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REPENSANDO O CONCEITO DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NA BUSCA DA

MÁXIMA EFETIVIDADE DE SEUS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Leandro Sarai
Procurador do Banco Central do Brasil em São Paulo
Ex-procurador do município de Barueri/SP
Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

RESUMO: Realiza estudo crítico do conceito vigente de administração pública.


Sugere novo conceito com base no método hermenêutico da máxima efetividade das
normas constitucionais. Verifica os reflexos dessa nova definição na aplicação dos
princípios da administração pública.

PALAVRAS-CHAVE: administração pública. Conceito. Princípios da Administração


Pública. Máxima Efetividade das Normas Constitucionais.

ABSTRACT: It studies and criticizes the current concept of the public administration.
It sugests new concept based on the hemeneutic methods of the maximum
effectivity of the constitutional norms. It verifies the reflexes of these new
conceptions on the application of the public administration principles.

KEYWORDS: Public Administration. Concept. Principles of Public Administration.


Maximum Effectivity of the Constitutional Norms.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Conceito corrente de


administração pública; 1.1 Conceito corrente de
servidor público; 2 Análise crítica dos conceitos
apreendidos. Conclusão.

INTRODUÇÃO

A administração pública recebe amplo tratamento na Constituição Federal,


que lhe concede um capítulo inteiro.
Sua adequada conceituação gera repercussão em todo sistema normativo
(BASTOS; BRITTO, 1982, p.13), seja em razão do fato de a Constituição estar no
ápice do ordenamento jurídico (BASTOS; BRITTO, 1982, p.6), seja em razão de sua
alta carga principiológica (BASTOS; BRITTO, 1982, p.65).
Um dos métodos de interpretação prega que se deva buscar o sentido que
garanta maior eficácia às normas constitucionais (BARROSO, 1996, p.267), ainda
que, para isso, seja necessário alterar-lhes o sentido original.
Com base nisso, no presente artigo será estudado inicialmente o conceito de
administração pública que predomina na doutrina.
Como se verá, esse conceito pode ser visto sob o aspecto subjetivo, que
englobaria os órgãos e agentes encarregados da atividade administrativa, bem como
sob o ponto de vista objetivo, relacionado à atividade exercida pela administração
pública.
Daí, foram necessárias algumas palavras sobre os servidores públicos e essa
atividade administrativa.
2

Com essa análise, será demonstrado, com fundamento na máxima efetividade


ou “efetividade ótima” (SILVA, 2005, p.131) das normas constitucionais, como forma
de melhor atingir os objetivos fundamentais da república, que os conceitos correntes
não se mostram adequados a uma incidência ótima dos princípios da administração
pública.

1 CONCEITO CORRENTE DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Inicialmente, é conveniente ressaltar que a expressão “administração pública”


envolve dois sentidos: um, normalmente chamado de subjetivo, orgânico ou formal,
segundo o qual essa expressão compreenderia as pessoas jurídicas, seus órgãos e
agentes que executam a atividade administrativa; outro, conhecido como objetivo,
material, operacional ou funcional, compreendendo a atividade empreendida por
esses últimos (CAETANO,1977, p.25; MEIRELLES,2001, p.59; MELLO, 2008, p.32).
A propósito, JOSÉ CRETELLA JÚNIOR (1966, p.24) leciona:
Adotando-se o critério subjetivo ou orgânico, administração é o
complexo de órgãos aos quais se confiam funções administrativas, é
a soma das ações e manifestações da vontade do Estado, submetidas
à direção do chefe do Estado.
Os autores que se decidem pelo critério objetivo consideram a
administração como a atividade concreta do Estado dirigida à
consecução das necessidades coletivas de modo direto e imediato.
Além dessa separação entre a atividade e os encarregados por sua execução,
há ainda na doutrina a preocupação em mostrar a relação entre a administração
pública e os Poderes constituídos.
Segundo THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, o conceito de
administração pública não abrangeria as atividades típicas do Poder Legislativo e do
Poder Judiciário, ou seja, de legislar e de julgar, conforme se nota em sua definição
(1964, p.51):
Finalmente, quando se fala em administração, devem-se
compreender, a nosso ver, todos os órgãos que executam os serviços
do Estado, excluídos, apenas, os judiciários e legislativos.
A noção merece ser considerada porque ela importa na
integração, no aparelho do Estado, de numerosos serviços apenas
tutelados ou controlados pelo Estado e que integram o seu aparelho
administrativo.
Mas não somente no sentido formal, como conjunto de órgãos
pode ser considerada a administração. Pode também ter um sentido
de atividade, conjunto de tarefas orientadas para a movimentação da
burocracia estatal, em seu sentido mais amplo, compreendendo no
conceito de MERKL todas aquelas que não sejam nem judiciárias nem
legislativas.
Embora THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI admita que a administração
estaria predominantemente no Poder Executivo, ele tenta evitar uma certa confusão
entre a administração e o governo (1964, p.49):
Há, no entanto, uma esfera de atividades que, embora seja da
exclusiva atribuição do poder executivo, órgão por excelência da
administração, não pode ser incluída rigorosamente dentro da
administração propriamente dita: - é o Governo, isto é, a função
política.
O emprego da palavra governo, deve ser feito em sentido
restrito, compreendendo apenas um conjunto de atividades políticas,
ou uma certa maneira de agir, dentro de uma esfera em que o
interesse e a conveniência são preponderantes.
3

Em relação ao critério utilizado acima para conceituar administração, também


conhecido como critério negativo, ou seja, dizer o que não é administração, foram
apontadas críticas por JOSÉ CRETELLA JÚNIOR (1966, pp. 23/4), que a conceitua
como “atividade que o Estado desenvolve, através de atos concretos e executórios,
para a consecução direta, ininterrupta e imediata dos interesses públicos.” (1966,
p.27).
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (2008, pp.35/6), por todos, sintetiza
as funções do Estado, considerando, para tanto, o critério formal como o mais
adequado para tanto:
9. Deveras, o critério adequado para identificar as funções do Estado
é o critério formal, ou seja, aquele que se prende a características
impregnadas pelo próprio Direito à função tal ou qual.
Assim, a função legislativa é a função que o Estado, e somente ele,
exerce por via de normas gerais, normalmente abstratas, que inovam
inicialmente na ordem jurídica, isto é, que se fundam direta e
imediatamente na Constituição.
Função jurisdicional é a função que o Estado, e somente ele, exerce
por via de decisões que resolvem controvérsias com força de “coisa
julgada”, atributo este que corresponde à decisão proferida em
última instância pelo Judiciário e que é predicado desfrutado por
qualquer sentença ou acórdão contra o qual não tenha havido
tempestivo recurso.
Função administrativa é a função que o Estado, ou quem lhe faça as
vezes, exerce na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos
e que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de
ser desempenhada mediante comportamentos infralegais ou,
excepcionalmente, infraconstitucionais, submissos todos a controle
de legalidade pelo Poder Judiciário. (grifos do original)
Para esse autor (2008, p.36), a função administrativa seria exercida
“normalmente pelo Poder Executivo e seus sujeitos auxiliares e, atipicamente, por
órgãos de outros Poderes”.
Essa última posição parece ser a predominante na doutrina, chegando
autores a dizer que as três funções seriam: legislativa, judiciária e administrativa (e
não executiva) (MEDAUAR, 2008, p.45; CARVALHO FILHO, 2008, p.2).
O entendimento de que a administração seria uma das três funções do Estado
não é privativo da doutrina nacional, como se vê em BIELSA (1964, pp.179/80).
Segundo HELY LOPES MEIRELLES, a administração pública teria nítido caráter
subordinado e de mera execução da lei (2001, p.60):
A Administração não pratica atos de governo; pratica, tão-somente,
atos de execução, com maior ou menor autonomia funcional,
segundo a competência do órgão e de seus agentes. São os
chamados atos administrativos ...
Comparativamente, podemos dizer que governo é atividade
política e discricionária; administração é atividade neutra,
normalmente vinculada à lei ou à norma técnica. Governo é conduta
independente; administração é conduta hierarquizada. O Governo
comanda com responsabilidade constitucional e política, mas sem
responsabilidade técnica e legal pela execução. A Administração
executa sem responsabilidade constitucional ou política, mas com
responsabilidade técnica e legal pela execução.
(destaques do original)
REGIS FERNANDES DE OLIVEIRA (2007, p.45), embora aponte a atividade
administrativa, por ele chamada de função administrativa, como subordinada à lei,
admite expedição de decretos fundados diretamente na Constituição:
4

Função administrativa é a atividade exercida pelo Estado ou por


quem faça suas vezes, como parte interessada em relação jurídica
estabelecida sob a lei ou diretamente realizada através de decretos
expedidos por autorização constitucional, para a execução das
finalidades estabelecidas no ordenamento jurídico.
Ainda sobre a definição de administração pública, a lição de LUCIA VALLE
FIGUEIREDO (2006, p. 34):
A função administrativa consiste no dever de o Estado, ou de
quem aja em seu nome, dar cumprimento fiel, no caso concreto, aos
comandos normativos, de maneira geral ou individual, para a
realização dos fins públicos, sob regime prevalecente de direito
público, por meio de atos e comportamentos controláveis
internamente, bem como externamente pelo Legislativo (com o
auxílio dos Tribunais de Contas), atos, estes, revisíveis pelo
Judiciário.
Por último, não se poderia deixar de mencionar SEABRA FAGUNDES (1975,
p.17), para quem, “administrar é aplicar a lei de ofício”.
A administração pública, vista como atividade, é manifestada comumente por
meio dos atos administrativos.
De forma simples, os atos administrativos são o atos jurídicos praticados pela
administração.
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (2008, p.378) o conceitua como
“declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um
concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas,
manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe
dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional”.
Esse autor (MELLO, 2008, p. 377), além de mencionar atos praticados por
particulares em nome da administração (concessionárias de serviço público) aparta o
ato administrativo de outros atos que seriam praticados pela administração, tais
como aqueles regidos pelo direito privado (contrato de aluguel), os atos materiais
(ministério de uma aula, uma cirurgia) e os atos políticos ou de governo.
Verifica-se, portanto, que prevalece na doutrina a noção, segundo a qual: a)
a administração pública seria subordinada aos Poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário; b) ela estaria presente predominantemente no Poder Executivo; e c)
consistiria na simples execução da lei, estando a ela subordinada.
Essa forma de compreender a administração pública repercute nos agentes
que praticam a atividade administrativa, como se vê a seguir.

1.1 CONCEITO VIGENTE DE SERVIDOR PÚBLICO

A partir do momento em que se conceitua administração como algo


subordinado e infralegal, seus agentes, por conseguinte, terão o mesmo nível de
autonomia.
Da mesma forma que não há uma uniformidade na conceituação de
administração pública, também não há a respeito da definição de servidor público.
DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO (2006, p.283), conquanto mencione
o sentido amplo de servidor público, abrangendo “todos os indivíduos que estão a
serviço remunerado das pessoas jurídicas de direito público”, sustenta que, em
sentido estrito, seria “a pessoa física que presta serviços aos entes de direito
público, sujeita a um regime estatutário, o que corresponde à denominação,
anteriormente vigente e de geral aceitação, de funcionário público, assim chamado
em razão da função pública que deveria desempenhar, hoje banida da nomenclatura
constitucional.” (2006, p. 288)
5

Por sua vez, JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO aduz que seriam “todos os
agentes que, exercendo com caráter de permanência uma função pública em
decorrência de relação de trabalho, integram o quadro funcional das pessoas
federativas, das autarquias e das fundações públicas de natureza autárquica” (2008,
p.559).
O que se depreende da compilação dos manuais existentes, é a ausência de
univocidade terminológica, como aponta ODETE MEDAUAR (2008, p.260).
Nota-se a tendência de enquadrar o conceito de servidor público como
espécie de agente público, que, por sua vez, abrangeria, entre outras, a espécie
agente político (CARVALHO FILHO, 2008, p.555/8; MOREIRA NETO, 2006, p.284).
A propósito, alguns trechos das doutrinas administrativas:
Conceito de extensão mais restrita, também usado pela
doutrina, é a de agente público, designativa de todos aqueles que,
servidores públicos ou não, estão legalmente intitulados a exercer,
em nível decisório, uma parcela do poder público, investidos de
competência especificamente definida pela ordem jurídica. Nessa
categoria estão incluídos os Chefes do Poder Executivo, os Ministros
de Estado, os Secretários de Estado e de Município, os membros dos
Poderes Legislativo e Judiciário, os exercentes de funções essenciais
à justiça, os membros de júris e de mesas eleitorais, os dirigentes de
autarquias e paraestatais e todos aqueles que desempenhem funções
públicas de matriz constitucional.
Esta categoria, de agentes públicos, se subdivide em duas
subcategorias: os agentes políticos, que têm investidura em cargos
eletivos, vitalícios, efetivos ou em comissão, de assento
constitucional, e os agentes administrativos, que são todos os demais
intitulados por lei, a exercer uma parcela do poder estatal por outras
formas de investidura.
(MOREIRA NETO, 2006, p.284) (destaques do original)
a) agentes públicos – abrange todos aqueles que mantêm vínculo de
trabalho com os agentes estatais, de qualquer poder. A partir da
Constituição de 1988, tende-se a utilizar a expressão “servidores
públicos” com essa amplitude.
b) agentes políticos – designa, em primeiro lugar, os eleitos por
sufrágio universal, detentores de mandato: Presidente da República,
Governadores, Senadores, Deputados, Prefeitos, Vereadores. Em
segundo lugar, os auxiliares imediatos dos chefes de Executivo:
Ministros de Estado, Secretários de Estado, Secretários Municipais.
[...]
c) servidores públicos – na Constituição Federal de 1988, designa
todas as pessoas físicas que trabalham nos entes estatais, de
qualquer poder, inclusive os detentores de cargos; é o mesmo
sentido da locução “agentes públicos”. Antes da Constituição Federal
de 1988, a doutrina atribuía tal nome àqueles que trabalhavam nos
entes estatais, sem ocupar cargos, por exemplo, os contratados;
(MEDAUAR, 2008, pp.260/1) (destaques do original)
Agente público é toda pessoa física que atua como órgão
estatal, produzindo ou manifestando a vontade do Estado.
[...]
Nesse campo, mais do que em outros, há certas expressões
vocabulares tradicionais. Costuma-se reservar determinadas
expressões para indicar certas categoria de agentes estatais. Essa
terminologia acaba sendo influenciada pelo direito positivo, que se
vale de termos específicos para cada categoria. Para facilitar o início
6

do estudo, pode ser tentada uma sistematização, tal como adiante


exposto:
- agente público: a expressão costuma ser utilizada como
sinônimo de agente estatal, mas algumas vezes apresenta cunho
mais restrito, fazendo referência apenas aos servidores públicos;
- agente político: agente investido de função política, seja em
virtude de mandato eletivo obtido pessoalmente, seja pelo
desempenho de função auxiliar imediata (ministro de Estado etc.);
- agente administrativo: agente investido na função
administrativa, usualmente o servidor civil;
- servidor público: expressão utilizada em acepção ampla, que
costuma ser aplicada para os agentes relacionados com o Estado por
vínculo jurídico de direito público, abrangendo os servidores civil e os
militares;
(JUSTEN FILHO, 2006, pp.579/582) (destaques do original)
Agentes públicos – São todas as pessoas físicas incumbidas,
definitiva ou transitoriamente, do exercício de alguma função estatal.
[...]
Agentes políticos: são os componentes do Governo nos seus
primeiros escalões, investidos em cargos, funções, mandatos ou
comissões, por nomeação, eleição, designação ou delegação para o
exercício de atribuições constitucionais.
[...]
Agentes administrativos: são todos aqueles que se vinculam ao
Estado ou às suas entidades autárquicas e fundacionais por relações
profissionais, sujeitos à hierarquia funcional e ao regime jurídico
determinado pela entidade estatal a que servem.[...]
Os agentes administrativos não são membros de Poder de
Estado, nem o representam, nem exercem atribuições políticas ou
governamentais; são unicamente servidores públicos, com maior ou
menor hierarquia, encargos e responsabilidades profissionais dentro
do órgão ou da entidade a que servem, conforme o cargo, emprego
ou a função em que estejam investidos.
(MEIRELLES, pp. 69/74) (destaques do original)
Para HELY LOPES MEIRELLES, servidores públicos, por ele chamados de
agentes administrativos, seriam os prestadores de serviço à administração, que
tenham prestado concurso público, sejam “exercentes de cargos ou empregos em
comissão titulares de cargo ou emprego público” sejam os “contratados por tempo
determinado” (2001, p. 74).
Sintetizando, o servidor público seria, segundo a maioria dos autores
consultados, o agente subalterno encarregado da atividade administrativa,
manifestando-a por meio dos atos administrativos.

2 ANÁLISE CRÍTICA DOS CONCEITOS APREENDIDOS

Os conceitos devem descrever o direito. Não é o direito que tem que se


amoldar aos conceitos. Não é o objeto que tem que se adequar à ciência que o
estuda (GORDILLO, Augustín. Princípios gerais de direito público. trad. Marco Aurélio
Greco. São Paulo: RT, 1977, p.13. apud SUNDFELD, 1996, p. 125).
Se o estudo do direito deve partir da norma, a Constituição Federal mostra-se
como o primeiro material a ser apreciado.
7

De acordo com a Constituição vigente, pode-se trilhar dois caminhos para a


definição de administração pública.
O primeiro é aquele adotado pela doutrina majoritária, que enquadra a
administração como conjunto de entes subordinados aos Poderes, presente
predominantemente no Executivo, que exerce a atividade infralegal consistente na
prestação material de atendimento ao interesse público, por meio de atos praticados
pelos agentes administrativo.
Essa linha de entendimento pode trazer alguns inconvenientes.
Em primeiro lugar, verifica-se que a Constituição dedicou um Capítulo inteiro
à administração pública, o que é curioso quando se considera que se trata de mero
componente subordinado.
A partir daí, foram descritos os princípios da administração pública, no caput
do art. 371 (BRASIL, 1988).
Na seção II desse capítulo, constam as normas relativas aos servidores
públicos.
Tudo isso está dentro do Título III da Constituição, relativo à “Organização do
Estado” (BRASIL, 1988), local em que não é tratado apenas do Poder Executivo.
Dentro ainda da primeira corrente referida, o termo mais abrangente para
tratar das pessoas exercentes da atividade da administração pública seria “agente
público”, dentro do qual estariam os agentes políticos, os servidores públicos típicos
(ocupantes de cargos públicos), os empregados públicos, os particulares
colaboradores com a administração (requisitados, voluntários, contratados e
concessionários ou permissionários).
Reunindo-se essas ideias, tem-se que a administração pública é subordinada
aos Poderes constitucionais, que são exercidos pelos os agentes políticos.
Administração pública seria conceito que não abrangeria atos políticos, de governo, e
também, com veemência, não abarcaria as leis e as decisões judiciais.
Diante desse conjunto de ideias a que leva o primeiro caminho trilhado,
questiona-se: os atos ditos políticos não passariam pelo crivo dos princípios da
administração pública? Poderiam os agentes políticos criar leis imorais ou os
magistrados proferirem decisões ilegais ou mesmo imorais? Poderiam ser
ineficientes?
Parece que a conclusão a que esse caminho leva é que, de fato, os princípios
da administração pública não seriam aplicáveis aos Poderes, aos agentes políticos e
aos atos típicos de cada Poder, como as leis, as decisões judiciais e os atos políticos.
Mas não tem sentido a previsão constitucional de princípios para a defesa do
administrado em face dos agentes meramente subordinados e a ausência de limites
em relação aos subordinantes, os efetivos exercentes do poder delegado pelo povo,
em relação aos quais mais cautelas deveria haver para proteção em face de abusos.
"Deve o direito ser interpretado inteligentemente não de modo que a ordem
legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões
insubsistentes ou impossíveis." (MAXIMILIANO, 2003, p. 136).
Por isso, mostra-se mais atraente um segundo caminho interpretativo,
segundo o qual a administração pública seria o exercício do poder delegado pelo
povo.
Essa linha de raciocínio inclui no conceito de administração todos os Poderes.

1
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
8

Além da posição dominante, acerca do enquadramento preponderante da


atividade administrativa no Poder Executivo, há interessante entendimento de
OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO (1979, pp. 24/33) para quem a “ação
administrativa” seria composta pela “ação executiva” e pela “ação legislativa”, de
modo que as ações do Estado seriam classificadas em administrativa e jurisdicional.
Menciona esse autor (1979, p.39) que LÉON DUGUIT e MÁRIO MARZAGÃO também
incluíam a ação legislativa dentro da administrativa.
Essa concepção mais abrangente da administração pública não é nova. Aliás,
como refere JOSÉ CRETELLA JÚNIOR (1966, p. 25), há autores para quem
“administração é sinônimo perfeito de governo, compreendendo as três funções
jurídicas do Estado (legislação, justiça e administração)”. (grifo do original).
Daí que a leitura da expressão “a administração pública ... de qualquer dos
Poderes” prevista no art. 37, caput, da Constituição (BRASIL, 1988), em vez de
significar a existência de administração pública abaixo de cada Poder, poderia ser
feita no sentido de que o objeto da administração seriam os Poderes, ou seja, os
Poderes é que seriam administrados.
A administração ou exercício desses poderes, como primeira medida de
defesa do povo, foi repartida em três, conforme art. 2.º da Constituição2 (BRASIL,
1988).
O delineamento das funções básicas de cada Poder está descrito na
Constituição (BRASIL, 1988) nos artigos 48, 49, 50, 51, 52 e 70 (para o Poder
Legislativo), no art. 843 (para o Poder Executivo) e no art. 102, 105, 108, 109, 114
e 124 (para o Poder Judiciário).

2
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário.
3
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: I - nomear e exonerar os Ministros de
Estado; II - exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração
federal; III - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição; IV -
sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel
execução; V - vetar projetos de lei, total ou parcialmente; VI - dispor, mediante decreto, sobre: a)
organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem
criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos; VII -
manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos; VIII - celebrar
tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional; IX - decretar o
estado de defesa e o estado de sítio; X - decretar e executar a intervenção federal; XI - remeter
mensagem e plano de governo ao Congresso Nacional por ocasião da abertura da sessão legislativa,
expondo a situação do País e solicitando as providências que julgar necessárias; XII - conceder indulto
e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei; XIII - exercer o comando
supremo das Forças Armadas, nomear os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica,
promover seus oficiais-generais e nomeá-los para os cargos que lhes são privativos; XIV - nomear,
após aprovação pelo Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais
Superiores, os Governadores de Territórios, o Procurador-Geral da República, o presidente e os
diretores do banco central e outros servidores, quando determinado em lei; XV - nomear, observado o
disposto no art. 73, os Ministros do Tribunal de Contas da União; XVI - nomear os magistrados, nos
casos previstos nesta Constituição, e o Advogado-Geral da União; XVII - nomear membros do Conselho
da República, nos termos do art. 89, VII; XVIII - convocar e presidir o Conselho da República e o
Conselho de Defesa Nacional; XIX - declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo
Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e,
nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional; XX - celebrar a paz,
autorizado ou com o referendo do Congresso Nacional; XXI - conferir condecorações e distinções
honoríficas; XXII - permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras
transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente; XXIII - enviar ao Congresso
Nacional o plano plurianual, o projeto de lei de diretrizes orçamentárias e as propostas de orçamento
previstos nesta Constituição; XXIV - prestar, anualmente, ao Congresso Nacional, dentro de sessenta
dias após a abertura da sessão legislativa, as contas referentes ao exercício anterior; XXV - prover e
extinguir os cargos públicos federais, na forma da lei; XXVI - editar medidas provisórias com força de
lei, nos termos do art. 62; XXVII - exercer outras atribuições previstas nesta Constituição. Parágrafo
único. O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV,
primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da
União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações.
9

Já se parte do pressuposto de que a função típica do Poder Legislativo seja


legislar e de que a do Judiciário seja julgar. Mas o Poder Executivo tem como função
típica executar.
Verifica-se que o Poder Executivo possui funções bem definidas, que o
distinguem dos demais Poderes, funções essas que não são necessariamente aquelas
comumente definidas como administração pública.
As competências materiais descritas na Constituição, como, por exemplo, as
do art. 214 (BRASIL, 1988), são desempenhadas pelo Executivo, quando não forem
atinentes à legislação.
Prosseguindo nessa linha de raciocínio, nenhum agente do Estado,
independentemente de quem seja, incluindo o mais alto dirigente da União Federal
ou do Poder Judiciário ou Legislativo, ficaria fora do alcance dos princípios
constitucionais que regem a administração pública.
Todos seriam considerados servidores públicos, como afirma ODETE
MEDAUAR (2008, pp.260/1).
Essa incidência dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência a todos e principalmente aos mais altos exercentes do poder
delegado pelo povo ensejaria, em tese, maior efetividade para que a República
alcançasse seus objetivos fundamentais traçados no art. 3.º da Constituição Federal 5
(BRASIL, 1988).

4
Art. 21. Compete à União: I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações
internacionais; II - declarar a guerra e celebrar a paz; III - assegurar a defesa nacional; IV - permitir,
nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou
nele permaneçam temporariamente; V - decretar o estado de sítio, o estado de defesa e a intervenção
federal; VI - autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material bélico; VII - emitir moeda; VIII -
administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira,
especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e de previdência privada;
IX - elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento
econômico e social; X - manter o serviço postal e o correio aéreo nacional; XI - explorar, diretamente
ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei,
que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos
institucionais; XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: a) os
serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens; b) os serviços e instalações de energia elétrica e
o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os
potenciais hidroenergéticos; c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária; d) os
serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que
transponham os limites de Estado ou Território; e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e
internacional de passageiros; f) os portos marítimos, fluviais e lacustres; XIII - organizar e manter o
Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios; XIV -
organizar e manter a polícia civil, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal,
bem como prestar assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos, por
meio de fundo próprio; XV - organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e
cartografia de âmbito nacional; XVI - exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões
públicas e de programas de rádio e televisão; XVII - conceder anistia; XVIII - planejar e promover a
defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações; XIX -
instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de
direitos de seu uso; XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação,
saneamento básico e transportes urbanos; XXI - estabelecer princípios e diretrizes para o sistema
nacional de viação; XXII - executar os serviços de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; XXIII
- explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a
pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios
nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições: a) toda atividade nuclear em
território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso
Nacional; b) sob regime de permissão, são autorizadas a comercialização e a utilização de radioisótopos
para a pesquisa e usos médicos, agrícolas e industriais; c) sob regime de permissão, são autorizadas a
produção, comercialização e utilização de radioisótopos de meia-vida igual ou inferior a duas horas; d)
a responsabilidade civil por danos nucleares independe da existência de culpa; XXIV - organizar,
manter e executar a inspeção do trabalho; XXV - estabelecer as áreas e as condições para o exercício
da atividade de garimpagem, em forma associativa.
5
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma
sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a
10

Nessa linha, deve-se ressaltar, a legalidade deve ser tida num sentido mais
amplo, abrangendo o respeito dos atos infralegais pela lei e a observância de todos
os atos estatais para com a Constituição.
A assertiva de que a tese ora apresentada representaria um meio de facilitar
o atingimento dos objetivos constitucionais decorre do fato de que a Constituição,
vista de uma forma sistêmica, apresenta nitidamente a administração pública e o
próprio Estado como meros instrumentos da realização do potencial do ser humano,
notadamente o povo brasileiro.
Levando às últimas consequências a pretensão interpretativa ora exposta,
pode-se afirmar que não só um ato administrativo, mas mesmo uma lei ou uma
decisão judicial não podem ser imorais, secretas (em regra) ou ineficientes
Uma sentença, da mesma forma, não pode ser proferida tendo em vista as
características pessoais de seu destinatário, em suma, não pode ferir o princípio da
impessoalidade.
Todo ato estatal é subordinado à lei e fundamentalmente à Constituição.
Todo agente a serviço do Estado é servo da Constituição e das leis, é seu
servidor, servidor público.
A interpretação aqui adotada conforma-se com o princípio da efetividade das
normas constitucionais (BARROSO, 1996, p.267).
A busca da máxima eficácia constitucional, decorre de princípio básico da
interpretação constitucional, lembrado por CELSO RIBEIRO BASTOS (1990, pp.
99/100):
Um segundo princípio básico de interpretação é o de que na
Constituição não devem existir normas tidas por não jurídicas. Todas
têm de produzir algum efeito. Com mais rigor ainda afirma Jorge
Miranda, citando lição de Thoma: “A uma norma fundamental tem de
ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê” (Manual de direito
constitucional, t. 2, p. 224).
Esse princípio é assim apresentado por INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO (apud
SAIGG, 2010):
Estreitamente vinculado ao princípio da força normativa da
Constituição, em relação ao qual configura um subprincípio, o cânone
hermenêutico-constitucional da máxima efetividade orienta os
aplicadores da Lei Maior para que interpretem as suas normas em
ordem a otimizar-lhes a eficácia, mas sem alterar o seu conteúdo.
De igual modo, veicula um apelo aos realizadores da
Constituição para que em toda situação hermenêutica, sobretudo em
sede de direitos fundamentais, procurem densificar tais direitos,
cujas normas, naturalmente abertas, são predispostas a
interpretações expansivas. Tendo em vista, por outro lado, que em
situações concretas a otimização de qualquer dos direitos
fundamentais, em favor de determinado titular, poderá implicar a
simultânea compressão, ou mesmo o sacrifício, de iguais direitos de
outrem, direitos que constitucionalmente também exigem otimização
– o que, tudo somado, contrariaria a um só tempo os princípios da
unidade da Constituição e da harmonização -, em face disso impõe-
se harmonizar a máxima efetividade com essas e outras regras de
interpretação, assim como se devem conciliar, quando em estado de
conflito, quaisquer bens ou valores protegidos pela Constituição
Não há nenhum motivo para estranhamento com o que se aponta no presente
tópico, já que, ao que tudo indica, até mesmo o Supremo Tribunal Federal já vem

marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem


preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
11

reconhecendo, por exemplo, que mesmo os atos legislativos estão sujeitos aos
princípios da administração pública:
EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO: PRESSUPOSTOS DE
ADMISSIBILIDADE. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO
CONSTITUCIONAL DO DIREITO ADQUIRIDO (ART. 5º, INCISO XXXVI,
DA C.F.). PREQUESTIONAMENTO. AGRAVO. 1. Como salientado na
decisão agravada, o tema constitucional do direito adquirido (art. 5º,
inciso XXXVI, da C.F.) não foi objeto de consideração no acórdão
recorrido, exatamente porque se limitou a aplicar a decisão do Órgão
Especial, que declarara, incidentalmente, a inconstitucionalidade dos
referidos diplomas, mediante provocação da mesma Câmara, neste
mesmo processo. 2. Essa inconstitucionalidade, aliás, foi reconhecida
com base nos artigos 37, "caput" (princípio da moralidade), 202, II,
201 e seguintes da C.F., no princípio da temporariedade dos cargos
eletivos, no da insubmissão dos Vereadores ao Regime Jurídico Único
a que se sujeitam os servidores públicos (art. 39), e no da
incompetência do Município para instituir sistema previdenciário "em
desconformidade com o modelo nacional por ser da competência
privativa da União legislar sobre previdência". 3. Tais fundamentos é
que deveriam ter sido atacados, no Recurso Extraordinário. E não
foram, o que já o inviabiliza (Súmula 283). 4. E, por outro lado, não
poderia alegar violação ao princípio constitucional do direito
adquirido, tema não apreciado pelo Tribunal "a quo", faltando, ao
R.E., nesse ponto, o requisito do prequestionamento (Súmulas 282 e
356). 5. Agravo improvido.
(BRASIL, 2001) (grifo nosso)
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EMENDA
CONSTITUCIONAL N. 35, DE 20 DE DEZEMBRO DE 2006, DA
CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL. ACRÉSCIMO
DO ART. 29-A, CAPUT e §§ 1º, 2º E 3º, DO ATO DAS DISPOSIÇÕES
CONSTITUCIONAIS GERAIS E TRANSITÓRIAS DA CONSTITUIÇÃO
SUL-MATO-GROSSENSE. INSTITUIÇÃO DE SUBSÍDIO MENSAL E
VITALÍCIO AOS EX-GOVERNADORES DAQUELE ESTADO, DE
NATUREZA IDÊNTICA AO PERCEBIDO PELO ATUAL CHEFE DO PODER
EXECUTIVO ESTADUAL. GARANTIA DE PENSÃO AO CÔNJUGE
SUPÉRSTITE, NA METADE DO VALOR PERCEBIDO EM VIDA PELO
TITULAR. 1. Segundo a nova redação acrescentada ao Ato das
Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias da Constituição de
Mato Grosso do Sul, introduzida pela Emenda Constitucional n.
35/2006, os ex-Governadores sul-mato-grossenses que exerceram
mandato integral, em 'caráter permanente', receberiam subsídio
mensal e vitalício, igual ao percebido pelo Governador do Estado.
Previsão de que esse benefício seria transferido ao cônjuge
supérstite, reduzido à metade do valor devido ao titular. 2. No
vigente ordenamento republicano e democrático brasileiro, os cargos
políticos de chefia do Poder Executivo não são exercidos nem
ocupados 'em caráter permanente', por serem os mandatos
temporários e seus ocupantes, transitórios. 3. Conquanto a norma
faça menção ao termo 'benefício', não se tem configurado esse
instituto de direito administrativo e previdenciário, que requer atual e
presente desempenho de cargo público. 4. Afronta o equilíbrio
federativo e os princípios da igualdade, da impessoalidade, da
moralidade pública e da responsabilidade dos gastos públicos (arts.
1º, 5º, caput, 25, § 1º, 37, caput e inc. XIII, 169, § 1º, inc. I e II, e
195, § 5º, da Constituição da República). 5. Precedentes. 6. Ação
direta de inconstitucionalidade julgada procedente para declarar a
inconstitucionalidade do art. 29-A e seus parágrafos do Ato das
Disposições Constitucionais Gerais e Transitórias da Constituição do
Estado de Mato Grosso do Sul.
(BRASIL, 2007)
12

Vale ressaltar que no julgamento do HC n.º 102094MC/SC, citado no


Informativo de jurisprudência do STF n.º 597 (BRASIL, 2010), o Ministro CELSO DE
MELLO utilizou o princípio da proporcionalidade e o princípio da razoabilidade,
decorrente do postulado do devido processo legal em sua dimensão material, para
considerar inconstitucional ato legislativo que cominou pena mais grave para delito
mais leve e puniu mais severamente delito de menor gravidade. Nesse mesmo
julgado, também foi utilizada a teoria do desvio de poder para reconhecer a
invalidade da lei.
Ainda que a Constituição, em sua redação original, não tivesse o sentido que
ora se apresenta à expressão administração pública, a realidade imporia alteração de
seu significado para que se maximizasse a eficácia constitucional como um todo.
CELSO RIBEIRO BASTOS e SAMANTHA MEYER-PFLUG (2005, pp. 145/6)
defendem a alteração do sentido das normas constitucionais para adequá-las à
realidade, fenômeno chamado de “mutação constitucional silenciosa” 6:
A constituição pode ser alterada, precipuamente, de duas
formas: pela edição de uma emenda à constituição ou por meio da
atividade interpretativa. Na primeira via há uma alteração formal do
texto constitucional através de acréscimo, alteração ou supressão de
um determinado dispositivo. Já a interpretação revela-se como um
meio eficaz e moderno de alteração constitucional, sem que para
tanto seja necessário levar-se a efeito qualquer espécie de alteração
no texto da norma jurídica. A interpretação dá vida à letra morta da
norma jurídica, conferindo dinamismo ao sistema normativo.
Mais adiante (BASTOS; MEYER-PFLUG, 2005, p. 161):
Assevera Celso Bastos:
“É certo que mesmo sem haver uma mutação formal da norma
constitucional a sua compreensão muda, em virtude da constante
evolução da sociedade. Mas isso se dá com uma direção precisa, e
não em qualquer sentido. Em outras palavras, não se trata do
produto de uma força incontrolável e desconhecida, que a tudo e a
todos poderá atingir.
“Pelo contrário, diz respeito apenas à interpretação da norma
no momento atual. É dizer, a norma em seu sentido formal,
abstratamente formulada, permanece a mesma, sem sofrer qualquer
tipo de alteração. O que sofre mutação é o sentido atribuído a esta
norma, ou, melhor dizendo, os valores que vão ser agregados a ela é
que não permanecem sempre os mesmos, pois evoluem com o
decorrer do tempo e de sociedade para sociedade. Isso se torna
possível em virtude da generalidade e abstratividade de que são
dotadas as normas jurídicas, e que possibilitam a sua adaptação às
novas realidades fáticas, proporcionando assim dinamismo ao
sistema normativo.”
A respeito da mudança de significado de textos legais, trecho do voto do
Ministro EROS GRAU no julgamento da ADPF 153-DF, publicado no Informativo n.º
594 do STF (BRASIL, 2010), esclarece que ela só se aplica no caso de normas gerais
e abstratas:
5. O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço,
histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera
dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus
textos normativos à realidade e seus conflitos. Mas essa afirmação
aplica-se exclusivamente à interpretação das leis dotadas de
generalidade e abstração, leis que constituem preceito primário, no
sentido de que se impõem por força própria, autônoma. Não àquelas,
designadas leis-medida (Massnahme-gesetze), que disciplinam

6
Expressão cunhada por CANOTILHO, segundo os autores.
13

diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e


concretas, e consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo
especial. No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o
seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi
editada, não a realidade atual.
Assim, a inclusão de todos os agentes e atividades do Estado sob o conceito
de administração pública apresentaria a vantagem de garantir a maior incidência dos
princípios que lhe são próprios.
Isso pode ser admitido, seja partindo da premissa de que tal interpretação
decorre do próprio sentido original da Constituição, seja alterando esse sentido para
adequá-lo à necessidade de se controlar ao máximo os abusos do poder.
Ressalte-se, todavia, que a máxima eficácia não pode atender apenas partes
do texto da constitucional, mas o todo orgânico da Constituição. A lição de CELSO
RIBEIRO BASTOS (1990, p. 99) é esclarecedora a respeito:
É necessário que o intérprete procure as recíprocas implicações
de preceitos e princípios, até chegar a uma vontade unitária na
Constituição. Ele terá de evitar as contradições, antagonismos e
antinomias. As Constituições, compromissórias sobretudo,
apresentam princípios que expressam ideologias diferentes. Se,
portanto, o ponto de vista estritamente lógico, elas podem encerrar
verdadeiras contradições, do ponto de vista jurídico são sem dúvida
passíveis de harmonização desde que se utilizem as técnicas próprias
de direito.
Tendo isso em mente, não se ignora que a alteração do significado de
administração pública implicará a necessidade de revisão de todo sistema normativo,
buscando harmonizar os demais conceitos, tais como ato administrativo e serviço
público, entre outros, empreitada essa que não é comportada nos limites do
presente artigo.

CONCLUSÃO

O conceito vigente de administração pública não se mostra razoável no


atendimento das exigências da otimização da eficácia das normas constitucionais.
Não há sentido em dedicar todo um capítulo da Constituição para tratar da
administração pública, arrolando uma série de princípios a ela aplicáveis, se se
considera que ela seria mera atividade ou conjunto de órgão subordinados a agentes
do Poder.
Com efeito, se preocupação há com a atuação de meros agentes
subordinados, maior razão haverá para limitar a atuação dos agentes mais
poderosos.
Administração pública abrange qualquer sujeito de direito que pratica ato em
nome do Estado. Em razão disso, todo ato assim praticado está sujeito aos princípios
da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
A administração pública não é um conjunto de órgãos e atividades presente
dentro e abaixo de cada Poder, é o exercício do poder delegado pelo povo, incluindo
o Poder Executivo, o Legislativo e o Judiciário, exercício que deve ser subordinado
aos princípios da administração pública.
A adoção dessa linha de entendimento, ainda que signifique modificar o
sentido original da expressão administração pública contida na Constituição, garante
maior alcance aos princípios nela presentes, otimizando sua carga de eficácia.
Se se muda a concepção acerca de um conceito contido na Constituição, é
necessária uma revisão em todo sistema normativo, buscando evitar incongruências.
14

REFERÊNCIAS

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BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 1990.

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