresenta abaixo. Não se deseja de modo algum
propor esta versão como definitiva ou a única adequada do texto, o
que se pretendeu foi criar uma versão a partir de indagações advindas
de alunos em situações reais em que o soneto foi lido em sala de aula.

Versão Proposta

- 55 -
Discreta2 e formosíssima Maria3,
enquanto estamos vendo a qualquer hora
em tuas faces a rosada Aurora4,
em teus olhos e boca, o Sol e o dia,

enquanto, com gentil descortesia,


o ar, que fresco Adônis5 te namora,
te espalha a rica trança6 voadora,
quando vem passear-te pela fria7:

goza, goza da flor da mocidade,


que o tempo trota a toda ligeireza
e imprime em toda a flor sua pisada.

Oh! Não aguardes que a madura idade


te converta essa flor, essa beleza
em terra, em cinza, em pó, em sobra, em nada.

A versão aqui proposta apresenta alterações, em relação às


presentes no material didático nos versos:
V 1: inserção de nota explicativa para as palavras Discreta e
Maria;
V 2: letra minúscula e ausência da vírgula;
V 3: letra minúscula e nota explicativa para a palavra Aurora;

2
Discreta: inteligente e sagaz.
3
Maria: referência à mãe de Jesus, ou no soneto pode se referir a qualquer mulher
esperta e inteligente.
4
Aurora: refere-se ao amanhecer do dia, à claridade vista no céu antes do sol nascer.
A letra maiúscula enfatiza o elemento da natureza, assim como Sol também está em
maiúscula.
5
Adônis: personagem da mitologia grega, de grande beleza.
6
Trança: cabelos.
7
Fria: madrugada.

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V 4: letra minúscula, colocação da vírgula depois da palavra
boca e ponto e vírgula no final do verso;
V 5: a expressão ‘com gentil descortesia’ entre vírgula;
V 6: letra minúscula e nota explicativa para a palavra Adônis;
V 7: letra minúscula e opção pela palavra ‘voadora’;
V 8: letra minúscula e nota explicativa para a palavra fria;
V 9: letra minúscula;
V 10: letra minúscula e supressão da vírgula;
V 11: letra minúscula e preferência por manter o artigo ‘a’;
V 12: letra maiúscula e inserção do ponto de exclamação;
V 13: letra minúscula;
V 14: letra minúscula.

Palavras finais
Ainda que se tenha em mãos o manuscrito original de um texto,
realizar um trabalho de crítica textual torna-se árduo, pois podem
ocorrer dificuldades acarretadas por ilegibilidade, rasuras no
documento ou manchas do tempo, provocadas por algum inseto como
a traça. Fato é que a atividade de transcrição de um texto exige
conhecimentos filológicos, de teoria literária e também históricos. Por
isso, as edições críticas da produção de um autor são escassas,
primeiro pela dificuldade, muitas vezes, de reunir o manuscrito,
segundo pela exigência de tempo e conhecimento os quais darão à
edição um corpo mais denso e significativo.

- 57 -
A intenção deste estudo, conforme já sinalizada, não foi de
elaborar um estudo aprofundado do soneto gregoriano, mas sim de
apontar como as produções didáticas, em especial as duas renomadas
das quais se partiu, carecem de cuidados ao elaborarem seus
materiais.
Ao longo da análise, observou-se que não ocorreu referência a
nenhuma fonte, não houve por parte de P, sobretudo, a preocupação
em contextualizar as palavras, nem em observar se o acréscimo de um
artigo ou de uma vírgula poderia alterar o sentido do verso.
Em A, embora se tenha o glossário, este poderia ser ampliado,
esclarecendo sobre o emprego das palavras em maiúsculo, por
exemplo. Ao lado da leitura de um texto, decorre também a leitura de
um tempo, de um contexto; assim, acredita-se que ler com alunos do
ensino médio um soneto é uma atividade que vai além da leitura
simplificada, pois o professor articulada conhecimentos vários, a fim
de dar significado ao texto.
Por fim, ressalta-se que os avanços tecnológicos são inúmeros;
porém, não suprimiram, e nem irão suprimir, o papel do professor e
do material didático. Dessa maneira, acredita-se que o cuidado com as
transcrições, assim como com as atividades propostas, cuja discussão
não coube a este artigo, deve ser posto em evidência, a fim de que o
aluno que desfrute desses materiais possa ter acesso a textos mais
explicativos, independente da época a que fazem parte.

- 58 -
Referências

ANGLO. Ensino médio: caderno de exercícios. São Paulo: anglo, 2012.

ARARIPE JÚNIOR, T. de A. Obra Crítica de Araripe Júnior. (Dir. de


A.Coutinho) 1ª. ed. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa; Brasília: MEC,
1958: I; 1960:II; 1963:III; 1970: V.

PEIXOTO, Afrânio. Obras de Gregório de Mattos. Rio de Janeiro:


Academia Brasileira de Letras, 1923-1933, 6. vols.

POLIEDRO. Português e Literatura. Ensino Médio. São José dos


Campos: Poliedro, 2013.

TOPA, Francisco [José de Jesus]. Edição crítica da obra poética de


Gregório de Matos. Porto: Edição do Autor, 1999, vol. I, t. 1, p. 19-23.

VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira. 5ª. ed. Rio de


Janeiro: José Olympio, 1969.

- 59 -
O romance social de Dostoiévski e os movimentos sociais
anticzaristas

Ludmilla Carvalho Fonseca

Introdução
Fiódor Dostoiévski (1821 – 1881) viveu em uma Rússia marcada
por profundas transformações. O século XIX russo trouxe à tona
perspectivas ideológicas, sociais e econômicas até então adormecidas
no grande império.
As mudanças empreendidas no governo do Czar Pedro, o
grande, ainda no final século XVII e início do século XVIII,
determinaram fortes consequências na Rússia de Dostoiévski (século
XIX). Pedro foi o imperador que mais se deteve em abrir as portas da
Rússia para a Europa ocidental. Conseguiu ampliar o território para a
região do Mar Báltico (Finlândia), tornando São Petersburgo o mais
importante porto da nação.
Em decorrência dessas ações pioneiras, o respaldo no século
XIX, no âmbito ideológico, econômico e cultural, foi profundo. A partir
desse momento, duas forças agiram de forma contrária diante do povo
russo: a noção ocidentalizante (advinda da força cultural europeia) e a
noção regionalizante (a manutenção da cultura genuína russa,

- 60 -
vinculada ao oriente). Essas concepções adversas notadamente
encontram-se visíveis no pensamento dostoievskiano.
Mas para dar continuidade à reflexão da Rússia de Dostoiévski,
é importante discutir o contexto socioeconômico da monarquia
czarista, pois é de relevante importância para o entendimento da
composição artístico-literária do autor em questão.

O contexto socioeconômico e político da Rússia czarista no século XIX


No século XIX, a Rússia já era um enorme território como o é
hoje. Atualmente, é o maior país em extensão territorial do mundo, e
essa questão territorial promoveu uma série de desafios, ao longo da
história russa, de integração, desafios de comunicação e,
principalmente, de formação de uma identidade genuína.
No passado, e ainda hoje a Rússia não é um país de somente
um povo (o russo). A Federação Russa é um conjunto de povos,
minorias étnicas e nações que lutam por autonomia. O que se concebe
chamar de nação russa é um mosaico pluriétnico de povos.
No século XV, o primeiro imperador a se intitular de Czar8, Ivã
III, conseguiu unificar todos os principados russos, iniciando, desse
ponto, o império russo e sua desmedida expansão territorial. Até esse

8
Czar refere-se a César, o imperador romano. A sociedade russa manteve por longo
tempo uma forte vinculação com a cultura romana medieval, principalmente aquela
ligada ao Império Bizantino, que originou a igreja ortodoxa, maioria religiosa até hoje
na Rússia. O modo de produção russo manteve-se quase intacto do período
bizantino até o final do século XIX, onde ainda existia a servidão, o latifúndio sob
controle dos nobres, e a pequena propriedade coletiva da terra.

- 61 -
momento, a Rússia era compreendida por uma estreita faixa de terra
a oeste da Polônia. As outras regiões, no extremo oriente, eram
tomadas pelos povos tártaros e mongóis.
Sobre a evolução histórica do império russo nota-se que,
inicialmente, no final do século XV, ele era bastante reduzido com
relação à dimensão que atingiu no século XIX. A expansão se deu de
forma intensa para a região leste (após os montes Urais),
principalmente para a região da Sibéria.
Do século XVII ao XVIII, o crescimento do império ocorreu de
forma marcante para o oriente e em menor grau para sua porção sul.
No século XIX, ocorreu a expansão máxima do território, chegando até
o Alasca (hoje Estados Unidos), no continente americano. Outro
direcionamento foi para a região sul, principalmente para a região
onde hoje se compreende o Cazaquistão, região marcada por
profunda diversidade étnica e religiosa.
A expansão do império russo se deu sustentada no
aculturamento (ou russificação das nacionalidades). A monarquia
czarista ia incorporando as outras nações, submetendo-as pela força
física e cultural. Esse comportamento do império se sustentou pelo
traço marcante da cultura russa, o militarismo.

- 62 -
Ilustração 01: Evolução Histórica do Império Russo.

O principal impacto da russificação dos povos foi o acirramento


de conflitos étnicos e a formação de uma nação pluriétnica. O povo
originário da Rússia eram os eslavos, localizados na região da Ucrânia.
Esse povo sempre foi maioria, dando origem ao que hoje se
convenciona chamar de russo. O pan-eslavismo vai delinear o processo
de submissão das diversas minorias étnicas e a ampliação do império
russo sobre terras distantes.
Atualmente, a Rússia é marcada pela presença de eslavos (os
antigos), russos (recentes), caucasianos, europeus, mulçumanos,
judeus, e ainda uma infinidade de povos que se encontram de forma

- 63 -
isolada na região da Sibéria, demonstrando uma diversidade de
realidades dentro de uma mesma nação.
A intensa expansão territorial e a submissão de diversos povos
trouxeram aos czares muito poder e prestígio no século XIX. O império
russo se tornou um dos mais importantes do mundo, naquele período,
e entre os mais extensos, garantindo o fortalecimento do sistema
autocrático e despótico dos czares.
Além da questão territorial do século XIX ser marcante, a Rússia
também é caracterizada, nesse período, pelo atraso econômico e,
consequentemente, por acirrados conflitos sociais. Enquanto a Europa
ocidental estava em um momento de pleno desenvolvimento
capitalista, gozando do industrialismo e do liberalismo econômico, a
Rússia se apresentava na condição semifeudal, conservando os valores
sociais, culturais e econômicos advindos da idade média.
As enormes dimensões territoriais e o isolamento causaram
uma crise de identidade, devido à dificuldade de sintetizar uma
identidade nacional em um império pluriétnico. O povo russo estava
entre a modernidade do ocidente e o tradicionalismo do oriente, se
fechando em seu próprio mundo.
O século XIX, período no qual Dostoiévski viveu, foi
profundamente impactado por um dilema sociocultural. A abertura
para o ocidente havia sido iniciada ainda no século XVIII com o czar
Pedro I, mas é somente no século XIX que esse fator torna-se motivo
de acirrados conflitos, causando um trauma entre o povo russo.

- 64 -
Havia a concepção ocidentalizante que preconizava a
necessidade de desenvolvimento econômico e social da Rússia e a sua
efetiva integração com a Europa Ocidental. Dentro desse movimento,
havia os liberais e os socialistas utópicos9. Outra concepção eram os
eslavófilos. Estes defendiam as originais tradições do povo russo
(eslavos), a autocracia e as tradições ortodoxas.
Em todo o século em destaque, o império russo obteve cinco
czares: Alexandre I, Nicolau I, Alexandre II, Alexandre III, e Nicolau II.
Dostoiévski viveu do governo de Alexandre I até o de Alexandre III. Em
1846, no governo de Nicolau I, Dostoiévski participou do movimento
político de socialistas utópicos, no qual o líder era Pietrachévski.
Dostoiévski foi acusado de conspirar contra o czar, planejando junto
com o grupo um atentado, sendo condenado e preso em 1849,
enviado para a Sibéria. Inicialmente, foi condenado à morte, mas no
último momento, já no local de execução, foi avisado de que sua pena
havia sido comutada10. De fato, passou nove anos na Sibéria. Na
Fortaleza de Omsk foram quatro anos de trabalho forçado, e mais
cinco como soldado raso – baixa patente (MASON, 1995).

9
No primeiro momento da carreira de Dostoiévski, ele se envolveu com o
movimento socialista utópico, rendendo-lhe uma prisão na Sibéria, caso que será
tratado à frente.
10
“O czar comutou as penas de morte para as de trabalhos forçados na Sibéria,
anotando sua decisão às margens dos processos. Ordenou, no entanto, que sua
decisão fosse comunicada aos réus somente no último minuto antes da sua
execução. [...] Os pelotões de fuzilamento tomaram posição e iniciou-se a chamada
dos condenados” (MASON, 1995, p. 115 – 116). Esse falso fuzilamento marcou
profundamente a vida de Dostoiévski.

- 65 -
No período de Alexandre I, a Rússia vivia um momento de
grande atraso econômico. Anteriormente, no governo de Catarina II,
ela iniciou certa aproximação com o ocidente, realizando fortes
reformas. Mas a principal mudança foi sua vinculação aos ideais
iluministas, que se tornou moda no governo de Alexandre I.
A base da economia russa do século XIX era sustentada no
latifúndio rural e no modo de trabalho servil. Os nobres (latifundiários)
se dividiam em dois grupos: os aristocratas rurais conservadores,
defensores do iluminismo; e os aristocratas urbanos radicais,
defensores do liberalismo. Os radicais liberais desenvolveram um
movimento conhecido como os decembristas que, segundo Frank
(1992, p. 66), foi o primeiro movimento revolucionário contra os
czares. Esse movimento foi fortemente reprimido pelo czar Alexandre
I. “Os decembristas, entretanto, não deram a devida importância à
obschina e tinham seus olhos firmemente fixos nos desenvolvimentos
sociais e políticos europeus, que tomavam como modelo”.
Segundo os decembristas, o que tornava a Rússia diferente da
Europa Ocidental era o fato de ainda não ter experimentado o
liberalismo econômico. Enquanto a Europa apresentava
desenvolvimento no ramo econômico, social e político, a Rússia ainda
estava afundada nos antigos ideais iluministas românticos, que
justificava as diferenças sociais e o sistema semifeudal, marcada pelo
poder dos déspotas esclarecidos representado pelos czares. Depois de
eles serem desarticulados, não houve mais nenhum movimento

- 66 -
liberalista na Rússia, consolidando as disparidades sociais e a
concentração do poder.
Outro importante movimento anticzarista, porém agora
intelectual e não somente político, desenvolvido na Rússia, foi a
intelligentsia russa. Notadamente, eles negavam o atraso russo e sua
forte vinculação com o iluminismo. Por outro lado, os adeptos à
intelligentsia valorizavam o enciclopedismo e a profunda dedicação
aos estudos teóricos.
A intelligentsia é considerada um dos mais importantes
movimentos intelectuais da Rússia. Fortaleceu-se na primeira metade
do século XIX, no governo de Nicolau I. Esse movimento não era
autêntico, pois devia sua inspiração aos grupos de intelectuais
franceses do século XVIII.
Por um lado, no momento em que o czar Nicolau I defendia o
iluminismo e reprimia o liberalismo, a intelligentsia foi buscar no
idealismo alemão sua maior fonte de inspiração intelectual. A
Alemanha vivia uma situação econômica similar à da Rússia, por isso,
segundo Hauser (2003), esse movimento desenvolveu carisma pela
filosofia alemã. Ainda com base em Hauser (2003, p. 865), Dostoiévski
participou de forma superficial da intelligentsia devido a esse
movimento ter sido marcado por rigor e exclusivismo.

O conceito de intelligentsia está sempre


relacionado na Rússia com o de ativismo, e sua
ligação com a oposição democrática é muito mais

- 67 -
íntima do que no Ocidente. Os nacionalistas
conservadores não podem ser vistos, de maneira
nenhuma, como pertencentes a essa intelligentsia
intransigente com seu exclusivismo sectário, e até
mesmo os dois mestres supremos do romance
russo, Dostoiévski e Tolstoi, só de forma limitada
fazem parte dela [...].

Além de ser anti-iluminista e de se basear no idealismo alemão,


advindo de Hegel, Schelling, e dos neo-hegelianos (principalmente
Feuerbach e Stirner), a intelligentsia criticava a civilização racionalista
utilitária europeia, afirmando seu declínio. Dessa concepção crítica
surgiu o romance social como veículo de proposição política. Segundo
Frank (1992), devido ao rigor do autoritarismo dos czares, o romance
social russo era o principal caminho para a discussão filosófica. Era
uma forma de driblar a censura e continuar a discutir filosofia.
Diferentemente dos outros movimentos, a intelligentsia era
formada por um caráter mais democrático. Faziam parte dela: a
pequena nobreza de tendências progressistas; plebeus e servos
emancipados, sendo principalmente artistas; pequenos lojistas
(burgueses); e os filhos dos clérigos, aversivos ao tradicionalismo
religioso.
Os eslavófilos compuseram o movimento político e cultural
mais presente no século XIX na Rússia. Seus objetivos exerceram
influência no pensamento de Dostoiévski, dos niilistas de 1860, e
também dos bolcheviques, inclusive em Lênin, diante da Revolução de
1917. O que garante essa forte vinculação ao povo russo é a sua

- 68 -
incansável necessidade de conservar a cultura russa genuína e os seus
valores e afirmar sua identidade nacional.
Os eslavófilos baseavam-se em preceitos ortodoxos advindos
da cultura romana e da fé religiosa. Na organização social, defendiam
a confiança e a ajuda mútua em oposição ao egoísmo. O respeito entre
governantes e governados era conservado, tendo o governo
autocrático dos czares como base.
O modo de produção social era denominado de obschina.
Modelo esse advindo de antigas tradições. Na obschina, o mutualismo
se sobressai ao individualismo, a terra é de uso comum, governada por
tradições honrosas. Acreditavam também em propostas messiânicas
de que o povo russo era a salvação da decadente sociedade ocidental,
adoecida pelo liberalismo. Nessa utopia conservadora, prevalecia o
sistema semifeudal.

- 69 -
Ilustração 02: Contexto histórico e sócio-político da Rússia no século XIX.

Essa característica marcante da obschina garantiu a


denominação de A Sagrada Rússia, segundo a qual a Rússia devia se
fechar diante de sua riqueza cultural e de suas tradições, se livrando
do mecanismo utilitarista criado pela Europa, nascido do iluminismo e
do liberalismo. Essa defesa de tradições patriarcais arcaicas, garantida
pela obschina, é retratada pela personagem Bazárov que defende que
o niilismo viria para superar essa crônica condição resignante na qual
a Rússia se encontrava, iniciando pela quebra das hierarquias
patriarcais existentes entre Pais e Filhos (TURGUÉNIEV, 1971).

- 70 -
Posteriormente, os populistas russos defenderam a obschina,
argumentando que ela era a gênese do socialismo, pois negava a
propriedade privada dos meios de produção, e o povo russo estava
preparado para o socialismo, pois estava habituado com o modo de
vida coletivo-igualitário.
Em contraposição a todos os movimentos já ocorridos na
Rússia, desenvolveu-se o movimento dos ocidentalizantes. Dentro
desse movimento, dividiam-se dois grupos: os pietrachévski e os
radicais. O último grupo teve como principais expoentes Bakunin,
Bielínski e Herzen, e ainda Píssarev, se distanciando desse grupo
devido à sua apologia ao niilismo, enquanto os outros oscilavam entre
o socialismo e o anarquismo.
Os ocidentalizantes radicais sofreram certas mudanças no
plano teórico, iniciando-se sob influência de Hegel, posteriormente
buscando inspiração nos neo-hegelianos, e ao fim, caminhando para
um posicionamento social radical. Nessa última fase, eles começaram
a partir da realidade material para transformar a sociedade pela ação
política, invertendo assim o idealismo alemão anteriormente adotado.
Dentro do movimento radical ocidentalizante surgiu a mais
contundente linha anticzarista na Rússia em pleno século XIX: os
niilistas. Tendo como seus principais divulgadores Píssarev e
Tchernichévski (este ainda conservava posição socialista radical). Os
niilistas, de início, adotaram posições utilitaristas e interpretações

- 71 -
diretas da realidade. A principal organização foi o movimento radical
de 1860.

Contudo, apesar de seu ocidentalismo,


Tchernichévski defendeu a obschina contra todas
as tentativas de dissolvê-la, na ocasião em que os
servos foram libertados, em 1861, e escreveu um
artigo para provar que a Rússia poderia pular o
estágio do desenvolvimento capitalista, já que a
posse comum da terra poderia servir como base
para o desenvolvimento socialista da agricultura.
Dmítri Písarev [...] foi muito mais coerente ao exigir
[...] a destruição da estética em favor da
alimentação das massas [...] (FRANK, 1992, p. 73).

Outro agrupamento ocidentalizante foram os pietrachévski.


Estes defendiam posições contrárias aos radicais, devido ao seu
caráter mais moderado e reformador. No extenso governo do czar
Alexandre II, ações reformadoras foram marcantes na segunda
metade do século XIX. Ocorreram reformas liberais e modernizantes,
através das quais o czar procurou renovar a estagnada sociedade
russa. Houve também a decisão de decretar o fim da servidão na
Rússia em 1861, por outro lado, manteve-se a estrutura de latifúndio.
Em decorrência das características dessa administração mais
flexível, o movimento pietrachévski ganhou força. Tinha como
característica idolatrar o czar Pedro, o grande, como o emancipador
da Rússia, além de preconizar a entrada maciça do capitalismo
industrial no império russo, sendo considerada a única solução para o
atraso econômico.

- 72 -
Já no final do século XIX, surgiu outro movimento social na
Rússia czarista: os populistas. Estes resgataram os valores tradicionais
da Sagrada Rússia e aliaram-se às ideias socialistas. No período desse
movimento, o czar Alexandre III sucedeu Alexandre II após este ter
sido assassinado. Em decorrência desse acontecimento, os governos
de Alexandre III e de seu sucessor Nicolau II foram marcados pelas
velhas tradições dos czares, tendo como princípio básico a autocracia
e o despotismo, desconsiderando as instituições burocráticas.
Nesse contexto, os populistas tornaram-se um movimento
atuante em defesa da igualdade social russa. Eles valorizavam a
obschina e cultivavam o que eles denominavam de socialismo
autêntico, buscando conservar o etos russo. Segundo os populistas, as
raízes do socialismo estavam no próprio modo de vida dos russos, sob
a obschina, muito antes do que nos socialistas utópicos da Europa
Ocidental e em Marx e Engels.
Outra característica marcante era seu excessivo nacionalismo.
Para os populistas, o povo russo era autêntico por não ter passado pelo
processo de divisão capitalista do trabalho e pela propriedade privada.
Ainda conservava uma pureza e, de forma messiânica, era a salvação
da Europa. Com base em Frank (1992, p. 76), sabendo do atraso russo,
os populistas defendiam uma incorporação industrial não-capitalista
para estimular sua economia.

A alternativa era a industrialização não-capitalista,


que estimularia todas as formas socializadas de

- 73 -
trabalho que ainda existiam na Rússia, tirando
proveito delas e ajudando na transição para formas
muito mais desenvolvidas de produção. Dessa
maneira, a Rússia seria capaz de chefiar o mundo
em direção a um industrialismo socialista, evitando
ao mesmo tempo os males do capitalismo.

A pessoa mais influente desse debate populista era Plekhánov,


que posteriormente abandonou as tendências populistas, aderindo-se
ao marxismo mais radical. Foi o responsável por criar o primeiro
partido marxista na Rússia. Lênin foi discípulo de Plekhánov, porém
não compartilhava com seu radicalismo.
A partir desse momento, houve uma ruptura entre marxistas e
populistas, determinada por um conflito ideológico. Por um lado, os
populistas acreditavam em um sonho messiânico, na construção de
uma singularidade sociocultural russa, e em uma igualdade orgânica.
Os populistas defendiam a cultura eslavófila e viam o industrialismo de
forma positiva. Por outro lado, os marxistas criticavam fortemente o
capitalismo que havia se instalado na Rússia no final do século XIX e
buscavam uma luta direta entre as classes, longe de propostas
reformistas. O destaque de Lênin e sua vinculação com os
bolcheviques determinaram os rumos da Revolução Russa socialista
de 1917. Plekhánov não apoiou Lênin, pois defendia que essa
revolução iria tomar rumos autoritários e que seria desconectada da
realidade sociocultural russa.
Diante dessas considerações, nota-se que na Rússia, em
decorrência dos fatores políticos autoritários dos czares, da condição
- 74 -
econômica semifeudal e dos elementos de desigualdade social, as
organizações político-sociais sempre foram ativas e contestadoras. O
mundo russo sempre foi espaço de experiência de sistemas sociais.
Houve uma trajetória do socialismo utópico (da qual Dostoiévski fez
parte, conforme demonstra Frank (1999), passando pelo niilismo
(retratado também por Dostoiévski em seus romances (FRANK, 2003),
chegando às condições sociais radicais, tendo como síntese a
revolução de 1917. Apreende-se com esses acontecimentos do século
XIX que eles foram marcantes na vida de Dostoiévski, e que ele soube
de forma primorosa retratar e interpretar seu tempo.

Os movimentos anticzaristas
Conforme já foi demonstrado, diversos foram os movimentos
anticzaristas. Mas o que deve ser destacado é que na Rússia de
Dostoiévski o fator de desigualdade social, de autoritarismo dos czares
e de atraso econômico são elementos presentes na realidade do povo
russo. Esses fatores provocaram a ebulição desses movimentos
radicais.
De um modo geral, os movimentos socialistas e anarquistas
russos partiram do princípio de que a realidade russa devia ser
modificada através da revolução coletiva das massas oprimidas, e o
lugar dos czares devia ser substituído pelo poder popular, seja pela
autogestão, por organizações coletivas comunais, ou pela ditadura do
proletariado.

- 75 -
Diferentemente desses movimentos revolucionários, surgiram
também movimentos insurgentes (utilizando a terminologia no
sentido dado por Max Stirner, 2004). A partir desses movimentos,
tendo como principal destaque o movimento niilista, a compreensão
de revolução foi sendo considerada ultrapassada, pois traria, na
opinião dos niilistas, novas estruturas repressoras. Era necessária uma
ação emergencial, avassaladora e indiscriminada. Em outras palavras,
grosso modo, para os niilistas era necessário eliminar os czares.
E é na origem desse novo movimento que Dostoiévski se
debruça. O profundo radicalismo dos niilistas, a posição ateísta, o
pragmatismo, o combate às instituições religiosas e familiares e a sede
por destruição constante fizeram com que o autor russo retratasse
essa nova dimensão política que se consolidava na Rússia.
Primeiramente, Raskólnikov, e depois, Ivan são personagens centrais
de manifestação de posicionamentos niilistas.
Dostoiévski via o niilismo russo não apenas como um
movimento político, mas como um movimento que trazia à tona toda
a problemática das fundações da moralidade. Isso é o que dá à sua
crítica do niilismo russo tanta força e profundidade. [...] Seu romance
Os demônios é o trabalho no qual ele ataca o niilismo russo mais
diretamente (FRANK, 2006, p. 7).
Como já foi destacado anteriormente, é com Turguéniev (1971)
que ocorre a apresentação inicial do niilismo, através da personagem
Bazárov. Segundo Píssarev, “Bazárov era um retrato perfeito da auto-

- 76 -
imagem cuja aceitação generalizada trouxe momentosas
consequências para o futuro sociocultural imediato. [...] Píssarev
saudou-o como a legítima e exemplar realização dessas ideias”
(FRANK, 2003, p. 112).
Píssarev, defensor dos critérios e objetivos do movimento
niilista,

identificou o radicalismo ao niilismo e, por


conseguinte, ao desejo de criar uma tabula rasa
mediante a destruição total, opinião em que
Dostoiévski se abeberou [...]. Bazárov fora o
primeiro a declarar-se um “niilista” e a anunciar: “já
que, na época atual, a negação é a coisa mais útil
de todas”, os niilistas “negam... tudo” (FRANK,
2003, p. 112 – 113).

Pondé (2006), se baseando na abordagem que Nietzsche


(2011) dá ao tema, argumenta que o niilismo está relacionado à
negação total dos valores (Deus). Utilizando-se do exemplo da
personagem Ivan Karamazov (DOSTOIÉVSKI, 2008) que comete um
parricídio, Pondé (2006, p. 16) o relaciona ao aniquilamento do
homem moderno, que se joga diante do nada, buscando sua
transcendência individual.

A modernidade [...] representa a defesa filosófica


do parricídio: matamos Deus, matamos o Pai,
somos livres para exercermos o nada; esse nada é
o niilismo articulado em todas as frentes, mas que
Ivan, ao final do livro, parricida por excelência,
percebe que diante de si está o vazio, o Diabo ou

- 77 -
seu duplo, um cínico niilista. Ele vê o mal em
operação.

Um tipo de atitude muito comum dos niilistas era a ação


terrorista, método esse responsável por atentados contra czares e
autoridades por diversas partes da Europa (na França e na Itália, o
terrorismo individual ficou conhecido como Anarquismo terrorista).
Mas a personalidade mais intrigante desse momento radical russo foi
Sergei Nietcháiev. Apesar de se classificar como niilista, também pode
ser considerado como anarquista terrorista, enquadrando-se na
classificação feita por Arvon (1974), que apesar dos esforços de
Woodcock (2007) em separar niilismo de anarquismo, o terror
anarquista e os niilistas utilizavam as mesmas táticas e estratégias de
combate, como a propaganda pela ação.
No caso específico de Nietcháiev, a maior manifestação de seu
pensamento foi um texto intitulado O Catecismo do Revolucionário, o
qual determina, quase como uma religião, os dogmas que o
revolucionário deve seguir. Sua mais conhecida ação foi a de incentivar
o assassinato de um jovem estudante por um motivo banal, ou seja,
por este ter abandonado um grupo revolucionário do qual fazia parte,
tendo como intenção intimidar o resto do grupo, conforme demonstra
Arvon (1974). Esse fato é tratado por Dostoiévski (1952) no romance
Os Demônios.

Le crime anarchiste est sorti des flancs du nihilisme


russe. C’est en effet, le terroriste russe Karakazov

- 78 -
qui ouvre la série des attentats retentissants, en
faisant feu contre Alexandre II en 1865. Mais c’est
en Serge Nietchaiev que l’anarchisme trouvera le
mauvais génie qui l’entrainera définitivement sur la
voie de la violence (ARVON, 1974, p. 106).

A posição de Nietcháiev (2007) quanto ao papel que o


revolucionário deve exercer alcança o nível mais extremo da
radicalidade. Para ele,

o revolucionário é um homem condenado. Ele não


possui interesse pessoal algum, nenhum negócio,
nenhuma emoção, nenhum vínculo, nenhuma
propriedade e nenhum nome. Tudo nele é
completamente absorvido num único pensamento
e numa única paixão pela revolução.
O revolucionário despreza todas as doutrinas e se
recusa a aceitar as ciências mundanas, deixando-as
às gerações futuras. Ele conhece uma ciência
apenas: a ciência da destruição. Por isso, e apenas
isso, ele estudará mecânica, física, química e,
talvez, medicina. Mas todos os dias e todas as
noites ele estuda as ciências vitais do ser humano,
suas características e circunstâncias, e todos os
fenômenos da ordem social presente. O objetivo é
eternamente o mesmo: o modo mais certo e rápido
de destruir toda a ordem abjeta (NIETCHÁIEV,
2007, p. 81).

A sua posição contrária às doutrinas racionais e sua adesão


exclusiva à destruição demonstram o radicalismo da posição política
do niilista diante da Rússia do século XIX.
Dostoiévski (2001), através do romance Crime e Castigo, dá
forma à personagem Raskólnikov, sendo este quem materializa uma

- 79 -
ação de revolta, cometendo um crime chocante (usando um
machado), estando descomprometido com os valores humanos. Esse
foi o primeiro romance do autor que trata do tema do niilismo, no
sentido etimológico do termo dado por Turguéniev (1971), ou seja, o
sistema do nada ou da negação dos valores.

O romance social dostoievskiano


As obras de Dostoiévski são dotadas de temas subjetivos e
temas psicológicos (SOUZA, 2006). Porém, sobressaem-se também
temas de cunho social. Ao discutir os dilemas existenciais e religiosos
das personagens, Dostoiévski trata da questão social na qual as
personagens estão inseridas. O caráter social não se encontra
presente somente na composição das personagens dostoievskianas,
mas no propósito ideológico levantado pelo autor (ou nos vários
propósitos ideológicos, possibilitados pelo recurso da polifonia).
Segundo defendem Wellek e Warren (S/D), a literatura social
na Rússia surgiu com a intelligentsia, no momento em que ela propôs
uma ruptura com a antiga literatura que valorizava a arte pela arte.
Para a intelligentsia, a problemática social da Rússia do século XIX
garantia a necessidade da literatura dedicar-se à questão social, como
sendo abordagem fundamental.
Para Frank (1992, p. 62), a repressão que os russos
encontravam de expressar suas ideias fez com que eles recorressem à

- 80 -
literatura, que passou a funcionar como uma válvula de escape, onde
os teóricos tratavam de temas proibidos.

Daí a notória densidade ideológica da melhor


literatura russa – um traço que ainda continua a
distinguir seus escritores – novelistas ou poetas –
de seus colegas ocidentais mais livres, que às vezes
invejam a intensidade da reação russa à literatura
sem compreender completamente a razão para tal
fervor. Isto se deve apenas ao fato de que a
literatura não é um adorno ou acessório da
existência cotidiana; é a única forma na qual os
russos podem ver discutidos os verdadeiros
problemas com os quais se preocupam e que seus
governantes sempre acharam melhor que eles
ignorassem.

Esse traço marcante da literatura russa, que chama a atenção


de autores estrangeiros, é também o requisito de prestígio de
Dostoiévski diante da literatura mundial.
O próprio Dostoiévski utiliza como recurso literário a polifonia
para representar a multiplicidade de vozes, presente em toda a
movimentação social da Rússia no século XIX. A literatura social russa,
incluindo-se a de Dostoiévski, aborda o aspecto social das distintas
correntes de pensamento. Antes do marxismo, o pensamento social já
era presente e muito significante como conteúdo teórico dos
escritores russos. O marxismo acrescentou novas abordagens no final
do século XIX. Seguindo a interpretação de Frank (1992, p. 62), a
literatura russa sempre esteve em consonância com o povo russo.

- 81 -
Se a literatura russa foi, assim, criada em conexão
tão íntima com o pensamento russo, foi também
porque esse pensamento era ele mesmo tão
amplamente focalizado nas preocupações políticas
e socioculturais que ocupavam todo cidadão russo
pensante; não havia qualquer incongruência na
criação de personagens conscientemente absortas
em questões aparentemente tão abstratas,
“filosóficas”.

Na composição das personagens, Dostoiévski mantém esse


traço característico levantado por Frank. O importante é que nos seus
romances a diversidade ideológica assume papel preponderante,
existindo conjuntamente personagens capitalistas, socialistas e
niilistas. Bakthin (2005, p. 27) destaca a importante contribuição de
Dostoiévski para o romance social ao criar o recurso polifônico, em que
“o romancista encontrou a multiplicidade de planos e a contrariedade
e foi capaz de percebê-los não no espírito, mas em um universo social
objetivo”.

A própria época tornou possível o romance


polifônico. Dostoiévski foi subjetivamente um
partícipe dessa contraditória multiplicidade de
planos do seu tempo, mudou de estância, passou
de uma a outra e neste sentido os planos que
existiam na vida social objetiva eram para ele
etapas da sua trajetória vital e sua formação
espiritual. Essa experiência individual era profunda,
mas Dostoiévski não lhe atribuiu expressão
monológica imediata em sua obra. Essa experiência
apenas ajudou a entender com mais profundidade
as amplas contradições que existem

- 82 -
extensivamente entre os homens e não entre as
ideias numa consciência.

Ainda de acordo com Frank (1992, p. 75 e 76), o que garantiu a


forte consideração dostoievskiana ao caráter social foi, inicialmente,
sua simpatia com o segmento eslavófilo, compreendendo a obschina
como modelo sociocultural harmônico, e mais tarde, seu contato com
a intelligentsia e os modelos ideológicos da filosofia alemã
(principalmente Feuerbach e Stirner), que para ele discutiam o
destronamento do homem-Deus.

E, embora estivesse inteiramente familiarizado


com Feuerbach e Stirner, cujas ideias tinham
encontrado entre os pietrachévski, Dostoiévski
estava principalmente preocupado em expor os
efeitos de tais ideias como as via aparecerem nas
várias ideologias da intelligentsia radical.

A importância da intelligentsia para a literatura dostoievskiana


não se limita ao contato com a filosofia radical alemã, mas proporciona
a diferenciação da literatura russa da europeia. Segundo Hauser (2003,
p. 870), o romance russo é muito mais estritamente tendencioso do
que o romance da Europa Ocidental. “Os problemas sociais não só
ocupam muito mais espaço e uma posição mais central, como mantêm
seu predomínio por mais tempo e de maneira mais incontroversa do
que na literatura ocidental”.

O romance ocidental termina com a descrição do


indivíduo alienado da sociedade e desabando sob o

- 83 -
peso de sua solidão; o romance russo descreve, do
começo ao fim, a luta contra os demônios que
induzem o indivíduo a revoltar-se contra o mundo
e a comunidade de seus semelhantes. Essa
diferença explicita não só a natureza problemática
de personagens como Raskólnikov e Ivan
Karamazov, de Dostoiévski, ou Pierre Bezukhov e
Levin, de Tolstoi, não só o evangelho de fé e amor
dos escritores, mas também o messianismo de
toda a literatura russa (HAUSER, 2003, p. 870).

Essa condição explicitada por Hauser, na qual as personagens


russas se revoltam contra o mundo em destino ao niilismo, está muito
presente em Raskólnikov. Esta personagem busca, através da
cometida do crime, uma ação arrebatadora das suas tensões e
angústias. A dimensão das consequências dessa ação criminosa
sobrecarrega seu inconsciente, o envolvendo em uma trama dialética,
entre o impulso da ação individual e as consequências trazidas pelo
castigo, que se apresenta de forma muito mais psicológica e moral do
que física. Desse modo, na literatura, Raskólnikov é o pioneiro
causador da revolta política individual niilista.

Considerações finais
Os romances sociais de Dostoiévski discutem a transição do
homem medíocre para o homem extraordinário, e que na sua base
teórico-prática se fundamenta por uma ação política, visto que,
posteriormente, no final do século XIX, as condições insuportáveis de
exploração da Rússia czarista acarretariam a origem do movimento

- 84 -
niilista ativo – que segundo Nietzsche (2011), é o niilismo da ação e
transformação – que se organiza como a variante mais radical do
anarquismo terrorista, tendo como base eliminar o Estado opressivo
daquela Rússia desigual.
Dostoiévski captou e reproduziu os primórdios do movimento
terrorista russo em Raskólnikov, de Crime a Castigo, acrescentando
características psicológicas e éticas à personagem. O ponto de partida
mais radical para a guinada do que posteriormente seria um dos
movimentos políticos mais insurgentes da Rússia foi a constatação do
não comprometimento com a crença e com a moral deístas, o que
resultou em Os Irmãos Karamazov, que exerceu influência numa
geração de filosofias que abordassem o crime, a crise da sociedade
ocidental, a morte de Deus e a proposta de um novo homem.

- 85 -
Referências

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Universitaires de France, 1974.

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Vera Pereira. São Paulo: EdUSP, 1999.

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Paula Cox Rolim e Francisco Achcar. São Paulo: EdUSP, 1992.

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Obras. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

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VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade
Libertária/ I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa
de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. n° 11. (abril, 2007). São
Paulo: PUC, 2007. p. 78 – 94.
- 86 -
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Fernandes; Francisco José Dias de Moraes. Rio de Janeiro:
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nº 195. São Leopoldo: UNISINOS, 11 de Setembro de 2006. p. 16 - 23.

SOUZA, L. C. de. A Epilepsia e a Literatura Dostoievskiana. IHU Online.


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STIRNER, M. O Único e a sua Propriedade. Trad. João Barrento. Lisboa:


Antígona, 2004.

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WELLEK, F.; WARREN, A. Teoria da Literatura. Lisboa: Europa-América,


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WOODCOCK, G. História das Ideias e Movimentos Anarquistas. Vol 1:


A Ideia. Porto Alegre: L&PM, 2007.

- 87 -
Machado de Assis e a crítica de seu tempo: contexto de
formação da vida literária brasileira

Raquel Cristina Ribeiro Pedroso

Os romancistas do século XIX retinham um senso de missão


que os movia a buscar no fazer literário antes um instrumento para a
interpretação da realidade brasileira e a afirmação da identidade
nacional, que propriamente a realização artística como forma, de
modo que tivemos como resultado de engenhos romanescos, um
conjunto de textos capazes de explicar e até exemplifica de maneira
satisfatória a vida nacional, sem a alcunha de grandes produções.
Antonio Candido (1993, p. 131) afirma que a visão dos intelectuais
brasileiros no século XIX era bastante ambígua, pois não encontrando
nas obras da civilização apoio suficiente para justificar o orgulho
nacional, recuavam para a natureza como segunda linha,
entrincheirando-se numa posição que era também capitulação, por
ser um modo colonial e pitoresco de ver o país. Qual seria o pior
infortúnio, sofrer ou cometer uma injustiça quanto à representação de
um povo?
Desde os séculos XVIII e XIX o Brasil muito se preocupou com a
presença de traços culturais que serviriam de base para uma definição

- 88 -
mais abrangente do país. A década de 1870 viveu um período de forte
divulgação das letras nacionais, e a publicação de quatro romances de
Machado de Assis (Ressurreição 1872; A Mão e a Luva 1874; Helena
1876; Iaiá Garcia 1878) contribuiu para esse fato, suas narrativas
firmaram um dado que chamamos de “singularmente machadiano”,
identificado anos mais tarde “grosso modo com o estilo do escritor: a
mistura do sério com o jocoso, a introspecção vaidosa do herói, o
ambiente em redor como um comentário ao mundo exterior e, o
narrador irônico de espírito aparentemente conformado” (PASSOS,
2007, p. 28).
A desigualdade social aparece a partir do segundo livro de
Machado de Assis A mão e a luva (1874), por meio de uma
protagonista racional que faz do cálculo seu direcionamento de vida,
capaz de manter o espírito frio mesmo em vista de seus planos de
casamento e manutenção do apadrinhamento se tornarem pó. Em
Helena e Iaiá Garcia, as heroínas têm a oportunidade de corrigir a
natureza de suas origens, apesar de optarem pelo juízo de suas
emoções. Em Helena, não se percebe a recepção e aprovação social
quase grosseira como em A mão e a luva, bem como não temos o
mesmo desencanto de Estela em Iaiá Garcia. Porém, trata-se de uma
protagonista de aparente suscetibilidade cujo ponto de vista do
narrador supostamente contribui para a ideia de conformidade social,
moral e familiar.

- 89 -
Os primeiros romances de Machado conduzem o pensamento
de que uma obra de valor nacional não deveria, necessariamente,
tratar do indianismo/nacionalismo, como era o costume de seus
contemporâneos, contudo, essa prática machadiana conduziu a crítica
especializada pelo caminho próprio ao estabelecimento de um
contraponto: o paradoxo de seus protagonistas frente ao meio social
no qual estão inseridos. Trata-se de uma espécie de acordo entre a
interioridade (marcada pelo eu) e o seu ambiente externo, dotado de
certo controle natural e social pela composição de dramas aos moldes
reais – tem-se condutas pessoais andando junto a condutas sociais,
cuja paisagem reverbera o valor individual dos personagens que ora se
colocam em oposição ao externo, ora se firmam e se integram à
própria esfera psíquica “pela fé no ideal restaurador do amor, da
bravura e da conversão religiosa ou moralizante” (PASSOS, 2007, p.
41). Tal afirmativa leva-nos a Antonio Candido (2010, p. 40) quando
declara que o sentimento da realidade na ficção pressupõe o dado
real, mas não depende dele; depende de princípios mediadores,
geralmente ocultos, que estruturam a obra e graças aos quais se
tornam coerentes as suas séries – a real e a fictícia.

O processo crítico e a construção de uma Identidade literária


Em A nova Geração (1879) Machado critica seus
contemporâneos, fala do presente para o presente, e afirma que não
é possível criar uma obra nova fora da tradição, mas que se pode

- 90 -
recuperá-la à luz do presente; do mesmo modo que critica seus
contemporâneos, tenta aplicar em suas próprias obras a noção de
“evolução”, de recuperação do tradicional aos moldes modernos, de
forma que a partir dos anos de 1880, imerso em uma crítica
realista/naturalista cria uma carreira paralela, superando críticos
ferrenhos de sua época, e, por assim dizer, “recuperando-se” à luz de
si mesmo.
O intelectual brasileiro, conhecedor do espaço movediço o qual
configurava as relações sociais, é tomado por uma oscilação de
sintomas – ora é orgulho nacional por inteiro, ora, escárnio e
vergonha, a consciência do atraso o arrebata da visão otimista
(contraproducente) de uma sociedade, na qual o pessimismo sombrio
recai como pano de fundo. Esse olhar de dentro para fora e, ao mesmo
tempo, de fora para dentro permitiu aos escritores perceber a relação
concreta entre personagens literários e a figurativização do Brasil, de
modo que o romance se baseia na relação de um ser vivo cuja
observação resulta em um ser fictício. O elemento personagem é o
maior responsável pela força da arte romanesca é o componente de
vida no enredo e eterno guardião dos significados que o constrói. E o
fato de montar um quadro de valores com características mediadas
por articulação relativa ao espaço tópico, o Rio de Janeiro, denuncia
um tipo social (personagem) urbano e preso no tempo historiográfico
do século XIX. O nacionalismo inaugura em nossas letras o que por
anos a fio ficou subjacente à nossa produção literária, tal sua

- 91 -
abrangência e importância para a configuração do sujeito social,
presente em bailes e saraus e, sobretudo, exterior à matéria literária.
Em um ensaio publicado na Gazeta de Notícias em 30 de
janeiro de 1881, por ocasião do lançamento das Memórias Póstumas,
Capistrano de Abreu demonstra sua estranheza ao se deparar com a
riquíssima narrativa de um defunto-autor, expressa a impossibilidade
de “catalogação” do que seria aquele tipo de narrativa, e questiona-
se: “as Memórias Póstumas de Braz Cubas serão um romance? Em
todo caso são mais alguma coisa. O romance aqui é simples acidente.
O que é fundamental e orgânico é a discrição dos costumes, a filosofia
social que está implícita”. A continuidade de sua crítica traduz a leitura
que foi realizada da obra, e, não havendo mais declaração, assim
pondera: “Filosofia triste, não é? O autor é o primeiro a reconhecê-lo,
e por isso põe nas elucubrações de um defunto, que nada tendo a
perder, nada tendo a ganhar, pode despejar até as fezes tudo quanto
se contem nas suas recordações”.
Araripe Junior foi, desde seus primeiros ensaios, um leitor
sensível aos aspectos propriamente artísticos da literatura
machadiana, isto nos permite dizer que optou por realçar os
ambientes físicos e não se utilizar de questões raciais como propunha
Silvio Romero, para explicar o uso feito – ou não – da arte segundo sua
“estimada consideração”. Araripe, a despeito da preocupação com a
representação da arte, andava preocupado com a ideia do romance
nacional. Quando do lançamento de Quincas Borba em 12 de janeiro

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de 1892, na Gazeta de Notícias chama Machado de Assis de “Narciso
literário”,

[...] apaixonado pelo próprio espírito, procurando


por toda parte reflexo de si mesmo, nos livros, nas
bibliotecas, nos museus, nas coleções, nos jornais,
nos teatros, nos salões, nas reuniões de amigos, na
Rua do Ouvidor; ruminando a originalidade de suas
obras, entre a preocupação do aplauso popular e o
horror à vulgaridade; flagelado continuamente
pela obsessão do novo e pela imposição dos
clássicos, Machado de Assis fortaleceu-se na ideia
e aprimorou-se na forma. (Apud, GUIMARÃES,
2001, p. 366)

Para o crítico, Machado tirava os elementos com que construía


seus personagens, em grande parte, da observação de si mesmo, logo,
esses tipos (personagens) ganhavam em excentricidade o que perdiam
em exatidão, e por tal motivo se tornariam de um interesse palpitante
para um leitor desprevenido. Araripe Jr. ainda é visto como um
combatente do ecletismo, mistura de espiritualismo e escolasticismo,
de que se alimentava o pensamento conservador brasileiro. Mais à
frente negará à crítica o direito de chamar-se ciência, pois considerava
que o padrão de análise estaria baseado em apreender o perfil
psicológico, tomando o estilo como indício da alma de cada escritor.
Tal postura manteve-se contrária frente às ideias de Silvio Romero,
cujo remédio para a realização da boa crítica estaria na flexibilidade do
analista – o murro e a espada não deveriam ser admitidos em crítica
literária, que é a arte da paz, e não da guerra. Contudo, faz-se

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necessário ir além de tais critérios – observação empírica do autor de
Araripe Jr. ou a flexibilidade crítica de Silvio Romero – e deixar que a
reflexão teórica adquira condições de continuidade.
Segundo Costa Lima (1981) uma das maneiras de errar, comum
à intelectualidade da época, era a incapacidade de teorizar e de ler,
uma vez que a cultura oral forense se interpunha entre a mão e a
página, interferindo na lógica da escrita, – a cultura auditiva permeava
o emprego da grafia com traços de oralidade nos textos brasileiros,
desenvolvidos por força do costume da leitura em voz alta, em saraus
e reuniões; fato importante para elevar o alcance da produção literária
numa sociedade de poucos letrados.
Um crítico de arte é uma pessoa privada, o qual, pelos jornais
reflete opinião ao mesmo tempo em que orienta e difunde ideias,
trata-se de um intelectual orgânico da burguesia, alguém que discute
o objetivo da obra e expressa juízo de valor. Porém, corre o sério risco
de ser um isolado, sem público, em que o êxito de suas intenções
dependerá da veemência de suas frases. Esse perigo converte-o em
juízo autoritário, vendo na pessoa que diverge de sua opinião, um
desafeto. Para Alfredo Bosi (2006) José Veríssimo enfatiza os fatores
externos, e cede a um tipo de apreciação eclética que poderia ser
definida como humanística. Em data de 11 de janeiro de 1892, no
Jornal do Brazil, Veríssimo publicou um ensaio sobre Quincas Borba
(1894), em que diz:

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A obra literária do Sr. Machado de Assis não pode
ser julgada segundo o critério que eu peço licença
para chamar nacionalístico. [...] não é nem
romântico, nem naturalista, nem um nacionalista,
nem um realista, nem entra em qualquer dessas
classificações ismo ou ista. [...] o Sr. Machado de
Assis tem uma certa inferioridade que não quero
deixar em silêncio. [...] ficou alheio ao conjunto de
fatos de toda ordem que eu chamaria a Vida
brasileira. (Apud GUIMARÃES, 2001. p. 358).

A crítica esperava por obras que continuassem com a


representação da cor local aos moldes do indianismo/nacionalismo, ou
obras que se impusessem desde a primeira leitura a um espaço apto a
ser delimitado como romântico, naturalista, nacionalista ou outras
denominações veiculadas pela crítica11. Entretanto, o nacionalismo de
Machado estava explícito como a busca secreta de identificação entre
o nacional e o externo, e os escritores que não “comungassem” com o
seu povo, sua nação, sua origem, seriam espiritualmente forçados a
viver fora dela.
A crítica de Silvio Romero que buscava um critério sociológico
mais homogêneo – o limite entre o indivíduo e a ciência – criou um
considerável impasse já que o indivíduo ou a liberdade humana escapa
da ciência (a não ser que a concepção do social se faça a partir da

11
Em “Notícia da atual literatura brasileira (Instinto de Nacionalidade)”, Machado
(1873, p. 107-108) explica o termo cor local e afirma o que deveria ser exigido de um
escritor – em síntese, para tratar de sentimentos íntimos e nacionalistas, só teríamos
por perceber que mesmo os assuntos mais diversos em tempo e espaço cabem como
retrato social e cultural, pela caracterização de tipos sociais intrínsecos às peripécias
de seus escritos e a qualquer sociedade em tempo e espaço.

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extensão das ciências naturais). O mesmo não ocorreu a José
Veríssimo, uma vez que este buscou condições de informações mais
amplas e um mergulho maior no conhecimento histórico-social e
literário, a fim de ultrapassar as fronteiras entre o humano e o
científico mantida por Romero. Para Veríssimo, a obra de Machado de
Assis é parte do princípio diretor da História da literatura brasileira,
era imprescindível retratar o modo pelo qual o escritor contribuía para
a determinação do caráter nacional. José Veríssimo empenha-se em
descobrir o princípio moralizador das obras machadianas, e para tanto,
opta pelo uso de fábulas, em que o significado poderia contribuir para
a livre compreensão de Quincas Borba, por exemplo. Em Veríssimo, a
preocupação sociológica se torna pano de fundo, dando lugar à
questão gramatical e a retórica; tais critérios são determinados pelo
fundo moralizante buscado pelo crítico, cuja análise coloca o
intelectual na condição de alguém que não sabe como conduzir sua
emocionalidade até o texto de forma satisfatória. Suas teorias buscam
o zelo pela condição do crítico-juiz – aquele que fará o papel de
mediador entre a inaptidão do escritor em “retirar-se” do texto e o
que será apreciador como forma literária pelo leitor. A diferença entre
as interpretações críticas de Silvio Romero e José Veríssimo é o
prenúncio do que se viu ao longo do século XX, em termos de
particularidades voltadas, ora para a visão do autor de seu meio, ora
para suas fontes estrangeiras.

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Muitos duelos perduraram na tentativa de se estabelecer a
melhor interpretação da obra machadiana, porém, poucas vezes se
observou a iniciativa de explorar a fundo os fatores, as imagens, as
situações que conformam os impulsos e emoções humanas
detectados por Machado, para representar o homem em seu tempo
que, pelo resultado atingido, tornam a obra especialmente nossa
contemporânea, no sentido de apresentar validades para nossos vícios
e virtudes, fraquezas e coragens, falsidades e franquezas, em pleno
século XXI, como elementos de nossa natureza interior,
consideravelmente independentes do meio, ou seja, livres do crivo
literário que modula os impulsos às forças do ambiente.
Machado de Assis manteve a consciência de que a literatura
seria de fundamental importância na construção de uma nova tradição
local, pois seria por uma literatura independente e nova na voz e pena
dos poetas da época, já impregnados pelos ares do Romantismo que
sopravam nos quatros cantos do mundo, numa ideia coletiva, que se
daria a tomada de consciência da necessidade de exaltar a sua gente,
sua natureza, sua pátria. Sobre a importância do processo de
identificação nacional, de afirmação da nossa individualidade, e de
busca do caráter brasileiro, a literatura teve um papel primordial.
Devemos ressaltar o efeito trabalhado nessa direção desde os
primeiros momentos da colonização, consciente ou
inconscientemente, já que o fator intelectual, pelo viés das letras,
esteve em meio ou à testa do sentimento de independência, cedo

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gerado na alma brasileira, de modo que a literatura contribuiu
diretamente com o processo de criação do Estado Nacional.
Machado percebeu a importância da crítica conscienciosa em
O Ideal do crítico e propõe

[...] que seja estabelecida a crítica, mas a crítica


fecunda e não a estéril, que nos aborrece e que nos
mata, que não reflete nem discute, que abate por
capricho e que levanta por vaidade; estabelecei a
crítica pensadora, [...] será esse o meio de reerguer
os ânimos. [...] Condenai o ódio, a camaradagem e
a indiferença – essas três chagas da crítica de hoje
– ponde em lugar deles, a sinceridade, a solicitude
e a justiça – é só assim que teremos uma grande
literatura. (ASSIS, 1865, p. I)

Se a crítica for desamparada pelos esclarecidos, será exercida


por incompetentes, aglutinando erros cíclicos. O referido ensaio é um
marco para o processo de recepção das obras no século XIX, num
esquema que beira o “passo-a-passo” de como a crítica deveria
proceder. Machado afirma que o crítico precisa meditar
profundamente sobre a obra, e não apenas entender questões que
circundam a imaginação criativa. Necessita procurar-lhe o sentido,
aplicar as leis poéticas, e perceber o processo de ajuntamento entre
“imaginação e verdade”. A leitura superficial ou as impressões
pessoais acerca da repercussão da obra não bastariam ao crítico
comprometido com a boa análise, seria necessário “ciência e
consciência” para exercer juízo de valor, em que a interpretação da

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literatura obedeça aos interesses da formação de uma expressão
nacional – à crítica compete à função de anotar e tematizar o material
usado para essa expressão.
É possível afirmar a existência de moldes próprios do
Romantismo brasileiro, pois o romântico deixava-se manipular por
uma dualidade: de um lado o nacional, que lhe imbuía da
representativa cor local; e, de outro, um anti-destinador nacional em
que o fazer literário refletia, tão somente, a reprodução dos moldes
europeus. Tais contradições eram por demais nocivas à configuração
de uma voz puramente nacional e Machado via-se em meio a esses e
tantos outros posicionamentos dos homens de letras de seu tempo,
sem deixar-se inebriar, apesar de comumente ser considerado como
aquele sem posição definida (grifo nosso); dia após dia deixava ao
sabor da pena as condições culturais e socioambientais em que vivia,
transformando-as em matéria artística, num movimento que o
diferencia de seus contemporâneos. De acordo com Cruz (2009)

Machado não descartou a produção nacional que o


antecedeu e bebeu tanto do Uraguai (1769),
poema épico de Basílio da Gama que ele tanto
admirava, quanto dos romances de Macedo e
Alencar, praticamente contemporâneos dos seus,
passando por Arcadistas e autores de todos os
naipes. O escritor saciou-se e a reproduziu de
formas muitíssimo variadas nos seus romances,
residindo aí sua força. (CRUZ, 2009, p. 91)

- 99 -
Machado soube explicitar o problema da realidade brasileira
transformando-a em nicho literário, construiu personagens que muito
sinalizavam os moldes reais – personagens sem qualquer destino de
grandeza. Ao compor a narrativa e tomar por base acontecimentos
cotidianos, o autor é levado a acrescentar nuanças de
comportamentos, tramas mirabolantes e desfechos inimagináveis.
Entretanto, não será capaz de mudar o que está intrínseco à
representação, não se pode mudar as alternativas que foram
apresentadas ao longo da amarração dos fatos, e como nos confirma
Franco Moretti (1950, p. 823-863), não se pode fazer isso porque os
fatos são demais cotidianos para que se faça. Janta-se e jogam-se
cartas, faz-se um passeio, um pouco de música, de conversas,
recebem-se bilhetes, bebe-se uma taça de vinho ou uma xícara de chá.
Até as boas maneiras são marcas da regularidade e formas de
existência, a vida dos livros se mostra grandiosa diante da mimetização
de rituais próprios do dia-a-dia. O preenchimento narrativo fica a
cargo dos acontecimentos cotidianos e é nesse preenchimento que
temos o caráter ordinário da vida.
Em um contexto mais amplo percebemos que o século XIX foi
marcado por uma espécie de culto à domesticidade (grifo nosso), um
movimento social originado de ataques sistemáticos à autoridade
patriarcal, conduzido por uma elite internacional de médicos,
filantropos e humanistas. A divulgação de tal atitude culminou numa
espécie de guerra entre duas frentes: em um dos polos estava a luta

- 100 -
contra a libertinagem aristocrática. Em outro, o combate à
imoralidade pública e o incitamento à desordem. Houve quem
recomendasse a cristianização geral da sociedade como o antídoto
capaz de impelir a desordem pública, já que havia uma espécie de
crítica aos modos das pessoas ricas e libertinas, em contraposição à
propagação dos princípios cristãos entre os menos favorecidos.
Christopher Lasch (1999) problematiza essa questão no
contexto europeu afirmando que a sociedade empenhava-se em criar
modelos do bom proceder, sobretudo, do público feminino que mais
cultivava o atraso na marcha pelo avanço social que propriamente a
reorganização das famílias. Em seu estudo sobre A domesticidade
burguesa, a revolta contra o patriarcado e o ataque a moda (1999, pp.
89-108) ressalta que a sociedade Europeia do final do século XVIII via
na classe média da Inglaterra o modelo de ascensão social e
econômica, já que era constituída não somente por fazendeiros,
artesãos e pequenos negociantes, mas também por empresários e
homens do comércio aptos a imitar os modos aristocráticos. Tão logo
os senhores comerciantes conseguiam ascender econômica e
socialmente, suas esposas já se encontravam aptas a emoldurarem-se
(grifo nosso) no quadro de Senhoras da alta moda heráldica. Para a
parcela da sociedade em que a cristianização deveria ser a norma, a
influência contagiosa de costumes devassos estaria indo para além do
aceitável, a mulher era posta como o ponto de convergência entre os
costumes mundanos e a norma familiar. De acordo com autora (1999)

- 101 -
apesar de as moçoilas abastadas conviverem com a intensa
preparação para bom e esplêndido casamento, seus destinos estavam
direcionados a esposas enfadadas e/ou coquetes de salões de recreio.
Nesse ínterim, a nova classe média Europeia estava enriquecendo por
méritos trabalhistas, e começava a adotar padrões que dantes lhes
eram estranhos – as mulheres sentiam-se lisonjeadas pela atenção
que atraíam pela aparência de seus finos sentimentos (grifo nosso).
A nova classe voltou-se exclusivamente para o amor e a intriga
sexual, resignando-se numa vida inativa, improdutiva e parasitária,
sob o pretexto de que a elegância, ao contrário da virtude, era o fim
supremo da existência. O padrão da educação feminina da moda
oitocentista, em que o engodo seria aliar-se ao matrimônio, suscita a
ideia de que se poderia negociar a sexualidade da mulher ao melhor
preço possível. Desse modo, não seriam poupados esforços para
transformar a mocinha em uma mulher refinada, a qual se tornaria a
Senhora de uma esplêndida casa e das benesses do futuro cônjuge.
Lembremo-nos de Sofia, em Quincas Borba (1891)12, e sua
representatividade ante a composição de caracteres do elemento

12
Obra constituída para o folhetim do Jornal A Estação de 1886 a 1891. Sua
publicação em volume ocorreu pela Casa Editorial de Baptiste Louis Garnier, no Rio
de Janeiro em 1891 com diferenças marcantes com relação ao que já havia sido
publicado em Folhetim. Encontra-se acessível em edição eletrônica a versão em
Folhetim minuciosamente anotada e comentada por John Gledson e Ana Cláudia
Suriani da Silva. Disponível em:
<http://www.machadodeassis.net/hiperTx_romances/obras/quincasborbaaestacao
.htm>. Acesso em: 14 jun. 2015.

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feminino em ascensão social e a assimilação da norma social
estrangeira, sobretudo da francesa, capaz de assegurar-lhe o que não
trouxera de nascimento e de elevá-la ao patamar de dama da
sociedade carioca.

Palha era então as duas coisas; casmurro, a


princípio, frio, quase desdenhoso; mas, ou a
reflexão, ou o impulso inconsciente, restituía ao
nosso homem a animação habitual, e com ela,
segundo o momento, a demasia e o estrépito. Sofia
é que, em verdade, corrigia tudo. Observava,
imitava. Necessidade e vocação fizeram-lhe
adquirir, aos poucos, o que não trouxera do
nascimento nem da fortuna. Ao demais, estava
naquela idade média em que as mulheres inspiram
igual confiança às sinhazinhas de vinte e às sinhás
de quarenta. Algumas morriam por ela; muitas a
cumulavam de louvores. (ASSIS, 2001 p. 215).

As mudanças de comportamento da personagem estão na


órbita da ação de um narrador que conta, ao mesmo tempo em que
esconde sua intencionalidade. Personagens machadianas tentam
seduzir o público com a aparente perfeição de seus fins e de seus
modos, e, ainda quando agem de forma traiçoeira, o fazem com ares
de total desinteresse. Sofia é um desses arquétipos de Machado,
plantada no terreno escorregadio da obsessão por bens materiais e o
interesse de manter-se em vista da admiração pública, de modo que
pelo nível de suas ações diante dos demais e pela imaginação das
possíveis motivações que a conduzem a tais atitudes, temos em
Quincas Borba a livre construção de caracteres morais. O autor propõe

- 103 -
uma tessitura minuciosa quanto à análise das possíveis ambições e
paixões tanto de Cristiano Palha e Sofia, como do protagonista Rubião;
é por linhas de romances como este que a composição subjetiva dos
personagens ganha intensidade ante a descrição de traços próprios do
que vinha sendo tomado como tradição literária local. Machado de
Assis manteve-se em divergência com seus contemporâneos da prosa
de ficção, pela tessitura cuidadosa do repertório dos motivos e
intenções de seus personagens, que mais se assemelham a retratos
morais de ações e motivações intrínsecas à interioridade. Quase se
reconhecem personagens como Sofia, Cristiano Palha e Rubião pelas
ruas da Corte Brasileira, numa mistura de assimilação da cultura do
Velho Mundo pelo formato do romance moderno, e mimetização de
arquétipos tipicamente humanos.
Sofia se percebe sedutora e pronta a direcionar suas emoções,
com o fim de cativar a afeição de Rubião, de modo que, faz da
conquista do coração e da fortuna do novo amigo o caminho de
ascensão às salas e camarotes de teatro, lugar de figurões da alta corte
carioca. A moça, ao passo em que se mantinha no âmbito da aparente
família conservadora, usava de belos dotes feminis (grifo nosso) com o
propósito de cativar o ingênuo ex-professor, deixando-o esperançoso
e encantado.

Rubião tinha os olhos desvairados. Não disse nem


fez nada. Levantou-se para sair, não saiu. Depois de

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alguns instantes de silêncio e inquietação,
continuou sem raiva:
— Não é segredo para a senhora que lhe quero
bem. A senhora sabe disso, e não me despede, nem
me aceita, anima-me com seus bonitos modos. Não
me esqueci ainda de Santa Teresa nem da nossa
viagem no trem de ferro quando vínhamos os dois
com seu marido no meio. (ASSIS, 2001, p. 161).
Não fica mal dizer que a imaginação de Sofia era
agora um corcel brioso e petulante, capaz de galgar
morros e desbaratar matos. [...] Traz a ideia do
ímpeto, do sangue, da disparada, ao mesmo tempo
que a da serenidade com que torna ao caminho
reto. (ASSIS, 2001, p. 217)

O sujeito narrativo mantém a personagem no âmbito da


desfaçatez (termo de Roberto Schwarz, 2000), pois desde as primeiras
páginas de Quincas Borba o leitor entra em contato com o casal Palha
– ardilosos e em busca de favores econômicos – para mais à frente
apresentar Sofia como uma dama da corte tão bem-posta ante ao
olhar alheio que jamais poderia sofrer qualquer sanção negativa.
Contudo, como afirma Raymundo Faoro (1976), Machado dialoga com
minuciosas questões sociais de seu tempo numa tentativa de expor
elementos do entorno social da capital do Império. Como no exemplo
acima, temos senhoras à beira do adultério, guiadas pela busca de
favores sociais e capazes de qualquer tipo de manipulação até quando
se fingem manipuladas.
No que se refere à configuração da literatura no Brasil,
principalmente no contexto das narrativas machadianas,
consideramos relevante citar A ordem médica e a norma familiar

- 105 -
(1999) de Jurandir Freire Costa, o qual ressalta o abandono das cidades
do Brasil colônia do final do século XVIII. O eixo familiar sentia-se
lançado à própria sorte diante de um governo preocupado com a
extração de riquezas naturais (fruto da exploração sistemática de
minérios e do pau-brasil) e do modo como a segurança nacional e a
educação das famílias eram esquecidas frente à ausência de atenção
do Estado Português. Assim, foi elaborada uma espécie de medicina
higienista direcionada ao núcleo familiar, com fins educativos e de
instalação de ordem mediante ao caos vivido em terras brasileiras13.
Jurandir Freire Costa (1999) afirma que a lei busca
principalmente negar, ao se firmar por meios repressivos, já a norma,
embora possa incluir em sua tática o momento repressivo, visa
prevenir o virtual, produzindo fatos novos. Para controlar as duas
instâncias de famílias, tanto a Imperial como a Colonial, foram
utilizados mecanismos com amparo jurídico não no sentido de punir,
mas de vigiar, desse modo, a normalização médica esteve em estreita
correspondência com o desenvolvimento urbano, social, bem como na
criação do Estado Nacional Brasileiro, mesmo com a incisiva tentativa
de direcionar a higiene das famílias (de caráter disciplinar) para a
construção de um parâmetro eurocêntrico dentro da corte brasileira.

13
Jurandir Freire Costa (1999) utiliza-se do tratado de Foucault (Vigiar e Punir) como
substrato teórico e descreve um perfil relevante das famílias brasileiras aos moldes
do Brasil oitocentista.

- 106 -
O crítico destaca que a norma também se fazia valer em
práticas jurídico-discursivas aplicadas como dispositivos de repressão.
Quando os discursos filosóficos e religiosos se prestaram ao que
estivesse vinculado à tomada de poder do Estado, vários níveis de
saberes se uniram com vistas ao uso e manutenção do poder político,
econômico e social. Um exemplo citado por Costa (1999) suscita a
ideia do uso sistemático da Medicina para a manutenção de um Estado
imperioso, inclusive acima dos anseios populares – trata-se do avanço
do poder do Estado num ajuntamento dos loucos (grifo nosso), ou seja,
na criação dos primeiros manicômios para aqueles que aparentassem
desacordo com as regras impostas pela sociedade. Assim, as famílias
passaram a conviver com uma espécie de policiamento mascarado de
cuidados com a saúde física e moral, para os quais a norma se fez
representar não somente em campanhas de higienização da
coletividade, mas também na criação de espaços como as alas em
hospitais com locais específicos para prostitutas, mendigos e leprosos.
Mesmo com a aparência de melhoria higiênica (já que pela
proximidade de contato dos doentes com “pessoas de bem” poderia
haver contaminação), tal realidade funcionava como uma espécie de
“purgatório” do que fosse contrário ao processo de mascaramento
social. Esses atos eram devidamente encobertos pela benevolência
própria de quem consente ao mal o formato de melhorias; não se pode
perder de vista que essas ideias coincidem com o controle que o
Estado quer exercer sobre as famílias, pois quando os proprietários

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rurais se deslocam do campo para a cidade, o privado se mistura com
o público – seria imprescindível a sociabilização dessas famílias que já
vivem na cidade, mas que ainda guardam comportamentos típicos do
campo. E para tanto, a urbanização contou com o incentivo da
medicina, da literatura e da moda, sobretudo a francesa, num
contexto de sociedade brasileira novecentista marcada pela
instituição de paradigmas como forma de controle social.
É neste contexto que temos o início do nacionalismo brasileiro,
no qual o Romantismo se apropria da temática do apego ao típico
nacional (apesar de o estereótipo do herói romântico, sobretudo o
alencariano, mais se aproximar do homem europeu que do indígena
brasileiro). José Luiz Passos (2007) afirma que o romance nacional teve
por objeto o tema do contrato e da identificação do herói com a
sociedade nacional.
Embora Machado representasse a propagação de dados
distintos dentro dessa tradição de cor local, manteve-se como um
autor importante na valorização do Brasil como país em busca pela
independência nos múltiplos segmentos. Entendemos que a ideia de
formação e deformação moral foi debatida em romances brasileiros
do século XIX e início do XX, e desses debates temos marcos da
complexa relação que o sujeito pode manter consigo e com o outro.
Os primeiros romances machadianos oferecem-nos uma leitura de
experiências humanas de cunho altamente reflexivo e de narradores
com linguagens aptas a captar a atenção e a cumplicidade do público,

- 108 -
de modo que encontramos nessas obras uma contribuição
fundamental para as letras brasileiras.

Considerações finais
Frente a essa “junção” de dramas adocicados e instrução
pública pelo viés moralizador presentes tanto nos primeiros contos
publicados pelos jornais como nos livros da editora B. L. Garnier,
encontramos o jovem Machado de Assis que inicia sua produção
literária já não se encaixando em formulações românticas, ou realistas,
ou naturalistas da segunda metade do século XIX. No entanto, sua
ousadia foi paga com a moeda da estima, principalmente quando se
propôs a fazer uma escrita que valorizasse a tradição literária, tanto
local como estrangeira, por um viés um tanto diferenciado: o de
aproveitamento do estilo moderno inglês como mapeamento das
emoções humanas em tempos de “escuridão” do que se passava na
interioridade.
Numa espécie de visitação, às escondidas, da tradição que o
antecedera tem-se o que consideramos o início da definição do
homem moderno apresentado pela ficção nacional, desse modo,
questões como a motivação de sua escrita (o ponto alto estaria no fato
do autor tocar em regiões delicadas da sociedade), também lhe
assegura a estirpe de colocar-se aquém da nova tradição dos
romances brasileiros, com uma escrita que não prezava pela cor local.
No entanto, como afirma Passos (2007) quando Machado trata de

- 109 -
assuntos aparentemente ingênuos e pueris, como em seus primeiros
romances, o faz pela medida que a sociedade é capaz de conceber o
fato social naquele dado momento. E sobre o tratamento de sua ficção
o crítico ressalta que mesmo “o casamento, a viuvez, a infidelidade; a
política, a história nacional, o palco das relações familiares, são todos
eles, meios de organizar decisões e escolhas” (PASSOS, 2007, p. 109).
A obra de Machado agiria como um mote na exposição de indagações
presentes na sociedade, em cada personagem o leitor tem em mãos a
forma usada na tomada de decisões.
O produto literário machadiano é marcado pelo sujeito que se
vê inteiro pela mirada exterior e parte de um todo social, mas que em
seu interior a fragmentação das emoções é o fator determinante de
sua conduta frente ao outro. Seus protagonistas enfrentam a limitação
da consciência que nutrem de si frente suas próprias ações por vezes
dominadas pelo inconsciente. Em suas obras encontramos mais
aspectos de formação e deformação humana a partir de uma leitura
de um contexto social plasmado, que propriamente a preocupação em
fazer-se um escritor “bem visto” pela crítica de seus contemporâneos.
Neste sentido, Alfredo Bosi (2010) pensa que as idas e vindas do
processo narrativo, como tensões sociais e psíquicas constantemente
em foco, não podem ser definidas num esquema binário, nem pela
ideia de que a vida de um personagem é a extensão ou a extinção
definitiva do outro. “Ao contrário, as tensões permanecerão vivas e,
no fundo, irresolvidas: a força da memória e o dinamismo da

- 110 -
imaginação efetuam uma escrita de coexistência dos opostos” (BOSI,
2010, p. 395). Machado entendeu que o ato de produzir matéria
literária local não se juntaria ao indianismo/nacionalismo em voga.
Seu modo de escrita seria nacional pela inserção de personagens em
dramas sociais e familiares em divergências subjetivas captadas por
ações exteriores, ou seja, em meio a aspectos sociais.

- 111 -
Referências

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- 113 -
O Cortiço: Sociedade e Capitalismo em Aluísio Azevedo

Sílvio Takeshi Tamura

O Naturalismo é um movimento literário iniciado na Europa


fundamentado em três correntes filosóficas: o Determinismo, o
Positivismo e o Darwinismo. À luz das premissas deterministas, o
indivíduo é um produto do meio, do tempo e da etnia a qual pertence.
O Positivismo apregoa a análise dos fatos baseados no rigor
metodológico. Tudo haveria de ser explicado por meio de causas e
efeitos. Os fenômenos não explicáveis pelo conhecimento científico
deveriam ser excluídos. Por fim, o Darwinismo corresponde a um
conjunto de pesquisas realizadas por Charles Darwin que defendem as
correlações entre o homem e os animais, incorporando argumentos
sobre seleção natural, adaptação, evolução e conceitos adjacentes.
Este ensaio tem por objetivo abordar alguns aspectos
econômicos do romance naturalista O Cortiço, do escritor São-
Luisense Aluísio Azevedo. Ambientada no Rio de Janeiro, no final do
século XIX, esta publicação literária retrata os problemas sociais
daquele período, enumerando entre eles: a exploração do homem
pelo homem, a acumulação de capitais, o uso de trabalho escravo e
dentre outros fatores.

- 114 -
Aluísio Azevedo é considerado o introdutor do Naturalismo no
País. Entretanto, esta escola literária não principiou em terras
brasileiras. Em Portugal, Eça de Queirós já publicava alguns títulos com
estes traços literários. Contudo, foi com Émile Zola que o Naturalismo
teve sua origem, na França. Para escrever Germinal – sua obra-prima,
E. Zola trabalhou como operário de uma mina de carvão durante
alguns meses. Conviveu com proletários, frequentou tavernas, morou
em albergues, etc. Tudo isso para que suas escritas pudessem
representar, o mais próximo da realidade, o contexto social e
econômico em que aqueles assalariados estavam submetidos. A
situação era das piores possíveis. Os jornaleiros eram obrigados a
labutar em lugares insalubres, sob péssimas condições de higiene, em
constante perigos de desmoronamento.
Igualmente, para escrever O Cortiço, Aluísio Azevedo percorreu
diversos locais do Rio de Janeiro. Visitou albergues, entrevistou
pessoas, conviveu com obreiros e frequentou os botequins da cidade.
Fez, autenticamente, o papel de um verdadeiro detetive. Muitos
dizem que vários personagens de sua obra foram inspirados em casos
verídicos. Alguns defendem que os ambientes abordados no romance
também eram factuais.
De acordo com Antonio Candido (2006, p. 47) há uma relação
extremamente intensa entre obra, autor e público. Dessa forma,
observa-se que há, em Aluísio Azevedo, um comprometimento de
denunciar as mazelas sociais, sobretudo no contexto da segunda

- 115 -
metade do século XIX. E nestes termos, afirma-se a intenção deste
artigo, de analisar as perspectivas econômicas versadas nesta
publicação romanesca azevediana.
A parte inicial deste paper tem por escopo demonstrar as
diferenças e singularidades encontradas na humanidade,
diferenciando-a dos animais, anteriormente verificadas em Charles
Darwin. Entretanto, tais observações não têm como objetivo
contrariar os estudos darwinistas, formuladas a bordo do navio
Beagle, em suas viagens ultramarinas. Em seguida, este texto aborda
alguns personagens d’O Cortiço, delineando a relação de
desigualdades identificadas ao longo deste romance Oitocentista. O
enredo desta publicação denota a formação de classes sociais,
dividindo os sujeitos em camadas ou níveis estratificados, encenando
o encadeamento de desníveis econômicos entre capitalistas e
proletários, patrões e empregados, exploradores e explorados, ricos e
pobres, etc.
Por fim, esta análise termina discorrendo acerca de algumas
questões sobre consumo, consumismo e avareza, apresentando seus
principais conceito e definições, arrolando quais personagens e cenas
podem ser apontadas a partir destas reflexões. Dessa forma, tenciona-
se demonstrar o quão importante O Cortiço se transfigura como um
registro literário da história da sociedade brasileira, especialmente em
termos econômicos, em fins do século XIX.

- 116 -
Humanidade e Capitalismo
O Darwinismo reporta-se a uma série de observações, análises
e pesquisas desenvolvidas por Charles Darwin (Shrewsbury, Reino
Unido, 1809-1882), abordando as premissas de hereditariedade,
reprodução, seleção natural, adaptação e evolução. (Cf. DARWIN,
2005; 2010). Em meados dos Oitocentos, a bordo de um navio
denominado Beagle, o então jovem cientista botânico recém-formado
navegava pelos mares, com seus demais tripulantes, em busca de
apontamentos, registros e outras averiguações, que mais tarde,
ficariam como uma importante herança científica, disciplinar e
sociológica para a posteridade.
A partir de suas viagens ultramarinas, as quais foram, sem
dúvidas, os eventos mais importantes de sua carreira (DARWIN, 2000,
p. 66), C. Darwin defendia a ideia de que os homens e os animais
apresentavam inúmeras semelhanças, desde suas aparências físicas,
sistemas nervoso, respiratório e reprodutor, até outras similitudes
orgânicas e anatômicas (DARWIN, 2009, p. 22). Além disso, outras
equivalências eram argumentadas por este pesquisador britânico,
como os instintos (DARWIN, 2010, p. 229), movimentos corpóreos
(DARWIN, 2009, p. 86), modos de se comunicar (DARWIN, 2009, p. 65),
reações e reflexões (DARWIN, 2009, p. 66), condições físicas e
emocionais (DARWIN, 2009, p. 78), e dentre outros fatores.
No entanto, apesar de todas estas contribuições darwinistas,
observa-se que os homens diferenciam-se das animálias em diversos

- 117 -
pontos. Primeiramente em referência aos sistemas de organização
social, especialmente, às padronizações de comportamento (VILA
NOVA, 2013, p. 50). Karl Marx (2011, p. 44) destaca que a humanidade
apresenta a faculdade de produção de bens, serviços e meios de
existência. Além disso, este sociólogo alemão lembra que a criatura
humana é capaz de planejar, arquitetar, preconceber e modificar sua
realidade, agindo de maneira racional e intelectiva (MARX, 1999, p.
212).
Para mais, Jacques Le Goff (1990) faz uma longa discussão
sobre como o homem manifesta a eficácia de registrar sua história,
compilando fatos, inventariando eventos, catalogando feitos e
inscrevendo sua trajetória ao longo do tempo. Assim, de acordo com
Norbert Elias (2013, p. 47), os animais apenas vivem a história,
diferente dos homens, que manifestam aptidões de reconhecimento
sobre sua existência no corredor do tempo.
Por fim, somente a humanidade manifesta a competência de
realizar trocas econômicas, bem visto em Adam Smith (2013a, p. 18):
“Ninguém jamais viu um cão realizar com outro cão uma troca leal e
deliberada de um osso por outro”. Ademais, este economista britânico
ainda acrescenta que: “Ninguém viu um animal, por seus gestos e
gritos naturais, dar a entender a um outro: isto é meu, aquilo é teu; eu
estou disposto a te dar isto em troca daquilo”. (SMITH, 2013a, p. 18).
Portanto, verifica-se que as relações capitalistas e econômicas são
idiossincrasias eminentemente humanas.

- 118 -
Este artigo, dentre as proposições expostas acerca do caráter
sociológico do homem, o qual o difere dos animais, abordará as
questões econômicas, voltadas às acepções capitalistas encontradas
no romance O Cortiço, do escritor maranhense Aluísio Azevedo. Esta
obra encena inúmeras representações neste sentido, em seus
personagens, enredo e narrativas. Talvez seja O Cortiço uma das
publicações literárias brasileiras do século XIX que mais tenha
abordado as questões financeiras em seus scripts. Percebem-se
diversas peculiaridades e características marxistas nesta produção
azevediana: exploração do homem pelo homem, formação de classes
sociais, opressão dos detentores do capital sobre os proletariados,
apropriação da força de trabalho, etc. K. Marx (Tréveris, Alemanha,
1818-1883) e Aluísio Azevedo (São Luís, Brasil, 1857-1913) foram
contemporâneos. Apesar de residirem em países diferentes,
possivelmente, A. Azevedo tenha sido influenciado pelas ideias do
pensador germânico, visto que as reflexões marxistas se irradiaram
para todos os continentes, alcançando notoriedade mundial.
Aluísio Azevedo é considerado o inaugurador do Naturalismo
no Brasil. Entretanto, este movimento não se iniciou por aqui. Antes
dele, outros nomes já se debruçavam sobre o estilo naturalista
nalgumas partes da Europa, bem visto em Eça de Queirós (Póvoa do
Varzim, Portugal, 1845-1900). Mas, foi com Émile Zolá (Paris, França,
1840-1902), que esta corrente literária principiou-se. Não por
coincidência, Aluísio Azevedo era um leitor voraz destes dois escritores

- 119 -
europeus. As semelhanças entre as escritas de Aluísio Azevedo e Émile
Zola são nítidas, conforme bem contextualizado por Antonio Candido
(1991, p. 112):

Aluísio Azevedo se inspirou evidentemente em


L'Assommoir, de Émile Zola, para escrever O
Cortiço, e por muitos aspectos o seu livro é um
texto segundo, que tomou de empréstimo não
apenas a ideia de descrever a vida do trabalhador
pobre no quadro de um cortiço, mas um bom
número de motivos e pormenores, mais um menos
importantes.

Em Germinal – romance naturalista de Émile Zola –,


considerado sua obra-prima, constatam-se intensas características
marxistas em diversas de suas cenas e personagens. Aclamada pela
crítica, caracteriza-se como uma das publicações literárias mais
importantes do século XIX. Esta composição romanesca retrata uma
sequência de eventualidades ocorridas numa mina de carvão, no
interior da França. Um grande número de operários era explorado,
submetidos a condições deploráveis de trabalho, sem nenhuma
estrutura de sobrevivência ou dignidade. Reivindicações trabalhistas,
movimentos grevistas, deflagração de conflitos, rotinas desgastantes
e tantas outras adversidades eram retratadas nesta narrativa
Oitocentista (Cf. ZOLA, 2006). Karl Marx (1818-1883) e Émile Zola
(1840-1902) também eram contemporâneos. Além disso, viviam no
mesmo continente: europeu. O primeiro na Alemanha, e o segundo na
França. Países bem próximos; outrossim, fronteiriços entre si.

- 120 -
Analisando o enredo de Germinal, é possível, indubitavelmente,
reconhecer abstrações marxistas em suas tramas.
O Cortiço expressa um universo prolífico de relações,
submersas em adversidades econômicas, arroladas em diferentes
metáforas. Os próprios lugares onde esta obra era ambientada já se
caracterizavam como palcos capitalistas. A Pedreira era uma área
designada à extração de britas, rochas, mármores e outras matérias-
primas destinadas à construção civil. Muitos passeios públicos,
calçadas e edificações arquitetônicas da cidade utilizavam insumos
provenientes desta mina. Os trabalhadores deste recinto eram
explorados, expostos a jornadas de trabalho pesadas, sem a devida
segurança cabível. Numa das cenas, um operário morre num desastre,
perdendo sua vida debaixo de uma pedra. (AZEVEDO, 2010, p. 29).
Pelo viés do lucro, na obra, este local era descrito como uma “mina de
dinheiro” (AZEVEDO, 2010, p. 32).
A Taverna tinha como atividade principal o comércio de
alimentos, secos e molhados, utensílios domésticos, acessórios em
geral, adornos, e principalmente, bebidas alcoólicas. Nota-se que os
empregados da Pedreira gastavam todos os seus ordenados neste
botequim, além de contraírem dívidas para os vencimentos seguintes.
Por fim, o Cortiço era uma habitação coletiva, reservada para fins
locatícios, tendo como público-alvo pessoas de baixa renda, em sua
grande maioria, funcionários da Pedreira e proletários da região.

- 121 -
Verifica-se que o dinheiro circulava, singularmente, neste
contorno, entre estas três paragens: a Pedreira, a Taverna e o Cortiço.
Pelo fato destas localizações estarem assentadas em áreas próximas
entre si, e estas, em territórios distantes do centro da cidade, as
pessoas sentiam-se atraídas pela comodidade de consumir seus
rendimentos nestes arrabaldes. Tal fato propiciava, pois, a
acumulação de capitais nas mãos do proprietário destes imóveis e
empreendimentos: o lusitano João Romão.

Personagens: Exploradores e Explorados


O Cortiço retrata um aglomerado de personagens, divididos em
classes sociais, qualificados, economicamente, como exploradores e
explorados, patrões e empregados, ricos e pobres, locadores e
locatários, senhores e escravos, capitalistas e operários,
empreendedores e assalariados, afortunados e desfavorecidos,
opressores e oprimidos, e dentre outros antagonismos. Este romance
simboliza a separação dos sujeitos em estratificações sociais. Neste
âmbito, acarretava-se num quadro de desigualdade, provocando
distúrbios civis, que acabavam por promover desordens econômicas e,
por fim, de ordem pública.
No enredo, o personagem João Romão é o primeiro a ser
narrado. Era um imigrante português. Desde os treze aos vinte e cinco
anos de idade trabalhara como funcionário de um comerciante no
bairro do Botafogo, no Rio de Janeiro. Certo dia, seu patrão decide

- 122 -
retornar à terra natal. Deixou-o, como pagamento, a mercearia com
tudo o que havia dentro, além de um conto e quinhentos em espécie
(AZEVEDO, 2010, p. 7). Doravante, labutava dia e noite, sem parar.
Tinha ele um sonho a ser realizado: enriquecer-se. A partir de então,
seus pensamentos voltavam-se apenas para este desígnio, e que o
acalentava dia após dia.
No mesmo bairro em que morava, conhece Bertoleza – uma
escrava alforriada que tinha uma quitanda nas proximidades. Ela o
fornecia o almoço todos os dias, por um pagamento de quatrocentos
réis diários. Era casada com um carroceiro, um senhor bem de idade.
Seu esposo, certo dia, depois de andar meia légua, acima da
capacidade de seus esforços, veio a falecer no meio da rua, ao lado de
sua carruagem. (AZEVEDO, 2010, p. 7). Ao saber do ocorrido, João
Romão começa a se interessar pela recém-viúva. E conversa vai,
conversa vem, “quando deram fé estavam amigados” (AZEVEDO,
2010, p. 7).
Observa-se que a partir dessa união matrimonial, Bertoleza
passa a atuar com um duplo papel: primeiro o de esposa, e segundo o
de quase uma escrava, pois antes, tinha ela um pequeno empório, no
qual vendia verduras e outros comestíveis. Não dependia
financeiramente de ninguém, muito menos de homem algum.
Trabalhava sozinha, vivia de seus préstimos e ainda pagava sua alforria
no valor de vinte e cinco mil réis mensais, em favor de seu antigo
proprietário (AZEVEDO, 2010, p. 7).

- 123 -
Após se casar com João Romão, Bertoleza passou a trabalhar
diuturnamente. Acordava às quatro da manhã e dormia tarde da noite.
Cuidava da cozinha, ajudava na Taverna e socorria todos os
contratempos que apareciam durante o dia. Antes, Bertoleza era
independente. Depois de matrimoniar-se com João Romão, passa a ser
explorada. Laborava dia e noite; não gastava e não tinha conforto.
Tudo o que conseguia era investido nos empreendimentos do então
marido.

Mourejava a valer, mas de cara alegre, às quatro da


madrugada estava já na faina de todos os dias,
aviando o café para os fregueses e depois
preparando o almoço para os trabalhadores de
uma pedreira que havia para além de um grande
capinzal aos fundos da venda. Varria a casa,
cozinhava, vendia ao balcão na taverna, quando o
amigo andava ocupado lá por fora; fazia a sua
quitanda durante o dia no intervalo de outros
serviços, e à noite passava-se para a porta da
venda, e, defronte de um fogareiro de barro, fritava
fígado e frigia sardinhas, que Romão ia pela manhã,
em mangas de camisa, de tamancos e sem meias,
comprar à praia do Peixe. E o demônio da mulher
ainda encontrava tempo para lavar e consertar,
além da sua, a roupa do seu homem, que esta,
valha a verdade, não era tanta e nunca passava em
todo o mês de alguns pares de calças de zuarte e
outras tantas camisas de riscado. (AZEVEDO, 2010,
p. 8)

Tal fato caracteriza-se como uma exploração disfarçada,


portando-se Bertoleza como uma espécie de trabalhador não

- 124 -
remunerado. Metaforicamente, escravizada. “E a Bertoleza, sempre
suja e tisnada, sempre sem domingo nem dia santo, lá estava ao fogão,
mexendo as panelas e enchendo os pratos”. (AZEVEDO, 2010, p. 38).
A partir do sonho de enriquecer-se, João Romão utilizava-se de
diversos mecanismos, lícitos ou ilícitos, na busca da realização deste
objetivo. No início, todo o dinheiro que ganhava era arremetido para
a construção de algumas casinhas de aluguel. No começo, eram
apenas três pequenas casas (AZEVEDO, 2010, p. 9). Alugando,
investindo e reinvestindo, aumentaram para noventa e cinco
residências (AZEVEDO, 2010, p. 15). Por fim, aplicando mais,
arrendando mais e construindo mais, chegaram a mais de
quatrocentas habitações. (AZEVEDO, 2010, p. 134). Havia muita
procura pelos quartos a serem alugados, e tal demanda instigava-o a
construir mais e mais. “E, mal vagava uma das casinhas, ou um quarto,
um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de
pretendentes a disputá-los”. (AZEVEDO, 2010, p. 15).
O Cortiço apresentava-se como um lugar amplo, bem
iluminado e com espaço arejado sob o sol. Em seguida, João Romão
teve a ideia de locar este ambiente para as lavadeiras, as quais
sobreviviam desta profissão. Cobrava-lhes diárias, junto com o sabão
e demais utensílios. Vendo o negócio prosperar, na frente da
estalagem, pendurara uma tabuleta: “Estalagem São Romão. Alugam-
se casinhas e tinas para lavadeiras”. (AZEVEDO, 2010, p.15). A notícia
corria longe e muitas pessoas da região se interessavam pela

- 125 -
novidade. Dia após dia, apareciam cada vez mais mulheres dispostas a
locar tal espaço para lavagem de roupas.

Graças à abundância da água que lá havia, como


em nenhuma outra parte, e graças ao muito espaço
de que se dispunha no cortiço para estender a
roupa, a concorrência às tinas não se fez esperar;
acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade,
entre elas algumas vindas de bem longe.
(AZEVEDO, 2010, p. 15)

Muitas destas moradias foram construídas com materiais de


construção furtados nas extensões da vizinhança. Por vezes, na calada
da noite, João Romão e Bertoleza saíam à procura de edificações em
andamento. E na primeira oportunidade, subtraíam tijolos, telhas,
tábuas e ferramentas de construção civil que encontravam pelos
arredores da cidade (AZEVEDO, 2010, p. 9).
João Romão também era proprietário da Taverna. A renda
desta bodega, igualmente, era revertida para as obras do Cortiço. A
ideia era ampliar o número de aluguéis a serem recebidos
mensalmente. Da mesma maneira, este botequim crescia
exponencialmente. Semana após semana aumentava-se o número de
clientes. Havia inúmeros frequentadores assíduos desta mercearia.
Assim como os furtos de materiais de construção, João Romão
também se utilizava de procedimentos indecorosos para auferir lucros
na baiuca. Enganava fregueses, trapaceava nos valores, lograva pesos
e medidas e, de tempos em tempos, comprava produtos oriundos de

- 126 -
furtos em residências alheias, os quais alguns rapinantes traziam e
ofereciam-lhe como forma de pagamento.

Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem


dia santo, não perdendo nunca a ocasião de
assenhorar-se do alheio, deixando de pagar todas
as vezes que podia e nunca deixando de receber,
enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas
medidas, comprando por dez réis de mel coado o
que os escravos furtavam da casa dos seus
senhores [...] (AZEVEDO, 2010, p. 9)

N’O Cortiço, João Romão, diversas vezes, era descrito como


capitalista. “Qual! era o famoso, o enorme capitalista! O proprietário
sem igual!” (AZEVEDO, 2010, p. 74). “[...] João Romão respondia com
monossílabos de capitalista”. (AZEVEDO, 2010, p. 152). Não somente
este imigrante lusitano era narrado como capitalista, como também,
igualmente, apresentava atitudes de um capitalista. Aqueles/as que
por ventura não conseguissem pagar mensalmente os vencimentos
dos aluguéis eram simplesmente despejados pelo próprio João
Romão. Na grande maioria das vezes, as desocupações eram seguidas
por atitudes grosseiras, feitas com ignorância e por vezes,
caracterizando-se enorme austeridade. Cita-se o caso da personagem
Marciana, uma lavadeira que trabalhava nas mediações do Cortiço.
Certa vez, não conseguira honrar o pagamento de locação de seu
quarto. Em seguida, fora escorraçada, veementemente, pelo
proprietário do imóvel.

- 127 -
E a mísera, sem opor uma palavra, assistia ao
despejo acocorada na rua, com os joelhos juntos,
as mãos cruzadas sobre as canelas, resmungando.
Transeuntes paravam a olhá-la. Formava-se já um
grupo de curiosos. Mas ninguém entendia o que ela
rosnava; era um rabujar confuso, interminável,
acompanhado de um único gesto de cabeço, triste
e automático. Ali perto, o colchão velho, já roto e
destripado, os móveis desconjuntados e sem
verniz, as trouxas de molambos úteis, as louças
ordinárias e sujas do uso, tinham, tudo amontoado
e sem ordem, um ar indecoroso de interior de
quarto de dormir, devassado em flagrante
intimidade.
[...] e Marciana não se movia do seu lugar,
monologando. João Romão percorreu o número
12, escancarando as portas, a dar arres e
empurrando para fora, com o pé, algum trapo ou
algum frasco vazio que lá ficara abandonado; e
enxotada, indiferente a tudo, continuava a
sussurrar funebremente. Já não chorava, mas os
olhos tinha-os ainda relentados na sua muda
fixidez. (AZEVEDO, 2010, p. 77)

Caso similar ocorreu com a personagem Piedade. Após ser


abandonada por seu marido, Jerônimo, esta recém-separada entrou
em estado de profunda tristeza. Depois que seu esposo a trocara por
Rita Baiana – uma morena que trabalhava como lavadeira nas
proximidades do Cortiço – Piedade entregou-se ao alcoolismo.
Doravante, tornara-se uma dependente química. Sempre ébria e sem
ânimo para o trabalho, dia após dia, perdia cada um de seus fregueses.
Muitos deles, vendo a situação em que se encontrava, não confiavam
mais entregá-la os serviços de lavanderia. Por fim, vivia com a ajuda

- 128 -
de algumas amigas que se enterneciam com sua má condição
emocional e pessoal. No entanto, certo dia, Piedade viera a não
conseguir saldar o pagamento referente aos aluguéis. Tal-qual
sucedido com a personagem Marciana, Piedade também fora
despejada de seu alojamento.

Um empregado de João Romão, que ultimamente


fazia as vezes dele na estalagem, por três vezes a
enxotou, e ela, de todas, pediu que lhe dessem
alguns dias de espera, para arranjar casa. Afinal, no
dia seguinte ao último em que Pombinha apareceu
por lá com Léonie e deixou-lhe algum dinheiro,
despejaram-lhe os tarecos na rua.
E a mísera, sem chorar, foi refugiar-se, junto com a
filha, no “Cabeça-de-Gato” [...] (AZEVEDO, 2010, p.
147)

Verifica-se que tanto no episódio de Marciana quanto no de


Piedade, o verbo enxotar fora utilizado. Tal expressão representa a
insensibilidade frente à situação em que as personagens se
encontravam. Mesmo com tantos problemas financeiros, pessoais e
de saúde, João Romão não se comovia frente às adversidades em que
estas estavam sofrendo. Para João Romão, o dinheiro falava mais alto.
Não se importava com as atribulações alheias, mesmo porque
considerava que nenhuma delas seria de sua competência. Nota-se
que os capitalistas não se abalavam com os desfavorecidos. Porém, em
contrapartida, entre os desvalidos, pairava um sentimento de
solidariedade. Numa das cenas, relata-se a situação de algumas destas

- 129 -
pessoas. Passavam por dificuldades, porém estavam sempre unidos,
amparados pelo companheirismo.

Defronte da porta de Rita tinham vindo postar-se


diversos moradores do cortiço, jornaleiros de baixo
salário, pobre gente miserável, que mal podia
matar a fome com o que ganhava. Ainda assim, não
havia entre eles um só triste. A mulata convidou-os
logo a comer um bocado e beber um trago. A
proposta foi aceita alegremente. (AZEVEDO, 2010,
p. 45)

Além da Taverna e do Cortiço, João Romão era proprietário da


Pedreira. Nesta mina, tinha ele mais outros tantos proletários ao seu
dispor. Trabalhavam de sol a sol, duramente, para auferir lucros para
seus empreendimentos. João Romão representava, metaforicamente,
a figura de um verdadeiro capitalista. Explorava friamente
desafortunados e desfavorecidos. Diariamente, utiliza-os como
instrumentos de ganhos pecuniários. Eram numerosos e labutavam
pesado. Por vezes, arriscavam suas vidas. A iminência dos perigos da
Pedreira eram constantes.

Aqui, ali, por toda a parte, encontravam-se


trabalhadores, uns ao sol, outros debaixo de
pequenas barracas feitas de lona ou de folhas de
palmeira. De um lado cunhavam pedra cantando;
de outro a quebravam a picareta; de outro
afeiçoavam lajedos a ponta de picão; mais adiante
faziam paralelepípedos a escopro e macete. E todo
aquele retintin de ferramentas, e o martelar da
forja, e o coro dos que lá em cima brocavam a rocha
para lançar-lhe fogo, e a surda zoada ao longe, que

- 130 -
vinha do cortiço, como de uma aldeia alarmada;
tudo dava a ideia de uma atividade feroz, de uma
luta de vingança e de ódio. Aqueles homens
gotejantes de suor, bêbados de calor, desvairados
de insolação, a quebrarem, a espicaçarem, a
torturarem a pedra, pareciam um punhado de
demônios revoltados na sua impotência contra o
impassível gigante que os contemplava com
desprezo, imperturbável a todos os golpes e a
todos os tiros que lhe desfechavam no dorso,
deixando sem um gemido que lhe abrissem as
entranhas de granito. (AZEVEDO, 2010, p. 31)

O Cortiço deixa bem claro a origem dos haveres de João


Romão: o trabalho. Tanto na Taverna, quanto na Pedreira e na
estalagem, havia o emprego intenso do fator trabalho. Mesmo com
algumas trapaças e falcatruas, o trabalho era, sem dúvida, o principal
agente propulsor da acumulação de suas posses. Todos labutavam
arduamente para a geração de capital: João Romão, sua esposa
Bertoleza e seu exército de proletariados. Todos se encontravam
esparramados pelos arredores da Pedreira, da baiuca e da hospedaria.
De imediato, já na primeira página do volume 1 de sua obra-prima A
Riqueza das Nações, Adam Smith (2013a, p. 1) considera o trabalho
como o responsável pelo cabedal de bens e capitais existentes numa
sociedade.

O trabalho anual de toda nação é o fundo que


originalmente lhe fornece todos os bens
necessários à vida e ao conforto anualmente
consumidos, e que consistem sempre na produção
imediata do trabalho, ou bens que essa produção

- 131 -
permite comprar de outras nações. Assim,
conforme essa produção, isto é, o que ela permite
comprar, mantenha maior ou menor proporção
com número de pessoas que deverão consumi-la, a
nação estará mais ou menos abastecida de todas as
coisas necessárias à vida e ao conforto das quais
venha a precisar.

Noutras palavras, segundo este filósofo e economista


britânico, “a causa da riqueza das nações é o trabalho humano”.
(ARAÚJO, 1995, p. 29). N’O Cortiço, inicialmente, João Romão era
pobre. Trabalhando, investindo e reinvestindo, conseguira acumular
um patrimônio extremamente superior àquele preliminar. Outro
agente notadamente indispensável no processo de formação de
capitais é a exploração da força de trabalho. O Cortiço reforça o
entendimento daquilo que K. Marx intitulou de “elementos das forças
produtivas emergentes: a classe operária ou proletariado”.
(MAGALHÃES, 2009, p. 94). No entanto, a partir deste processo de
exploração de mão-de-obra, corrobora-se com a formação de um
abismo cada vez maior entre os integrantes de uma sociedade,
aumentando pouco a pouco “o distanciamento social entre as classes
dominantes e as subordinadas”. (RIBEIRO, 2006, p. 21).
Outro coeficiente gerador de posses, de acordo com K. Marx
(1999, p. 178), é a circulação de mercadorias. Isto é, o movimento de
bens, serviços e produtos constitui-se num ciclo necessário para a
formação de riquezas, pois a cada fluxo rotativo, os haveres retornam
com lucro para o capitalista.

- 132 -
A circulação de mercadoria é o ponto de partida do
capital. A produção de mercadorias e o comércio,
forma desenvolvida da circulação de mercadorias,
constituem as condições históricas que dão origem
ao capital. (MARX, 1999, p. 179)

Atenta-se que no enredo d’O Cortiço, várias cenas são


narradas retratando esta dinâmica marxista, denotando a mobilidade
de diversos gêneros alimentícios, bebidas, artigos comerciais em geral.
Na Taverna, muitos sucedidos são descritos neste sentido. Este
botequim de João Romão era um teatro de trocas mercantis, conforme
visto em diferentes passagens do romance.

Abriram-se novas tavernas; nenhuma, porém,


conseguira ser tão afreguesada como a dele. Nunca
o seu negócio fora tão bem, nunca o finório
vendera tanto; vendia mais agora, muito mais, que
nos anos anteriores. Teve até de admitir caixeiros.
As mercadorias não lhe paravam nas prateleiras; o
balcão estava cada vez mais lustroso, mais gasto. E
o dinheiro a pingar, vintém por vintém, dentro da
gaveta, e a escorrer da gaveta para a barra, aos
cinquenta e aos cem mil-réis, e da burra para o
banco, aos contos e aos contos. (AZEVEDO, 2010,
p. 14)

Na bodega deste imigrante lusitano a circulação de


mercadorias era constante. Ademais, a cada dia, outros tantos
fregueses tornavam-se frequentadores deste estabelecimento. Havia
uma inquietação no interior deste armazém, sempre a ouvir as vozes
de seus clientes a solicitarem:

- 133 -
— Meio quilo de arroz!
— Um tostão de açúcar!
— Uma garrafa de vinagre!
— Dois martelos de vinho!
— Dois vinténs de fumo!
— Quatro de sabão!
(AZEVEDO, 2010, p. 27)

Reflete-se, assim, que “a mercadoria torna-se um meio. O que


interessa é o dinheiro ou, mais precisamente, o aumento do dinheiro”.
(ARAÚJO, 1995, p. 54). O processo de transformação de dinheiro em
mercadoria, em seguida, de mercadoria em dinheiro e assim
sucessivamente, caracteriza, certamente, a intenção de um retorno
sempre lucrativo nestas conversões de capitais.

Consumismo e Avareza
No tocante ao consumo, O Cortiço retrata diferentes
perspectivas, representadas por diversos personagens, os quais cada
um deles demonstra propensões para o consumo exacerbado de bens
e serviços ao longo do enredo. É extremamente importante lembrar
que o consumo é, por excelência, uma prática peculiarmente
necessária para a manutenção da vida e das relações sociais.

Se reduzido à forma arquetípica do ciclo


metabólico de ingestão, digestão e excreção, o
consumo é uma condição, e um aspecto,
permanente e irremovível, sem limites temporais
ou históricos; um elemento inseparável da
sobrevivência biológica que nós humanos

- 134 -
compartilhamos com todos os outros organismos
vivos. Visto desta maneira, o fenômeno do
consumo tem raízes tão antigas quanto seres vivos
– e com toda certeza é parte permanente e integral
de todas as formas de vida conhecidas a partir de
narrativas históricas e relatos etnográficos.
(BAUMAN, 2008, p. 37)

No entanto, há uma desmedia diferença entre consumo e


consumismo. Por vezes, forma-se certa confusão, engendrando uma
intrincada semelhança semântica entre estes dois termos. O primeiro
está relacionado à subsistência e à preservação da vida; enquanto que
o segundo está ligado aos dispêndios compulsivos e a obsessão por
gastos desnecessários.

De maneira distinta do consumo, que é


basicamente uma característica e uma ocupação
dos seres humanos como indivíduos, o
consumismo é um atributo da sociedade. Para que
uma sociedade adquira esse atributo, a capacidade
profundamente individual de querer, desejar e
almejar deve ser, tal como a capacidade de
trabalho na sociedade de produtores, destacada
(“alienada”) dos indivíduos e reciclada/reificada
numa força externa que coloca a “sociedade de
consumidores” em movimento e a mantém em
curso como uma forma específica de convívio
humano, enquanto ao mesmo tempo estabelece
parâmetros específicos para as estratégias
individuais de vida que são eficazes e manipula as
probabilidades de escolha e conduta individuais.
(BAUMAN, 2008, p. 41)

- 135 -
Muitos personagens narrados n’O Cortiço apresentavam
características consumistas, como era o caso, por exemplo, da
personagem Rita Baiana. Antes, Jerônimo era casado com Piedade; e
esta, de origem lusitana, gastava somente o necessário. Ainda, por
vezes, pensava no futuro, sempre tratando o dinheiro com muita
cautela. Após deixar Piedade, Jerônimo troca-a por Ritinha, uma
brasileira, lavadeira da estalagem. E nesta mudança, o marido sentia,
deveras, as diferenças entre a primeira e a segunda esposa com
relação ao consumismo.

Rita era desperdiçada e amiga de gastar à larga;


não podia passar sem uns tantos regalos de barriga
e gostava de fazer presentes. Ele, receoso de
contrariá-la e quebrar o ovo da sua paz, até aí tão
completo com respeito à baiana, subordinava-se
calado e afetando até satisfação; no íntimo, porém,
o infeliz sofria deveras. (AZEVEDO, 2010, p. 132)

Na Taverna de João Romão havia uma série de ornamentos,


artigos, acessórios, bebidas e tantas outras mercadorias oferecidas aos
proletários. Estes, ao receberem seus salários, sentiam-se atraídos por
gastar seus vencimentos com itens supérfluos.

Já não era uma simples taverna, era um bazar em


que se encontrava de tudo, objetos de armarinho,
ferragens, porcelanas, utensílios de escritório,
roupa de riscado para os trabalhadores, fazenda
para roupa de mulher, chapéus de palha para o
serviço ao sol, perfumarias baratas, pentes de

- 136 -
chifre, lenços com versos de amor, e anéis e brincos
de metal ordinário.
E toda a gentalha daquelas redondezas ia cair lá, ou
então ali ao lado, na casa de pasto, onde os
operários das fábricas e os trabalhadores da
pedreira se reuniam depois do serviço, e ficavam
bebendo e conversando até as fez horas da noite,
entre o espesso fumo dos cachimbos, do peixe frito
em azeite e dos lampiões de querosene. (AZEVEDO,
2010, p. 14)

Metaforicamente, O Cortiço retrata que os brasileiros tinham


propensão em gastar, enquanto que os estrangeiros apresentavam
inclinação para o empreendedorismo. Ademais, os estrangeiros
dominavam habilidades no trato com o dinheiro e predisposição em
adquirir patrimônios. Por fim, preferiam poupar e demonstravam
aversão em não gastar desnecessariamente. No enredo, há uma
citação dizendo que “o Brasil era uma cavalgadura carregada de
dinheiro, cujas rédeas um homem fino empolgava facilmente”.
(AZEVEDO, 2010, p. 16). Menciona-se o exemplo do personagem João
Romão: este era um imigrante português; viera para o Brasil a fim de
tentar a vida, conquistar posses e constituir bens financeiros. Todos os
seus pensamentos voltavam-se apenas para este propósito:
enriquecer-se. E para isto, por vezes, utilizava-se de condutas
extremamente esdrúxulas.

E dizia isto com uma convicção de quem tudo pode


e tudo espera da sua perseverança, do seu esforço
inquebrantável e da fecundidade prodigiosa do seu

- 137 -
dinheiro, dinheiro que só lhe saía das unhas para
voltar multiplicado.
Desde que a febre de possuir se apoderou dele
totalmente, todos os seus atos, todos, fosse o mais
simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha
uma preocupação: aumentar os bens. Das suas
hortas recolhia para si e para a companheira os
piores legumes, aqueles que, por maus, ninguém
compraria; as galinhas produziam muito e ele não
comia o ovo, do que, no entanto, gostava imenso;
vendia-os todos e contentava-se com os restos de
comida dos trabalhadores. Aquilo já não era
ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura,
um desespero de acumular, de reduzir tudo a
moeda. (AZEVEDO, 2010, p. 13)

João Romão tinha vários empreendimentos e negócios. Era


dono da Pedreira, da Taverna e da albergaria. Para mais, auferia lucros
com aplicações financeiras e títulos bancários. Por fim, emprestava
dinheiro a juros altíssimos para os proletários da região.

Era João Romão quem lhes oferecia tudo, tudo, até


dinheiro adiantado, quando alguém precisava. Por
ali não encontrava jornaleiro, cujo ordenado não
fosse inteirinho para às mãos do velhaco. E sobre
este cobre, quase sempre emprestado aos tostões,
cobrava juros de oito por cento ao mês, um pouco
mais do que levava aos que garantiam a dívida com
penhores de ouro ou prata. (AZEVEDO, 2010, p. 14)

Outro personagem estrangeiro descrito na obra era o sr.


Miranda. Igualmente, imigrante lusitano, embarcou para o Brasil com
a intenção de ganhar a vida. N’O Cortiço, era referido como um nobre
comerciante. Bem sucedido, era proprietário de uma casa de tecidos

- 138 -
importados no centro da cidade. Na parte inicial do romance, é
narrado comprando um amplo sobrado ao lado do Cortiço de seu
conterrâneo João Romão.
Ao cabo, relata-se o personagem Libório – um senhor de idade
avançada, de origem estrangeira. Tinha fama de ser extremamente
esquisito e misterioso. Ninguém sabia, ao certo, de onde viera, o que
fazia e como fora para ali naquela estalagem, sozinho. Vivia a
mendigar, a pedir aqui, ali e acolá. Poucas vezes, alguns o viam
almoçando ou jantando. Dormia num colchão fétido, dentro de sua
humilde casinha alugada no Cortiço. Alguns moradores da albergaria o
ajudavam, ora com um prato de comida, ora com algum outro auxílio.
Entretanto, muitos diziam que o velho Libório tinha “dinheiro
aferrolhado” (AZEVEDO, 2010, p. 46). Ou melhor, diversas pessoas
afirmavam que este ancião guardava dinheiro, escondido, não se sabia
exatamente onde. Vários vizinhos afirmavam ser bobagem tal
suspeita, pois não fazia sentido um senhor tão longevo, passando por
tamanha dificuldade, e ter tantos recursos disponíveis em espécie.
Alguns homens, eventualmente, ofereciam-lhe bebidas alcoólicas na
intenção de que ele pudesse confessar alguma informação sobre sua
vida financeira. Porém, de nada adiantava.
Certo dia, um misterioso incêndio fora provocado na
estalagem. Rapidamente, as labaredas de fogo se alastravam pelos
corredores da albergaria. Entre homens, mulheres e crianças, todos os
moradores corriam num movimento de salvem-se quem puder. Um

- 139 -
papagaio, preso à parede do Cortiço, desesperado, gritava por
socorro. Estranhamente, de maneira inusitada, o velho Libório entra
para dentro de sua casinha. Parecia ele estar preocupado com algo no
interior de sua pequena residência. Em meio à confusão, os bombeiros
chegaram e conseguiram controlar as chamas do fogaréu. Ao
vasculharem os escombros, entre telhas e entulhos, encontraram o
corpo deste idoso. Libório morreu ali, dentro de seu quarto,
enigmaticamente.
Pouco tempo depois, João Romão entrou a vasculhar o
cômodo em que Libório morava. Mexendo nos destroços do desastre,
o dono do recém-destruído albergue encontra, para sua surpresa, uma
quantidade enorme de garrafas de vidro, empilhadas uma a uma, de
fronte ao tapume do dormitório. Dentro delas, estava um número
exorbitante de cédulas de dinheiro, fechadas com rolhas de botijas de
vinho. Agora tudo fazia sentido. Por isso, o velho Libório, no momento
do incêndio, refugiou-se para o interior de seu casebre. Estava ele
preocupado com o “dinheiro aferrolhado” que muitos diziam ele ter.
Por um instante, João Romão pensou em se apoderar de toda aquela
fortuna ali encontrada. Não obstante, por um lapso de segundos,
sentiu-se mal, como se fosse “uma indignação de um roubado”.
(AZEVEDO, 2010, p. 126). Mas, em seguida, logo refutou, lembrando
que não seria nada furtado e sim achado, “e demais, não era crime!”
(AZEVEDO, 2010, p. 126). Além disso, poderia ter sido outro o

- 140 -
felizardo. Contando aquele montante numerário, vintém por vintém,
o taverneiro chegou à soma total:

— Quinze contos, quatrocentos e tantos mil-réis!...


disse João Romão entre dentes, sem se fartar de
olhar para as pilhas de cédulas que tinha defronte
dos olhos. (AZEVEDO, 2010, p. 126)

Sob esta justificativa, João Romão decide ficar para si toda


aquela suma importância. “— Seria um ato de justiça! – concluiu João
Romão. — Pelo menos seria impedir que todo este pobre dinheiro
apodrecesse tão barbaramente!” (AZEVEDO, 2010, p. 126)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Cortiço não é simplesmente um romance publicado no final
dos Oitocentos. Trata-se da obra-prima de Aluísio Azevedo, o qual fora
o introdutor da escola naturalista no Brasil. Influenciado por diferentes
escritores europeus, como Émile Zola, na França; e Eça de Queirós, em
Portugal, escreveu alguns outros títulos sob estas influências, bem
visto em Casa de Pensão e O Mulato. Embora seja O Cortiço sua obra-
prima, lançado em 1890, foi com O Mulato, editorado em 1881, que
Aluísio Azevedo iniciou o Naturalismo no País. O Cortiço retrata, por
meio de seus personagens e tramas, o contexto social, econômico e
cultural do povo brasileiro no final do século XIX.
A ganância, a usura, a ambição e outros comportamentos são
descritos ao longo desta produção romanesca. Figuras como

- 141 -
proletários, lavadeiras, vendedores ambulantes, prostitutas,
desempregados e outros excluídos ganhavam espaço nas escritas d’O
Cortiço. Os aspectos capitalistas são bem visíveis nesta obra
azevediana. Talvez tenha sido Aluísio Azevedo um dos autores que
mais representara a situação econômica, financeira e social do País no
final do Segundo Império. A partir de seus personagens, este escritor
maranhense faz duras críticas à sociedade da época: repreendia o
sistema escravocrata que se fazia presente naquele período,
condenava a exploração do homem pelo homem, maldizia sobre as
consequências nefastas da acumulação de riquezas nas mãos de
poucos, além de tantas outras posições contrárias acerca da situação
de subdesenvolvimento em que o povo brasileiro estava imerso
naquele tempo.
Apesar de ter se consagrado a partir das narrativas
naturalistas, não se dedicou exclusivamente a esta escola literária.
Publicou, também, diversos romances românticos, artigos de jornais,
teatros, além igualmente de ser um exímio desenhista, publicando
diversas ilustrações em vários semanários e gazetas onde trabalhara.

- 142 -
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- 145 -
A negação do romance harmônico em Pirandello: Ecos da
Modernidade

Ândrea Quilian de Vargas

Algumas generalidades
A singularidade de algumas expressões literárias do início do
século XX está intrinsecamente relacionada aos vários níveis e
processos de um contexto histórico determinado: a descoberta de
uma crise de identidade que enfraqueceu o protagonismo intelectual
que difundia ideias e conceitos generalizantes por intermédio de
discursos. O que vemos desenhado naquele período, ao contrário, é o
vazio da palavra, a derrocada do absolutismo e a exacerbação da
relatividade, postura que instaurou uma constante dúvida acerca da
história, dos preceitos morais e daquilo que poderia ser considerado
“real”.
Nascida na França e difundida na Europa a partir do final do
século XIX, essa maneira de pensar se configurou como verdadeira
antítese ao positivismo. A descoberta do universo inconsciente,
desvelado por Freud, e o gosto pelas dimensões misteriosas da
existência despertaram o interesse em um grupo de jovens artistas
franceses em sondar os mistérios de um mundo inexplicável

- 146 -
cientificamente, fato que abalou o Naturalismo e seu apego às
situações e personagens do cotidiano. Inspirado na poética de Charles
Baudelaire, primeiro escritor a teorizar a decadência, isto é, a
contradição e, em certa forma, a perversão moral como princípio novo
e fecundo de inspiração, o Decadentismo surge como uma
sensibilidade estética independente, avessa às associações frequentes
entre realidade e técnica na obra de arte, com o intuito de libertar o
espírito criativo da vida prática.
No cenário europeu, os fundadores do Decadentismo são Paul
Verlaine, Arthur Rimbaud e Stephane Mallarmé, os quais se afirmam a
partir dos anos setenta do século XIX. Joris-Karl Huysmans, nome
literário do francês Charles Maria George (1848-1907), é um
importante representante da estética decadente, sendo que seu
romance À rebours, publicado em 1884, é considerado uma das mais
expressivas obras literárias do século XIX e uma das que mais
pontualmente traduzem o espírito da nova estética. Nesse inovador
trabalho, Huysmans desenvolve um proficiente diálogo entre a
literatura e a pintura, deslocando as personagens, o enredo e todo o
esquema narrativo realista para um segundo plano, quando não os
elimina totalmente. Baseado nas descrições dos ambientes e nas
transposições de arte, o escritor francês realiza uma nova e irreverente
proposta literária. De maneira geral, a crise existencial do homem
moderno, a desconfiança em relação aos sentimentos, as nevroses, o
pessimismo, o tédio, a ruína social e moral do ser humano e a crença

- 147 -
na impossibilidade de a literatura representar a realidade são as bases
da estética decadente.
Segundo Leone de Castris (1976, p. ix), o Decadentismo é a
dramática resposta da consciência intelectual à degradação de um
modelo organizacional de mundo ou, usando outros termos, a
figuração de algo negativo que os intelectuais visualizam no coração
do desenvolvimento global da sociedade burguesa, do mercado
capitalista e das forças antagonistas que esses mecanismos
produziam. Não é absolutamente o espelhamento de uma decadência
objetiva, mas o distanciamento crítico da autonomia intelectual de um
organismo de poder que parecia turvar-lhe a visão. Nesse sentido, o
espírito decadente refuta os papéis estabelecidos pela engrenagem
social em nome da liberdade expressiva e da denúncia da alienação do
homem, sendo que a literatura se torna o lugar perfeito para a
concretização dessa decomposição.
No caso da Itália, os escritores mais representativos do
Decadentismo são Giovanni Pascoli e Gabriele D’Annunzio, mas os
temas são reconhecíveis nas obras de dois outros grandes escritores
modernos italianos: Italo Svevo e Luigi Pirandello. Em Il Decadentismo
italiano: Svevo Pirandello D’Annunzio, Leone de Castris estuda a
literatura das primeiras décadas do século XX dedicando especial
atenção ao papel dos intelectuais de denunciar e testemunhar a crise
dos valores culturais tradicionais e a derrocada dos discursos
totalizantes dos anos 1800. A produção literária italiana situada entre

- 148 -
os séculos XIX e XX apresenta alguns aspectos que merecem ser
destacados, especialmente na obra do siciliano Luigi Pirandello, como
a introspecção, a atmosfera rarefeita e misteriosa, o desaparecimento
do autor, a crise existencial do ser humano e da sociedade como um
todo e o destino alienante do homem. Inserido no contexto da
modernidade e ainda sob as premissas do Verismo, Pirandello cria um
espaço crítico e autônomo de negação da possibilidade de
representação do real como algo absoluto por intermédio da
formalização estrutural e temática de suas obras.
Movimento literário italiano em vigor a partir dos últimos 30
anos do século XIX e herdeiro do Naturalismo de Zola, o Verismo
primava pela rigorosa fidelidade ao real, à verdade dos fatos e aos
ambientes, postura que, sob o plano criativo, é a tradução da filosofia
positivista. De forma análoga aos procedimentos dos cientistas
positivistas, os escritores naturalistas aproximavam os ambientes e as
personagens dos romances adotando uma atitude imparcial e
impessoal. Giovanni Verga e Luigi Capuana, ambos sicilianos,
juntamente com o napolitano Federico De Roberto, são os mais
expressivos representantes do Verismo, cujo fundador é Verga com os
romances I Malavoglia (1881) e Mastro-don Gesualdo (1889), a
coletânea de contos Vita dei campi (1880) e a novela Novelle rusticane
(1883), obras nas quais o escritor empregava um vocabulário
diferenciado, incorporando o uso de expressões típicas da oralidade
local, com forte influência dialetal. A realidade siciliana, em especial,

- 149 -
era o principal objeto de representação dos romances veristas, mas a
vertente literária não se esgotou nos limites da Sicília, espraiando-se
por toda a Itália.
A formação intelectual de Pirandello, assim como da maioria
dos escritores em atividade entre os anos 1800 e 1900, esteve sob
forte influência do modelo positivista, sistema que disseminou a
convicção de que era possível conhecer objetivamente o real. Tal
certeza advinha dos progressos que a ciência havia alcançado,
especialmente pela experimentação e a repetição, procedimentos por
intermédio dos quais era possível, segundo os cientistas, formular leis
relativas aos fenômenos da natureza. É natural que os influxos dessa
doutrina interferissem na Literatura, empenhada em contar a história
dos homens e os momentos históricos onde estes estão inseridos.

Revolução copernicana do romance


Inserido no contexto verista, Luigi Pirandello inicia sua carreira
de romancista, em 1901, com um romance intitulado L’esclusa, cuja
construção deixa dúvidas sobre a completa adesão do siciliano aos
moldes do Verismo. O relativismo presente na história de Marta Ajala,
expulsa de casa após o marido ter encontrado uma carta de amor
enviada a ela por um admirador, é um forte indício de que, desde seu
primeiro romance, Pirandello colocaria em xeque a realidade, para ele
sempre ambígua e problemática. Tal postura contrariava
sistematicamente as premissas do Verismo, apegado aos fatos e às leis

- 150 -
de causa e efeito que, predominantemente, movimentaram os
romances até o início do século XIX.
Em L’esclusa, os fatos são contraditórios, a verdade é incerta e
as conclusões são comumente equivocadas. Marta Ajala não havia
traído o marido Roque Pentágora, como sugeriam as cartas enviadas
pelo advogado Gregorio Alvignani. Para ela, aquilo tudo não passava
de uma tolice inocente, pois jamais amou Alvignani, encontrou-se com
ele ou manteve qualquer relacionamento mais íntimo. Agradava-lhe o
exagero filosófico de algumas cartas, assim como lhe parecia divertido
o duelo intelectual que só o jovem advogado lhe proporcionava:

Quanto às frases de amor, não ligara, caçoando até,


considerando-as como superfluidades galantes e
inócuas. Em suma, entre ambos se empenhara uma
polêmica puramente sentimental e a bem dizer
literária, que se estendera pelo espaço de três
meses, e na qual talvez, sim, se deleitara no ócio e
na solidão em que a deixava o marido. Caprichando
na forma, escolhendo as frases como para uma
composição escolar, sentira-se, perante si própria,
orgulhosa do duelo intelectual secreto com um
homem da categoria do Alvignani, advogado de
envergadura, que a cidade em peso gabava,
admirava e cortejava, disposta já a elegê-lo como
deputado (PIRANDELLO, 1986, p. 46).

É perceptível, no fragmento, que o interesse de Marta Ajala por


Gregório Alvignani estava longe daqueles das sonhadoras mocinhas
românticas (como Emma Bovary, por exemplo), mas era de cunho
intelectual, pois representava para ela, uma mulher do século XIX,

- 151 -
criada em uma família tradicional, a única possibilidade de igualar-se a
um homem, ideia especialmente tentadora por se tratar de um sujeito
culto como Alvignani. Todavia, após ser expulsa de casa, sentir o
desprezo da sociedade e ver a família arruinada moral e
financeiramente, a jovem moça fragilizada vê-se envolvida, de fato,
com o homem que foi a razão de toda a sua desgraça.
Paradoxalmente, no momento em que se tornou realmente
culpada, obteve o perdão do marido e retornou a casa, grávida do
amante. Segundo Giorgio Patrizi (1996, p. 39), em L’esclusa há uma
forte presença de ambientes e personagens sicilianos de derivação
verista, mas com certa expressividade e, sobretudo, irônica (em parte
umoristica) nuance da destruição dos valores de causalidade que eram
centrais na tradição do romance, ao menos naqueles inseridos no
cânone dominante dos 1800. O primeiro romance de Pirandello
registra o paradoxo de um “efeito sem causa” e uma “causa sem
efeito”, segundo Patrizi, em função da expulsão por um adultério
inexistente e de um perdão apesar da culpa. Pode-se dizer, desse
modo, que a superficialidade das aparências é uma das chaves de
leitura para L’esclusa e um dos temas mais frequentes na produção de
Luigi Pirandello. Esse processo de desconfiança ou de corrosão mesmo
da realidade se acentuará em Il fu Mattia Pascal e Uno, nessuno e
centomila.
De acordo com Leone de Castris (1976, p. 10-20), ao analisar os
romances de Pirandello, mesmo que distanciados de qualquer

- 152 -
julgamento ideológico, valorativo ou esquema formal, facilmente
encontramos elementos importantes que definem toda a sua poética:
a formalização da impossibilidade do tempo objetivo, da ação histórica
e da dinâmica psicológica tradicional; a relativização do mundo; a
dúvida em relação ao real e a completa descrença no poder do ser
humano de deliberar sobre a própria existência. Todos esses
elementos levam a uma das mais interessantes linhas interpretativas
para Pirandello: a revolução copernicana do romance, que inicia em Il
fu Mattia Pascal, de 1904, e culmina em Uno, nessuno e centomila,
publicado em 1926.
Na galeria dos romances pirandellianos, O falecido Mattia
Pascal inaugura a narrativa em primeira pessoa. É paradoxal a história
do homem que, ao ser dado como morto e o corpo ter sido
reconhecido pela esposa, abre um longo parêntese na própria
existência, dentro do qual vive aventuras, amores e dissabores antes
inimagináveis. Conhece o amor verdadeiro com Adriana, filha do dono
da pensão onde vive em Roma, mas com ela não pode se casar, pois
não possui outro registro civil além de uma certidão de óbito. Para
Riccardo Scrivano, o romance de Mattia Pascal é erroneamente
considerado um “drama de cartório” (SCRIVANO, 1987, p. 16),
levando-se em consideração que a existência verdadeira (física,
concreta, feita de vivências e afetos) está submetida à vida
documentada nos registros civis. O romance, não obstante, é o drama
da completa desconexão entre a aparência e a realidade, da

- 153 -
desesperada busca por uma identidade interior que está além daquela
construída pela sociedade. Quem somos, na verdade, sem as máscaras
e registros que nos identificam e que validam uma pseudo-identidade
social reconhecida e aceita? Ninguém.
O discurso de Mattia envolve uma série de reflexões sobre a
própria natureza do ser humano, sendo que desde o início do
romance, no capítulo denominado Premessa seconda, definida
(filosofica), o autor aborda a relatividade dos valores a partir do
instante em que Copérnico descobre que a Terra gira e que o homem
não é outra coisa além de uma partícula ínfima, perdida em um
universo sem fim que gira o tempo todo. Antes da divulgação dos
estudos do matemático polonês, reflete Mattia Pascal, talvez até fosse
válido contar algo sobre o homem, com a esperança de que alguém se
interessasse; depois de Copérnico, tudo perdeu a importância:

Copérnico, Copérnico, meu caro Padre Elígio,


estragou a humanidade irremediavelmente. Agora,
todos já nos adaptamos, aos poucos, à nova
concepção de nossa infinita pequenez e a nos
considerarmos menos do que nada, no Universo,
com todas as nossas lindas descobertas e
invenções. Que valor quer, então, que tenham as
notícias, já não digo das misérias privadas, mas de
nossas calamidades gerais? Histórias de minhocas,
as nossas, agora (PIRANDELLO, 1981, p. 16).

Como se vê, o excerto apresenta um momento de reflexão


teórica que movimenta a história recém iniciada do concreto ao

- 154 -
filosófico, sendo que todo o romance é organizado a partir de
considerações gerais e de reflexões críticas, às vezes até dramáticas,
do protagonista sobre ele mesmo e sua relação com os outros. Os
fatos, nesse sentido, servem de suporte às incessantes reflexões de
Mattia. Um exemplo pertinente é quando, no capítulo XIII, intitulado
A lanterninha, após ter feito uma cirurgia para endireitar o olho
estrábico e ter permanecido no escuro por quarenta dias, o
protagonista reflete sobre ele mesmo: ao decidir viver outra vida, era
necessário criar uma pessoa diferente. Quem era ele, agora? Ou,
melhor dizendo: quem ele era antes de decidir mudar de vida? Era
preciso olhar de fora para poder visualizar melhor. Era necessário sair
daquele corpo para deixar entrar, nele, uma nova pessoa, com outra
personalidade, outras características e outras histórias para contar.
Mas quais histórias? Não poderia repetir aquelas vividas pelo falecido
Mattia. Seu nome agora era Adriano Meis e era preciso criar um
passado para essa personagem, tarefa extremamente difícil ou quase
impossível, pois nada se cria que não tenha algum vínculo com algo
que já aconteceu, constatação que leva Mattia Pascal à decisão de
forjar o suicídio de sua criação e voltar para Miragno. Ao retornar, dá-
se conta de que o reingresso na própria vida, deixada para trás, era
impossível. A esposa estava casada com seu melhor amigo, Pomino. A
vida não esperou o retorno de Mattia Pascal e seguiu seu curso, não
havendo mais lugar para ele.

- 155 -
A desconstrução articulada no romance (ou antirromance) que
conta a história do bibliotecário que, ao final, leva flores à própria
sepultura, era somente o início da demolição dos padrões elaborada
por Pirandello. A crítica aos valores burgueses e à falsa harmonização
da consciência coletiva promovida pela literatura, a qual ocultava as
contradições da existência e embalsamava o leitor em macios e
perfumados lençóis de seda, é fortemente efetuada em nome de uma
arte que enfatiza a desilusão moderna e que ridiculariza o homem.
Considerado uma crítica à narrativa tradicional, O falecido
Mattia Pascal tem como protagonista um herói/vítima da descoberta
de Copérnico, sendo que o objeto maior de sua censura, na verdade,
é a literatura como representação da realidade:

Não me parece mais, o atual, tempo de escrever


livros, nem por brincadeira. No que diz respeito à
literatura, como a tudo o mais, devo repetir meu
costumeiro estribilho: “Maldito seja Copérnico!”
(PIRANDELLO, 1981, p. 15).

A revolta de Mattia Pascal contra Copérnico é, na realidade, a


revolta de uma geração inteira de escritores que se dá conta de que
não há mais uma realidade a ser representada e de que uma literatura
que pretendesse explicar ou mostrar algo como fundamento absoluto
estaria sempre equivocada. Depois de O falecido Mattia Pascal, de
1904, seguiram-se as publicações de Em busca do tempo perdido
(1913), de Proust; Metamorfose (1916), de Kafka; Ulisses (1922), de
Joyce; Consciência de Zeno (1923), de Ítalo Svevo; O homem sem
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qualidades (1930), de Musil, exemplos que mostram que, nas
primeiras décadas do século XX, observou-se uma maneira peculiar de
buscar sentidos na literatura, distante da ideia de arte como
reprodução da vida como ela é.
O falecido Mattia Pascal obteve um sucesso imediato junto ao
público, ganhando ressonância internacional. Foi traduzido para o
alemão em 1905, para o francês em 1910 e para o inglês em 1923.
Todavia, a crítica mais exigente e qualificada ignorou e, em alguns
casos, hostilizou o romance por um longo período. As acusações de
inverossimilhança foram as mais incisivas. Foi necessário esperar pelo
fim da primeira guerra mundial para que fosse registrado um
julgamento positivo sobre a história de Mattia Pascal, mas ainda de
forma isolada. Dentre os ensaios críticos favoráveis ao romance de
Pirandello estão o de Federigo Tozzi, intitulado Luigi Pirandello,
divulgado em quinze de janeiro de 1919 na revista Rassegna italiana;
o de Giacomo Debenedetti, com o título Una giornata di Pirandello, de
1937; alguns escritos de Massimo Bontempelli, Luigi Russo e Walter
Binni, todos contrários à posição de Benedetto Croce, um dos críticos
mais negativos em relação a Pirandello.
Primeiramente, Croce contestou o ensaio L’umorismo, texto
que explicita a teoria umoristica, base de quase toda a obra de Luigi
Pirandello. Segundo essa perspectiva, a tarefa do artista consiste em
retirar as máscaras que encobrem o verdadeiro ser humano, tendo em
mente que há sempre algo por detrás do feio, do grotesco e daquilo

- 157 -
que nos faz rir. O riso, para Pirandello, é sempre motivo de
desconfiança. Em L’umorismo, ele exemplifica sua teoria citando a
figura de uma velha senhora, vestida e maquiada de forma exagerada.
A primeira reação é o riso cômico, que advém de uma superficial
interpretação do fato: a maquiagem, o penteado e as vestes da
senhora são incompatíveis àquilo que comumente caracteriza as
pessoas de mais idade. Entretanto, após analisarmos calmamente a
situação, descobrimos que a mulher se comporta dessa maneira para
agradar ao marido, anos mais jovem do que ela. A partir desse
momento, denominado ato reflexivo, a percepção se altera e aquilo
que parecia risível e cômico, no início, torna-se amargo e triste.
Para Croce, interessado somente na poesia pura, o umorismo
se configuraria como um estado psicológico indefinido ou um
pseudoconceito, e jamais uma categoria de arte ou um gênero
literário, chegando a refutá-lo como “não poesia”. Em uma nota
anexada à edição dos 20 anos de L’umorismo, Pirandello replica
afirmando que Croce fez confusão entre a denominação “gênero
literário” como entendia a retórica: “O umorismo não é um gênero
literário, como o poema, a comédia, o romance, a novela: tanto é
verdade que nenhum desses componentes literários pode ou não ser
umoristico. O umorismo é qualidade de expressão, que não é possível
negar” (PATRIZI, 1996, p. 51-52, tradução nossa). Segundo o escritor
siciliano, o umorismo é o olhar crítico e reflexivo do escritor sobre a
obra, e não a obra em si.

- 158 -
Na realidade, Croce havia analisado o umorismo sob o plano de
um pseudoconceito de fundo empírico, realizável com fins práticos,
mas não definível no plano filosófico. Aliás, de acordo com Umberto
Eco (1989, p. 250), Croce era mestre em definir como pseudoconceito
ou pseudoproblema tudo aquilo que ele não conseguia explicar.
Pirandello, ao contrário, gostava de expor problemas justamente
quando não encontrava a solução, pois ele também reconhecia a
dificuldade em definir a noção de umorismo.
A primeira linha interpretativa para O falecido Mattia Pascal é,
sem dúvida, a teoria do umorismo, cuja elaboração se deu
paralelamente à escritura do romance, confirmando a
intertextualidade existente entre a teoria (o ensaio L’Umorismo) e a
experimentação narrativa (Il fu Mattia Pascal). Desde as primeiras
páginas, é visível o enfraquecimento das relações entre a obra de
Pirandello e seus antecessores, os escritores italianos dos 1800, pois
na história de Mattia Pascal há algo que vai muito além da comicidade
de um vivo que leva flores à própria sepultura.
Realizando uma análise estrutural da trama, são observáveis
três blocos internos distintos: o primeiro é constituído pelos capítulos
do I ao VII, quando Mattia Pascal, o narrador, fala de sua infância, do
casamento com Romilda, da amizade com Pomino, sobre a mãe, o
irmão, o emprego de bibliotecário e a ideia de escrever um livro.
Podemos considerar essa primeira parte como campestre, pois é
quase toda ambientada na pequena Miragno, com exceção do sétimo

- 159 -
capítulo, situado em um entre- lugar, um espaço de transição
geográfica e pessoal que compreende a narração do retorno de Mattia
para casa, de trem, após ter passado dias jogando em Montecarlo.
Enquanto projetava mentalmente o que faria com o dinheiro que havia
ganhado, o protagonista lê nas páginas necrológicas do jornal local:

Suicídio
[...] Ontem, sábado, 28, foi encontrado, na levada
de uma azenha, um cadáver em estado de
adiantada putrefação. [...] A azenha está localizada
num sítio chamado da Stìa, a cerca de dois
quilômetros da nossa cidade. [...] foi reconhecido
como i do nosso bibliotecário Mattia Pascal,
desaparecido há vários dias. Causa do suicídio:
dificuldades financeiras (PIRANDELLO, 1981, p. 98).

Esse capítulo, intitulado Mudo de trem, é importantíssimo para


todo o restante da narrativa, pois representa um salto dialético entre
o presente e o futuro que, a partir daquele momento, começa a se
delinear na vida de Mattia Pascal. No instante em que o mundo desaba
sobre a cabeça do protagonista, ele parece se dissolver em milhares
de pedaços que, durante alguns minutos, pairam suspensos no ar. Para
o leitor atento que acompanha o raciocínio de Mattia, esse é um dos
momentos mais decisivos do enredo. O que fará o bibliotecário? Era
preciso recompor-se, decidir o que fazer com essa vida que, para os
moradores de Miragno, tinha acabado. Mattia se encontrava, pois, em
uma encruzilhada: voltar e desfazer a mentira? Ou embarcar no
engano e deixar todo o passado para trás? Retornar à habitual

- 160 -
existência enfadonha ou reconstruir uma nova vida? A decisão de
Mattia Pascal, então, foi acreditar na própria morte e reagrupar seus
fragmentos em outro lugar, usando outro nome: Adriano Meis, título
do oitavo capítulo, o qual dá início à segunda estrutura ou bloco
narrativo de O falecido Mattia Pascal.
Esse segundo núcleo compreende os capítulos do VIII ao XVI,
trecho em que a narrativa se torna independente, apesar das
constantes reflexões de Mattia sobre a vida. Os fatos narrados podem
ser entendidos como um grande parêntese aberto e lidos
isoladamente, sem que haja prejuízo do entendimento. Configurados
como um romance dentro do romance, os capítulos que tratam da vida
de Adriano Meis isolam ou suspendem, de certa forma, a existência de
Mattia Pascal, o falecido.
A terceira estrutura narrativa da trama é composta pelos dois
últimos capítulos, XVII e XVIII, trecho em que Mattia “ressuscita”. A
originalidade de Pirandello está justamente nessa cadeia dialética que
interliga ao mesmo tempo em que confere independência a
determinadas partes do romance, e não na narração em primeira
pessoa ou na história do morto vivo, tema que já havia aparecido em
alguns escritos do século XVIII, como Jacques d’Amour e La mort
d’Olivier Bécaille, ambas novelas de Zola. Todavia, o tema do morto
vivo adquire originalidade em Pirandello em função da duplicidade
constante em todo o entrelaçamento diegético: dois Mattias (um vivo
e um morto); duas bibliotecas (a de Miragno, onde Mattia trabalhava,

- 161 -
e a do senhor Anselmo, dono da pensão em Roma); duas casas (uma
em Miragno e outra em Roma); dois falsos suicidas (Mattia e Adriano
Meis); dois irmãos (Mattia e Alberto); duas irmãs (mãe de Mattia e a
tia Scolastica); duas mulheres grávidas (Romilda, a esposa de Mattia,
e Oliva); duas gêmeas (filhas de Mattia e Romilda). No que diz respeito
à ação, também observamos um movimento que é sempre duplicado:
partida e retorno; vencer no jogo e ser roubado; nascimento e morte;
amar Adriana e, mesmo assim, ir embora.
Toda a duplicidade presente em Il fu Mattia Pascal ratifica a
ideia inicial de que seu romance (ou antirromance) é uma narrativa de
desestruturação, de fragmentação, caleidoscópica, usando outro
termo. Interpretada como o primeiro romance filosófico de Pirandello,
seguido por Cadernos de Serafino Gubbio operador e Um, nenhum e
cem mil, a história de Mattia Pascal se sustenta sobre dois pilares: o
dilema do relativismo, instaurado por Copérnico, e a degradação do
ser humano representada por intermédio de uma farsa umoristica que
encena a morte do eu. Nesse sentido, o duplo e a morte, mais do que
motivos temáticos, são metáforas da crise da subjetividade. Mattia
Pascal não pode ser considerado um herói, nos termos de Lukács,
tampouco pode ser encarado como um sujeito, se levarmos em conta
as narrativas dos anos 1700 e 1800. Ao contrário dos perfeitos e
altruístas heróis clássicos, o bibliotecário da pequena Miragno é uma
personagem cuja identidade está no “não ser”, no “não viver”, no “não

- 162 -
estar”. Tudo é transitório, inclusive sua(s) identidade(s): 1)Mattia
Pascal, o bibliotecário; 2) Adriano Meis e 3) Mattia Pascal, o falecido.
Contrariando a estrutura narrativa do romance de formação
(bastante apreciado no século XVIII), de acordo com o qual a evolução
moral, espiritual e cognitiva da personagem se configurava como a
mola propulsora do enredo, as transformações de Mattia Pascal não o
levam a lugar algum, tampouco o engrandecem como personagem. Se
antes o protagonista romanesco obtinha sucesso frente às
adversidades da vida ou as oposições do ambiente social, levando,
assim, conforto ao leitor burguês ansioso por um final feliz que
alimentasse sua fé em uma ordem racional do universo, em um
romance como O falecido Mattia Pascal não é dada nenhuma
relevância ao engrandecimento da raça humana ou qualquer espécie
de atitude altruísta, tendo em vista que o bibliotecário de Miragno
está empenhado exclusivamente consigo mesmo. Sobre a raça
humana, Copérnico já a havia ridicularizado e retirado do centro do
universo há um bom tempo.
Além disso, o romance de Pirandello se diferencia dos
antecessores italianos dos 1800 por ser construído em forma de
solilóquio, repleto de pausas, interrogações, interjeições, as quais
traduzem a desarmônica existência da personagem. Outro elemento
importante é o narrador, antes interessado em persuadir o leitor a
acreditar na verdade daquilo que contava. No caso dos narradores
pirandellianos, não há mais certeza sobre a verdade ou intenção de

- 163 -
conduzir o leitor sem que este faça qualquer esforço hermenêutico
durante a leitura. Em sentido contrário, o narrador Mattia esconde
fatos, deixa em suspensão aquilo que pensa, provoca o leitor: “Por que
Roma e não alhures? A verdadeira razão vejo-a agora, depois de tudo
que me aconteceu, mas não a direi, para não estragar a narração com
reflexões que, a essa altura, seriam inoportunas” (PIRANDELLO, 1981,
p. 141). Está claro, no excerto, o desinteresse do narrador em
desvendar os fatos, em explicar pormenorizadamente toda a diegese
do romance. Esse narrador duvidoso infiltra no texto o ponto de vista
relativista, tão caro a Pirandello, sublinhando o enigma da própria
identidade: “Uma das poucas coisas e, talvez mesmo, a única que eu
sabia ao certo era esta: que eu me chamava Mattia Pascal”
(PIRANDELLO, 1981, p. 9). Nesse sentido, está clara a intenção de
Pirandello em desvincular a narração do bibliotecário protagonista de
qualquer certeza.
A mesma sensação de transitoriedade e insegurança que
perturba o leitor de O falecido Mattia Pascal inquieta o ex-banqueiro
Vitangelo Moscarda, protagonista de Um, nenhum e cem mil,
elaborado por cerca de dez anos. Publicado em 1926, esse
desconcertante romance aborda a multiplicidade de verdades, modos
de ver, sentir e julgar o mundo. Arcangelo Leone de Castris (1976, p.
9-10) situa Uno, nessuno e centomila na vanguarda da literatura
europeia e na tradição do antiromanzo pela privação de alternativas
formais, acentuando que toda a negatividade do romance é uma

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metáfora da crise histórica instaurada pela modernidade. Grosso
modo, o antiromanzo, ou “romance da crise burguesa”, se caracteriza
pela oposição ao romance realista dos anos 1800 e tem como
características fundamentais uma trama que não obedece a uma
ordem objetiva, mas que se desenvolve em função da subjetividade;
os espaços se tornam simbólicos; o tempo segue as coordenadas da
memória, e não mais das noções de agora, hoje, amanhã ou ontem; as
personagens perderam sua identidade e questionam até mesmo as
certezas cientificamente instauradas. Todos esses elementos
desmistificam as verdades da narrativa tradicional, ao mesmo tempo
em que destroem a imagem do homem como um ser coerente e
confiável.
Segundo Leonardo Sciascia (1968, p. 30-33), o último romance
de Pirandello pode ser entendido como a suma de toda a visão do
escritor sobre a vida. O próprio Pirandello havia intuído a função de
fechamento de Uno, nessuno e centomila em algumas entrevistas
concedidas antes da publicação do romance. Na primeira, de 1919,
declarou: “Estou concluindo um romance que deveria ter surgido
antes de todas as minhas comédias. [...] Neste romance está a síntese
completa de tudo que eu fiz e a fonte de tudo que eu farei” (VICENTINI,
1970, p. 239, tradução nossa). A declaração de Pirandello esclarece
que, ao escrever Uno, nessuno e centomila, já havia um projeto que
nortearia toda a sua produção futura. Na segunda entrevista, realizada
em 1922 pela revista Época com o título Conversando con Pirandello,

- 165 -
o romance aparece definido como o esforço teórico que indaga,
partindo do pressuposto da inconstância e da instabilidade da vida, a
possibilidade de uma solução. Vicentini reproduz a entrevista em
L’estetica di Pirandello:

Espero que Um, nenhum e cem mil possa sair antes


do final do ano. Deveria ser o prefácio de toda a
minha produção teatral e será, ao contrário, o
epílogo. É o romance da decomposição da
personalidade. Ele chega às conclusões mais
extremas, às mais longínquas consequências.
Espero que nele apareça, mais claro do que tudo
que apareceu até agora, o lado positivo do meu
pensamento. De fato, o que predomina aos olhos
de todos é somente o lado negativo: apareço como
um diabo destruidor, que retira a terra debaixo dos
pés das pessoas. Em vez disso! Eu não recomendo,
talvez, onde se devem pousar os pés quando retiro
a terra debaixo deles? A realidade, digo eu, somos
nós que criamos: e é indispensável que seja assim.
Mas o problema é firmar-se em uma única
realidade: nela se pode acabar sufocando,
atrofiando, morrendo. É necessário variar, mudar
continuamente, continuamente mudar e variar a
nossa ilusão (VICENTINI, 1970, p. 239, tradução
nossa).

A solução para lidar com a instabilidade da vida, segundo


Pirandello, é a criação deliberada de realidades nas quais seja possível
acreditar, pelo menos temporariamente, estratégia que se faz
presente em Il fu Mattia Pascal e ganha força em Uno, nessuno e
centomila. Em L’umorismo, o escritor siciliano parece já ter antecipado
o cataclismo que a descoberta de um nariz torto provocaria na vida de

- 166 -
Vitangelo Moscarda. A partir da observação da esposa que seu nariz
pendia para o lado direito, o banqueiro inicia um processo sem volta
em busca da verdadeira identidade. Quem era ele para a esposa? E
para os amigos? Quem era Vitangelo Moscarda para o próprio
Vitangelo Moscarda? Não havia uma única resposta, pois, como afirma
Pirandello em L’Umorismo,

Hoje somos, amanhã não. Que rosto nos deram


para representar parte da vida? Um nariz feio? Que
triste ter que carregar um nariz torto por toda a
vida... Sorte que, a longo prazo, não nos damos
mais conta disso. Notam os outros, é verdade,
quando chegamos a acreditar que temos um nariz
bonito; e então não sabemos por que os outros
riem nos olhando. São tão idiotas! Consolamo-nos
observando que orelha tem aquele e que boca tem
aquele outro, os quais não percebem e têm a
coragem de rir de nós. Máscaras, máscaras... Um
sopro e passam, para dar lugar a outro.14

O valor que o nariz adquire no romance está intrinsecamente


relacionado ao ato crítico-reflexivo que Pirandello denomina
umorismo, pois atenta para o fato de que uma simples observação de
algo sem importância tem o poder de revirar uma existência inteira.
Em Il fu Mattia Pascal, o nariz aparece como um dos pontos negativos
no rosto do protagonista, além do olho estrábico que “tendia para
olhar, por sua conta, alhures” (PIRANDELLO, 1981, p. 28). Se o homem

14
Site http://www.classicitaliani.it/pirandel/saggi/Pirandello_umorismo_02.htm.
Acesso em: 25, maio 2016.

- 167 -
pudesse trocar de nariz, reflete Mattia, ele certamente trocaria o dele.
Ao compararmos os dois romances, observamos que a aparência física
(o estrabismo e aquele nariz pequeno demais) já era um problema
para Mattia Pascal, mas fora resolvido. No caso de Moscarda, a
observação do nariz torto é a mola propulsora de todo o enredo e do
triste fim do protagonista, ou seja, em Uno, nessuno e centomila,
questões irrelevantes em outras obras de Pirandello são levadas ao
extremo. Moscarda é, sem dúvida, herdeiro de Mattia Pascal, pois
ambos precisaram abrir mão da identidade civil tornando-se o
“falecido”, no caso de Mattia, e o “ex” banqueiro, no caso de
Moscarda, conceitos negativos que nominam perfeitamente essas
personagens cadáveres que se interrogam sobre o mundo e não
chegam à resposta alguma. Somos, segundo o protagonista de Um,
nenhum e cem mil, eternos pontos de interrogação, assim como tudo
aquilo que consideramos realidade pode ser questionado.

É verdade que eu poderia me consolar com a ideia


de que, afinal de contas, o meu caso era óbvio e
banal, mais uma prova de um fato extremamente
notório, isto é, que todos notamos facilmente os
defeitos dos outros e não percebemos os nossos.
Mas o primeiro germe do mal já começara a lançar
raízes no meu espírito, e eu não pude me consolar
com essa reflexão. Em vez disso, fixou-se no meu
pensamento a ideia de que eu não era para os
outros aquilo que até agora, dentro de mim, havia
imaginado que fosse (PIRANDELLO, 2010, p. 24).

- 168 -
Uno, nessuno e centomila obteve sucesso de público desde o
início, pois no ano de sua publicação Pirandello já era um autor
reconhecido e plenamente afirmado como dramaturgo. A extrema
desagregação de Moscarda, o sujeito transformado em sombra de si
mesmo após a anulação da própria identidade, completou o percurso
iniciado em O falecido Mattia Pascal. O final do rico banqueiro
Vitangelo Moscarda foi no hospício que ele mesmo havia construído.
Como manter a sanidade após a descoberta de que absolutamente
tudo é relativo e de que não existe certeza nenhuma sobre qualquer
ser ou coisa que está sobre a Terra?
Essas mesmas indagações estão presentes em Così è (se vi
pare), representada pela primeira vez em Milão, em 1917, e publicada
um ano depois. Na peça em questão, a senhora Ponza, que aparece
em cena somente no final do drama, é um mistério para toda a
pequena cidade onde vive com o marido e sua suposta mãe, a senhora
Frola. O senhor Ponza, viúvo e casado pela segunda vez, sustenta que
a senhora Frola (mãe de sua primeira esposa) é louca e pensa que a
atual senhora Ponza é sua filha. A senhora Frola afirma que louco é o
senhor Ponza, que não a deixa morar junto da filha por ciúmes. Frente
a essas distintas representações e perspectivas da realidade, os
cidadãos do pequeno vilarejo não conseguem falar em outra coisa e,
ansiosos por saber a verdade, exigem que a senhora Ponza esclareça
definitivamente os fatos. É então que, intimada a comparecer diante
de todos, ao final do terceiro ato, a jovem senhora Ponza surge no

- 169 -
gabinete do prefeito, vestida de preto e com um véu espesso que lhe
cobre o misterioso rosto.

Senhora Ponza
[depois de olhar a todos através do véu, diz com
solenidade sombria]
O que querem de mim depois disso, senhores?
Aqui existe uma desventura, como veem, que deve
permanecer escondida, porque só assim pode valer
o remédio que a piedade lhe concedeu.
O PREFEITO [comovido]
Nós queremos respeitar a piedade, minha senhora.
Entretanto, gostaríamos que a senhora nos
dissesse...
SENHORA PONZA
[escandindo lentamente as palavras]
O quê? A verdade? É esta: que sou, sim, a filha da
senhora Frola...
TODOS
[com um suspiro de satisfação]
Ah!
SENHORA PONZA
[logo em seguida, com o mesmo tom de antes]
...e a segunda esposa do senhor Ponza...
TODOS
Oh! Como assim?
SENHORA PONZA
...sim, e para mim nenhuma, nenhuma!
O PREFEITO
Ah, não, senhora. Para si própria, a senhora deve
ser uma ou outra!
SENHORA PONZA
Não senhores. Para mim, sou aquela que se crê que
eu seja (PIRANDELLO, 2011, p. 173-174).

Prevalece em Assim é (se lhe parece) um dos temas mais caros


a Pirandello: a dúvida acerca da verdade, pois não há mais certezas

- 170 -
inquestionáveis, mas incontáveis perspectivas, estritamente
relacionadas à individualidade de cada um. Ou, parafraseando a
senhora Ponza, o homem é aquilo no qual os outros acreditam. Sua
resposta concilia todos os pontos de vista e anula a dicotomia “ou isto”
“ou quilo” para dizer que a verdade é complexa e contraditória. Tanto
o senhor Ponza quanto a senhora Frola podem estar loucos, e essa
dúvida Pirandello faz questão de não esclarecer. O ponto de partida,
portanto, é o mesmo ponto de chegada: a incerteza.
Em Henrique IV, peça publicada em 1922, a crença na
possibilidade de existência de uma verdade é desconstruída por
intermédio do protagonista que, após cair de um cavalo, acredita ser
Henrique IV, rei da Alemanha, obrigando todos aqueles que o cercam
a se comportarem de maneira adequada ao período histórico no qual
ele havia se refugiado, incluindo vestimentas, linguagem e hábitos. A
vida, dessa maneira, se transforma em uma grande representação que
perdura longos anos. Todavia, em um determinado momento,
descobre-se que o protagonista havia recobrado a sanidade há muito
tempo. Certo de que não seria mais capaz de reingressar no mundo
real, Henrique IV opta por permanecer submerso em sua loucura,
único lugar habitável para ele. O que mais intriga na referida peça é a
capacidade irrestrita do ser humano de adotar o fingimento como
forma de vida, um universo alternativo que permanece inquestionável
durante anos. Como crer, portanto, naquilo que vemos, sentimos ou
vivenciamos?

- 171 -
Pirandello deixa claro que a realidade vivida pode ser fruto
exclusivamente da imaginação e da perspectiva escolhida para
visualizar o mundo. Serafino Gubbio, para exemplificar, escolheu
enxergar o universo através de sua máquina de trabalho: uma câmera
cinematográfica. O protagonista de Cadernos de Serafino Gubbio
operador, inicialmente publicado com o título Si gira, em 1915,
observa artificialmente o mundo. Entre ele e a realidade está a lente
de sua máquina, a qual jamais consegue perceber o todo, mas
pequenos fragmentos de realidade, às vezes sem sentido. Serafino
Gubbio é, na galeria de anti-heróis pirandellianos, um dos
representantes do sujeito que foi engolido pela maquinaria moderna,
pela instabilidade da vida observada sempre em perspectiva e pela
ausência de certeza em relação ao mundo.
Articulado em sete capítulos que correspondem aos sete
cadernos, o romance que conta a história do operador Serafino Gubbio
inicia com uma auto-apresentação do narrador: “Observo as pessoas
nas suas mais banais atividades, para ver se consigo descobrir nos
outros aquilo que me falta em todas as coisas que faço: a certeza de
que compreendem aquilo que estão fazendo” (PIRANDELLO, 1990, p.
17). A ausência de um prólogo e a inserção do fluxo de consciência já
na primeira linha pretende desvincular narrativa e leitor, pois Serafino
parece falar consigo mesmo. A primeira palavra, “observo”, um verbo
de ação, contrapõe-se semanticamente àquilo que se verá nas páginas
sucessivas, pois Serafino, o protagonista-narrador, enquadra tudo

- 172 -
mecanicamente, sem julgar ou participar emocionalmente daquilo
que capta a sua câmera: “Sou operador. Mas realmente, ser operador,
no mundo em que vivo e do qual vivo, não quer dizer nada. Eu nada
opero” (PIRANDELLO, 1990, p. 19). Seguindo os moldes do romance de
Mattia Pascal, repleto de introspecções, a ação inicia somente no
terceiro capítulo, que decorre a partir da chegada do operador a
Roma, onde começa a trabalhar na maior empresa cinematográfica da
cidade, a Kosmograph. É em Roma que Serafino encontra o professor
e filósofo Simone Pau, um velho conhecido que vive em um albergue
para indigentes, acreditando que o fétido lugar é um confortável hotel.
É também lá que o protagonista chega ao limite de sua impessoalidade
e passividade na tarefa de girar a manivela.
O último caderno de Cadernos de Serafino Gubbio operador
apresenta o ápice da supremacia da máquina em relação a todas as
outras coisas, incluindo a moral, a ética e o sentimento, em um
surpreendente trecho que ratifica e exacerba a degeneração do ser
humano. Nesse capítulo, o operador está encarregado de filmar uma
cena em que Aldo Nuti, um ator da Kosmograph, deveria matar um
tigre. Serafino está dentro da cela para conseguir captar o ângulo
perfeito e a imagem mais precisa daquilo que será um verdadeiro
espetáculo de horrores: o real abate de um tigre em frente à câmera.
Todavia, o espetáculo mais grotesco não foi a morte do tigre, mas a
inesperada atitude do barão Nuti: no momento em que ele deveria
atirar na fera, muda a direção da arma e acerta Varia Nestoroff, atriz

- 173 -
com quem tivera sérios problemas pessoais. Em seguida, se deixa
devorar pelo tigre. Serafino Gubbio, impassível e mecanicamente, gira
o tempo todo a sua manivela e documenta todo aquele terrível e
absurdo espetáculo:

Girar, eu girei. Mantive a palavra: até o fim. Mas a


vingança que eu quis ter da obrigação que tenho, como
servo de uma máquina, de dar de comer a vida a esta
máquina, na melhor parte a vida quis voltá-la contra mim.
Tudo bem. Ninguém poderá negar, no entanto, que eu
também agora consegui alcançar a minha perfeição.
Como operador, eu sou agora, realmente, perfeito. [...].
Pronto. Prestei à casa um serviço que renderá milhões.
[...] aquela máquina tinha no corpo a vida de um homem;
dei-lhe de comer até o final, até o ponto em que aquele
braço tinha-se esticado para matar o tigre. Lucrariam
milhões com aquele filme, com o enorme barulho e a
doentia curiosidade que a atrocidade vulgar do drama
daqueles dois mortos teria provocado por toda a parte
(PIRANDELLO, 1990, p. 193-196).

Perguntamo-nos, ao ler a passagem: que espécie de criatura


seria capaz de manter-se impassível diante de uma cena tão
exageradamente grotesca? A metáfora utilizada por Pirandello para
representar a anulação subjetiva definitiva de Serafino, após o
incidente narrado, foi a opção por não mais falar: “ Agora chega. Quero
ficar assim. O tempo é este; a vida é esta; e no sentido que dou à minha
profissão quero continuar assim – sozinho, mudo, impassível – a ser
operador” (PIRANDELLO, 1990, p. 197). A vitória absoluta da câmera
cinematográfica que emudeceu definitivamente Serafino, em

- 174 -
detrimento de qualquer valor, ideologia ou sentimento humano,
confirma o poder avassalador e reificador da modernidade, tão
claramente abordado por Pirandello em Cadernos de Serafino Gubbio
operador, assim como vai ao encontro da proposta do siciliano de
romper definitivamente com o romance de formação e suas
personagens heroicas.
A postura descrente de Pirandello em relação ao real e ao ser
humano acabou por aproximá-lo de forma definitiva do teatro, para
ele uma paixão desde sempre irreprimível. O caminho de corrosão da
realidade proposto pelo siciliano em seus romances é exacerbado na
trilogia metateatral “Teatro no teatro”, composta pelas peças Seis
personagens á procura de um autor, Cada um a seu modo e Esta noite
improvisamos, obras nas quais a realidade cênica se sobrepõe à
realidade objetiva que, segundo Pirandello, é seguramente mais
fictícia. Após a descoberta de Copérnico, que importância teriam as
histórias dos homens? É o que indaga Mattia Pascal:

Está bem: o senhor conde levantou-se cedo, às oito


horas e meia em ponto... A senhora condessa pôs
um vestido lilás, ricamente guarnecido de rendas
no pescoço... Teresinha estava morrendo de fome...
Lucrécia consumia-se de amor... Oh, meu Deus do
céu! Que importância isso pode ter pra mim?
Estamos ou não estamos num piãozinho, [...] um
grãozinho de areia enlouquecido [...] que gira e
continua a girar, sem saber por que, sem chegar
nunca a destinação, como se achasse muito
divertido girar assim, para fazer-nos sentir ora um
pouco mais de calor, ora um pouco mais de frio, e,
- 175 -
no fim, fazer-nos morrer (a miúdo, com a
consciência de ter cometido uma série de
pequenas tolices), após cinquenta ou setenta
giros? Copérnico, Copérnico [...] estragou a
humanidade irremediavelmente (PIRANDELLO,
1981, p. 15-16).

Mattia Pascal, Vitangelo Moscarda e Serafino Gubbio são


representantes da humanidade inteira “estragada” pelo matemático
polonês, sendo que a corrosão da subjetividade presente nos
romances de Pirandello, portanto, está relacionada à sua maneira de
comparar a humanidade, assim como Mattia Pascal o fazia, a “vários
milhares de minhocas torradas” (PIRANDELLO, 1981, p. 16). A
destruição do herói tradicional operada por Pirandello percorreu uma
longa trajetória, iniciada com o perspectivismo em L’esclusa,
intensificada na carência subjetiva de Mattia Pascal, na reificação de
Serafino Gubbio e, por fim, exacerbada na loucura de Vitangelo
Moscarda. O percurso de todas essas personagens se configura como
a antítese em relação ao protagonista do romance de formação, cuja
existência caminhava em direção ao aperfeiçoamento ou crescimento
pessoal. No caso de Pirandello, seus protagonistas representam
unicamente o falimento da personagem, processo que acompanha o
definhamento do ser humano como sujeito representável. Em seus
romances, os longos monólogos são construídos justamente em
função da impossibilidade de contar, da negação do tempo narrativo
como estrutura ordenada e da consciência acerca da improbabilidade
de definir ou organizar os fenômenos do mundo exteriores ao texto.
- 176 -
Leonardo Sciascia (1953, p. 20) afirma que a obra de Pirandello
estava quase completa antes da guerra, mas é justamente o primeiro
grande conflito mundial o fato que modifica o comportamento da
crítica em relação a ele. Pirandello é efetivamente descoberto depois
de vinte e cinco anos de trabalho. Mas por que tanto atraso?-
questiona Sciascia. A resposta é simples: é a guerra que cria condições
efetivas para compreender Pirandello e suas personagens; são os
homens que voltam atônitos dos campos de batalha que alertam para
a completa dissolução da identidade, a trágica fragmentação do eu, o
perplexo jogo de espelhos em torno da individualidade perdida. O
horror do qual foram os protagonistas aflorava nas suas consciências.

Davam-lhes um fuzil, um uniforme, um número; e


os jogavam na lama, no sangue – matar e ser
morto. [...] E a carnificina continua, um dia após o
outro, um ano após o outro: até que alguém diz que
basta, que o direito foi restabelecido, a fé foi salva
e todos os homens são irmãos. Assim se retorna a
casa. Mas o que é a casa, os afetos que a compõe,
o sujeito mesmo que retorna? É aquele de antes,
ou um outro? E os outros, quem são? (SCIASCIA,
1953, p. 20-21, tradução nossa).

A estupefação diante de tudo que foi visto e vivido na guerra


gera um sentimento de desconfiança e instabilidade que modifica
consideravelmente a relação do homem consigo mesmo e com os
outros. Sciascia (1953, p. 22) complementa que a cultura italiana,
depois da guerra, inicia um processo de europeização, de libertação da

- 177 -
estreita provincianidade e de visualização, mesmo que de forma
incipiente, daquilo que acontecia do lado de fora de suas fronteiras
geográficas e sociais. Mas é, sobretudo, aquilo que ocorre no coração
do homem que transforma a obra de Pirandello em instrumento eficaz
para compreender os mecanismos da vida em uma Europa antes
cômoda, tranquila e equilibrada, todavia convulsiva depois da grande
guerra. A perplexidade de quem viu ou viveu o horror, o massacre, a
morte, a instabilidade e a dúvida em relação à própria identidade está
refletida nos textos de Pirandello e, de forma especial, em Vitangelo
Moscarda, Serafino Gubbio e Mattia Pascal, sujeitos atônitos diante da
inconsistência da própria identidade e da incomensurável distância
entre o ideal (as projeções generalizantes acerca do homem) e o real
(um caleidoscópio de imagens distorcidas).

- 178 -
Referências

LEONE DE CASTRIS, Arcangelo. Il decadentismo italiano: Svevo,


Pirandello, D’Annunzio. Roma: Laterza Editori, 1976.

ECO, Umberto. Sobre os espelhos. Tradução Beatriz Borges. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

PATRIZI, Giorgio. Pirandello e l’Umorismo. Roma: Lithos Editrice,


1996.

PIRANDELLO, Luigi. A excluída. Tradução José Geraldo Vieira. São


Paulo: Abril Cultural, 1986.

______. Assim é (se lhe parece). Tradução Sergio N. Melo. São Paulo:
Tordesilhas, 2011.

______. Cadernos de Serafino Gubbio operador. São Paulo: Editora


Vozes, 1990.

______. O falecido Mattia Pascal. Tradução Mário da Silva, Brutus


Pedreira e Elvira Rina. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

______. L’Umorismo. Disponível em:


http://www.classicitaliani.it/pirandel/saggi/Pirandello_umorismo_02
.htm. Acesso em: 25, maio 2016.

______. Um, nenhum e cem mil. Tradução Mauricio Santana Dias. São
Paulo: Cosac Naify, 2010.

SCIASCIA, Leonardo. Pirandello e il pirandellismo. Palermo: Edizioni


Salvatore Sciascia, 1953, p. 20.

______. Pirandello e la Sicilia. Roma: Salvatore Sciascia Editore, 1968.

SCRIVANO, Riccardo. La vocazione contesa. Roma: Bulzoni Editore,


1987.

- 179 -
VICENTINI, Claudio. L’estetica di Pirandello. Milano: Mursia, 1970.

- 180 -
Os textos de João do Rio: o olhar de um cronista sobre sua
sociedade e seu tempo

Clarissa Mazon Miranda

Introdução
João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, um
nome que entrou para a história apenas como João do Rio. Foi
cronista, teatrólogo e contista brasileiro, vivendo de 1881 a 1921. O
autor foi um dos muitos escritores da época a ter que escrever para
jornal como forma de ganhar a vida, pois os livros não eram modo de
sustentar-se no período. Essa situação ocasionada pelo contexto
econômico do escritor acabou por levar sua crônica social a um público
maior – o dos leitores de jornais. João do Rio conquistou fama com sua
capacidade de conscientizar e sintetizar as tendências de um tempo, a
essência do momento vivido pela sociedade carioca daquela época.
Lendo suas crônicas nos jornais, os cidadãos puderam dar-se conta da
importância do momento social que se vivia em termos de cultura e
quebra de paradigmas sociais.
Chegando aos dias de hoje, as crônicas de João do Rio são um
olhar preciso sobre um período que marcaria para sempre as artes
brasileiras: o art nouveau, movimento que, vindo da Europa, teve

- 181 -
influência forte no Brasil como um pré-modernismo, abrindo terreno
para o que depois seria o modernismo brasileiro. Não é a toa que,
segundo Cardoso (2003), Oswald de Andrade foi um admirador do
trabalho de João do Rio e o viu como um precursor do que seria a
construção de um projeto de identidade nacional. Mesmo que, depois,
tenha deixado João do Rio de fora da lista de cânones da geração
construtora, Oswald de Andrade reconheceu o valor documental da
obra de João do Rio na edificação do modernismo brasileiro. Mário de
Andrade, por sua vez, viu na obra de João do Rio uma literatura
essencialmente urbana. Para Mario de Andrade, o cronista “soube
captar o sentido da cidade do Rio de Janeiro muito melhor que
Machado de Assis” (CARDOSO, 2003, p. 5).
Este trabalho propõe-se a estudar aspectos da leitura da
sociedade de uma época feita por João do Rio, percebendo a força do
movimento art nouveau por meio do olhar único que este autor
apresenta em seus textos. Não objetiva-se um mapeamento completo
de paralelos entre a obra do autor e este momento da história, mas
sim, demonstrar o quanto a literatura de João do Rio é um retrato da
sociedade, dos usos e costumes daquele período, mostrando o ponto
de vista de um cidadão que viveu a chegada de diversas novidades à
cidade do Rio de Janeiro, e ensinou a própria sociedade da época a
observar esta realidade de modo crítico.
Sousa (2009) percebe que a obra de João do Rio situa-se numa
posição intermediária entre jornalismo e literatura, sendo que ocorre

- 182 -
aí o firmar-se da reportagem contemporânea, mesclando elementos
literários e jornalísticos. “João do Rio acreditava que a crônica poderia
ser o espelho capaz de guardar imagens para o historiador futuro”
(SOUSA, 2009, p. 62). Sousa (2009) define os textos de João do Rio não
somente como crônicas, mas como crônicas-reportagem, lembrando
ser a crônica um “gênero híbrido, nascido no jornal, mas com status
de literatura” (p. 3). A publicação das crônicas em jornal de ampla
circulação levou o pensamento de João do Rio ao alcance de muitos.
João do Rio foi um dos responsáveis por desenvolver no Brasil
o texto para imprensa num formato de crônica social moderna,
contando das coisas de seu tempo: as favelas, as revoltas, o
cinematógrafo, o automóvel, etc. Aquilo que era novo e que alterava
a realidade social lhe interessava. Escreveu para o jornal Cidade do Rio
(1899), fundou os jornais Rio Jornal (1926), A Pátria (1926) e a revista
Atlântica (1915). Frequentou a Europa, principalmente Portugal, e
trouxe do velho continente a admiração pelos dândis15, inspirado por
escritores como Flaubert, Oscar Wilde (autor o qual João do Rio
traduziu) e Jean Lorrain. Foi membro da Academia de Ciências de
Lisboa (Portugal) e membro da Academia Brasileira de Letras. Fundou
também a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (1917).
João do Rio representou bem o dandismo, que era forte na
Europa e no Brasil na belle époque. Ao contar sobre a amizade entre

15
O dândi, segundo o Dicionário Houaiss, é o homem que tem preocupação
exagerada com a aparência pessoal.

- 183 -
João do Rio e a grande bailarina Isadora Duncan, Roiter (2013)
descreve do seguinte modo o autor carioca: “Era o típico flâneur, um
dândi, art nouveau, urbano, com senso de humor aguçado, visão de
futuro: hoje o chamaríamos de ‘formador de opinião’” (p. 15). O dândi
que, segundo Sontag (1984), é filho da aristocracia. Seria, de fato, o
substituto desta no século XIX e depois será sucedido pelo que a
autora chama de “camp”. O dândi é alguém que busca emoções raras
e odeia a vulgaridade.
Apesar das inúmeras conquistas no campo profissional e da
fama alcançada ainda em vida, João do Rio teve que enfrentar a
icompreensão social. Segundo Rodrigues (2007), João do Rio foi
atacada por ser mulato e homossexual, sendo agredido verbalmente
por colegas e opositores como o frauseur Emílio de Meneses e o
escritor, jornalista e crítico, Antonio Torres. O cronista João do Rio, no
entanto, persistiu seu estilo de vida e de texto. “Ignorando as farpas
homofóbicas, sempre elegante, vestido à moda européia e com certo
espalhafato, João do Rio ia a frente. Fez tudo com entusiasmo e paixão.
Ele viu o que ninguém viu, escreveu sobre temas que ninguém
escreveu” (RODRIGUES, 2007, p.1).
Os registros feitos por João do Rio acerca de cidade em que
mais tempo viveu e que amou são hoje cada vez mais importantes.
Uma forma de retrato fotográfico, visto sobre o prisma de um artista,
da realidade de um tempo que não volta mais, que deixou suas marcas
na arquitetura, literatura, artes visuais e história brasileiras. É um

- 184 -
retrato histórico que faz também lembrar as intersecções e
correlações comparativas possíveis entre literatura, história e
jornalismo.

Literatura, sociedade e jornalismo


O Rio de Janeiro e suas transformações sociais da época foram
a menina dos olhos no trabalho de João do Rio. “O Rio de João era uma
cidade povoada por tipos singulares que, combinados, simbolizavam,
na sua visão, a lama e o sentimento cariocas” (RODRIGUES, 2007, p.
1). O final do século XIX e o início do século XX, nas crônicas de João
do Rio, trazem um Rio de Janeiro em mudança, onde as ruas são
adaptadas à moda de Paris. Os cortiços afastados do centro formam o
que hoje se conhece como favelas. Construções típicas do período
surgem tais como a Confeitaria Colombo, trazendo em suas formas
curvas e seus vitrais todo o trabalho de tentar embelzar a natureza, o
qual foi traço típico da art nouveau.
Para Gontijo (sem data), João do Rio viveu uma cidade em
ritmo de frenéticas mudanças sociais, políticas e econômicas. Como
porto intermediário de recursos da economia cafeeira e sendo centro
político do país na época, o Rio de Janeiro era o 15º porto do mundo
em volume de comércio, tendo seu crescimento ampliado em cerca de
35% entre 1888 e 1906. A República recém-instaurada implantava o
ideal do progresso. Inaugura-se a Avenida Central da cidade;
promulga-se a Lei da Vacina Obrigatória levando à Revolta da Vacina;

- 185 -
demolem-se os casarões coloniais e imperiais do centro carioca para
dar espaço a amplas avenidas e a praças e jardins europeizados;
realiza-se a Exposição Nacional do Rio de Janeiro (1908); chega à
cidade o cinematógrafo. Arquitetos de formação acadêmica trazem
para cidade o estilo art nouveau do final da belle époque,
acompanhado de uma moda mais leve e chic afetando inclusive a
literatura e o seu primo mais jovem, o jornalismo.

A crônica social teve importância na disseminação


dos ideais restauradores, mas sempre esbarrando
com vozes que defendiam os valores da sociedade
do império, incompatíveis com os impostos por
aqueles fundamentados nos padrões econômicos.
Qualidades típicas do liberalismo econômico, tais
como individualismo, competitividade, consumismo
se chocavam com as relações sociais do patriarcado
senhorial, de características centralizadoras,
arraigadas na família e nas trocas de favores.
(GONTIJO, sem data, p. 3)

As crônicas publicadas nos jornais por João do Rio fazem,


portanto, o papel de registro do cotidiano, uma marca deste tempo
que são lidas nos dias atuais, contando a história dos personagens do
passado. Sabe-se, desse modo, por exemplo, mais informações sobre
o impacto da chegada dos automóveis à cidade maravilhosa:

Graças ao automóvel, a paisagem morreu – a


paisagem, as árvores, as cascatas, os trechos bonitos
da natureza. Passamos como um raio, de óculos
enfumaçados por causa da poeira. Não vemos as
árvores. São as árvores que olham para nós com

- 186 -
inveja. Assim o automóvel acabou com aquela
modesta felicidade nossa de bater palmas aos
trechos de floresta e mostrar ao estrangeiro la
naturaleza. Não temos mais la naturaleza, o
Corcovado, o Pão de Açúcar, as grandes árvores,
porque não as vemos. (RIO, 2006, p. 12 e 13)

Vê-se no trecho de texto citado acima como João do Rio assistiu


com espanto, mas também consciência história, as mudanças do Rio
de Janeiro a partir não só da chegada do art nouveau e dos traços da
belle époque. Fez literatura, mas também fez jornalismo e foi
influenciado pelas características de celeridade e clareza da mídia
jornal. Segundo Candido (2005), o jornalismo transforma a realidade
apreensível em relato esse é o caso do trabalho de João do Rio.
Tendo em vista que trata-se do trabalho desse autor, sabendo
que, na maioria, ele publicou primeiro seus textos em jornal, parece
importante lembrar o papel da imprensa como relato de um tempo.
Como mídia, o jornal impresso conclama o autor a tratar de temas da
atualidade e de relatos do dia a dia das cidades mais do que os livros
talvez o fizessem. Essa característica do imediatismo e factualidade da
mídia jornal parece ter sido compreendida por João do Rio e mostra
traços marcantes em sua produção como cronista. Na realidade
daquele tempo, os jornais não tinham a constituição que têm nos dias
de hoje e as regras do New Journalism (Novo Jornalismo), bem seja, os
formatos prontos para construção de notícias, ainda não imperavam
nas redações como ocorre hoje. Daí também ser preciso destacar a
sensibilidade desse escritor em entender e produzir para esse tipo de
- 187 -
mídia e suas transfomações a partir das novas tecnologias adotadas.
Acerca do uso do automóvel, novamente, cita-se João do Rio, pois no
trecho escolhido, ele refere-se às mudanças da linguagem a partir das
novas tecnologias (um fenômeno iniciado naquele tempo e cujos
reflexos vê-se ainda hoje em uma era de Informática e novas
linguagens sociais):

Encurta mesmo as palavras inúteis e a tagarelice. O


monossílabo na carreira é a opinião do homem
novo. A literatura é ócio, o discurso é o impossível.
(RIO, 2006, p. 10)

João do Rio, em seus textos, preocupou-se em conscientizar a


população acerca da mudança arquitetônica, espacial e de costumes
que a cidade vivia. Secco (2012) explica que, nos textos do autor
carioca, “as noções de espaço geográfico físico e de espaço cultural
eram traçadas, principalmente, por meio da descrição dos hábitos e
costumes da sociedade da época” (p. 83). Falar da “fisionomia urbana”
(SECCO, 2012, p. 83) foi o tema forte de João do Rio através dos quais
ele iluminou os paradoxos existentes entre a cidade antiga e a cidade
nova, moderna. Assim, fez notar que a possibilidade de registro
histórico é permitida ao homem principalmente por meio da escrita.
De acordo com Candido (2005), a evolução da sociedade baseia-se na
formação de uma memória coletiva: “por meio das notícias
publicadas, o homem se reconhece como membro da sociedade e,
somente a partir dessa identificação, o leitor é capaz de refletir e

- 188 -
criticar sobre os problemas sociais que o rodeiam” (p. 4). O homem
enquanto ser capaz de participação pública de ator social contando a
própria história. O registro jornalístico, anos depois, será também uma
base documental para que a mesma sociedade possa lembrar-se do
que foi aquele tempo narrado e refletir sobre a própria evolução a
partir desse contexto prévio.
Neste sentido, a obra de João do Rio coloca-se com primazia.
Segundo Gontijo (sem data), João do Rio “privileigou o gênero que
mais se encaixava na fixação do efêmero: a crônica” (p. 4). A função
desse tipo de texto estaria em captar a velocidade da vida urbana, o
instante. Os textos de João do Rio refletiam as características de seu
tempo moderno: falavam de situações circunstanciais, de velocidade,
de multiplicidade, da simultaniedade, da efemeridade. O autor falou
bem e mal de sua cidade, mas nunca fechou os olhos para as mudanças
sociais que nela sucederam-se em ritmo acelerado. Segundo Gontijo
(sem data), João do Rio não aproxima-se nem de Olavo Bilac e sua
exaltação do progresso moderno, nem de Lima Barreto e sua
abominação ao mesmo. O autor João do Rio via um mundo de
paradoxos: de um lado o Rio dos figurinos parisienses, de outro as
favelas e a pobreza. De um lado o homem com o espírito do passado,
a nobreza do clássico. De outra parte, o homem de seu tempo,
acelerado, moderno, mas também consumista exacerbado, superficial
em termos de espírito.

- 189 -
Dentro do seu peito estrangulam-se todos os
sentimentos. A falta do tempo, numa ambição
desvairada que o faz querer tudo, a terra, o mar, o
ar, o céu, os outros astros para explorar, para
apanhá-los, para condensá-los na sua algibeira,
impele-o violentamente. O Homem rebenta de
querer tudo de uma vez, querer apenas, sem outro
fito senão o de querer, para aproveitar o tempo
reduzindo o próximo. (RIO, 2006, p. 304-305).

Nesse trecho apresentado, coloca-se a fragilidade dos sonhos


e ambições da sociedade que seguia os dogmas vindos da Europa
durante o belle époque. Sousa (2009) lembra que a formação de nosso
sistema intelectual brasileiro constitui-se predominantemente por
memória auditiva, e o periódico impresso, por ter escrita fácil e
acessível, beirando a oralidade, é o gênero que mais aproxima-se
deste contexto. São essas crônicas-reportagem de João do Rio que
levaram a população a olhar a realidade com mais acuidade, assim
como, hoje e transportam seus leitores a uma dimensão passada, a
qual tem ampla influência sobre tudo o que faz o ser brasileiro
enquanto ser artístico e cultural na atualidade. Uma visão acurada do
que foi a influência da art nouveau e da belle époque na cidade do Rio
de Janeiro. Mais do que uma visão posicionada, uma visão exata da
beleza de um tempo e também das dissonâncias deste.

O art nouveau no Brasil


O art nouveau ou arte jovem é um estilo sintético característico
da virada do século XIX para o século XX que marcou tanto a

- 190 -
arquitetura, a pintura, o desenho, as artes aplicadas do mobiliário, da
vidraria, dos adereços, da tipografia, da ilustração, do vestuário, como
da literatura. A estética art nouveau buscava diferenciar-se da arte
acadêmica. Segundo Silva (2014), a art nouveau combatia, até certo
ponto, o conservadorismo artístico e a superficialidade. Seu nome veio
do nome da galeria fundada por Bing, na França, para mostrar objetos
da nova estética. O período tem seu marco histórico com a Exposição
Universal de Paris, em 1900, sendo já a Torre Eiffel um monumento art
nouveau. Segundo Paes (2008), a arte nova foi a arte típica do período
chamado belle époque, “período de paz que se estendeu de 1870 até
a Primeira Guerra Mundial e durante o qual prosperou uma rica
sociedade burguesa, brilhante e fútil, amante do luxo, do conforto, dos
prazeres” (p. 79).
Em termos literários, por exemplo, viu-se a ascenção da
écriture artiste, a qual, segundo Mucci (sem data), foi enunciada pela
primeirva vez pelo escritor francês Edmond Huot de Goncourt no
prefácio de sua obras Les frères Zemganno, de 1879. A écriture artiste
seria, portanto, a exaltação de uma escrita cheia de requinte, a qual,
“promovendo na literatura o impressionismo enche-se, por exemplo,
de metáforas e de epítetos raros, ao lado de inversões de contrução
sintática e de palavras peregrinas” (MUCCI, 1994, on-line). Para Silva
(2014), características como o floreio estilístico, o retorcismo, o
rebuscamento frásico e a prolixidade marcam a literatura desse
período. João do Rio seria não somente um cronista destaque da belle

- 191 -
époque e da art nouveau brasileira, mas também, segundo Mucci, sua
arte se faria por meio do estilo de escrita que essa escola exaltou:

Eis um terceiro fiel, no Brasil, da écriture artiste:


João do Rio [...] inspirado em Jean de Paris, de Le
Figaro. Por suas atitudes de dândi tropical (“dândi
de salão”, como o chamaram seus desafetos), foi
cognominado de “Oscar Wilde brasileiro”, de
quem, aliás, traduziu, em 1919, O retrato de Dorian
Gray; traduziu, igualmente Jean Lorrain, aliás Paul
Alexandre Martin Duval (1855-1906) ; tanto o
decadentista irlandês quanto o decadentista
francês influenciaram o estilo do autor de A alma
encantadora das ruas (1908). (MUCCI, sem data,
on-line)

Apesar de tartar por vezes da miséria da população carioca, a


sofisticação marcou o texto de João do Rio. O estilo dos narradores
adotado pelo autor, como indica Secco (2012), eleva-se à ecriture
artiste, trazendo floreios, metáforas que semanticamente denotavam
brilho e gosto pela ostentação, pelos rebuscamentos, pelos floreios
verbais e torneios de frases. Era, portanto, um hábil desenhista da
realidade do país, não somente por meio de suas ideias, mas de suas
contruções frasais. No entanto, João do Rio não temia também
retratar as idiosincrasias. Neste sentido, afasta-se do que Paes (2008)
afirma ser uma tendência da art nouveau a fugir das misérias do dia a
dia. João do Rio sabia delas falar, mas também, utilizava o que Paes
(2008) aponta como sendo a intenção de “acentuar traços de
contorno, num literalismo antecipado por pós-impressionistas como

- 192 -
Gauguin, Lautrec ou Redon e tão à vista nas fortes barras de
delimitaçao do cloissonisme” (p. 80). O art nouveau afasta-se do
impressionismo que, por sua vez, visava fixar as impressões do artista
do real fielmente, sem estilizá-lo. Segundo Paes (2008), a obra de João
do Rio constitui o que se pode denominar o pré-modernismo
brasileiro.
Aparecem, neste pré-modernismo, a reflexão vívida dos
escritores sobre o grande impacto das tecnologias no dia-a-dia do Rio
de Janeiro. Sussekind (2012) aponta para a influência do
cinematógrafo na escrita dos autores, refletindo no texto com a
aparição de referências rápidas, de passagem. “E foi com
encantamento semelhante que, via de regra, João do Rio tratou dos
artefatos e técnicas modernos” (SUSSEKIND, 2012, p. 45). João do Rio
demonstra estar consciente de que essa violenta transformação muda
sua visão de mundo e passa a influenciar seu trabalho. Conforme
explica Sussekind (2012), “o escritor carioca, do cinematógrafo,
incorpora justamente esse passar-sem-deixar-marca […] Essa sedução
pelo que ‘passa sem se deixar penetrar’ se evidencia igualmente no
interesse pela crônica. Sobretudo se pensa no modo como João do Rio
a entendia: como um gênero gêmeo da cinematografia” (p. 46). O
cinematógrafo é, ao mesmo tempo, uma bem-vinda novidade, quanto
um ponto de entretenimento e de nova forma de passar informações
que assusta e faz os escritores da época temerem pelo futuro de sua
profissão.

- 193 -
A obra de João do Rio e o art nouveau
Segundo Araújo (2009), João do Rio é um exemplo do que
Baudelaire caracterizou como sendo um homem marcado pelas
características do personagem literário do flâneur, o aristocrata que
“encontra lugar no coração da multidão, cercado no fluxo e refluxo do
movimento, isto é, na própria contingência da modernidade”
(ARAÚJO, 2009, p. 676). João do Rio, segundo Araújo (2009), escreve
com um regime de imagens presentes, um jogo de visibilidade. Rio
(2006), em Vida Vertiginosa, mostra também um jogo de palavras em
rápida alternância lembrando o ritmo da multidão que agora toma as
ruas e das mudanças tecnológicas de seu tempo. O automóvel, por
exemplo, para Rio: “encurta mesmo as palavras inúteis e a tagarelice.
O monossílabo na carreira é a opinião do homem novo. A literatura é
ócio, o discurso é o impossível” (RIO, 2006, p. 10).
A importância do trabalho de João do Rio para a construção do
estilo art nouveau é indicada também por Secco (2012). Essa traz
elementos fortes de uma leitura do real que aproxima-se da art
nouveau. Ao mesmo tempo em que apresentava-se como observador
hábil da realidade urbana do Rio de Janeiro, entendendo também as
suas mazelas, João do Rio identificava em seus narradores uma
impostação de pensamento “de categoria antropológica civilizada, ou
seja, daqueles que consideravam possuir uma cultura superior”
(SECCO, 2012, p. 81). O vocabulário do escritor carioca aderiu também

- 194 -
aos modismos literários e ao vocabulário científico derivado de toda a
nova tecnologia e ciência que tão profundamente marcaram a alma
dos artistas a ponto de provocar-lhes traços de tecnologia em seus
textos e suas pinturas, por exemplo. Como demonstra mais um trecho
de Vida Vertiginosa, de João do Rio:

Para frente! Para frente! Tenho pressa, mais


pressa. Caramba! Não se inventará um meio de
transporte mais rápido de locomoção?
E cai, arfando, na almofada, os nervos a latejar, as
têmporas a bater, na ânsia inconsciente de acabar,
de acabar, de acabaar, enquanto por todos os
lados, em disparada convulsiva, de baixo para cima,
de cima para baixo, na terra, por baixo da terra, por
cima da terra, furiosamente, milhões de homens
disparam na mesma ânsia de fechar o mundo, de
não perder o tempo, de ganhar, lucrar, acabar...
(RIO, 2006, p. 305)

João do Rio era capaz de combinar o Brasil aristocrático ao


Brasil da miséria. Perseguiu na miséria, segundo Veneu (1990), o
bizarro e o fantástico típicos do decadentismo do final do século.
“Graças a esses paralelismos, João do Rio consegue realizar o que
parecia, à primeira vista, contraditório: copiar Paris, descrever
minuciosamente o Rio de Janeiro, e não apenas nas partes em que este
procura apresentar-se como parisiense” (p. 6). Era, ao mesmo tempo,
cronista da alta sociedade e observador da miséria.

Considerações finais

- 195 -
A civilização e a decadência dos grandes centros urbanos como
Paris e Londres, a partir da visão de João do Rio, são também presentes
na maior cidade brasileira da época. Assim, deixa-se o colonialismo
provinciano para caminharmos em direção a uma nova era, segurando
pelas mãos a técnica e a ciência em pleno avanço. Para João do Rio, os
contrastes da metrópole fazem parte do progresso.
Desejou reforçar a visão de seus leitores sobre um Brasil em
progresso, um país equiparado as grandes potências européias. Foi,
nesse sentido, um nacionalista. Combinou elementos díspares para
falar de uma linguagem literária brasielira e antecipou os demais
movimentos artísticos que sucederam-se na história brasileira. Um
homem a frente de seu tempo, cujos textos ainda hoje são atuais e
ensinam aos leitores sobre a autêntica história da sociedade de seu
próprio país.

- 196 -
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- 199 -
Uma conversa diária com Marques Rebelo: análise de
crônicas publicadas no periódico carioca Última Hora

Claudia Vanessa Bergamini

Palavras iniciais
Era uma quarta-feira, 16 de janeiro de 1952, quando o Jornal
Última Hora, do Rio de Janeiro, trouxe em sua primeira página uma
nota com o título: MARQUES REBELO TODOS OS DIAS EM “ÚLTIMA
HORA”. A nota esclarecia que Marques Rebelo, “o escritor notável”,
como assim se dirigiu a ele o jornal, a partir de amanhã (17 de janeiro
de 1952) iria assinar a coluna diária ‘Conversa do Dia’ e nela falaria
sobre “fatos, coisas e homens da vida da cidade”. Além do assunto a
ser tratado pela coluna, a nota enfatizava que o escritor sabia “ver
como ninguém o ridículo dos outros” e era o “crítico implacável dos
nossos costumes”. Ainda foi feita menção ao nome de cronistas como
Rubem Braga, Joel Silveira e Álvaro Moreyra, ressaltando, porém, que
Rebelo escreve “com uma palavra de simpatia e de suave poesia”.
Por mais de dois anos, Rebelo manteve a coluna ‘Conversa do
Dia’, bem como outra, intitulada ‘Conversa da Semana’, publicada na
Revista Flan, do mesmo periódico. A este estudo, porém, interessa
analisar crônicas da coluna ‘Conversa do Dia’. A seleção dos textos foi

- 200 -
feita de maneira aleatória, uma vez que a pesquisadora tem se voltado
ao estudo de todas as crônicas publicadas na coluna. Dessa maneira,
não houve uma sistematização para a escolha daquelas que serviriam
de corpus a este artigo. Afirma-se isso porque se deseja discutir, muito
mais do que o tema de cada crônica, o modo com o qual o escritor
discorre sobre aspectos que envolvem a cidade do Rio de Janeiro, a
destacar o fato miúdo que, não fosse a pena do escritor, por certo, já
teria sido esquecido.
Este é, pois, o papel do cronista, a saber: fazer saltar aos olhos
do leitor o fato miúdo de cada cidade. Daquilo que é banal, cotidiano,
o cronista extrai sua matéria, que, pela linguagem, alcança outra
dimensão, transpondo os limites da banalidade a que o fato em si
ficaria reduzido. “Isso ocorre por conta do acabamento estético dado
a cada situação, pelo trabalho de criação literária, por meio do qual o
escritor reinventa e ressignifica a realidade” (BERGAMINI, 2012, p.
121).
Ademais de enfatizar o papel do cronista como aquele que se
vale da crônica para marcar o tempo de que fala, este estudo reflete
sobre as relações entre Literatura e Imprensa. Vale mencionar que tais
reflexões foram suscitadas na disciplina Literatura e Imprensa
Periódica, ministrada pelo professor Dr. Álvaro Santos Simões Junior,
durante o segundo semestre de 2014, no curso de Pós-Graduação em
Letras da UNESP - Campus de Assis.

- 201 -
Ao longo das aulas, foram tomadas como referências
publicações diversas em que se trataram as questões inerentes à
Imprensa e à Literatura. Dentre as discussões geradas, ficou clara a
condição da crônica como gênero que tem relações tênues com a
imprensa; relações estas que afirmam o caráter híbrido do gênero que
oscila entre Jornalismo e Literatura. Ainda que tenha um traço
literário, a crônica não se isenta de ter um consumo imediato, tal qual
têm os textos publicados no jornal ou revista. Ao se referir a esse
caráter efêmero da crônica, Gomes (2004, p. 7) enfatiza que, ao se
transportar para o livro, “a letra efêmera do jornal pode então ser
resgatada nesse outro suporte que materializa a crônica para o
tempo”. No caso das crônicas que integram o corpus deste estudo,
como ainda não foram publicadas em um livro, deseja-se materializá-
las, ao passo que sejam trazidas à baila por meio desta discussão.

A Crônica e o Jornal
Há muito que se vem ventilando sobre o fato de a crônica ter
encontrado no jornal o veículo basilar à sua sustentação enquanto
gênero literário. Não se quer dizer que os livros publicados não sejam
lidos ou não tenham contribuído para que o gênero se firmasse. No
entanto, é fato que, no Brasil, a crônica faz parte do jornal. Cita-se a
exemplo o nome de Machado de Assis, Olavo Bilac, Arthur de Azevedo,
Coelho Neto, Rubem Braga, Rachel de Queirós, Carlos Drummond de
Andrade, Manuel Bandeira e tantos outros ainda que se valeram desse

- 202 -
suporte tão efêmero para eternizar palavras e assuntos que estavam
fadados ao esquecimento.
Nas palavras de Roncari (1985), a crônica tem seu lugar
“protegido” no jornal, o fato de se contar nas últimas décadas com um
grande número de livros de crônicas publicado não fez com que o
gênero perdesse seu espaço nos diversos jornais e revistas que
circulam no país. No mesmo lugar em que há espaço para a
objetividade do jornalista, para os aspectos denotativos do dia-a-dia,
também há para a subjetividade conotativa do cronista, para a ironia
com que muitas crônicas tratam de um assunto, para o lirismo que
invade as páginas tão realistas de um jornal. O dinamismo do jornal
encontrou na crônica, texto marcado pela instantaneidade, “a fonte
para descrever a cidade, o modo de transformá-la em um registro dos
acontecimentos da cidade, da história da vida da cidade, a cidade feita
letra” (PORTELLA, 1977, p. 85).
Essa instantaneidade a que se referiu Portella (1977) pode ser
explicada a partir da leveza que se observa na crônica, trata-se de um
gênero que permite que a Literatura torne-se íntima do leitor, a
propiciar a quebra daquilo que parece monumental, grandioso, para
transformá-lo em um texto rápido; porém, profundo (CÂNDIDO,
1992).

A Conversa diária de Marques Rebelo

- 203 -
Como já mencionado, em janeiro de 1952, Rebelo inicia sua
coluna ‘Conversa do Dia’ no Jornal Última Hora. Este periódico,
fundado em 24 de novembro de 1951 por Samuel Wainer, em alguns
aspectos trouxe inovações ao jornalismo, pois:

instalou máquinas modernas, pagou ótimos


salários, adotou paginação inovadora e a
atualização das notícias em várias edições ao longo
do dia. Seis meses depois do lançamento, era o
vespertino mais vendido no país. Nas décadas de
1950 e 1960, abrigava um time invejável de
colunistas e cronistas. Em seu auge, chegava a todo
o Brasil e tinha sede própria em sete estados
(DINIZ, 2011, p. 1).

Além das características ressaltadas, Diniz (2011) destaca que


o periódico era popular sem ser popularesco, contava com os
intelectuais mais expressivos da época, dentre eles estava Marques
Rebelo.
Ciente de seu papel de intelectual cuja escrita poderia servir
de, no mínimo, uma reflexão sobre questões referentes ao Rio de
Janeiro e, por conseguinte, ao país, Rebelo valeu-se da coluna
‘Conversa do Dia’ e empregou palavras de onde brotaram ironias sutis,
como se vê na crônica de 18 de janeiro de 1952, a segunda publicada
no periódico pelo autor16.

16
Todos os fragmentos extraídos do jornal Última Hora, assim como as crônicas
analisadas estão disponibilizados integralmente ao final deste estudo, nos anexos. A
fim de tornar a leitura mais fluída, evitou-se inserir nas citações feitas as referências,
conforme exigem as normas acadêmicas.

- 204 -
Nela, Rebelo retoma o assunto do dia anterior, que eram coisas
que o cronista afirma detestar: cinema, teatro, marmelada e
colunismo diário, para dizer que gosta de quatrocentas e tantas outras
coisas, dentre elas, a estatística. De chofre, já se observa a hipérbole
empregada para se referir ao que gosta. É evidente que se pode
afirmar que há muitas outras coisas a se gostar senão a estatística.
Observa-se a presença da primeira pessoa do singular (eu) que,
embora seja comum nas crônicas, permite ao leitor afirmar ser o
próprio cronista aquele que se manifesta e não um narrador criado
pelo cronista.
Na verdade, esse é um ponto ainda bem discutido pelos
estudiosos da crônica. Arnaldo Gens (2011, p. IX), em prefácio ao livro
de Simon (2011) sobre a crônica, assinala o fato de ser ela:

um gênero polêmico e ambíguo. Por isso, tanto a


crítica especializada quanto os escritores-cronistas
e cronistas propriamente ditos (por sinal, muito
raros) não hesitaram e continuam não hesitando
em iluminá-la, movidos pelo desejo de conhecer e
desvendar-lhe diferentes faces.

Uma das faces da crônica que interessou a Simon (2011)


desvendar diz respeito ao apagamento ou não do autor no momento
em que se analisa uma crônica. Nesse aspecto, concorda-se com o que
propõe Simon (2011, p. 50) quando afirma que não se pode “repudiar
o autor, apegando-se a categorias como narrador e sujeito lírico”,
recomenda-se tal postura para análises de romances e poemas.

- 205 -
A crônica, no entanto, requer um cuidado especial, pois
comumente o cronista se dirige ao leitor em primeira pessoa do
singular, deixando marcas de que fala dele mesmo, ou ainda, mistura
aspectos de seu cotidiano ao elemento ao qual se refere. Acredita-se
que se está diante de um jogo entre o real e o ficcional, o leitor é, pois,
manipulado pelo cronista que ora se vale de suas reflexões pessoais,
ora se apresenta como um simulacro.
Nesta crônica de 18 de janeiro, intitulada pelo cronista de Sofri
demais, quem se expressa é a primeira pessoa do singular que não se
deseja tratar por narrador, prefere-se, então, o termo cronista.
Depois de, no primeiro parágrafo, o cronista apontar sua
preferência pela estatística, dedica o segundo parágrafo a explicar o
prazer que sente ao lê-las nas noites de verão ou nas chuvosas,
inclusive valendo-se delas para instruir seus filhos. Nota-se neste
parágrafo a ironia delicada empregada pelo cronista para ridicularizar
os dados estatísticos que, como se sabe, servem para nada ou para
muito pouco, já que são pequenas as ações que se fazem para que as
estatísticas sejam elevadas, quando preciso, ou diminuídas, quando
necessário.
Na sequência, o cronista enfatiza que enriquece seu tesouro
estatístico quando abre, todos os dias, o jornal pela manhã e se depara
com os números que aumentam diariamente:

[...] quantos transeuntes foram atropelados na


véspera, apesar de nosso modelar serviço de

- 206 -
trânsito, quantas casas foram assaltadas, apesar de
nossa modelar polícia, quantos contos de vigário
foram passados, apesar de nossa esperteza nata
[...]”

De início, destaca-se a mudança de pessoa do discurso, se nos


dois primeiros parágrafos o ‘eu’ foi a pessoa escolhida, agora o ‘nós’
será a pessoa empregada pelo cronista para continuar sua narrativa.
Interpreta-se este recurso como um artifício capaz de fazer com que o
leitor sinta-se parte do problema apontado. Em outras palavras, se
antes o cronista falava sobre seus gostos, agora aponta questões que
se referem a ‘nós’, e esse ‘nós’ depende do leitor para existir. Assim,
há um diálogo com o leitor.
O ponto interessante do parágrafo reside na sutileza com que
critica os serviços da equipe responsável por fiscalizar o trânsito, o
serviço da polícia e a ingenuidade do povo carioca ou por extensão, do
povo brasileiro, que vive caindo em bromas. Tais problemas são da
sociedade como um todo e, por isso, entende-se a preferência pelo
‘nós’.
Na sequência, o ‘eu’ volta ao texto, enfatizando que: “saboreio
as estatísticas com a mesma volúpia com que os conhecedores do bom
vinho enxugam uma garrafa de privilegiada colheita”. Nota-se aqui um
cronista que se coloca como alguém que assiste às situações
apontadas como um apreciador que, embora nada possa fazer, tem
consciência de tudo o que se passa e, por meio da crônica, alerta o
leitor para que também se atente a estas tristes estatísticas.

- 207 -
De maneira ainda mais crítica, o cronista segue apontando de
forma irônica aquilo que lhe dá mais prazer, diz que sempre encontrou
“mais beleza no número de crianças que morrem no Brasil pela
desvelosa atenção dos poderes públicos que inteligência nos artigos
do senhor Afrânio Coutinho”. Neste trecho da crônica, o que se
observa é que a crítica se dirige tanto a autoridades políticas quanto à
autoridade intelectual do momento. Na mesma esteira, o cronista
segue de forma ácida apontando sua alegria, que evidentemente é
tristeza, ao pensar nas toneladas de mantimentos que apodrecem “em
nossos campos” – nota-se mais uma vez a preferência pelo ‘nós – por
falta de iniciativa do poder público para ajudar os produtores.
Ainda resta uma crítica a ser mencionada, refere-se ao fato de
ter um número excessivo de crianças que vive na capital da república
e não conta com escola primária, que à época era a educação básica
brasileira. O cronista diz que sempre “gozei mais com o alto número
de crianças sem escola primária que reside na Capital da República,
que com o lirismo gorduroso de certos poetas do alto comércio”.
Quem conviveu com Rebelo sabe que ele era sisudo quando o
assunto envolvia a Literatura como comércio. Em que pese o fato de o
autor ter sido apontado, já desde seu primeiro livro publicado
(Oscarina,1931) como o nome promissor das letras brasileiras, o
reconhecimento não passou da pena de renomados críticos como Otto
Maria Carpeux e Mário de Andrade. Dessa maneira, interpreta-se a
menção aos poetas de lirismo gorduroso como sendo aqueles que,

- 208 -
mesmo sem consistência em sua escrita, ganharam amplo espaço
comercial.
Por fim, no último parágrafo da crônica, a preferência do
cronista pelo assunto ‘estatística’ fica explicada. À ocasião em que o
texto foi redigido, há uma investigação instaurada para apurar
questões internas do IBGE – Instituo Brasileiro de Geografia e
Estatística – na mesma página em que foi publicada a crônica,
inclusive, há uma matéria esclarecendo que o Presidente (Getúlio
Vargas) quer que a perícia seja concluída em 45 dias. Assim, confirma-
se que o assunto tratado pela crônica está intimamente ligado com
fatos do país. O que se sabe a respeito da investigação que corre no
IBGE é que houve desorganização e fraude, sendo necessárias medidas
de suspensão de inspetores em algumas unidades do órgão.
O Jornal Última Hora, desde a sua fundação, posicionou-se
como um veículo que daria voz ao presidente Getúlio Vargas que, em
1950, volta ao poder “com larga vantagem sobre os adversários, mas
enfrentava dura oposição no meio político e na imprensa” (DINIZ,
2011, p. 2). Durante o governo Vargas, esse periódico posicionou-se a
favor do governo. No entanto, é notório que Rebelo valeu-se de sua
crônica para apontar problemas que justamente caberiam ao governo
solucionar, mas subentende-se que 45 dias seria um longo período.
Daí o fato de o cronista comparar o Instituto com o vinho que também
carece de tempo para estar perfeito, por assim dizer, ao paladar.

- 209 -
Em trabalho realizado entre os anos de 2010-2012 pela
pesquisadora, investigaram-se as crônicas produzidas por Rebelo para
um periódico do DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda – da
Era Vargas. Ficou claro em tal estudo que o cronista valeu-se de sua
posição de cronista de um renomado periódico, para apontar questões
bastante doloridas a um Brasil que carecia de cuidados na área
educacional, rodoviária, social, econômica e outras. Entende-se que
seu trabalho na coluna ‘Conversa do Dia’ não é diferente, pois, embora
o jornal tenha se posicionado como aliado do governo, a pena de
Rebelo não deixou de discorrer sobre questões que caberiam ao
governo resolver, tal qual a escola pública às crianças da capital federal
e como se sabe, à época, do Brasil como um todo.
Ao visitar as crônicas escritas por Rebelo para o Última Hora,
percebe-se que o cronista não corrobora a ideia do jornal em relação
ao governo, haja vista o número de críticas que a ele são dirigidas. Na
crônica publicada em 5 de junho de 1952, na coluna ‘Conversa do dia’,
uma vez mais se nota a preocupação do cronista em apontar ao leitor
aspectos problemáticos da época.
Uma frase dita na imprensa pelo Ministro da Fazenda, Horácio
Lafer, foi aproveitada por uma rede bancária como estratégia
publicitária para que as pessoas colocassem seu dinheiro na caderneta
de poupança. Tal situação serviu de mote à crônica.
O cronista inicia dizendo que também irá poupar os Cr$ 4.70
que lhe haviam sobrado naquele mês, depois de pagas as despesas.

- 210 -
Porém, o que chama a atenção do leitor, mais uma vez, é o olhar ácido
do cronista para o contexto econômico. De forma sutil, descontraída,
o cronista diz que repensou e decidiu não mais valer-se da poupança.
O motivo da mudança de opinião? Simples: “o líquido esbranquiçado”
a que chamavam de leite havia subido demasiadamente, e o cronista
arrepiou-se “com o aumento do preço do arroz, pão, da farinha de
mandioca e com as ameaças de que irão também aumentar os preços
da banha e da manteiga”.
Nota-se a omissão do sujeito em “irão aumentar”, mas, na
verdade, fica subentendido que se trata de algum pronunciamento do
próprio Ministro da Fazenda, o mesmo que havia convidado a
população dias atrás a poupar por meio da caderneta de poupança.
O cronista então propõe uma solução, em forma de
questionamento:

já que estamos nessa vertigem de aumento,


porque não se faz logo a coisa direita, aumentando
a quantidade de água para o abastecimento da
cidade, aumentando o nível do ensino,
aumentando a decência burocrática, aumentando
a limpeza das ruas, aumentando o salário dos
necessitados, aumentando o número de hospitais,
de asilos, de escolas, de patronatos, aumentando
principalmente o faro de nossas polícias?

Na pergunta retórica do cronista, para a qual a resposta até


hoje, em alguns aspectos, está para ser dada, verifica-se a repetição
do gerúndio do verbo aumentar. Interpreta-se tal recurso como um

- 211 -
mecanismo para dar ainda mais ênfase ao problema posto em pauta.
Poder-se-ia empregar a forma nominal do verbo apenas uma vez, já
que se refere à mesma ação a ser feita, no entanto, é por meio da
repetição que se obtém um efeito de chocar o leitor, a mostrar
quantos itens têm merecido receber uma atenção especial do
governo. Porém, este anuncia o aumento de produtos basilares da
cesta básica e nega a ampliação de serviços essenciais à população, tal
como água, escola, segurança, saúde, higiene.
Mais uma vez, reitera-se que o jornal Última Hora posicionava-
se politicamente favorável ao governo, não se quer dizer que Rebelo o
fazia de forma contrária. No entanto, entende-se que as duas crônicas
aqui comentadas apontam para uma função que se sabe ser da
Literatura, a função social do texto literário. Candido (2006), ao falar
sobre as funções do texto literário, enfatiza que a linguagem é criação
social, e a arte é social, uma vez que exerce influência sobre o leitor.
No caso dessas crônicas, publicadas, à primeira vista, de maneira
despretensiosa, em um veículo tão efêmero, elas comunicam
artisticamente verdades inerentes ao tempo de que falam, marcam
com criticidade a postura do cronista e permitem ao leitor uma nova
visão das questões ali apontadas.
Por fim, para finalizar os comentários a respeito da crônica de
05 de junho, destaca-se o título a ela atribuído: Deve & Haver. Em um
primeiro momento, pensou-se sem sentido o título, no entanto, em
busca de interpretá-lo, inferiu-se que se trata de um jogo com os

- 212 -
sentidos dos verbos. ‘Deve’ pode ser de estar em débito, nesse caso, o
próprio governo está em débito com o povo, afirma-se isso, levando-
se em conta o número de itens elencados pelo cronista que deveriam
ser melhores ofertados à população. Ou ainda, poder-se-ia dizer que
‘deve’ será o que o povo passará a fazer diante do aumento de itens
básicos da cesta básica.
Em relação ao verbo haver, interpretou-se com o sentido de
existir e o que existia naquele momento era o desejo de ver melhorias
advindas do poder público. Por outro lado, interpreta-se como ‘a ver’,
mais uma vez o poder público estaria em débito para com o povo.
Cabe ainda destacar que, ao folhear as páginas da edição da
qual a crônica foi retirada, não há menção há nenhum dos pontos
tratados pelo cronista, o que ratifica a ideia de que o jornal era neutro,
ao passo que o cronista conseguia posicionar-se criticamente neste
veículo de postura parcial.
Por fim, o último texto a que se dedica analisar este artigo é
uma crônica que deixa um pouco de lado a política e passa a tratar de
um assunto pelo qual Rebelo era apaixonado: futebol, e mais ainda, o
América Futebol Clube, seu time de coração. Publicada em 19 de
agosto de 1952, a crônica Bandeira Vermelha inicia-se com um
cronista que se vale da primeira pessoa do plural para chamar a
atenção do leitor quanto ao assunto a ser narrado. Se ontem, frisa o
cronista, o assunto era tristeza, hoje será a alegria, “eterna balança da
vida, gangorra dos nossos dias, contingência fatal do ser humano”.

- 213 -
Nota-se que já nas primeiras linhas o cronista adota uma linguagem
menos sisuda que aquela que se observou nas demais crônicas. Nesta
parece que a alegria realmente estará junto ao leitor.
No segundo parágrafo, o cronista explica que cada pessoa tem
seu amor e sua paixão e a dele é ver tremular a bandeira vermelha, a
qual faz tremular seu coração. Como bom torcedor do América, o
coração de Rebelo, e por conseguinte do cronista, tremeu ao ver seu
time vitorioso no jogo de domingo (esta edição foi publicada na terça-
feira). A Rua Campos Sales, referenciada na crônica era o endereço da
sede do América, mas as condições eram precárias.
No entanto, depois de muito esforço, o time, enfim, conseguiu
o seu estádio, e a alegria a que se refere o cronista é justo por essa
razão. Como aponta a crônica, não será mais preciso jogar em grama
alheia, tampouco sofrer em treinamento em campo sem estrutura. O
novo estádio oferecia lugar a 25.000 torcedores e permitia que os
jogadores gozassem de certo conforto que os rubros (Flamengo),
conforme apontou o cronista, já desfrutavam.
As palavras que compõem a crônica mostram um cronista
agradecido pela sede que seu clube agora tem em mãos, pois há oito
anos o clube jogava somente “fora de casa”, conforme disse o cronista.
Agora a bandeira vermelha do América tem um mastro para que possa
ser fixada. Há 15 anos o time aguardava um título estadual, as palavras
do cronista agora apontam a confiança de que em 1952 tal vitória será

- 214 -
efetiva: “Quem nos dirá que não está próxima a glória de um
campeonato que nos tem fugido há quinze anos?”
O ar de alegria que exala da linguagem também pode ser
constatado na ilustração que acompanha a crônica. Trata-se de uma
caricatura de Rebelo, em que ele está sentado na arquibancada, usa a
camiseta de seu time e eleva os dois braços em sinal de vitória ou
comemoração. Por fim, em ultima instância, destaca-se que o cronista
construiu sua crônica de uma forma curiosa, ele exalta seu time,
deixando claro que se trata do “campeão do centenário”, porém,
afirma com modéstia estar ciente de todos os problemas financeiros
do clube, das dificuldades para se conseguir uma sede própria, um
estádio, como o que agora tem em mãos. E é justo nessa modéstia que
o final da crônica se foca, pois agora novos tempos virão, tempos de
alegria, em que o pobre time poderá se tornar o campeão.

Palavras Finais
Rebelo foi um intelectual preocupado com as questões sociais,
econômicas, políticas e tantas outras que envolvem o Rio de Janeiro e
o Brasil. Quem lê sua obra reconhece o instinto crítico que emana da
pena do autor. Suas crônicas são quadros nos quais ele revela um olhar
decisivo sobre pontos que, por certo, ao menos para os leitores
daquele jornal, passariam despercebidos.
Se o papel do cronista é eternizar o tempo de que falam os
textos, o autor cumpriu esse papel, pois com seus registros Rebelo leva

- 215 -
em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser
considerado perdido na história (BENJAMIN, 1987). A partir dessa
percepção, ao ler as crônicas, recupera-se a imagem de situações
vividas em um período já distante. Por meio das crônicas podem-se
recuperar a tensão que o contexto político exalava e a alegria que o
esporte trouxe a uma parcela da população, os torcedores do América
Futebol Clube.
O tom sério, irônico, lacônico das duas primeiras crônicas não
é o mesmo observado na última analisada, na qual se nota uma
linguagem leve, de exaltação tão característica do gênero. Mário de
Andrade (1972, p. 153), que desde o primeiro livro de Rebelo já o
apontou como escritor de grande estilo, enfatizou que o cronista tem
capacidade para fazer com que seus discursos se valham de “todos os
elementos de expressão verbal”. Neste estudo, embora tenham sido
analisadas somente três crônicas, nelas se observou o emprego de
elementos vários, a saber: ironia (em crônica 1 e 2), jogo de palavras
(título crônica 2), linguagem de exaltação (crônica 3), diálogo com o
leitor (todas as crônicas) e oscilação entre a forma de narrar (crônica
1 e 2).
Para finalizar este estudo, salienta-se que muito ainda pode ser
comentado no que se refere ao estilo de Rebelo, os elementos aqui
destacados saltaram ao olhar da pesquisadora, porém, outro olhar
poderia apontar outros, pois como texto literário que é, a crônica se

- 216 -
mostra plurissignificativa, com linguagem conotativa que permite ao
leitor múltiplas interpretações.

- 217 -
Referências

ANDRADE, Mário. Resenha reproduzida sem título. In: Revista


Brasileira, n.1. Rio de Janeiro: ABL, out.- dez., 1974, p.146-148.

______. O empalhador de passarinho. 3.ed. São Paulo: Martins;


Brasília, INL, 1972.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: BENJAMIN, Walter. Magia e


técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Obras escolhidas, V. I. Trad.Sérgio P. Rouanet. 3 ed. São Paulo:
Brasiliense, 1987.

BERGAMINI, Claudia Vanessa. De Norte a Sul, quadros e costumes


históricos do Brasil – o olhar de Marques Rebelo. 131 fls. Dissertação.
Mestrado em Letras. 2012. Universidade Estadual de Londrina – UEL –
Londrina, 2012.

CANDIDO, Antonio. A crônica: o gênero, sua fixação e suas


transformações no Brasil. Campinas: UNICAMP; Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.

______. A vida ao rés do chão. In: CANDIDO, Antonio. Recortes. São


Paulo: Cia. das Letras, 1993.

______. Literatura e Sociedade. 9ª Ed. Revista pelo autor. Rio de


Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006.

DINIZ, Leila. Última hora, 60 anos. 24/11/2011. Edição 669. In:


Observatório da Imprensa. Domingo, 08 de Março de 2015. ISSN
1519-7670 - Ano 18 - nº 840. Disponível em:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/lt_i_gt_ulti
ma_hora_lt_i_gt_60_anos Acesso em 15 jan. 2015.

GOMES, Renato Cordeiro. Marques Rebelo. Coleção Melhores


Crônicas. Seleção e Prefácio de Renato Cordeiro Gomes. São Paulo:
Global, 2004.

- 218 -
MARQUES REBELO TODOS OS DIAS EM ÚLTIMA HORA. In: Jornal
Última Hora. Ano II. Rio. Quarta-feira. 16 de janeiro 1952, nº 183.

PORTELLA, Eduardo. A cidade e a letra. In: PORTELLA, Eduardo.


Dimensões I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977, p. 81-87.

REBELO, Marques. Sofri Demais. Conversa do dia. In: Jornal Última


Hora. Ano II. Rio. Sexta-feira. 18 de janeiro de 1952, p. 2. nº 185.

______. Deve & Haver. Conversa do dia. In: Jornal Última Hora. Ano II.
Rio. Quinta-feira. 5 de junho de 1952, p. 2. nº 300.

______. Bandeira Vermelha. Conversa do dia. In: Jornal Última Hora.


Ano II. Rio. Terça-feira. 19 de agosto de 1952, p. 2. nº 364.

SIMON, Luiz Carlos. Duas ou três páginas despretensiosas: a crônica,


Rubem Braga e outros cronistas. Londrina: Eduel, 2011.

- 219 -
Anexos
Anexo 1 – Jornal Última Hora, de 16 de janeiro de 1952.

- 220 -
Anexo 2 – Jornal Última Hora, de 18 de janeiro de 1952.

- 221 -
Anexo 3 - Jornal Última Hora, de 19 de agosto de 1952.

- 222 -
Ainda é possível falar em geração? Um olhar para a
narrativa brasileira da década de 90

Marcela Ferreira da Silva

Considerações iniciais
Segundo Antonio Candido (1973, p. 4) só é possível
compreender a literatura, de qualquer momento: “fundindo texto e
contexto numa interpretação dialeticamente íntegra”. Para entender
a produção literária contemporânea, então, será necessário atentar
para questões extra-literárias e extra-culturais, principalmente,
porque não há na literatura produzida a partir das décadas de 80 e 90
um projeto estético ou político único, cujos traços possibilitem defini-
la sob um rótulo, como é o caso da literatura produzida durante a
ditadura militar que já é, consensualmente, denominada “literatura
pós-64”. Ítalo Moriconi (2002) observa que, com o fim do regime
militar, diluiu-se, também, o tom de contestação política que norteava
essa literatura e, agora, o texto literário tem apresentado variados
temas e múltiplos procedimentos narrativos, que, em última instância,
dialogam com o contexto, no qual se insere, ora negando a “ordem
vigente”, ora reproduzindo-a. Diante disso, o adjetivo

- 223 -
“contemporânea” funciona como um termo vazio a ser preenchido a
posteriori pela crítica e pela história literária
Segundo Tânia Pellegrini (2001), a literatura na
contemporaneidade estabelece relações intrínsecas com o mercado
editorial, com a cultura de massa e com os meios de comunicação
modernos, que exercem, sobre ela, pressões a que Pellegrini chama de
“censura econômica”, um dado já observado por Walter Benjamin
(1994), na década de 30 do século XX, em seu ensaio “A obra de arte
na era de sua reprodutibilidade técnica”. Para o filósofo, o artefato
artístico possui o valor ritualístico e a função social de promover a
reflexão crítica da realidade. O mercado capitalista, por sua vez, não
reconhece esse “valor de culto” e atribui para a arte o “valor de
exposição”, transformando-a em mercadoria, por meio da reprodução
serial e da propaganda ou “liquidação”, a fim de que alcance as massas
e seja consumida por elas.
Em outras palavras, as massas não teriam conhecimento
suficiente para recolherem-se diante de uma obra de arte, isto é, as
massas são alienadas, porque não recebem educação de qualidade,
porque são manipuladas pelo discurso capitalista de que todos têm
necessidades iguais e porque são seduzidas pelo consumo de imagens
imediatas, veiculadas pelos meios massivos de comunicação. Assim, o
objetivo das massas, ao procurar uma obra de arte, é simplesmente a
distração e o consumo, resultando dessa atitude, segundo Benjamin,
uma função política: a de servir ao mercado. Dizer que existe cultura

- 224 -
de massa não significa que haja democratização da cultura letrada e
da educação, nem que as massas sejam produtoras da cultura que
consomem.
Por outro lado, a cultura de massa é um fenômeno social e não
pode ser ignorado, advém do processo de evolução dos meios de
comunicação. Umberto Eco (2004) também discute o fenômeno das
massas. Em seu livro Apocalípticos e Integrados, ele faz uma distinção
entre dois pólos de intelectuais que pensam a cultura de massa. Por
um lado, os “apocalípticos” que acreditam na decadência
irrecuperável da cultura em tempos de comunicação massiva e os
“integrados” que supervalorizam essa cultura. Diante desses pólos,
observa-se que a cultura de massa é um fenômeno histórico,
constituído social e politicamente pelas transformações advindas com
os meios modernos de comunicação e com a mudança nos modos de
perceber as massas, agora consumidoras. E alerta para o caráter
paradoxal da cultura de massa:

A situação conhecida como cultura de massa


verifica-se no momento histórico em que as
massas ingressaram como protagonista na vida
associada, co-responsáveis pela coisa pública. [...]
Mas, paradoxalmente, o seu modo de divertir-se,
de pensar, de imaginar, não nasce de baixo através
das comunicações de massa, ele lhes é proposto
sob forma de mensagens formuladas segundo o
código da classe hegemônica. Estamos, assim, ante
a singular situação de uma cultura de massa em
cujo âmbito um proletariado consome modelos

- 225 -
culturais burgueses, mantendo-os dentro de uma
expressão autônoma própria. (ECO, 2004, p. 24)

Dito de outro modo, a partir do surgimento da cultura de massa


e dos meios que possibilitaram a sua propagação, a relação entre
cultura e mercado tornou-se estreita, contribuindo para a formação
de um sistema de condicionamentos da cultura, a indústria cultural, na
qual as leis de mercado, inerentes ao capitalismo, determinam o que
será produzido e propagado, levando em consideração a demanda, ou
seja, o gosto do público-consumidor. E, como parte de um conjunto
social maior, a literatura recebe influência desse meio, tornando-se
produto do mercado para as massas, mas, por outro lado, pode pensar
criticamente esse contexto, promovendo reflexões. A literatura, como
qualquer arte, consiste na expressão cultural de um povo, logo, esse
diálogo com outros segmentos sociais - mídias, mercado, política -
pressupõe uma visão de mundo constituída pela linguagem do sujeito
desse meio e, nesse caso, um sujeito que, desde o advento da
televisão, tem percebido o mundo pela imagem e suas técnicas de
montagens, fragmentação, simultaneidade, rapidez e hiper-realidade.
Retomando a afirmação de Candido (1973), o presente
trabalho pressupõe uma análise do texto literário, observando o modo
como esse se configura no contexto atual, em que a literatura é tida
como mercadoria e entretenimento, desestabilizando a “crença” de
que haja autonomia da obra de arte; em que a experiência parte,
quase sempre, das imagens e é representada por meio das linguagens

- 226 -
das mídias eletrônicas. A fim de identificar como essas interseções
entre arte e contexto se desdobram na materialidade do texto
ficcional, propõe-se a análise de duas antologias de contos de
escritores que começaram a produzir na década de 90: Geração 90:
manuscritos de computador e Geração 90: os transgressores, ambas
publicadas pela editora Boitempo e organizadas pelo também escritor
contemporâneo Nelson de Oliveira. Feita a análise horizontal,
empreende-se a leitura aprofundada dos contos “Teatro de bonecos”
de Amilcar Bettega Barbosa, “Imagens urbanas” de Carlos Ribeiro, “A
ponte, o horizonte” de Marcelino Freire e “Laços e os nós, os brancos
e os azuis” de Cíntia Moscovich, da antologia de 2001 e “Justiça” de
Cláudio Galperin, “O pacificador” de Fausto Fawcett, “Rio
pantográfico” de Marcelo Mirisola e “Monsieur Xavier no Cabaret
Voltaire” de Joca Reiners Terron, da antologia de 2003.

Sobre a Geração 90
Geração 90, designativo sob o qual se inscreve as antologias em
questão, foi tema de calorosas discussões na mídia depois da
publicação da segunda antologia, em julho de 2003. Segundo o
organizador Nelson de Oliveira (2003), em entrevista à Folha de São
Paulo, esse termo foi “forjado” para imprimir maior visibilidade aos
autores e textos nelas incluídos: “[...] foi o artifício que encontrei para
reunir e tentar divulgar a prosa dos melhores contistas e romancistas
que estrearam no final do século 20. Trata-se de uma etiqueta, um

- 227 -
rótulo, uma logomarca”. Ora quando uma série de escritores é
agrupada sob o mesmo denominador, espera-se que entre eles exista
alguma unicidade, no entanto, não é um manifesto que se encontra no
conjunto das duas antologias, nem na horizontalidade de cada uma.
Toda a polêmica, então, resolve-se na chave da relação literatura-
mercado, já que muitos escritores, inclusive o próprio Nelson de
Oliveira, afirmam que a literatura pode ser comercializada, em moldes
capitalistas.
Segundo Nelson de Oliveira (2001, p. 7):

Pegos na curva do milênio, quis o destino que nos


encontrássemos neste fim de mundo, o Brasil,
exatamente quando os juizes do Juízo Final já
anunciavam, indecisos, ora o fim dos tempos ora o
início da era de Aquário. Os contos inéditos aqui
reunidos são as flores do mal e do bem (a palavra
grega anthología significa seleção de flores) do
florilégio de uma época.

Isso posto, verifica-se que as razões levadas em consideração


na organização dessas antologias foram baseadas na temporalidade de
estréia dos escritores nelas inseridos: a última década do milênio. Por
isso, graças à variedade de contos e de autores que as compõem,
podem ser observadas as principais linhas de força da narrativa
brasileira atual: uma prosa afeita ao realismo, muitas vezes de
contornos brutais, deixa entrever o dia-a-dia nas grandes cidades; o
espaço urbano surge não só como pano de fundo de relações humanas
esgarçadas, mas também como tema nos contos em que se expõem as

- 228 -
cisões sócio-econômicas do país; a inserção de estruturas de outros
gêneros não literários e incorporação de linguagens de outros sistemas
semióticos.
Embora a segunda antologia se inscreva sob o designativo
“transgressores” não apresenta especificidades, nem diferenças
significativas em relação à antologia de 2001. Tomando o postulado do
organizador Nelson Oliveira (2003, p. 15) no texto de apresentação, a
idéia de transgressão é enfatizada: “Esta antologia é o melhor tributo
possível às vanguardas – à tribo de Joyce, à de Breton, à de Oswald, tão
distintas –, hoje todas extintas, e ao seu legado, que continua vivo e
presente na corrente sanguínea da cultura ocidental”. Tal designativo
torna-se, contudo, passível de questionamentos: o que significa
transgredir na sociedade contemporânea? Parece que a transgressão,
nessa antologia, não está vinculada ao significado que essa palavra
assumiu na Modernidade: instaurar o novo, pois, segundo Octavio Paz
(1994), esse impulso se tornou tradição, remonta à Revolução Francesa
e, no século XX, foi levado às últimas conseqüências, engendrando o
“ocaso das vanguardas”.

O enclausuramento do sujeito contemporâneo: alteridade e


elaboração estética
No conto “Teatro de bonecos” de Amilcar Bettega Barbosa , o
caos urbano, o fantástico e o cotidiano se misturam e o resultado é a
representação dos devaneios interiores não de qualquer sujeito, mas

- 229 -
de um esmagado pela sociedade urbanizada e capitalista. O modo
como o autor trata esse tema prevê a utilização de uma linguagem
esteticamente elaborada pelo absurdo, pela estética do duplo e pela
insanidade. O conto “Teatro de bonecos” apresenta um narrador
autodiegético e, por isso, todos os fatos narrados partem do ponto de
vista desse personagem que, no conto, é assolado pela loucura. Logo,
têm-se misturado ao relato, traços de realidade, de alucinação e de
absurdo. O conto é de atmosfera, segundo a nomenclatura de Júlio
Cortázar (PONTIERI, 2001), e não se estrutura linearmente, antes
constrói a narrativa a partir das sensações do sujeito enunciador.
O personagem cria um universo “familiar”, em que ele
estabelece relação afetiva com dois manequins de pano, as
personagens Ana e Alfredo. Ambos recebem características humanas,
ao passo que o narrador personagem (de quem não se sabe o nome)
se mostra como boneco, num jogo de espelhamentos entre homem e
objeto.
A narrativa traz dois momentos desse universo: o presente e o
passado. O conto inicia-se com os verbos empregados no presente:
“Porque é o dia do meu aniversário” (BARBOSA, 2001, p. 31), anulando
a distância entre eu narrado e eu narrante, mostrando que o sujeito
contemporâneo se sente incapaz de compreender o mundo na sua
totalidade. A narrativa segue, o passado aparece como flashes, a fim
de reconstruir o contraste (passado feliz, presente triste) desse
universo. O enredo é simples e não há sucessão de ações. O conto

- 230 -
começa e termina com o personagem sentado, observando a casa e
refletindo sobre a vida.
O passado, início da convivência “familiar” da personagem com
os bonecos, é caracterizada pela luminosidade e alegria: “[...] a luz
entrando como uma facada de sol [...] como se cada objeto refletisse
a antiga harmonia da nossa convivência.”.. (BARBOSA, 2001, p. 33).
Mas sob esse contexto “alegre”, há formigas que apavoram a
personagem e que revelam a destruição paulatina desse universo.
No presente da narração, esse universo está em crise e o
espaço envolve-se de uma cor amarelada, provocada pelo entardecer,
pela chegada da noite. Desse modo, a configuração do espaço constrói
um ambiente de solidão, de isolamento. A repulsa pelas formigas
simboliza a repulsa pela ideia de multidão. A solidão é figurativizada
pelo ambiente: um lugar isolado, de frente para o mar e a noite
chegando. No conto, os ambientes são construídos com descrições
que vão compondo espaços carregados de solidão. Além disso, a
constituição das personagens reitera a imagem de solidão. O narrador-
personagem se constrói pela estética do duplo, em que o eu e o outro
se confundem, a partir da simultaneidade das características, da
existência de um pelo outro. Para Sigmund Freud, o duplo consiste na
elaboração artística da manifestação do “estranho”: “[...] esse
estranho não é nada de novo ou alheio, porém algo que é familiar e há
muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através

- 231 -
do processo da repressão. [...] algo que deveria ter permanecido
oculto mas veio à luz”. (FREUD, 1996, p. 258).
Na ficção, o estranho aparece por meio da estética do duplo.
Em narrativas como O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, “O
Espelho” de Machado de Assis e, principalmente, no Romantismo em
obras de Poe, Hoffmann e outros, o duplo foi largamente utilizado,
tornando-se tradição na literatura mundial. Em suma, o duplo é a
representação da manifestação do estranho, ou seja, do que está
reprimido no inconsciente, mas que veio à tona em um momento de
crise da personalidade.
Segundo Freud (1996, p. 266), a fantasia ou a ficção trabalha o
duplo de maneira muito específica, para além da representação
mimética, utilizando elementos que colocam o outro (o estranho/ o
inconsciente) diante do eu. O trecho a seguir sintetiza essa
duplicidade:

Sou capaz de elaborar a lógica de Alfredo e me


descobrir nas suas roupas, nos seus gestos, na sua
fala e nos seus desejos, descubro-me na própria
existência de Alfredo e também na de Ana,
desdobramentos obscuros de uma vida que já se
afasta tanto, que aspira cada vez mais a um
deserto, à solidão definitiva (BARBOSA, 2001, p.
38).

Trata-se, portanto, da metamorfose dos bonecos para a


condição de seres humanos, criando uma metáfora do esfacelamento
das relações afetivas nessa sociedade urbanizada e individualista. Pelo

- 232 -
delineamento das personagens Ana e Alfredo, que são bonecos, se dá,
também, a reconstituição do eu. É pelo espelhamento que o narrador
personagem se constitui enquanto sujeito solitário e ilhado. Os
bonecos servem para exteriorizar o que está ausente no eu. Eles são o
outro da personagem, representam tudo o que lhe falta. Assim, Ana
representa o lado meigo, gracioso e Alfredo é extrovertido, vivo e
prático.
No presente da narrativa, ambos estão felizes e o narrador se
sente excluído dessa cumplicidade. Eis, nesse ponto, a crise desse
universo, onde tudo parece ser inventado pela via da imaginação e da
loucura: “Alfredo e Ana tinham fingido dormir para que eu me
retirasse, e agora se amavam nus sobre o sofá” (BARBOSA, 2001, p.
39). O narrador tem consciência da sua invenção, sabe que tudo é
fruto de sua imaginação, que as pessoas acham essa relação entre ele
e os bonecos “estranha”, anormal. Contudo, ele narra com um tom de
insanidade, tratando bonecos como pessoas e atribuindo a eles ações
e funções jamais desempenhadas por objetos como, por exemplo,
fazer sexo, trair.
Nesse sentido, não são os bonecos que ganham feições
humanas. Esse jogo de espelhos serve para representar a condição do
sujeito contemporâneo, vazio e solitário, que não consegue
estabelecer vínculos duradouros, esmagado pelo individualismo
neoliberal. O excerto abaixo demonstra a intensidade do isolamento
desse personagem:

- 233 -
Sentado de costas para a janela, observo melhor a
casa sem a presença deles e começo a perceber o
verdadeiro tamanho da nossa solidão. É aí que vejo
o que sou, onde há falta, onde aguardo
infantilmente um preenchimento. E cada segundo
de espera é uma pequena morte dentro de mim,
como se a ausência daqueles dois fosse a
antecipação da minha própria ausência, como se já
fôssemos, os três, meros autômatos de um teatro
de uma ridícula melancolia. (BARBOSA, 2001, p.
33).

Sentado observando a casa, o narrador-personagem


conscientiza-se da sua condição de boneco, da sua incapacidade de ser
humano, do seu universo infantil criado para preencher o vazio. Nesse
sentido, o dia do aniversário traduz-se na temporalidade mais propícia
para reconstruir o passado, a fim de recuperar a origem desse
isolamento, que culminou numa situação próxima à loucura: construir
uma família com bonecos. A estética do duplo, o fluxo de consciência,
o jogo de espelhos, a configuração do espaço e o narrador
autodiegético fazem parte da elaboração formal do conto, para o
tratamento do tema da solidão e do sujeito conturbado pela sociedade
urbanizada e neoliberal. É possível observar em cada um desses
recursos a criação de imagens carregadas de tensão, que convergem
para a destruição desse sujeito, para a sua morte, a solidão definitiva.
As imagens da ilha, do mar, do entardecer e da relação entre
sujeito e bonecos criam para o leitor uma “unidade de impressão”,de
acordo com a prerrogativa de Poe, que remete à melancolia, angústia

- 234 -
e solidão. Por outro lado, essas imagens vinculam-se à recorrência de
recursos que constroem imagens para significar: no caso em questão,
criar uma ambiência de solidão. O conto é essencialmente imagético
e, por isso, sensitivo, como nos contos de Katherine Mansfield, a
narrativa compõe quadros:

A sala da nossa casa: a luz entrando como uma


facada de sol por cima do meu ombro estende uma
língua espessa e amarela sobre o verniz do
assoalho, vai tornando visível o peso do ar, dá ao
ambiente um aspecto de sonho ou alucinação, mas
sobretudo revela a calma das coisas, essa espécie
de quietude dos sentidos que vai descendo sobre a
prata dos talheres, sobre as porcelanas, sobre as
taças que logo se encherão com o vinho da
serenidade , sobre a cristaleira , o sofá, o piano,
estendendo sobre todos os móveis da sala uma
colcha diáfana e luminosa, e é como se cada objeto
refletisse a antiga harmonia da nossa convivência,
assim como cada um de nós é (ou foi) o reflexos dos
pensamentos, atitudes, e até dos gestos do outro.
(BARBOSA, 2001, p.33).

Diferentemente de todos os outros contos que compõem a


antologia, o conto “Teatro de bonecos” incorpora o espaço urbano
como pano de fundo do esgarçamento das relações afetivas, fazendo
isso a partir de uma elaboração que confere ao conto maior
originalidade, condizendo com o que Cortazar (1974) afirma sobre a
natureza do conto: o bom conto precisa ter significação, intensidade e
tensão, em que o tema pode ser banal, mas deve-se levar em
consideração a elaboração formal no tratamento desse tema, de

- 235 -
modo que o tempo, o espaço, as personagens e a narrativa, criam essa
tensão, fazendo parte dos significados do conto.

Literatura e mídia: o simulacro construído pelo narrador espectador e


o questionamento da cultura do espetáculo
Logo de início, o narrador do conto “Imagens Urbanas” de
Carlos Ribeiro se institui como um espectador, que observa sem deixar
ser visto. A narrativa se organiza, então, pela voz desse voyeur
confesso. Da janela de seu apartamento, ele observa a cidade lá fora,
centrando sua atenção em um ponto de ônibus da avenida. A partir de
suas obsessões, esse voyeur narra as taras que atribui aos outros.
Silviano Santiago (2002, p. 39) analisa esse tipo de narrador e afirma
ser uma das características da contemporaneidade: o narrador que
não colhe sua ação da experiência e sim da observação da imagem. A
realidade representada constrói um jogo de simulações de segundo
grau, que afasta o real e cria o simulacro. È isso o que acontece em
“Imagens Urbanas”: “[...] e esse emaranhado de viadutos e pontes e
tantos ângulos, ocultos, obscuros escondendo sabe-se lá que tipo de
sonhos e medos e taras e intenções? Penso que posso ser todas
aquelas pessoas lá embaixo”. (RIBEIRO, 2001. p. 211).
Segundo Nelson Brissac Peixoto (1989, p. 2): “A paisagem
contemporânea parece estar dominada por cenários artificiais,
simulações, embalagens enganosas, e os artistas ficariam perdidos
entre esses falsos espelhos, como irracionais zonzos em sua

- 236 -
armadilha”. Em outras palavras, o sujeito contemporâneo não
consegue mais captar a realidade empírica, pois a realidade, da qual
tem acesso, é a mediada pelos meios de comunicação de massa, por
isso a experiência representada, na maioria dos contos, parte da
apropriação de recursos provenientes desses meios para o texto
literário, a fim de representar o real, mas o que se observa é a criação
do simulacro, uma realidade mediada pelas imagens.
No conto em questão, o narrador leva o leitor a uma série de
universos diferentes, compondo enredos e personagens dilaceradas
pela vida e pelo espaço urbano. Trata-se de uma estrutura narrativa
en abîme, ou seja, o narrador, valendo-se de uma posição de demiurgo
diante dos fatos, vai colocando uma narrativa dentro da outra, como
se estivesse com uma câmera na mão, ajustando o zoom, conforme
suas próprias “taras”, penetrando na intimidade de por quem ele se
interessar.
Contudo, o narrador introduz-se na diegese e, ao fazer isso, a
onisciência de que se vale é diluída. E o leitor passa a desconfiar desse
narrador, pois o real se perde, sobrando apenas simulacros,
fragmentos de imagens que o narrador retirou da televisão, do jornal
e do cinema. O início do conto cita um filme: “Como as personagens
de Noite Vazia, de Khouri, esvazio meu ser com essas imagens urbanas
[...]”. Essa situação confere à narrativa um distanciamento do real e
uma aproximação com a imagem, criando o simulacro.

- 237 -
Nesse sentido, o narrador voyeur, que não tem experiência, no
sentido preconizado por Benjamin, em seu texto sobre o narrador, e a
narrativa en abîme condensam o grau de irrealidade, criando um
afunilamento de imagens, questionando a mimesis tradicional e
instaurando um paradoxo: trata-se de uma prosa que incorpora o real,
mas esse real é mediado pelas imagens dos meios de comunicação de
massa, em especial a TV. O tratamento dado ao espaço urbano
consiste nos mesmos procedimentos incorporados pelos telejornais:
expor a violência e os problemas sociais desse espaço.
Segundo Tânia Pellegrini (2005), a realidade referencial
transcende a representação realista. Na pós-modernidade, a técnica
de narrar funciona como uma “operação metalingüística”, numa
mistura de linguagens (pictórica cinematográfica, jornalística,
eletrônica, etc), pressupondo que a realidade está imbricada nessa
linguagem. Mistura essa que não parte de práticas concretas: é uma
tentativa de aprisionar o real pelo uso de linguagens, uma espécie de
jogo em que o autor manipula os vários tipos de linguagem que
dialogam entre si, para captar o real, que não é a realidade concreta,
mas o simulacro, realidade constituída por imagens e simulações.
A realidade que o autor tem como referência está constituída
pela linguagem e não é concreta. E mais, partindo dessa
referencialidade, o autor utiliza, para captar o real, outras linguagens:
cinematográfica, teatral e recursos próximos do cinema: close, ajuste

- 238 -
da câmera, configurando à narrativa o mesmo aspecto hiper real
percebido na imagem eletrônica.
A realidade referencial, ou seja, que o sujeito pós-moderno
tem como referência, é mediada pelas mídias eletrônicas, construída
por linguagens: imagens, propagandas, tudo girando em torno do
olhar, da visibilidade, sendo por isso superficial, diferente da realidade
concreta. Nesse sentido, o voyeur justifica essa incapacidade de
reflexão. A técnica narrativa parte dessa referencialidade, que não é a
realidade concreta, mas um simulacro, e ao mesmo tempo, tenta
apreender o real por meio de sua manipulação pela linguagem, que
por sua vez, é híbrida, en abîme.
No entanto, todas essas histórias narradas partem da
imaginação do narrador, imaginação essa que foi irrompida pelas
imagens. Por isso, a estratégia de apavorar o leitor, no fim do conto,
com as “imagens urbanas” funciona como uma mensagem subliminar,
como se o narrador estivesse dizendo para o seu leitor refletir: tudo
isso que te apavora nem sempre é o real, mas são efeitos das imagens
de violência veiculadas na televisão.

É hora, caro leitor, de ajudar este homem a segurar


o seu fardo – e deixe-me dizer-te que sinto que és
capaz de fazer isto, porque pareces mesmo ter
amadurecido, e esta noite mesma está madura –
vês – como uma grande goiaba amarela. E nós a
comeremos silenciosamente nesta varanda com
vista para o mar. (RIBEIRO, 2001, p. 221).

- 239 -
O conto “Justiça”, de Cláudio Galperin também apresenta um
narrador heterodiegético, que se configura como um espectador, não
muito diferente do narrador voyeur de “Imagens Urbanas”. Nele, a
experiência narrada é mediada pelas imagens dos meios de
comunicação em massa, aproximando-se temática e esteticamente de
uma notícia de jornal. No conto, é narrado um caso de estupro,
pedofilia e a narrativa se organiza em oito episódios enumerados do
fim para o início da história. Esses episódios aparecem como flashes
de imagens, como cena de um crime, simulando as partes mais
importantes da história, já que a passagem de uma situação para outra
é lacunar.
A história é narrada em fragmentos, no primeiro tem-se a
construção da imagem final do conto: a menina violentada está no
bagageiro de um ônibus com destino para Jaboticabal. No segundo
episódio aparece a imagem do cadáver do agressor da menina:
“Câmara frigorífica. Ampla. Gelada. Correntes do teto terminando em
ganchos. Peças de carne suspensas. O cadáver do Homem mutilado,
sem roupa, estendido no chão”. (GALPERIN, 2003, p.195). Desse
modo, a narrativa é conduzida por fragmentos lançados diante do
leitor, em nenhum momento apresenta descrições ou alguma reflexão
sobre o relato, demonstrando que o objetivo de narrar é,
simplesmente, expor a brutalidade. No terceiro episódio, aparece a
transcrição de um noticiário de rádio: “Rádio Guarani. 90,7 AM. [...] A

- 240 -
mãe, coitada... Imagina... Estuprar uma menina, meu Deus! Nem seis
anos ela tinha... [...] Cadeia!? Tem que esfolar o filho da puta!”
A narrativa constrói um mosaico, com os flashes pisca-piscando
estilhaços de imagens, com a inserção de diálogos entre a menina e o
pedófilo, com a transcrição de uma reportagem de rádio. Diante disso,
o narrador não opina, não julga, apenas relata de forma fragmentada.
Essa omissão do narrador aponta para a incapacidade do sujeito em
ser demiurgo diante do fato que narra. Como afirma Silviano Santiago
(2002, p.60): “As coisas se passam como se o narrador estivesse
apertando o botão do canal para o leitor”. Trata-se, portanto, de um
narrador zapeur, que narra como se estivesse apenas editando as
cenas para o leitor.
Karl Eric Schollhammer (2007, p. 28) “Nos meios de
comunicação de massa, a violência encontrou um lugar de destaque e
[...] tornou-se uma mercadoria de grande valor, explorada por todos
os meios, sem exceção, em graus mais ou menos problemáticos”.
Desse modo, pode-se relacionar os procedimentos narrativos que o
conto “Justiça” utiliza para tratar o tema da violência - fragmentação,
narrador omisso, inserção de linguagens do rádio, episódios como
flashes - a esse diálogo estabelecido entre literatura e contexto.
O conto “O Pacificador” de Fausto Fawcett, apesar de
apresentar uma narrativa linear, também estabelece relações com os
meios de comunicação em massa, sobretudo, o cinema. De modo que
tem-se, no enredo, o relato de um narrador autodiegético (GENETTE,

- 241 -
1995) sobre sua história enquanto pacificador: “Sou um pacificador.
Escolho alvos pessoais de redenção”. (FAUSTO, 2003, p.153). E que
está no presente da narração: “Limpando o cocozinho dessa tcheca
adolescente, [...] garota traficada, eslava traficada tão profunda no
teor da condição de criatura desgarrada”. A distância entre eu narrado
e eu narrante quase não existe, pois o conto é narrado com os verbos
no presente. Isso reitera a dificuldade do sujeito refletir sobre o que
se propõe a narrar.
O enredo do conto em questão se divide em doze episódios e
em todos eles o leitor encontra citações dos mais diversos tipos, desde
personalidades da literatura e da filosofia mundial, como Shakespeare
e Nietzsche, até personagens de revistas em quadrinhos, da música
pop e do cinema, como Batman e Christina Aguilera. São, ao todo
imagens e ícones recobertos por significados: por exemplo, a idéia de
solidão é construída a partir de imagens que se transformaram em
símbolos da cultura de massa: “O que bate mesmo no coração é a
clássica solidão de heróis de quadrinhos como batman, cavaleiro
negro, surfista prateado” (2003, p. 154).
Além disso, a narrativa em si também é constituída por
montagens e clonagens de enredos, constantemente assistidos no
cinema: incorpora a estrutura de filmes policiais, com seqüestro, fuga
de bandidos, tiroteios, boates, ficção científica, trafico de mulheres,
entidades religiosas e secretas, tecnologias avançadas, entre outras
interseções com a cultura de massa. Segundo Otsuka (2004, p. 102), as

- 242 -
referências supracitadas estão relacionadas com a visão de mundo
construída pela indústria cultural, em que a literatura se subordina à
lógica do mercado, sem apresentar questionamentos: “Na
naturalidade com que as referências são empregadas está implicada a
aderência do texto à lógica própria de circulação desses produtos [...]”.
O escritor Fausto Fawcett (1989), em entrevista ao Jornal do
Brasil, comenta a respeito da relação literatura e mídias: “Mídia é
apenas sexto elemento depois da água e do fogo. Fornecedor de
fetiches, de fantasia, de realidade transformada em espetáculo [...]
Fetiches-simulacros são novas realidades e não cópias degradadas ou
imitações baratas ou ilusões, falsificações”. (FAWCETT, 1989, p.4)
Diante dessa perspectiva do autor, pode-se perceber a concepção que
os escritores contemporâneos têm a respeito do que seja a literatura
em tempos de comunicação massiva, em última instância, Fausto
Fawcett se insere no conceito de Eco (2005) como “integrado”.
Numa chave diferente da relação literatura e mídia, Marcelino
Freire consegue promover questionamentos a essa cultura do
espetáculo. No conto “A ponte, o horizonte”, inserido na antologia de
2001, tem-se um narrador personagem que “grita” insano para uma
multidão curiosa que avulta ao seu redor, enquanto ele está na
iminência de se suicidar, pulando da ponte. Nesse tempo, ajuntam-se
bombeiros, policiais, repórteres, transeuntes e até um helicóptero. O
enredo se estrutura pela voz do narrador-personagem, que responde
aos importunadores que lhe fazem críticas e questionamentos. O

- 243 -
conto é elíptico e fragmentado: apresenta apenas a voz da
personagem como se fosse um monólogo teatral, e a voz da multidão
aparece impregnada no discurso desse narrador-personagem. Eis o
inicio do conto:

O que vocês estão fazendo aqui? O senhor, a


senhora?É. Essa porra de bombeiro e essa merda
de polícia? O que, hã? Posso saber? Duvido que
tenham fazer o que eu vim fazer, duvido. O que vim
fazer? O que um homem vem fazer, sozinho, numa
ponte, meio dia? Ensopado, fodido como eu?
Pergunto: o que? (FREIRE, 2001, p.113).

Mais ainda: o conto não se preocupa em analisar as causas ou


os motivos que levaram esse sujeito a procurar um meio para se
matar. Não há, nem mesmo, o mergulho rápido na consciência da
personagem para suscitar um mínimo de reflexão. Porque o enfoque
dado no conto, diferente dos meios de comunicação de massa, é dar a
voz ao sujeito que quer se suicidar para questionar a banalização da
mídia ao espetacularizar um fato particular e muitas vezes sério. A
especulação é representada no conto por essa multidão que se
intromete no problema alheio. E a voz desse narrador agressivo parece
que está querendo dizer: que não se pode mais nem morrer, sem que
haja flashes; que qualquer coisa serve de show para a mídia:
“Palhaçada. Esse fotógrafo com esse flash na minha cara. Porra, mete
essa câmera no cu da tua irmã. Lá ta mais escuro que aqui.[...] Eta
povinho foda!” (FREIRE, 2001, p. 114-115). Em Marcelino Freire,

- 244 -
diferentemente do conto “Justiça” acima analisado, não há a
reprodução dos discursos das mídias eletrônicas, pois a estrutura
narrativa desnaturaliza o modo superficial como esses meios tratam o
suicídio, desestabilizando os significados que a violência recebeu na
sociedade capitalista - via mídias eletrônicas - que transforma
atrocidades em mercadoria.
É possível observar que a literatura contemporânea, mesmo
incorporando procedimentos provenientes dos meios massivos de
comunicação, pode também questionar o efeito de imediaticidade
dado pelas mídias aos dramas humanos, problematizando essa relação
entre a literatura e o contexto no qual se insere.
De modo geral, todos esses escritores, reunidos nesse tópico,
apresentam relações com os meios de comunicação de massa, alguns
apenas reproduzindo os discursos e as técnicas desse meio, outros os
incorporando para questionar. Essa reprodução ou esse
questionamento estão perpassados por diferentes concepções do que
seja a literatura na contemporaneidade, que, em última análise, se
caracteriza pela heterogeneidade das concepções que cada escritor
possui, constituindo a multiplicidade de temas e formas que a
configura.

A retomada da tradição: resistência ou estratégia mercadológica?


A literatura brasileira contemporânea apresenta uma
tendência, notável também no cenário da literatura mundial. Trata-se

- 245 -
da repetição de estratégias narrativas e da retomada de textos e
personalidades da cultura erudita, de modo que haja a inscrição da
autoria de outro escritor, geralmente canonizado, no texto de outrem.
Alfredo Bosi (2002) denomina esse fenômeno “hipermediação” e Flora
Süssekind (2000) “ventriloquismos”. No conto “Os laços e os nós, os
brancos e os azuis” de Cíntia Moschovich, Clarice Lispector é
rememorada e o enredo do conto “Os laços de família” é imitado no
conto de Moscovich, que se apropria inclusive de trechos inteiros.
Moscovich também faz referência ao conto “Feliz Aniversário”,
inserindo uma personagem com traços fundamentais da personagem
principal desse conto, o mesmo nome, D. Anita e a mesma condição
social, de idoso sem espaço.
Já em Marcelo Mirisola e Joca Reiners Terron, ambos inseridos
na antologia de 2003, tem-se a retomada de procedimentos narrativos
e de personalidade da “contracultura”, movimento definido por Flávio
Moura (2007, p. 1) como, “[...] um conjunto de atitudes fortalecido nos
anos 60, ainda que identificável em qualquer época, pela proposta
coletiva de negar um sistema político e de valores”.
Para definir a literatura na era dos extremos, Bosi (2002)
contrapõe hipermimetismo, realismo brutal, a hipermediação, citação
de textos da cultura erudita. Segundo o crítico, o texto hipermimético
se insere na cultura de massa, já que se submete ao gosto do leitor-
consumidor. E na outra ponta do extremo, o crítico coloca os textos
hipermediados, afirmando que, pela mediação da memória, pode-se

- 246 -
resistir à indústria cultural e à cultura de massa, que com a
espetacularização da violência pretende apenas vender. Bosi (BOSI,
2002, p. 252) define hipermediação como, “[...]maneirismo pós-
moderno feito de pastiche e paródia, glosa e colagem, em suma,
refacção programada dos estilos pretéritos ou ainda persistentes”.
De modo geral, o crítico sobrepõe hipermediação à
hipermimetismo, na justificativa de que a mediação constitui-se numa
resistência ao capitalismo. Mas, levando em consideração o que
Benjamin (1994) afirma em seu texto “A obra de arte na era da sua
reprodutibilidade técnica”, a hipermediação apresenta-se como mais
uma estratégia de venda para o mercado. Pois o leitor consumidor será
atraído por textos que retomam a cultura erudita não pelo seu valor
de culto ou para fruição, mas pelo prestígio social que representa o
consumo de cultura na sociedade capitalista. Desse modo, não parece
que a literatura tem alguma pretensão de resistir: as interseções entre
arte e mercado já se tornaram marca registrada da
contemporaneidade.
De sorte que o ventriloquismo, metáfora usada por Sussekind
(2000) para tratar desse fenômeno, torna-se o termo mais apropriado
para a leitura desses contos. Para a estudiosa, a composição literária
contemporânea caracteriza-se por uma rarefação de palavras, de
princípios ideológicos firmes e do que dizer. Diante disso, os escritores
optam por inserir no texto literário, tanto na prosa quanto na lírica,
montagens, clonagens, dublagens, repetições, glosas.

- 247 -
Para Sussekind (2000), esses fenômenos são engendrados pela
“geminação entre cultural e econômico” e são resultantes de um
processo político e econômico que transformou, na pós-ditadura
militar, o livro em mercadoria, subordinando a cultura às leis do
mercado. Assim como no regime militar havia censura à produção
literária, nas últimas décadas o que determina a produção da cultura
é a imposição editorial, vetando ou pondo em circulação o objeto
artístico como qualquer mercadoria.
Desse modo, a técnica da repetição utilizada por Moscovich, a
postura mal comportada de Mirisola e a glosa de Terron não se
constituem numa forma de resistência ao mercado editorial, mas
transforma-se em mais uma estratégia desse mercado de cultura.
Por rememorar em seu texto o conto “Os laços de família” de
Clarice Lispector, Cíntia Moscovich determina a leitura do conto de sua
autoria e o leitor vai procurar no texto “parodiador” a repetição ou a
reatualização de significados que teriam ficado latentes no texto
original. Mas, à primeira vista, não há nenhuma reatualização de
significados, uma vez que o conto em questão imita e simplifica o
estilema de Clarice Lispector, autora consagrada na literatura
brasileira.. Desse modo, a rememoração parece apontar para a
construção de um status: o de leitora de Clarice.
De sorte que fica difícil ler esse texto como resistência ao
mercado, como propõe Bosi. Ao contrário, o texto está se curvando
aos seus ditames, simplificando, ao nível de percepção do indivíduo-

- 248 -
massa, os recursos temático-formais do texto que incorpora. Assim, o
esvaziamento psicológico, as personagens achatadas, a linearidade do
enredo e a focalização interna fixa em Raquel, distanciam o texto de
Moscovich, temporal e esteticamente, do de Clarice.
No conto “Os laços de família”, as relações familiares são
expostas pela voz de um narrador heterodiegético, que as compõem
por meio da restrição da focalização em Catarina, durante a maior
parte da narrativa, mostrando, subitamente, nos últimos parágrafos, a
consciência de Antônio. Essas peculiaridades da focalização dão ao
texto de Clarice a significação na construção da epifania, em que a
realidade é filtrada pela subjetividade dos indivíduos, fazendo com
que Catarina experimente um momento de revelação do significado
de vida e das relações estabelecidas entre si, o mundo e sua família. O
conto de Moscovich, por sua vez, perde essas peculiaridades da voz
narrativa e restringe a focalização numa única personagem. Por meio
do narrador heterodiegético, o universo familiar de Raquel é narrado
apenas a partir de sua perspectiva. Embora a personagem Raquel
tenha traços temáticos semelhantes aos de Catarina, ela apresenta
características pertinentes à representação do sujeito na
contemporaneidade, como por exemplo: o achatamento do sujeito, o
esvaziamento psicológico, a ausência do tom feminista, acarretando
um distanciamento entre as duas narrativas. Clarice Lispector, inserida
no contexto modernista, constrói a narrativa a partir de uma

- 249 -
concepção literária que se preocupa em representar os devaneios
interiores do sujeito.
Há no conto “Os laços e os nós, os brancos e os azuis”, um
esvaziamento da epifania. O toque entre mãe e filha no táxi, narrado
quase literalmente como no conto de Clarice, não serve para a
revelação do eu, por isso não há epifania, nem mudanças. No desfecho
do conto, Raquel continua a mesma de sempre, fazendo suas compras,
cuidando de sua casa e guardando a camisa do marido:

Em casa, depois de fazer as compras, ocorreu-lhe


que devia guardar as roupas do marido. Foi até o
sofá e, com o mesmo desvelo de quem pega um
bebê, ergueu entre os braços a pilha de camisas.
Aspirou levemente o perfume do sabão em pó, viu
o branco fulguroso de limpeza, os colarinhos, as
dobras, aquilo que lhe exigia empenho de mulher e
de filha. (MOSCOVICH, 2001, p.172).

No conto “Os laços de família”, Catarina rompe com o espaço


privado, que lhe foi imposto, e ganha o espaço público saindo para a
rua com o filho. A epifania, recurso narrativo, marca a emancipação do
sujeito. O esvaziamento do significado da epifania, também, reitera-se
na presença da mosca varejeira azul, contrastando com branco da
camisa, com a ordem da casa. Na última imagem do conto “Os laços e
os nós”, tem-se a permanência da mosca, como se nada tivesse
acontecido. A ruptura de Catarina, que engrandece o conto de Clarice
não se apresenta no conto de Moscovich, acarretando uma
simplificação, em que nada de novo é apresentado, de modo que o

- 250 -
efeito que alcança limita-se à mera imitação do texto que evoca. Talvez
essa retomada da tradição sirva para revestir um tema já conhecido
de traços próprios da contemporaneidade, a qual se ressente de uma
descrença diante do sujeito, que não pode mais se encontrar ou
descobrir os significados da vida.
Em Marcelo Mirisola, o impulso da contracultura reaparece na
postura mal comportada, no palavreado agressivo, na linguagem
coloquial, grotesca, na tomada de ícones da cultura de massa e na
incorporação da violência e da marginalidade no texto literário. O
conto “Rio Pantográfico” apresenta uma estrutura epistolar, em que o
remetente ou o narrador autodiegético é o alter ego do escritor
Marcelo Mirisola e relata para um destinatário de nome Barletta as
suas aventuras sexuais com prostitutas no Rio de Janeiro. Esse
narrador-personagem, do sexo masculino, narra, a partir de um ponto
de vista machista, cafajeste e pervertido, cenas de sexo, nas quais trata
as mulheres como se fossem meros “objetos sexuais”, misturando
violência e sexo. Sobre as mulheres na obra de Mirisola, Damazio
(2002, p. 120) afirma que “[...] há a sensação desconfortável de que
estamos diante de estereótipos, que funcionam muito bem na
publicidade ou no entretenimento de massa, mas é imperdoável num
escritor sério”.
O enredo se estrutura por meio de divagações do narrador, nas
quais se expõem a brutalidade, os reflexos de uma sociedade em crise
e a relação estreita entre literatura e cultura de massa. Segundo Airton

- 251 -
Paschoa (2001, p. 118): “[...] os insultos do narrador, enfim, ao
ordenamento desumano do mundo contemporâneo, convocam sem
dúvida a simpatia de esquerda”. É essa postura de “esquerda”, ou seja,
essa rechaça literal ao bom comportamento e à ética “Ética é uma
coisa que o sujeito [...] cheira, mede, usa, evita e descarta conforme o
prazo de validade [...]”. (MIRISOLA, 2003, p.250), que liga o estilema
de Mirisola à corrente da contracultura, difundida nos anos 70. E
garante à sua obra o caráter “transgressor”, em que estereótipos são
repetidos sem nenhuma postura crítica.
Em Joca Reiners Terron também há a recusa de uma narrativa
linear, do “bem escrever”, o que liga o escritor à vertente
“transgressora” ou “contracultural” da literatura contemporânea. No
conto “Monsieur Xavier no Cabaret Voltaire”, tem-se o enredo em
forma de uma entrevista, na qual o escritor Valêncio Xavier,
atormentado pela loucura está prestando um depoimento para a
polícia federal, mas acha que está dando uma entrevista para um
jornal. O escritor fictício está sendo acusado pela morte de outro
escritor da década de 70, Dalton Trevisan. Nos relatos da entrevista, o
narrador-personagem faz algumas divagações sobre seu suposto
relacionamento com ícones da cultura de massa e das vanguardas
européias, como, por exemplo, Duchamp e Hans Arp.
Essas referências a ícones da literatura “transgressora” vão
além da mera citação, os procedimentos narrativos dos autores que
evocam também se fazem presente na estrutura dos contos de Terron:

- 252 -
a inserção do nonsense, da estrutura de outros gêneros não literários:
a entrevista, a incorporação do “Cabaret Voltaire”, lugar de encontro
dos dadaístas, a retomada das vanguardas, a inserção de imagens,
entre outras, que apontam para uma ausência de significados maiores,
como por exemplo, a elaboração estética ou a denúncia social, a qual
serviu à literatura pós-64 como meio de resistir à censura política.
Segundo Otsuka (2004, p.105), “Sem maiores compromissos com a
denúncia social, os textos se assumem como divertimento para
leitores iniciantes nessa vertente literária”.
Segundo Ventura (2005, p. 241), a loucura incorporada na
literatura “experimental”, também denominada “transgressora”,
servia ao propósito de negar os valores pré-estabelecidos pelo regime
militar: “a loucura se apresenta como forma de resistência contra o
autoritarismo”. E a loucura estabelecida no conto em questão traduz-
se numa necessidade de incorporar esses ícones da contracultura
como forma de mera citação de autores e procedimentos dessa
literatura. Desse modo, a ideia de transgressão, sob a qual se inscreve
a antologia de 2003, se torna esvaziada, por não transgredir ou
contestar a “ordem vigente”, antes se rendendo à lógica do mercado,
e por não instaurar nada de novo ou inovador, apenas repetindo com
exaustão formas e fórmulas já conhecidas e consagradas.
Tânia Pellegrini (2005, p.13) afirma que a transgressão na
literatura contemporânea trata-se apenas de uma “sofisticada
arquitetura narrativa” que não se baseia em práticas concretas de

- 253 -
linguagem, deixando muito a desejar no plano do conteúdo. Ao
contrário do projeto-estético a que serviu a “transgressão” no início
do século XX com as vanguardas modernistas e, depois, como projeto
estético-político de resistência no contexto da ditadura militar, a
transgressão, em tempos de livro como mercadoria e leitor como
consumidor, traduz-se mais como uma estratégia mercadológica. Isso
porque, na contemporaneidade, a idéia de novo e moderno foi
deliberadamente utilizada pelo capitalismo e reduzida a mero
consumo, de modo que se tornou a principal ideologia que sustenta e
tonifica o mercado. A transgressão pressuposta na Geração 90 leva em
consideração um sujeito contemporâneo que não acredita mais em
um futuro melhor, suas perspectivas em direção ao amanhã não
apresenta nenhuma utopia ou ideologia para além da ascensão
econômica, do possuir e do comprar.

Conclusão
Pellegrini (1999, p. 14) discute sobre o simulacro na sociedade
contemporânea:

E hoje, definitivamente – não é mais novidade dizer


-, vivemos num mundo de imagens. Nunca foi tão
forte a sensação de déjà-vu, de já ter estado num
lugar quando lá se chega pela primeira vez. Todas
as paisagens nos parecem visitadas, todas as faces
conhecidas, todos os caminhos trilhados, todas as
histórias contadas e todos os quadros já vistos:

- 254 -
tudo é uma imagem transmitida pela TV ou pelo
computador.

No plano do conteúdo, as antologias convidam o leitor a olhar


a realidade, mas ao contrário do Realismo do século XIX, não se trata
da representação mimética, como no enredo tradicional. Na
contemporaneidade, tem-se a realidade percebida pela
fragmentação, por estilhaços de linguagens e de imagens, pelo
hibridismo de gêneros e de linguagens de outros sistemas semióticos,
por referências e citações mercadológicas, televisivas e da cultura em
geral que por si só significam. O sujeito contemporâneo não pode mais
ser demiurgo, tampouco consegue assumir uma visão ulterior diante
dos fatos que narra. A posição que ocupa é de mero espectador e a
experiência não é colhida da vivência, mas da imagem, passando ao
largo da subjetividade. Anatol Rosenfeld (1979, p. 88) observa as
limitações, às quais o sujeito contemporâneo está submetido, tão
distante do sujeito íntegro de Descartes, representado na literatura do
século XIX: “[...] o indivíduo já não tem a fé renascentista na posição
privilegiada da consciência humana em face do mundo e não acredita
mais na possibilidade de, a partir dela, poder constituir uma realidade
que não seja falsa e ilusionista”. O mesmo autor continua
apresentando os recursos modernos de perceber o mundo e o outro:

A técnica simultânea joga com grandes espaços e


coletivos. Elimina, quase sempre, o centro pessoal
ou a enfocação coerente e sucessiva de uma
personagem central. Os indivíduos – quase

- 255 -
totalmente desindividualizados – são lançados no
turbilhão de uma montagem caótica de monólogos
interiores, notícias de jornal, estatísticas, cartazes
de propaganda, informações políticas e
meteorológicas, itinerários de bonde – montagem
que reproduz, à maneira de rapidíssimos cortes
cinematográficos, o redemoinho da vida
metropolitana. (ROSENFELD, 1979, p. 95).

O desprezo pelo enredo linear, pelo discurso e pela estrutura


da narrativa tradicional, a inserção de reticências, da elipse, do dizer
escamoteado, do relatório e da transcrição fonética podem estar,
talvez, vinculados à rarefação dos sentidos, promovido pelo
bombardeamento de imagens proliferadas pela mídia eletrônica,
dando a impressão de dè-já-vu, em que tudo já foi dito e visto. Há,
imbricado nos procedimentos narrativos, o pressuposto de que o
leitor não precisa mais ter a presença de descrições e de reflexões no
texto literário, porque tem acesso às imagens. Do mesmo modo que o
sensacionalismo jornalístico, o texto literário tem, salvo alguns casos,
reproduzido essa mesma descrença diante do ser humano e da
sociedade. Preocupa-se com a exposição da brutalidade e a
banalização da violência, apenas com objetivo de impactar, sendo que,
em muitos casos, há a repetição de preconceitos e a negação de
valores.
Com a leitura dessas duas antologias, então, foi possível
perceber que o conto na contemporaneidade apresenta
características diferentes daquelas teorizadas por Poe ou Theckov. As

- 256 -
diferenças estruturais do conto contemporâneo estão na incorporação
de gêneros não literários, na inserção de linguagens de outros
sistemas semióticos, na assimilação de técnicas e procedimentos
narrativos próprias dos meios massivos de comunicação. A “unidade
de impressão” de Poe dá lugar à narrativa en abîme, à fragmentação,
à elipse, à divisão em episódios e ao descompasso entre forma e
conteúdo: inovação estética levada ao extremo e repetição exaustiva
do conteúdo nos temas relacionados às cisões socioeconômicas do
país. A brevidade e a intensidade, tão elogiadas tanto por Poe quanto
por Theckov, são substituídas pela miniaturização da narrativa, pela
estrutura lacunar zapeando estilhaços de imagens e pelo nonsense dos
enredos banais.

- 257 -
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- 260 -
Construção da identidade: Confluências e singularidades
em Esse não é o presente que eu pedi (2015) e Meu
irmãozinho me atrapalha (2016)

Vanessa Cassia Sobrinho Quenehen

Os primeiros textos surgidos no Brasil de 1500 obedeciam a


finalidades práticas: informações sobre a terra, o que facilitaria a
exploração colonial, e a dominação religiosa motivada por questões
políticas. Com o passar do tempo a Literatura Brasileira foi obtendo
outras especificidades. Em sua trajetória no mundo:

A história da literatura infantil tem relativamente


poucos capítulos. Começa a delinear-se no início do
século XVIII, quando a criança passa a ser
considerada um ser diferente do adulto, com
necessidades e características próprias, pelo que
deveria distanciar-se da vida dos mais velhos e
receber uma educação especial, que a preparasse
para a vida adulta (CUNHA, 1999, p. 22)

No Brasil, foi no final do século XIX que se deu o aparecimento


dos primeiros livros para crianças publicados por escritores brasileiros.
De acordo com Cunha (1999, p.22), a literatura infantil no Brasil tem
início com obras pedagógicas, adaptações de obras de produções
portuguesas, demonstrando a dependência típica das colônias.
Nesse período, Zilberman (1987) afirma que a faixa etária
correspondente à infância recebe nova valorização, onde a criança é
- 261 -
vista como prioridade no núcleo familiar e seus membros passam a
dividir funções comuns à sociedade da vigente. A autora ressalta que
nesta época mãe e pai tinham papéis bem definidos aos moldes
burgueses. À mãe cabia a responsabilidade da preservação do lar e dos
filhos, dando afeto e alimento, e ao pai, cabia a responsabilidade dos
encargos financeiros.
Neste cenário, Zilberman (1987) coloca o surgimento da
literatura infantil brasileira, repetindo o processo ocorrido na Europa,
em que o texto literário preenchia a função pedagógica e de
contiguidade. Para esta crítica literária, “é o afastamento desta índole,
transmissora de normas e ensinamentos um dos fatores de sua
autonomia e valores artísticos” (ZILBERMAN, 1987, p. 87) – o que, a
princípio, não era observado neste tipo de literatura.
Lajolo (1986, p. 176) afirma que

Nas imagens do Brasil que os livros infantis dos


últimos 20 anos constroem, percebe-se a trajetória
ideológica pela qual a literatura infantil
contemporânea aproxima-se da não-infantil. Os
primeiros livros urbanos dedicaram-se à
reprodução verossímil de cenários; condições de
vida e valores da classe média brasileira que, a
partir do final dos anos 50, iniciava-se em hábitos
de consumo.

O período que Lajolo (1986) se refere o leitor infantil era


influenciado por uma rede de valores provenientes da classe média
brasileira. Até os anos 50, a literatura infantil brasileira era pautada

- 262 -
por cenários rurais, é ao longo dos anos 70 que o urbano brasileiro
passa a ser descrito com menos idealismo.
A literatura infantil brasileira ganhou espaço e voz, atualmente
é composta de um grande acervo híbrido, onde exemplares de caráter
emancipatório coexistem aos de caráter utilitário. Diante deste
cenário, este artigo se propõe analisar duas obras de literatura infantil:
Meu irmãozinho me atrapalha (2006), de Ruth Rocha, e Este não é o
presente que eu pedi! (2015), de Aline Abreu, sob a ótica da Literatura
Comparada, com o intuito de observar o caráter utilitário e
emancipatório de cada uma, bem como os encontros e desencontros
destas duas obras que possuem a mesma temática: o conflito e
construção de identidade do irmão mais velho, com a chegada do
irmão mais novo.
Conforme Carvalhal (1992) a comparação não é um método
específico, mas um procedimento mental que favorece a
generalização ou a diferenciação. Esta comparação se torna um meio
e não um fim.
O surgimento da Literatura Comparada está intimamente
ligado à corrente de pensamento cosmopolita que caracterizou o
século XIX. Nos estudos considerados clássicos desta área
observavam-se duas orientações: “a primeira era a de que a validade
das comparações literárias dependia da existência de um contato real
e comprovado entre autores e obras”; já a segunda “determinava a

- 263 -
definitiva vinculação dos estudos comparados com a perspectiva
histórica”. (CARVALHAL, 1992, p. 13)
A Literatura Comparada traz uma nova concepção de
originalidade, resultado da influência de três tendências: a francesa,
(positivista), a americana (fenomenológica) e a dos países do Leste
Europeu (uma visão dialética entre sociedade e literatura). Segundo
Nitrine (2000, p. 131), “apontar influências sobre um autor é
certamente enfatizar antecedentes criativos da obra de arte e
considerá-la um produto humano, não um objeto”.
Segundo Gardel (1996) todo ponto de encontro gera alguma
reação, este espaço de encontro ele denomina fronteira, ou seja, a
zona limite em que as partes são obrigadas a ceder para a efetivação
do mesmo. Gardel (1996, p. 23 e 24) coloca que essas fronteiras “em
igual proporção devem permanecer íntegras para tornar esse ponto
de encontro mais rico e denso, num movimento de vaivém que supera
opostos, que invade territórios demarcados e que cria a sobrevida do
encontro, nem margem, nem leito, o rio”. Observa-se que, como o
“rio”, a literatura escrita percorre várias facetas da sociedade e dilui-
se em outras perspectivas que nem mesmo o autor possui o real
controle. Porém, essa confluência não é um processo meramente
simples e indolor.
Segundo Sant’Anna (2003, apud CARVALHAL, 2004, p. 32)

[...] é possível compreender que o diálogo entre os


textos não é um processo tranquilo nem pacífico,

- 264 -
pois sendo os textos um espaço onde se inserem
dialeticamente estruturas textuais e extratextuais,
eles são um local de conflito, que cabe aos estudos
comparados investigar numa perspectiva
sistemática de leitura intertextual

Kristeva (1969, p. 146, apud CARVALHAL, 2004, p. 31) afirma


que todo texto é absorção e transformação de outro. Carvalhal (2004)
ainda defende que o processo de escrita é resultado do processo de
leitura de um corpus anterior. Em outras palavras, todo texto sofrerá
influências diretas ou indiretas de tudo que o autor leu. Essas
influências de um texto ao outro serão demonstradas através da
imitação, da paráfrase, cópia literal ou da paródia.
Vê-se nestas duas obras, de mesma editora, a abordagem de
uma única temática, porém a intenção deste artigo não é afirmar que
uma sofreu influência da outra, mas sim, estabelecer relações entre
elas.
Conforme Abdala Júnior (2012, p. 28) expõe, “qualquer texto
literário, devem ser consideradas suas respectivas situações
comunicativas, que envolvem o código literário, e as demais séries
culturais”. Desta forma, é traçada, a seguir, uma breve passagem
biográfica para que se possa ter uma pequena dimensão do lócus
enunciativo de cada autor.
Ruth Machado Lousada Rocha nasceu em 2 de março de 1931
na cidade de São Paulo. Filha do doutor Álvaro e de dona Éster, ouviu
da mãe as primeiras histórias. O avô Ioiô incentivou a neta lendo os

- 265 -
contos clássicos dos irmãos Grimm, de Hans Christian Andersen, de
Charles Perrault. O avô, de sotaque baiano, oralizava as histórias. Mas
foi a leitura de As reinações de Narizinho e Memórias de Emília, de
Monteiro Lobato, que mais influenciou a autora no universo da
literatura. Formada em Ciências Políticas e Sociais pela Escola de
Sociologia e Política de São Paulo, iniciou sua carreira profissional (em
1957) na área da educação, atuando como Orientadora Educacional
do Colégio Rio Branco, função que exerceu durante quinze anos. Em
1970, concluiu a Pós-Graduação em Orientação Educacional na
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da PUC/SP. Seus primeiros
textos publicados foram artigos pedagógicos, somente em 1976 teve
seu primeiro livro publicado que tinha como título: “Palavras, muitas
Palavras”. Lançou em seguida, diversas coletâneas de textos infantis,
a custo baixo, sendo assim acessível. Estas coletâneas eram em sua
maioria subsidiadas pelo governo. Tem uma filha e dois netos, o
Miguel e o Pedro, nomes que emprestam às personagens da obra Meu
irmãozinho me atrapalha (2015). Esta obra, objeto de nosso estudo,
foi ilustrada pelo esposo de Ruth Rocha.
A autora, que é considerada canônica, possui mais de
cinquenta anos dedicados à literatura, tem mais de duzentos títulos
publicados e já foi traduzida para vinte e cinco idiomas. Também
assina a tradução de uma centena de títulos infanto-juvenis, adaptou
a Ilíada e a Odisseia, de Homero, e é coautora de livros didáticos, como
Pessoinhas, juntamente com Anna Flora, e da coleção O Homem e a

- 266 -
Comunicação, em parceria com Otávio Roth. Vencedora de diversos
prêmios, incluindo oito vezes o prêmio Jabuti, em 2008 foi eleita
membro da Academia Paulista de Letras.
Aline Abreu, por sua vez, é autora contemporânea, nascida no
estado do Rio de Janeiro, em Barra do Pirahy, em 1977, mudou-se para
São Paulo – SP aos cinco anos de idade. Filha mais velha de uma família
de dois filhos, cresceu num bairro afastado do centro da cidade onde
ainda pôde ter muito contato com a natureza.
Formada em Artes Visuais pela FAAP (Fundação Armando
Alvares Penteado) e Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC
(Pontifícia Universidade Católica), é autora de sete livros ilustrados.
Como ilustradora, ela trabalhou na criação de livros em parceria com
diversos autores nas editoras Autêntica, Jujuba, Melhoramentos,
Globo, DCL, Planeta, Biruta. Ajuda a coordenar o Espaço das Três,
coletivo que promove cursos de formação e encontros sobre escrita,
ilustração, design e edição de livros. Trabalhou em museu, foi
assistente de artista, trabalhou com design gráfico para internet e
atualmente é escritora e ilustradora de livros.
Em Este não é o presente que eu pedi! (2015) e Meu irmãozinho
me atrapalha (2006) o mesmo tema é exposto: o conflito de
identidade e conquista de espaço do irmão mais velho, até então filho
único, com a chegada do irmãozinho mais novo. Em Este não é o
presente que eu pedi! (2015), de Aline Abreu, nota-se a riqueza das
ilustrações que imitam desenhos infantis, o que tanto aproxima a

- 267 -
linguagem imagética à narrativa poética que retratam uma criança
possivelmente no período de alfabetização. Já em Meu irmãozinho me
atrapalha (2006) as personagens são representadas por tatus, o que
torna a ilustração um tanto inusitada.

Figura 1. (ABREU, 2015, capa) Figura 2. (ROCHA, 2006, capa)

Sandroni e Machado (1986, p. 38) sobre a ilustração afirmam


que “no processo de elaboração da linguagem, antes mesmo que se
exprima por meio de palavras, a criança é sensível às imagens”. Para
estes críticos, a ilustração, através da representação gráfica de uma
ideia, “pode ser um elemento decorativo no livro, pode ser fiel ao

- 268 -
texto, mas pode ir além do texto” (SANDRONI e MACHADO, 1986, p.
38).
Toda essa construção híbrida formada de imagem e texto
escrito é realizada a fim de transmitir uma mensagem. O texto
utilitário irá se apresentar “com personagens modelares com o intuito
de inculcar no leitor, por meio de um discurso afirmativo e de uma
visão adulta, um modelo de conduta a ser seguido”. (CECCANTINI e
PEREIRA, 2008, p. 133). Já o texto emancipatório apresenta-se a partir
de construções bem elaboradas, sem preocupações pedagogizantes,
não inferiorizando o leitor implícito, nem posicionando o narrador
como possuidor da verdade. Cândido (1972) define a literatura como
um texto de função humanizadora, integradora e até mesmo
psicológica e ainda acrescenta que a literatura “não corrompe, nem
edifica, portanto; mas trazendo livremente em si o que chamamos o
bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque
faz viver”. (CÂNDIDO, 1972, p. 806).
Neste sentido, é notório o caráter humanizador das duas obras,
pois ambas levam o leitor a uma imersão no drama vivido por uma
criança com a chegada do irmão mais novo. As narrativas são
ilustradas, o que corrobora para a construção de sentido e
sensibilidade infantis, no entanto, este artigo não se propõe
estabelecer uma análise da linguagem imagética, embora não exclua a
sua importância.

- 269 -
Em Meu irmãozinho me atrapalha (2006), a autora Ruth Rocha
inicia a narrativa com o discurso de um garotinho apresentando o seu
irmão mais novo e, logo no início, nota-se um conflito do menino que
fala que gosta do irmão e, ao mesmo tempo, retoma e usa a expressão
“acho que gosto”. Em seguida, a narrativa em primeira pessoa
descreve o desejo que o garotinho tinha de ter um irmãozinho, algo
tão típico da idade e, logo a seguir, coloca as decepções sofridas por
esse menino que se chama Miguel e que tem um irmãozinho que se
chama Pedro, carinhosamente chamado de “Pedrinho”.
Rocha (2006) se vale de uma linguagem simples, informal, para
representar a fala do menino, utilizando termos como “pra” ao invés
de “para” e “botou” ao invés de “pôs” ou “colocou”, dentre outros
termos.
Para Lajolo (1986, p. 178)
A adesão da literatura infantil contemporânea
ao urbano ainda tem outras consequências:
legitimou literariamente um registro
linguístico bastante mais flexível do que o
padrão de linguagem em vigor nos primeiros
livros brasileiros destinados à infância.
Não foi, no entanto, apenas alterando seus
conteúdos ideológicos que a nova literatura
infantil brasileira mudou seu tom de voz. A
noção de infância também mudou e, com ela,
uma nova imagem de criança – sofrida,
inquieta, crítica, participante – começa a ser
assídua nas histórias.

- 270 -
Nesta mesma época, de acordo com Marisa Lajolo, os
narradores em primeira pessoa se tornam mais comuns, e segundo ela
“assumindo o ponto de vista da criança, renunciam à onisciência”
(LAJOLO, 1986, p. 178). Este recurso aproxima o escritor do leitor, o
que favorece uma maior aceitação e identificação do leitor implícito
da obra.
No livro de Rocha (2006), é contada a história de um garotinho
que solicitava para a mãe um irmãozinho e quando nasce, percebe que
ele é muito pequenininho, sempre vai ser menorzinho, e que desta
forma ele irá o atrapalhar em suas brincadeiras, ao caminhar no
shopping, por ter passinhos curtos, por roubar a atenção da família.
No entanto, um belo dia, ao ficar doente, percebe que também é
querido pela família. A mãe, que representa o cuidado e proteção, não
vai trabalhar para ficar cuidando dele. A tia ficou agradando e o pai
trouxe presentes, e o garotinho descreve que este dia foi bom, em
outras palavras, o que ele mais precisava, não era tanto de cuidados
para curar a doença física, mas sim a necessidade de carinho e
proteção, agora divididos com o irmão mais novo. De acordo com
Bettelheim (2002, p. 19), “tais temas são vivenciados como maravilhas
porque a criança se sente entendida e apreciada bem no fundo de seus
sentimentos, esperanças e ansiedades”.
De acordo com Bettelheim (2002), na citação acima, a
abordagem de temas assim é um convite para que a criança se
identifique com este garotinho e receba esperança, sendo levada a

- 271 -
compreender que também é importante, mesmo com a chegada de
um irmãozinho tão frágil e dependente. Toda essa concepção de
importância e identificação de seu próprio espaço chega ao pico de
nitidez com a avó, que simboliza a experiência, que o pega no colo, faz
carinho, conta história, dá atenção e o coloca no devido lugar: o de
irmão mais velho, que já sabe fazer algumas coisas e que já cresceu
um pouquinho mais. A partir desta aparição da avó, Miguel, a
personagem central, passa a ver as limitações do irmãozinho com
outros olhos e até o defende de um amigo que acaba falando mal do
Pedrinho. A narrativa é terminada com a afirmação categórica de que
Miguel gosta muito do irmão.
Em Este não é o presente que eu pedi! (2015), a escritora
contemporânea, que também é ilustradora do livro, inicia com a
expressão de surpresa “chegou” (Abreu, 2015, p. 5) que daria fim à
longa espera do irmãozinho, vindo da maternidade. No título, a autora
traz uma expressão metafórica. Esse recurso explora a noção de
presente, algo recebido, que normalmente é algo bom, porém o
momento em que a personagem está vivendo, o presente não é visto
de maneira positiva, por se tratar de alguém que veio, aos olhos do
garoto, para decepcioná-lo em muitos aspectos e para atuar em um
período de conflito vivido pelo protagonista da narrativa. Logo em
seguida, o irmão mais velho descreve que o tal presente, que era o
irmãozinho, veio todo embrulhado e com bexiga, demonstrando sua

- 272 -
indignação diante da perda do espaço e a iminente divisão de cuidados
e atenção com o novo ente da família.
O próximo fragmento retrata um garotinho achando tudo
chato e dá início às reflexões acerca do que o irmão mais velho
esperava e o que realmente ele vivencia em sua nova realidade. Abreu
(2015) descreve situações com as quais a personagem precisa se
acostumar a partir de então, tais como: fazer silêncio para não acordar
o irmão, ter que dividir a atenção com o bebê de pé fofinho. É revelada
também a decepção do menino ao perceber que o irmãozinho ainda
não sabe brincar e nem ao menos o conhece ou sabe de seus gostos.
A narrativa é finalizada com o relato do que, para o menino, é a
primeira risadinha do bebê, destinada ao irmão, o que o deixa muito
contente, mesmo ainda num momento de relacionamento tão frágil
entre os dois. A ansiedade também é descrita com a última fala da
personagem que pergunta quando o irmão irá crescer para poder ser
como ele sempre sonhou.
A mente infantil do garoto, nessa obra de Aline Abreu, explora
pensamentos utópicos a respeito de um irmãozinho amigo e
companheiro de aventuras e brincadeiras. Como no fragmento a
seguir:

O presente que eu pedi ia adorar meu rugido.


Esse grita muito e eu não
posso nem falar perto dele
O presente que eu pedi

- 273 -
Ia viajar pra selva comigo.
Com esse só dá pra brincar
De urso-dormindo-no-irverno.
Meio sem graça. (ABREU, 2016, p. 12-15)

Abreu (2015) não cita outros membros da família. Em sua obra,


ela descreve apenas as relações fraternas. Em nenhum momento cita
a relação parental, materna ou paterna. A autora descreve o que para
o menino representa uma indiferença por parte do bebê:

O presente que eu pedi


Ia saber qual é meu
Esconderijo preferido
Esse nem vem me procurar (ABREU, 2015, p.
17)

Já em Rocha (2006), vê-se esse aspecto familiar explorado na


descrição da cena do menino visitando o bebê na maternidade, como
também a visita na casa da avó.
Em uma pesquisa feita por Oliveira e Lopes (2010) através de
um levantamento dos artigos nos principais meios de divulgação de
periódicos de caráter científico, nota-se que, por um tempo, quase não
havia pesquisas sobre a chegada do segundo filho, porém,
recentemente, este assunto vem sendo retomado por pesquisadores
brasileiros no sentido de dar continuidade aos estudos sobre família e
trazer mais compreensão do impacto que uma segunda criança causa
no ambiente familiar, especialmente no primogênito.

- 274 -
A chegada de uma segunda criança acarreta tanto
implicações estruturais e de organização social e
econômica, como emocionais para cada um de
seus membros, especialmente para o primogênito,
uma vez que modifica as trocas afetivas e de
interações familiares (DUNN & KENDRICK, 1980;
KREPPNER et. al., 1982, apud OLIVEIRA; LOPES,
2010, p. 98).

Ruth Rocha, em sua obra Meu irmãozinho me atrapalha (2006),


além de trazer uma abordagem para a criança, traz também uma
significativa reflexão sobre o aspecto familiar, pois descreve como as
ações da família são refletidas na compreensão da própria identidade
do irmão mais velho. Conforme (DESSEN & METTEL, 1984, LEGG et. al.,
1974, apud OLIVEIRA e LOPES, 2010, p. 103)

[...] o padrão de comportamento da criança parece


estar intimamente relacionado ao tratamento e às
experiências que recebe da família, do apoio
materno e das atitudes parentais quanto à
preparação e introdução de alternativas para lidar
com a chegada de um irmão.

Segundo o estudo de Oliveira e Lopes (2010) há consenso na


literatura científica de que ocorrem mudanças e alterações em
diferentes aspectos: entre pai-mãe-filho mais velho, na relação
conjugal, na relação mãe-primogênito, na de pai-primogênito, entre
outros, o que ressalta a importância de se haver livros de literatura
infantil abordando esta temática familiar, por se tratar da formação da
identidade infantil.

- 275 -
Percebe-se que Rocha (2006) e Abreu (2015) trabalham de
forma singular este aspecto tão pertinente na sociedade. Ruth Rocha,
escritora veterana, utiliza-se das representações familiares para
demonstrar como essa autoafirmação na infância pode acontecer. Já
Abreu (2015) que relata fragmentos de sua própria infância, não se
vale deste recurso.
Walter Benjamin (2012) ressalta que o ato de narrar está
relacionado à relevância que este fato terá para o ouvinte/leitor, este
aspecto estará vinculado às suas experiências e vivências de mundo.
Esta interação tem sentido real quando é estabelecida uma relação de
partilha entre narrador/leitor.

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu


num meio de artesão – no campo, no mar e na
cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma
forma artesanal de comunicação. Ela não está
interessada em transmitir o “puro em si” da coisa
narrada como uma informação ou um relatório. Ela
mergulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retirá-la dele. Assim se imprime na
narrativa a marca do narrador, como a mão do
oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 2012, p. 125)

As duas narrativas perpassam o ficcional e corroboram na


construção da identidade infantil. Há muitos “irmãos mais velhos” em
situação conflitante como nestas narrativas. Desta forma, a literatura
assume o seu papel conforme Cândido (1992) esclarece: a literatura
possui um grande poder formador, mas não como querem os grupos

- 276 -
dominantes, não é pelo convencimento, mas ocorre de maneira
natural, através de obras de caráter emancipatório.
As duas narrativas, em primeira pessoa, descrevem um conflito
pessoal, em um cenário urbano, lugar que Lajolo (1986, p. 178) afirma
ser

[...] o espaço onde eclodem conflitos sociais e


individuais, crises e desajustes, é lá também o
espaço privilegiado da produção e consumida
cultura de massa, com a qual a literatura mais
contemporânea (e não só a infantil) guarda não
poucos pontos de contato. A simbiose entre a
literatura e a cultura de massa não afeta apenas
suas formas de produção e circulação, como, no
caso da literatura infantil, sugere a regularidade de
lançamentos, a redundância de temas, a
proliferação de séries que trabalham sempre no
mesmo horizonte de expectativa dos leitores, a
destinação prévia de cada texto a esta ou àquela
faixa etária ou à discussão deste ou daquele tema.

A questão mercadológica, dita temas, como também o modo


de atuação da literatura como um todo. Com a literatura infantil, esta
realidade não é diferente. Tanto Rocha (2006) quanto Aline (2015)
foram publicadas pela mesma editora, vê-se aí a redundância de
temas. Nota-se, no entanto, que cada autora possui o seu modo de
dizer.
Conforme Canclini (2003, p. 350), “As práticas culturais são,
mais que ações, atuações. Representam, simulam as ações sociais,
mas só às vezes operam como uma ação”. Abreu (2015) e Rocha (2006)

- 277 -
trazem em seu bojo uma reflexão de um aspecto comum no seio
familiar. Assim como afirma Adorno (1971, p. 289) “certamente, a
arte, enquanto forma de conhecimento, implica o conhecimento da
realidade e não existe nenhuma realidade que não seja social”. Estas
obras levantam um aspecto social e por meio de seu caráter
emancipatório, humaniza.

- 278 -
Referências

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- 280 -
ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global,
1987.

- 281 -
No encalço do contemporâneo: considerações sobre a
narrativa brasileira das últimas décadas

Marcela Ferreira da Silva

Considerações iniciais

Compor o Quixote no início do século XVII era uma


empresa razoável necessária, quem sabe fatal; nos
princípios do XX, é quase impossível. Não
transcorreram em vão trezentos anos, carregados
de completíssimos fatos. Entre eles, para citar um
apenas: o próprio Quixote. (Borges, 1972)

Na epígrafe supracitada, Jorge Luiz Borges postula uma


concepção de literatura, em que o artefato artístico é tributário de
uma tradição e de um contexto, com os quais dialogam. No conto
“Pierre Menard Autor de Quixote”, Borges ficcionaliza um escritor do
início do século XX que cria, nesse contexto, a mesma obra de Miguel
de Cervantes. Contudo, o Quixote de Menard não encontra o público
tampouco a fama do Quixote de Cervantes.
Nesse sentido, é possível afirmar que o artefato literário
dialoga, nem que seja para negar, com a tradição e com o contexto nos
quais se inserem. Na contemporaneidade, a literatura dialoga com o
contexto e com a tradição por meio da intersecção com outras esferas
da sociedade atual: os meios de comunicação de massa, a linguagem
- 282 -
de outros sistemas semióticos, o mercado e a indústria cultural,
engendrando algumas rupturas em relação às tópicas modernistas,
entre elas, a autonomia da obra de arte, a desestabilização do poeta
enquanto gênio e a arte voltada para si mesma.
Na literatura contemporânea, o que se observa é que ainda
persiste a representação da realidade, entretanto, essa realidade é
percebida pela fragmentação, por estilhaços de linguagens de outros
sistemas semióticos, pela mescla estilística e por referências
mercadológicas, televisiva e da cultura de massa em geral. De modo
que, o olhar da crítica para essa literatura exige que se leve em
consideração o contexto dessa produção, pois os critérios de
canonização modernistas rotulam, a priori, tudo que se produz
contemporaneamente, sendo necessário considerar fatores
extraliterários para a instituição do cânone.

Quase sempre destituída de valores metafísicos e


de significados transcendentes, desposada da
aura que lhe conferia estatuto especializado,
separado do resto da existência, privada de
verdades exteriores a si própria, banalizada, a
obra literária pós-moderna apresenta-se como um
objeto de consumo, entre outros produtos
culturais, tornando inviáveis as poéticas da
modernidade, que propunha uma obra de arte
como modelo de conhecimento privilegiado do
real. (FERNANDES, 2001, p. 00000).

Essa perspectiva crítica, que leva em consideração o contexto


para compreensão do artefato artístico, é defendida, também, por

- 283 -
Antonio Candido (1973) em muitos de seus estudos, sobretudo, em
Literatura e Sociedade. Para entender a produção literária
contemporânea, então, será necessário atentar para questões
extraliterárias e culturais, principalmente, porque não há na literatura
produzida a partir das décadas de 80 e 90 um projeto estético ou
político único, cujos traços possibilitem defini-la sob um rótulo, como
é o caso, da literatura produzida durante a ditadura militar que já é,
consensualmente, denominada “literatura pós-64”.
Com o fim do regime militar, Ítalo Moriconi (2002) observa que
diluiu-se, também, o tom de contestação política que norteava essa
literatura e, a partir da década de 80, o texto literário tem apresentado
variados temas e múltiplos procedimentos narrativos, que, em última
instância, dialogam com o contexto, no qual se insere, ora negando a
“ordem vigente”, ora reproduzindo-a. Diante disso, o adjetivo
“contemporânea” funciona como um termo vazio a ser preenchido a
posteriori pela crítica e pela historia literária.
Como já foi dito, a literatura brasileira, a partir da década de
60, assumiu uma postura engajada, no intuito de denunciar as fraturas
do regime militar. Mas com o fim da ditadura, nas décadas de 80 e 90,
surge uma literatura esmaecida dessa vontade de contestação política.
Tânia Pellegrini (2001) afirma que a literatura contemporânea
estabelece relações intrínsecas com o mercado editorial, com a cultura
de massa e com os meios de comunicação modernos, que exercem,
sobre ela, pressões a que a autora chama de “censura econômica”, um

- 284 -
dado já apontado por Walter Benjamin (1994), na década de 30 do
século XX, em seu ensaio “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”.
Para o filósofo alemão, o artefato artístico possui o valor
ritualístico e a função social de promover reflexão crítica da realidade.
O mercado capitalista, por sua vez, não reconhece esse “valor de
culto” e atribui para a arte o “valor da exposição”, transformando-a
em mercadoria, por meio da reprodução serial, da propaganda e da
“liquidação”, a fim de que alcance as massas e seja consumida por elas.

Fazer as coisas ficarem mais próximas é uma


preocupação tão apaixonada das massas
modernas como sua tendência a superar o caráter
único de todos os fatos através de sua
reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a
necessidade de possuir o objeto, de tão perto
quanto possível, na imagem, ou antes, na sua
cópia, na sua reprodução. (BENJAMIN, 1994, p.
170).

Em outras palavras, as massas não têm conhecimento


suficiente para recolherem-se diante de uma obra de arte, isto é, as
massas são alienadas, porque não recebem educação de qualidade;
porque são manipuladas pelo discurso capitalista de que todos têm
necessidades iguais; e porque são seduzidas pelo consumo de imagens
imediatas, veiculadas pelos meios massivos de comunicação. Assim, o
objetivo das massas, ao procurar uma obra de arte, é simplesmente a
distração e o consumo, resultando dessa atitude, na concepção de

- 285 -
Benjamin, uma função política: a de servir o mercado. Dizer que existe
cultura de massa não quer dizer que haja democratização da cultura
letrada e da educação, nem que as massas sejam produtoras da
cultura que consomem.
Por outro lado, a cultura de massa é um fenômeno social e não
pode ser ignorado, advém do processo de evolução dos meios de
comunicação. Umberto Eco (2004) também discute os fenômenos das
massas. No livro Apocalípticos e Integrados, ele faz uma distinção
entre os dois pólos de intelectuais que pensam a cultura de massa. De
um lado, estão os “apocalípticos” que acreditam na decadência
irrecuperável da cultura e da arte em tempos de comunicação
massiva; e os “integrados” que supervalorizam essa cultura e qualquer
texto que ela produza como arte.
Diante desses dois pólos, Umberto Eco (2004) observa que a
cultura de massa é um fenômeno histórico, constituído social e
politicamente, pelas transformações advindas com os meios de
comunicação e com a mudança nos modos de perceber as massas,
agora consumidoras. Em meio a esses dois extremos, apocalípticos e
integrados, o estudioso alerta para o caráter paradoxal da cultura de
massa.

A situação conhecida como cultura de massa


verifica-se no momento histórico em que as
massas ingressam como protagonista na vida
associada, co-responsável pela coisa pública [...].
Mas, paradoxalmente, o seu modo de divertir-se,

- 286 -
de pensar, de imaginar, não nasce de baixo através
das comunicações de massa, ele lhes é proposto
sob forma de mensagens formuladas segundo o
código da classe hegemônica. Estamos, assim,
ante a singular situação de uma cultura de massa
em cujo âmbito um proletariado consome
modelos culturais burgueses, mantendo-os dentro
de uma expressão autônoma própria. (ECO, 2004,
p. 24).

Dito de outro modo, a partir do surgimento da cultura de massa


e dos meios de comunicação que possibilitaram a sua propagação,
principalmente a televisão, a relação entre cultura e mercado se
tornou estreita, contribuindo para a formação de um sistema de
condicionamentos da cultura, a indústria cultural, na qual as leis de
mercado, inerentes ao capitalismo, determinam o que será produzido
e propagado, levando em consideração a demanda, ou seja, o gosto
do público-consumidor e, por isso, não há nenhuma preocupação em
incorporar uma “consciência ética” e uma “dimensão política”, no
texto literário.
Por outro lado, Eco (2004, p. 26), também, observou que, no
seio da cultura de massa, é possível surgir um juízo crítico, a partir da
reflexão e da consciência em relação aos mecanismos manipuladores
desses discursos dominantes.

Mas algumas observações sobre as reações das


nossas populações sulinas ante o estímulo da
televisão levariam a pensar que, em muitos desses
casos, a reação do telespectador seja, ao
contrário, de tipo ativo e crítico: diante da

- 287 -
revelação de um mundo possível, e ainda não
atual, nasce um movimento de revolta, uma
hipótese operativa, e mesmo um juízo.

Ou seja, como parte de um conjunto social maior, a literatura


recebe influência desse meio, tornando-se produto do mercado para
as massas, mas, por outro lado, pode pensar criticamente esse
contexto, promovendo reflexões. Como é o caso dos contos de
Marcelino Freire, Marcelo Mirisola, André Sant’Anna ou dos romances
de Luiz Ruffato, Patrícia Melo e João Gilberto Noll. Maria Lúcia Outeiro
Fernandes (2001, p. 110), ao analisar o narrador de Roberto
Drummond, postula o papel da ficção na contemporaneidade, a qual
ela chama de pós-moderna:

[...] não é revelar para o leitor o sentido profundo


de sua vida ou de seu universo, mas demonstrar-
lhe o modo e o meio pelos quais ele também
constrói seus mundos, já que a própria vida só
adquire sentido quando transformada em
linguagem. Portanto, não se trata simplesmente
de negar a representação realista, como fez o
modernismo. Mas sim de problematizar as
fronteiras entre o texto e o verdadeiro real.

A literatura, como qualquer arte, consiste na expressão cultural


de um povo, logo, essa configuração que estabelece, desde a pop art
da década de 70, diálogos com outros segmentos sociais – mídias,
mercado, política – pressupõe uma visão de mundo constituída pela
linguagem do sujeito desse meio e, nesse caso, um sujeito que, desde
o advento da televisão, tem percebido o mundo pela imagem e suas

- 288 -
técnicas de montagens, fragmentação, simultaneidade, rapidez e
hiper-realidade. Mas nem sempre isso que dizer que esse sujeito não
tenha juízo crítico sobre o contexto no qual está inserido.
Uma obra de arte que se subordina à lógica mercadológica, ao
gosto de um público-massa e se relaciona com outras esferas da
sociedade desestabiliza a noção de autonomia da obra de arte e de
escritor como intelectual, principais critérios de canonização aplicados
pela crítica literária do século XX.

O cânone e a cultura de massa: a institucionalização da “distinção”


Jonathan Culler (1999, p. 46) afirma que “[...] a literatura não é
senão aquilo que uma dada sociedade trata como literatura: isto é, o
conjunto de textos que os árbitros da cultura – os professores, os
escritores, os críticos, os acadêmicos – reconhecem como
pertencendo à literatura”. Dito de outro modo, há um contexto de
produção da cultura que precisa ser levado em consideração para
definir o que é literatura. Por isso, a opinião dos escritores, a análise
da crítica e da história literárias, o mercado, a cultura de massa e o
texto literário são as fontes mais importantes de observação, para
constituir a literariedade e julgar a literatura contemporânea.
Numa perspectiva diacrônica, a “distinção” que se faz em torno
da produção cultural para conferir-lhe o estatuto de arte consiste
numa prática social do ocidente, remonta à Antiguidade grega. Na
República de Platão, todas as manifestações artísticas foram banidas.

- 289 -
A arte mimética era vista como algo nocivo à sociedade perfeita,
idealizada pelo filósofo. As obras de Aristóteles, por sua vez,
consagraram a literatura no ocidente, a Arte Poética e a Arte Retórica
foram imprescindíveis para a canonização de Homero, Sófocles e
Eurípedes e garantiram a sobrevivência dos mesmos por longos
séculos.
A imitatio, princípio da imitação, perdurou por séculos como
valor fundamental para distinguir o que era arte. Contudo, a partir do
Renascimento e, sobretudo, no Romantismo, a valorização do humano
substitui a imitatio pela criação, princípio da originalidade, valorizando
a autonomia da obra de arte. Hansen (1992, p. 14) explica como essas
aspirações influenciavam a auto-imagem do artista e a concepção do
fazer literário, nos dois momentos e em sociedades diferentes. E
argumenta, também, que os ‘valores’ da obra de arte são atribuídos
de acordo com essas ideologias.

As críticas evidenciam que a noção de autor como


presença é imediatamente anacrônica quando o
efeito de sua representação unitária é assumido e
generalizado, estendendo-se a discursos que não
o enunciam, como na repetição ritual das
“sociedades de discursos” de rapsodos da Grécia
arcaica, nas sociedades pré-colombianas, em
sociedades xamanistas e em outras, que não
pressupõem o indivíduo, a consciência e o
progresso, como a antiga Roma e as inúmeras
tradições latinas produzidas pelas apropriações
dos discursos antigos. É apenas no século XVIII que
surge o autor-presença e a generalização atual da

- 290 -
autoria, como identidade ideal e/ou causalidade
psicologista, é invariavelmente a de esquemas
projetivos muito próximos aos da exegese cristã
que alegava a santidade do Autor quando
pretendia provar o valor de um texto.

Dito de outro modo, surgem essas noções de gênio, de autor-


presença e de poeta como vate, as quais desenvolvem-se junto com a
instauração da Modernidade, estando ligadas, também, à noção de
arte autonomizada, “desvinculada de qualquer instituição”, cujo
criador, que por ter uma posição privilegiada em face do mundo,
consegue ser advogado e condutor da sociedade, como no Realismo;
ou se afastar dessa sociedade, por achar que a arte não pode ser
compreendida por qualquer ser humano, como no Romantismo e no
Simbolismo.
E, em tempos de cultura de massa, a própria produção cultural
tem questionado o principio da originalidade do discurso,
desestabilizando a noção de autor presença e exigindo novos
parâmetros de análise do texto literário. Assim, como se vê, os valores
de canonização se diferenciam de momento para momento e
atualizam-se conforme as transformações sociais. Ou seja, o cânone
consiste em uma leitura do texto literário sob uma noção de ‘valor’,
construída, linguisticamente, num dado momento histórico. Bourdieu
(2007, p. 9), ao pesquisar o julgamento de valor: atividade do cânone,
esclarece que a arte desempenha a função social de legitimar as
diferenças sociais:

- 291 -
Contra a ideologia carismática segundo a qual os
gostos, em matéria de cultura legítima, são
considerados um dom da natureza, a observação
científica mostra que as necessidades culturais
(freqüência dos museus, concertos, exposições,
leituras, etc.) e as preferência em matéria de
literatura, pintura ou música, estão estreitamente
associadas ao nível de instrução (avaliado pelo
diploma ou pelo número de anos de estudo) e
secundariamente, a origem social.

No livro A distinção: crítica social do julgamento do gosto, o


sociólogo francês Pierre Bourdieu, ao analisar o ‘gosto’ pela cultura
erudita em diferentes níveis sociais, comprovou que as preferências e
as diversas práticas culturais não estão relacionadas a um dom ou a
um talento natural de alguns indivíduos, tidos como gênio. Antes, o
julgamento crítico, o amor e o prazer pela arte erudita, o ‘olhar puro’
relacionam-se ao nível de instrução e a origem social e pressupõem
um conhecimento é legitimado e institucionalizado nas universidades
e nos museus.
Nessa perspectiva, esse ‘gosto’ é determinado pela classe
social dominante, que detém o capital escolar. As massas, por sua vez,
não têm acesso à educação de qualidade, pois a escola da sociedade
capitalista forma para o mercado de trabalho, sem se preocupar com
a formação humana. Por isso, ir a um museu, ler um livro, participar
de concertos e apreciar outras práticas culturais tornam-se, para as
massas, atividades sem significados, porque não são compreendidas

- 292 -
por elas. Diante de uma obra de arte, principalmente as modernistas,
como, por exemplo, A fonte de Duchamp, o leitor massa não
apreenderá o significado artístico ou estético. As massas, segundo
Bourdieu (2007), percebem a arte na sua função e não na sua forma,
não tendo conhecimento suficiente para fazer a ‘distinção’ entre um
simples objeto técnico e os objetos de arte.
Partindo das proposições de Bourdieu (2007), a cultura de
massa, por destinar-se às classes subalternas, se caracteriza como uma
cultura ilegítima, uma subcultura, desprovida da disposição estética e
da autonomia. Logo, no texto literário, que tem como destinatário um
público massa, as componentes estéticas serão moldadas ao nível de
compreensão desse público, que apreende a arte na sua
funcionalidade, isto é, as práticas culturais são entendidas como
distração e entretenimento e não como rito.
De modo geral, o conceito de arte é uma invenção, com regras
e normas criadas e reformuladas, historicamente, pela elite intelectual
dominante e com intenções sempre mutáveis. Na Modernidade, a arte
foi definida como tal a partir de sua elaboração estética, culminando
no Modernismo, que supervalorizou o plano da expressão, em
detrimento do plano do conteúdo. Essas prerrogativas podem ser
observadas nos estudos de José Ortega e Gasset, com a
desumanização da arte, e de Hugo Friedrich, com as categorias
negativas da arte, de modo que, para ser arte, é necessário não ter
funcionalidade e ter autonomia.

- 293 -
A autonomia da obra de arte em debate
Luiz Costa Lima (2002) faz um levantamento de que seja “a
questão da autonomia da arte”, a partir de um ponto de vista
histórico-social. O crítico discute que a autonomia, tão valorizada no
século XX, se trata de uma construção lingüístico-ideológica, surgida
no Renascimento, momento em que findou a arte “comissionada pelos
altos dignitários eclesiásticos” (arte feita com a inspeção de clérigos) e
desaparecem os mecenas aristocráticos, substituindo, assim o valor de
imitação pelo de criação e originalidade.
Nesse sentido, arte autonomizada, ou seja, desvinculada de
qualquer instituição surgiu como conseqüência da consolidação da
burguesia, de uma clientela e de um mercado. Segundo Lima (2002, p.
3):

De um ponto de vista histórico-social, a autonomia


da arte significa sua independência de qualquer
instituição; quando a instituição era religiosa,
gerava a arte a serviço do culto; quando política, a
arte que, em última instância, glorificava o
príncipe. [...] a essa transformação social
corresponde ao abandono de modelos
previamente fixados e legitimados das coisas, no
mundo das coisas, ou seja, a renúncia ao modelo
da imitatio; o artista autônomo passa a ser aquele
que prescinde de uma guilda, que, [...] não tem
obrigação de seguir os topoi reconhecidos e
privilegiados.

- 294 -
Eis nesse ponto, o paradoxo da autonomia da arte, na
contemporaneidade: se por um lado, o capitalismo possibilitou a
autonomia da arte, primando pela expressividade e pelo impulso de se
constituir enquanto novidade, o que configurava à arte um valor
simbólico, por outro, o mercado estabelece ‘valor de troca’ para a arte,
a transformando em mercadoria e ajustando-a ao gosto de um leitor
consumidor.
Dessa noção de autonomia da arte, desenvolve-se a ideologia
de arte desreferencializada, distante do eu e, por isso, torna-se, para
a sociedade ocidental, elevada, voltando-se para si mesma e não
exercendo nenhuma função fora de seu âmbito, antes “resulta do
desenvolvimento alotrópico que é a própria arte”. (LIMA, 2002, p. 60).
Dito de outro modo, a obra de arte, que criada por um “gênio”, um
sujeito elevado intelectualmente e ocupante de uma posição em face
do mundo, se constitui como Verdade e existe por si e em si,
independentemente de fatores externos. Esse caráter elevado,
ritualístico, quase divino, construído em torno da arte ao longo dos
séculos, começa a ser questionado no início do século XX, quando
entra em crise a crença na personalidade compacta. Mas, esse caráter
norteou os critérios utilizados pela crítica e pela história literárias,
durante o século XX, para julgar e canonizar a literatura modernista,
perpetuando nas universidades até aos dias atuais.
E, em tempo de cultura de massa e indústria cultural, a relação
entre arte e mercado tornou-se estreita, engendrando, no seio da

- 295 -
crítica, uma nostalgia, que tem proclamado, desde os anos 30 com os
estudos de Benjamin e Adorno, o declínio definitivo da arte. Contudo,
no interior da produção cultural, a partir do início do século passado,
tem-se o começo da desestabilização da imagem do gênio e da
originalidade. A obra de arte não é mais vista como a Verdade,
representação do mundo real. Há uma consciência de que a arte é uma
criação lingüística, um experimento com os mais diversos tipos de
linguagem. É por isso que a poesia modernista deixa de ser mimética
e passa a ser representada pelas categorias negativas (FRIEDRICH,
1991).
A ideologia iluminista do século XVIII de que o homem é um ser
racional e íntegro é abalada com a concepção de fragmentação.
Intelectuais, filósofos e poetas começaram a questionar essa
integridade cartesiana do sujeito e como as relações estabelecidas no
convívio social eram imprescindíveis para a sua constituição. Desses
questionamentos, começaram a entender que o sujeito não era fácil
de ser definido, exatamente porque possuía uma pluralidade de
opiniões e atitudes, muitas vezes, oriundas desse lado desconhecido e
obscuro. Em decorrência disso, o sujeito percebe que sua visão não é
única, nem original e que a arte é arte e não a realidade, perdendo sua
posição privilegiada de gênio e de arte elevada. Segundo Fernandes
(2001, p. 110), os escritores modernistas “passam a acreditar que
devem criar uma outra realidade, autônoma, espécie de duplo da vida

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humana – social ou psicológica – , através do artesanato da linguagem
e da experimentação formal”.
Em contrapartida, a crítica literária moderna legitimou a
produção cultural modernista a posteriori, partindo do princípio da
autonomia do estético e do pressuposto de que a arte se constitui
como forma de resistência à sociedade, ou seja, ela, ainda, leva em
consideração um sujeito gênio, que pode, a partir de uma visão
privilegiada, refletir e pensar a sociedade, criticamente, oferecendo ao
leitor instrumentos de emancipação dessa sociedade, como se a arte
estivesse de fora da esfera social.
No contexto brasileiro, a partir da década de 70, os
movimentos contraculturais, a poesia marginal e a pop art
desestabilizam a valorização do estético, numa tentativa de aproximar
arte e vida, tornando a arte mais cotidiana e rechaçando a inserção
das obras nos museus. A transgressão que alimentava esses
movimentos contestava um sistema político e opressor, mas, também
rompia e questionavam os valores de literariedade valorizados pelo
sistema literário modernista.
Fernandes (2001, p. 110) também observa que os escritores
contemporâneos ou pós-modernos têm questionado essa crença
utópica de que o sujeito seja um gênio dotado dessa capacidade de ser
demiurgo diante da realidade, e, por isso, o escritor não se vê mais
como um intelectual portador de verdades. Qualquer ser humano
normal pode ser escritor e publicar, principalmente, com os meios

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massivos de comunicação. Não precisa mais ser funcionário público ou
acadêmico com uma missão, dada apenas aos gênios.

Já os escritores pós-modernos, em consonância


com teóricos de outras áreas, questionam as
fronteiras entre os mundos criados pela arte e os
mundos criados por outras formas de linguagem,
inclusive o que se imagina ser o mundo real. A
abolição de fronteiras entre a realidade narrada
pela obra e a realidade exterior não repousa
apenas na crença de uma intenção entre elas:
decorre também do questionamento da própria
natureza do que chamamos de mundo real, na
pós-modernidade como uma espécie de ficção,
construída sempre a partir de interesses de grupos
dominantes, por meio de códigos impostos à
sociedade. Códigos que regulam a produção de
significados, organizando a comunicação, a
produção de saber, o comportamento.

Na esteira do que afirma Fernandes, a produção cultural


contemporânea absorve essas reflexões em torno das fronteiras entre
realidade e representação e devolve-as temática e plasticamente,
questionando a possibilidade do representar mimeticamente o real,
pois o que se coloca enquanto real nada mais é a construção discursiva
e, muitas vezes, a imagem da realidade foi forjada para atender
interesses de um grupo dominante.
Nesse sentido, o discurso da História, constituído socialmente
como Verdade absoluta, passa a ser visto pela sociedade
contemporânea como uma versão dos acontecimentos, na qual
perpassou a subjetividade do historiador. E a arte, nesse contexto,

- 298 -
passa a estabelecer relações com outros campos do saber,
questionando a autonomia, a originalidade e os discursos dominantes.
A pluralidade de vozes, olhares e procedimentos narrativos que
recusam um projeto estético unificador seja, talvez, um projeto
ideológico, um Zeigest que quer romper com a imposição do consenso,
um conceito manipulado para atender interesses de alguns grupos.
Essa crise da arte enquanto Verdade e do escritor como gênio
alcança sua plenitude no momento em que os meios de comunicação
modernos, a cultura de massa e a indústria cultural passam a exercer
pressões sobre a produção literária e advém do processo de evolução
das técnicas. No entanto, essa crise foi gestada ao longo do século XX,
quando se modifica, também, o modo de percepção do sujeito, agora
fragmentado com o ilusionismo das imagens. Desse modo, tanto a
postura “apocalíptica” quanto a postura “integrada”, definidas por Eco
(2004), não possuem instrumentos que dêem conta dos novos
conceitos e princípios sob os quais se configuram a arte na
contemporaneidade, sendo necessário analisá-la a partir de outros
critérios, reinventados pela crítica e pela história literárias.

Texto e contexto numa perspectiva dialética de análise da literatura


contemporânea
Julgar, a priori, como inferior a produção cultural, em tempos
de cultura de massa e meios de comunicação modernos, “seria querer
dar como conclusivo o que se põe senão como provisório”. (BARBIERI,

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2003, p. 109). Por outro lado, anunciar, animadamente, que a cultura
de massa produz uma valorização da cultura popular ou a
democratização da produção cultural seria ingenuidade. Nos termos,
já referidos, de Eco (2004), leituras apocalíptica e integrada,
respectivamente. Retomando a crítica do estudioso a essas leituras
extremistas da cultura de massa, os apocalípticos consideram tudo
que a massa produz como não artístico, reduzindo sua reprodução a
um mero produto do mercado. Além disso, acusam as massas de
“reduzir todo produto artístico, até o mais válido, a puro fetiche” e “ao
invés de analisá-lo, caso por caso, para fazer dele emergirem as
características estruturais, nega-o em bloco”. (ECO, 2004, p. 19).
Por outro lado, os integrados, com sua postura ingênua, não
fazem uma leitura crítica da alienação das massas e não
problematizam a passividade e a banalidade, com que, a maioria das
produções da indústria cultural lida com problemas sociais e humanos.
“Para o integrado, não existe o problema de essa cultura sair de baixo
ou vir confeccionada de cima para consumidores indefesos”. (ECO,
2004, p. 11). Diante disso, a literatura contemporânea precisa ser
estudada caso a caso, nem sendo negada em bloco e nem sendo
canonizada a priori. Pois, como afirma Eco (2004, p. 11):

O universo das comunicações de massa é –


reconheçamo-lo ou não – o nosso universo; e se
quisermos falar de valores, as condições objetivas
das comunicações são aquelas fornecidas pela
existência dos jornais, do rádio, da televisão, da

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música reproduzida e reproduzível, das novas
formas de comunicação visual e auditiva.

Nesse sentido, é necessário avaliar dialeticamente a relação


texto e contexto, considerando o modo como essa literatura dialoga
com o mercado, com a cultura de massa e com as novas tecnologias,
absorvendo as influências, mas devolvendo-as plástica e criticamente.
Segundo Fernandes (2001, p. 111):

A literatura não é somente produção. É também


leitura. Os textos literários, por sua vez,
constituem um diálogo do autor com outras
realizações literárias e com o contexto cultural.
Discurso que nasce de outros discursos,
transformação permanente de múltiplos textos, a
literatura relaciona-se, sincrônica e
diacronicamente, com as mais diversas áreas do
saber e diferentes instâncias da sociedade.
Configurando-se como um espaço de interação
entre inúmeras formas da experiência humana,
onde todos os caminhos do conhecimento podem
se entrelaçar, um texto é o ponto onde se
interseccionam a experiência do produtor e do
leitor e do leitor. Experiências carregadas de todo
contexto cultural que os envolve e que não pode
ser olvidado na compreensão crítica de uma obra.

No excerto, a autora conceitua literatura como um discurso, o


autor que, inserido numa dada sociedade e num momento histórico
determinado, absorve as aspirações extraliterárias e as transforma em
material poético. Esse contexto se constitui como um ambiente que
possibilita a produção da cultura. E, na contemporaneidade, em que a

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produção da cultura é pressionada pelos veículos de comunicação em
massa, alguns questionamentos são inevitáveis: quais são os
parâmetros de literariedade que servem para analisar a nova
literatura, já analisar a nova literatura, já que aqueles critérios de
canonização utilizados pela crítica literária, que, desde o
Renascimento, baseia-se em princípios que valorizam a aura, o rito, a
originalidade e a autonomia são limitados para julgar se uma obra
merece ou não ser “eternizada”? Formular uma resposta fechada de
análise da literatura será necessário um distanciamento histórico,
sendo uma tarefa impossível para um único trabalho.
O que se propõe, então, é uma leitura não determinista do
texto sem avaliar, antes de analisá-lo, como bom ou ruim, mas buscar
uma leitura que leve em consideração o contexto de produção, a
postura crítica e a consciência política desse contexto, a concepção de
arte dos escritores, os estudos da crítica e, também, a qualidade
estética da obra dentro desse meio. Segundo Gens (2007, p. 02):

Se a literatura pode ser entrevista como


ordenação, interpretação e articulação de
experiências, cabe-nos, como pensadores do
início do século XXI, a tarefa de reagenciar idéias e
formas. E, com tato e paciência, tentar mapear as
inúmeras voltagens da escrita. Nessa nossa época
de pluralidade, que procura promover o pensar
crítico, há leitores para tudo. Assim como há livros
para gostos diversos. E também críticos
divergentes e complementares.

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Com efeito, então, as fronteiras entre arte e mercado
tornaram-se tão estreitas, que não faz mais sentido falar em
autonomia da obra de arte. Essa noção foi desconstruída dentro da
própria cultura da sociedade de massa e do consumo e não pode mais
ser a única via de análise da literatura contemporânea. Se, como foi
visto, é a sociedade que dita as regras e cria as convenções para dar ao
objeto o estatuto de arte, há de se recriar novas convenções e
incorporar nelas a presença do mercado, dos meios de comunicação
modernos e da cultura de massa, valorizando a postura crítica diante
dessa sociedade.

Considerações finais
Para Bakhtin (1997), a organicidade do romance, por ser um
gênero ainda em construção, imprime em si as acepções de cada
contexto. Ou seja, a narrativa contemporânea, ao contrário do
Realismo do século XIX, não pretende ordenar o caos por meio de uma
linguagem objetiva e descritiva, mas, pretende construir o efeito de
caos, de palimpsesto, problematizando as fronteiras dos gêneros e os
modelos de representação.
Na contemporaneidade, a realidade é percebida pela
fragmentação, por estilhaços de linguagens e imagens, pela mescla
estilística, por referências e citações mercadológicas, televisivas e da
cultura em geral que desestabilizam a concepção de obra de arte
perene. “Assumindo a volubilidade da moda, as oscilações do gosto

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aclimatam a arte no horizonte do provável, e sai de cena a idéia de
obra perene”. (BARBIERI, 2003, p. 57). Na materialidade do texto
ficcional, a literatura contemporânea estabelece relações intrínsecas
com outros segmentos sociais, portanto, imprescindíveis para a
compreensão do mesmo.

- 304 -
Referências

BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética. São Paulo:


EDUNESP, 1997.

BARBIERI, T. Ficção Impura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.

BENJAMIN, W. Paris, capital do século XIX. In: Teoria da literatura em


suas fontes. LIMA, L. C. (Org). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
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BORGES, J, L. Pierre Menard autor de Quixote. In:____. Ficções. São


Paulo: Abril Cultural, 1972.

BOURDIEU, P. Distinção – crítica social do julgamento do gosto. São


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CANDIDO, A. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Nacional,


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CULLER, J. Literariedade. In: ____. Teoria Literária. São Paulo: Becca,


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FERNANDES, M. L. O. O tecedor do vento: o narrador em Roberto


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FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades,


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GASSET, J. O. A desumanização da arte. São Paulo: Cortez, 2005.

GENS, R. Marçal e Marcelino: construções brasileiras contemporâneas.


In: CONGRESSO INTERNACIONAL ABRALIC. 8, 2007. São Paulo. Anais...
São Paulo: USP, 2007, s/p.

- 305 -
HANSEN, J. F. O autor. In: Palavras da crítica. JOBIM, J. L. (Org). Rio:
Imago, 1992. p. 11-37.

LIMA, L. C. A questão autonomia da arte. Palestra proferida no evento


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MORICONI, I. A literatura ainda vale? (literatura e prosa ficcional


brasileira: estados da arte – notas de trabalho) In: CONGRESSO
INTERNACIONAL ABRALIC. 8, 2002. Belo Horizonte. Anais... Belo
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PELLEGRINI, T. Despropósitos - estudos de ficção brasileira


contemporânea. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2008.

- 306 -
Sobre os autores

Ândrea Quilian de Vargas


http://lattes.cnpq.br/6112538992333166
Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), possui graduação em Letras Licenciatura - Habilitação Língua
Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa - pela Universidade Luterana
do Brasil (ULBRA), campus Cachoeira do Sul. Professora nas redes privada e
pública (municipal e estadual) em Cachoeira do Sul e Santa Maria, no período
compreendido entre 1993 e 2011. Mestre em Estudos Literários pela
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Ênfase da pesquisa, no período
de Mestrado, no estudo das manifestações literárias que privilegiam questões
de alteridade em contextos ditatoriais e fragmentados, relação entre história
e literatura, memória e crítica da cultura. O tema do projeto de doutoramento
é a obra do escritor e dramaturgo italiano Luigi Pirandello, sendo destacadas
questões concernentes à antirrepresentação, à ruptura com a mímesis e à
desumanização da arte.

Clarissa Mazon Miranda


http://lattes.cnpq.br/6533515749396635
Possui graduação em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina
(2005), especialização em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas (2009),
mestrado em Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria (2012)
e especialização em Gestão do Conhecimento e o Paradigma Ontopsicológico
(AMF) com dupla titulação em Ontopsicologia pela Universidade Estatal de
São Petersburgo (Rússia), ambas concluídas em 2014. Doutoranda em Letras
pela Universidade Federal de Santa Maria (em andamento). Atualmente é
professora de graduação na disciplina de Formação Empresarial I para a
graduação em Direito da Faculdade Antonio Meneghetti; é Coordenadora
Executiva da Associação OntoArte e Assessora de Imprensa da Antonio
Meneghetti Faculdade. Atua ainda como repórter da revista Performance
Líder. Tem experiência na área de Comunicação e Gestão Cultural, com ênfase
em Comunicação Empresarial; Realização de Projetos Culturais; Produção de
Conteúdo, atuando principalmente nos seguintes temas: comunicação
empresarial, gestão cultural, jornalismo e produção de roteiros.

- 307 -
Claudia Vanessa Bergamini (Organizadora)
http://lattes.cnpq.br/2912524167886364
Doutoranda em Letras - Unesp - Campus Assis, mestre em Letras - Estudos
Literários pela Universidade Estadual de Londrina (2010-2012), Especialista
em Literatura Brasileira pela mesma instituição (2008) e graduada em Letras
Hispano-Portuguesa também pela UEL. Professora de Literatura Brasileira,
Literatura Infanto-Juvenil, Língua Portuguesa, Técnicas de Redação e
Metodologia da Pesquisa. Palestrante na área de Ensino de Língua
Portuguesa, Literatura e Educação. Autora de material didático para o ensino
fundamental e médio, assim como livro teórico para a graduação. Publicou
Código Literário (2008), Nos passos da Literatura (2010), Literatura Brasileira
(2014), além de artigos sobre Língua Portuguesa e Literatura em revistas
acadêmicas. Bolsista CAPES, dedico-me atualmente à produção de minha tese
sobre crônicas publicadas em periódicos por Marques Rebelo.

Kátia Vanessa Tarantini Silvestri


http://lattes.cnpq.br/1544987367343253
Filósofa. Doutora em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos
(2014). Mestre em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (2006).
Licenciatura Plena em Filosofia pela Universidade Metodista de Piracicaba
(2004). Atua principalmente nas seguintes áreas: Ética, Filosofia Política;
Filosofia da linguagem, Estudos linguísticos. Mestrado e tese com eixo crucial
em estudos políticos, ética e sociedade. Nove anos de experiência docente.
Autora de vários artigos e capítulos de livros e periódicos. Pesquisadora do
Grupo de Estudo dos Gêneros do Discurso (GEGE) desde 2005. Participação
em bancas.

Ludmilla Carvalho Fonseca


http://lattes.cnpq.br/1830251952527606
Possui Graduação em Letras - Português/Inglês, pela Universidade Estadual
de Goiás (2007), Mestrado em Literatura e Práticas Sociais, pela Universidade
de Brasília (2010) e, atualmente, é doutoranda em Literatura e Vida Social,
pela Universidade Estadual Paulista, vinculada à Literatura e outras áreas do
conhecimento, estabelecendo relação entre literatura e filosofia.
Recentemente, desenvolve pesquisa de doutorado na área de literatura de
autoria feminina e crítica feminista, atuando, principalmente, nos seguintes
temas: Simone de Beauvoir, Clarice Lispector, feminismo, personagem
feminina e existencialismo.

- 308 -
Marcela Ferreira da Silva (organizadora)
http://lattes.cnpq.br/9188880776394912
Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Goiás (2008), especialista
em Docência do Ensino Superior pela Faculdade de Educação e Cultura do
Brasil (2015), mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal de
Goiás (2013) e doutoranda em Letras e Linguística pela Universidade Federal
de Goiás (2016). Atualmente é efetiva na Secretaria Estadual da Educação de
Goiás como professora de Língua Portuguesa no Colégio Estadual Presidente
Costa e Silva.

Raquel Cristina Ribeiro Pedroso


http://lattes.cnpq.br/2758067236231220
Doutoranda em Letras Literatura e Vida Social pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP Assis-SP. Possui Mestrado em Letras
pela mesma instituição. Desenvolveu projeto de pesquisa (nível de mestrado)
financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo -
FAPESP, intitulado O narrador de Helena de Machado de Assis: ethos
modernizador em matéria literária acanhada, sob orientação da Professora
Doutora Gabriela Kvacek Betella. Graduada em Letras Língua e Literatura
Portuguesa pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM. Tem experiência
na área de Letras, com ênfase em escritas de Machado de Assis, literatura
brasileira e teoria literária.

Sílvio Takeshi Tamura


http://lattes.cnpq.br/2814451067343705
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História - PPGHis, Linha de
Pesquisa: Ensino de História, Patrimônio e Subjetividades, Instituto de
Ciências Humanas e Sociais - ICHS, Universidade Federal de Mato Grosso -
UFMT. Graduado em Comunicação Institucional pela Universidade do Sul de
Santa Catarina - UNISUL. Atualmente dedica-se a pesquisar temas
relacionados à História da Literatura, Teoria Literária, Educação e Literatura,
Comunicação e Literatura, Gênero e Literatura, Literatura e Sociedade.

Vanessa Cassia Sobrinho Quenehen


http://lattes.cnpq.br/6100931898956104
É graduada em Letras com licenciatura em Língua Portuguesa pelo UNASP
(Centro Universitário Adventista de São Paulo). Lecionou Língua Portuguesa
na Escola Estadual Boa Esperança em Curvelândia - MT e Língua Inglesa na
CNEC (Campanha Nacional das Escolas da Comunidade) em Nova Mutum -

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MT. Em 2014 atuou como professora substituta na UNEMAT (Universidade
Estadual do Mato Grosso) de Sinop - MT nas disciplinas de Português
Instrumental para os cursos de Ciências Contábeis e Economia e Introdução
ao Estágio Supervisionado e Estágio Supervisionado de Língua Portuguesa III
para o curso de Letras. Atualmente é mestranda pelo programa de Estudo
Literários (PPGEL/UNEMAT - Campus de Tangará da Serra - MT).

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