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Vol. 13 | N.

03 | 2014 ISSN 2237-6291

SÓCRATES E A VIDA DIGNA DE SER VIVIDA

José Lourenço Pereira da Silva*

Resumo: O intelectualismo moral socrático centraliza-se na tese da identidade da virtude com


o conhecimento, que é a ciência do bem. A virtude ou ciência do bem é o que garante a vida
boa e feliz. No entanto, como mostrado na Apologia de Sócrates de Platão, a ignorância faz
parte da condição humana; então, para o homem escapar da ignorância e do vícios que
acarreta, Sócrates exortava a dedicar-se ao exame de si mesmo e dos outros como meio para
obter o autoconhecimento necessário para todo progresso moral e intelectual. Ainda que os
seres humanos não consigam atingir o conhecimento moral e a felicidade plena que têm os
deuses, a vida examinada e de busca da virtude, segundo Sócrates, é para qualquer um a mais
digna de ser vivida, pois confere, na medida do humanamente possível, a sabedoria e a
felicidade.

Palavras-chave: Sócrates. Virtude. Conhecimento. Felicidade.

Socrates On Life Worthy Of Living

Abstract: The Socratic moral intelectualism is centered on the thesis of the identity between
virtue and knowledge, which is the science of good. Virtue or science of good guarantees the
good and happy life. However, as shown in the Plato’s Apology of Socrates, ignorance is part
of the human condition; so, for man escaping from ignorance and all of its resultant vices,
Socrates exhorted every one to dedicate to the self-examination and the examination of the
others as a means to achieve the self-knowledge necessary for all moral and intelectual
progress. Although the human beings are not able to achieve the moral knowledge and
complete happiness that the gods have, the examined life and of persuit of virtue, according to
Socrates, is for everyone the most worthy life of living, since it confers on an individual, to
the extent of humanly possible, wisdom and happiness.

Keywords: Socrates. Virtue. Knowledge. Happiness.

Nietzsche ilustra a visão trágica do homem mantida pela sabedoria popular grega,
reproduzindo certa versão do mítico encontro entre Midas e o Sileno:

Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem
conseguir capturá-lo, o sábio Sileno, o companheiro de Dionísio. Quando, por fim,

*
Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. E-mail:
jlourenco38@gmail.com

Revista Litterarius – Faculdade Palotina


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Sócrates e a vida digna de ser vivida
José Lourenço Pereira da Silva

ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e
a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o demônio calava-se; até que,
forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras:
- Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a
dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti
inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o
melhor para ti é logo morrer (NIETZSCHE, 1992).1

Mas então, não valeria a pena viver? Não existiria um modo de vida que fosse digna
de ser vivida? Dentre a multiplicidade de respostas que a questão tem recebido na história
intelectual humana, penso que uma das mais interessantes é aquela do filósofo grego
Sócrates2, que parte de um diagnóstico plausível da condição humana para sugerir uma
espécie de terapia à miséria do homem que soa como um desafio. Ele constata que a
ignorância está no cerne da condição humana, sendo a causa dos piores males de que nossas
almas são suscetíveis; o tratamento consiste em buscar incansavelmente a sabedoria e a
virtude mediante o exame de si mesmo e dos outros, só assim a pessoa será capaz de, 'na
medida do possível', ter uma boa vida e obter o fim de seus desejos, isto é, a felicidade.
Estas ideias e ideais socráticos estão difusos nos Diálogos de Platão. Mas é na
Apologia de Sócrates (doravante Apologia) que elas ganham maior expressão com Sócrates
tentando convencer seus juízes de que a forma de vida que ele levou e por causa da qual, na
velhice, foi trazido ao tribunal, correndo o risco de morrer, era a única vida que valia a pena
viver.

Pode alguém perguntar: “Mas não serás capaz, ó Sócrates, de nos deixar e viver
calado e quieto?” De nada eu convenceria alguns dentre vós mais dificilmente do
que disso. Se vos disser que assim desobedeceria ao deus e, por isso, impossível é a
vida quieta, não me dareis fé, pensando que é ironia; doutro lado, se vos disser que
'para o homem nenhum bem supera o discorrer cada dia sobre a virtude' e outros
temas de que me ouvistes praticar 'quando examinava a mim mesmo e a outros, e
que vida sem exame não é vida digna de um ser humano', acreditareis ainda menos
em minhas palavras. Digo a pura verdade, senhores, mas convencer-vos dela não me
é fácil (Apologia, 37e-38a, 1987).

Convencer os outros de que a melhor forma de vida para o homem é aquela dedicada à

1
Es geht die alte Sage, dass König Midas lange Zeit nach dem weisen S i l e n , dem Begleiter des Dionysus,
im Walde gejagt habe, ohne ihn zu fangen. Als er ihm endlich in die Hände gefallen ist, fragt der König, was für
den Menschen das Allerbeste und Allervorzüglichste sei. Starr und unbeweglich schweigt der Dämon; bis er,
durch den König gezwungen, endlich unter gellem Lachen in diese Worte ausbricht: „Elendes Eintagsgeschlecht,
des Zufalls Kinder und der Mühsal, was zwingst du mich dir zu sagen, was nicht zu hören für dich das
Erspriesslichste ist? Das Allerbeste ist für dich gänzlich unerreichbar: nicht geboren zu sein, nicht zu s e i n ,
n i c h t s zu sein. Das Zweitbeste aber ist für dich — bald zu sterben“.
2
O Sócrates em questão neste artigo é aquele apresentado por Platão.

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busca da verdade, da virtude e do conhecimento, não é tarefa fácil. Sócrates tentou realizá-la,
no contexto da Apologia, aduzindo o testemunho de sua vida, uma vida dedicada
integralmente ao exame de si e dos outros em cumprimento do que ele julgava ter sido uma
missão que a divindade lhe confiara.
Efetivamente, para se defender das acusações que pensavam contra ele, Sócrates
achou devido explicar a opção que tomou pela vida excêntrica devotada à filosofia. Relata os
eventos que sucederam a consulta que seu fervoroso amigo Querefonte fez a sacerdotisa de
Apolo no templo de Delfos. Querefonte perguntou à pítia se havia no mundo alguém mais
sábio que Sócrates. O oráculo respondeu que “nenhum homem era mais sábio.” (21a). A
resposta deixou Sócrates muito intrigado. Refletindo, ele se estimava sábio em nada, nem nas
grandes questões nem nas pequenas. Mas também não admitia que o deus pudesse enganar.
Um sentido oculto haveria no oráculo (como, aliás, é próprio dos óraculos), que era preciso
decifrar. Para desvendar a mensagem, Sócrates alia a introspecção ao debate público e a
confrontação das opiniões dos outros, escolhendo para questionar os homens que na cidade
tinham fama de sábios. Foi em primeiro lugar ter com os políticos. Conversando e
examinando um e outro, Sócrates observou que simplesmente se julgavam sábios, mas não
eram. Daí uma primeira e importante constatação:

Mais sábio do que esse homem eu sou; é bem provável que nenhum de nós saiba
nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei,
tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente
em não supor que saiba o que não sei (21d, 1987)3.

Situação análoga passou-se com os poetas, que embora compusessem obras belas, não
sabiam o que diziam, e mesmo assim se achavam mais sábios do que as outras pessoas. Por
fim, discutindo com os artesãos Sócrates notou que apesar de eles realmente possuírem belos
conhecimentos, nada conheciam do que mais importa saber (ta megistha), e ainda assim, tal
qual os poetas, se julgam conhecedores de tudo. O exame deixou claro a Sócrates: as pessoas
padecem da mais deplorável das ignorâncias: não saber e pensar que sabe. Isso o ajudou a
compreender o significado do oráculo, qual seja, sendo o conhecimento dos homens de pouco
ou nenhum valor quando comparado à onisciência divina, mais sábio entre os mortais é

3
τούτου μὲν τοῦ ἀνθρώπου ἐγὼ σοφώτερός εἰμι: κινδυνεύει μὲν γὰρ ἡμῶν οὐδέτερος οὐδὲν καλὸν
κἀγαθὸν εἰδέναι, ἀλλ᾽ οὗτος μὲν οἴεταί τι εἰδέναι οὐκ εἰδώς, ἐγὼ δέ, ὥσπερ οὖν οὐκ οἶδα, οὐδὲ οἴομαι:
ἔοικα γοῦν τούτου γε σμικρῷ τινι αὐτῷ τούτῳ σοφώτερος εἶναι, ὅτι ἃ μὴ οἶδα οὐδὲ οἴομαι εἰδέναι.

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alguém que, como Sócrates, tem a capacidade de entender que sua sabedoria é insignificante.
Essa compreensão é a “sabedoria humana” (anthropine sophia), a única que Sócrates admitia
possuir, ou seja, nem era a “sabedoria mais que humana” dos sofistas, alegados professores da
virtude, nem “a sabedoria real” dos deuses, mas o autoconhecimento que implica o
reconhecimento da própria ignorância.
Esse saber que não se sabe é o ponto de partida para todo progresso intelectual e
moral. Com efeito, como no Banquete Diotima ensina, só desejamos e buscamos aquilo de
que sentimos falta, no presente ou no futuro. Assim, apenas aspira e procura sabedoria, ou
seja, é filósofo (philosophos, amante da sabedoria), o indivíduo que não é sábio nem
ignorante a ponto de não reconhecer a própria ignorância. Declarando-se ignorante, Sócrates
se assimila ao filósofo do Banquete. Ele aspira e busca a sabedoria porque, entre a ignorância
e a sabedoria, participa de ambas. Não tem o conhecimento pleno pertencente ao deus, mas
também não sofre da ignorância dos presunçosos; consciente de sua falta de conhecimento,
ama saber.
Tamanha devoção de Sócrates à sabedoria se explica pela convicção mais firme que
ele manifestava. Para Sócrates, a salvação de nossas vidas estava no conhecimento e no
império da razão. Em sua concepção, a vida sábia e virtuosa é sinônimo da vida feliz. De fato,
uma tese amplamente reconhecida como socrática é a de que virtude é conhecimento, e que
sem sabedoria não se pode viver bem e ser feliz. As evidências disso estão esparsas nos
diálogos de Platão. No Mênon (87c-89a) Sócrates desenvolve o seguinte raciocínio: se o
conhecimento engloba todos os bens, e a virtude é o que nos faz bons, então a virtude é
conhecimento. Ora, se todas as coisas boas são proveitosas (ophelima), a virtude também será
proveitosa. Efetivamente, se falta conhecimento, mesmo aquelas coisas da vida que
estimamos proveitosas: força, beleza, saúde, riqueza não poderão ser usadas sabiamente, e
assim se tornam perniciosas. Dependentes do conhecimento para se tornarem benéficas
também seriam, conforme Sócrates, as qualidades da alma tais como perspicácia, boa
memória, justiça, coragem e prudência.

[SO.] E, em suma, todas as coisas que a alma empreende e todas as que ela suporta
não é verdade que, se é a compreensão (phronesin) que dirige, levam à felicidade, se
é a incompreensão (aphrosynes), levam ao contrário disso? [MEN.] Parece. [SO.] Se
por conseguinte a virtude é alguma coisa entre as que estão na alma, e se lhe é
necessário ser <algo> proveitoso, é preciso que ela seja compreensão, uma vez
precisamente que todas as coisas referentes à alma, em si mesmas, não são
proveitosas nem nocivas, mas tornam-se proveitosas ou nocivas conforme as

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acompanhe a compreensão ou a incompreensão. Segundo esse argumento, sendo a


virtude certamente proveitosa, é preciso que seja uma certa compreensão. (Mênon,
88c-d, 2001)4.

Considerações similares são repetidas no Eutidemo (278e-282d). Sócrates parte da


proposição universalmente aceita de que cada pessoa deseja viver bem e ser feliz; em seguida,
considera a crença corrente de que muitos bens são meios para este fim, por exemplo, riqueza,
saúde, fama, beleza; igualmente os bens imateriais como a temperança, a justiça, a coragem, a
sabedoria e, por fim, a boa sorte (euthuchia). Agora, para chegar a conclusão que pretende,
introduz como premissa a identidade entre sabedoria e sorte, alegando que “a sabedoria torna
os homens afortunados”, “com sabedoria um indivíduo não poderia cometer erro, mas
necessariamente fazer as coisas certas e ser sortudo” (280a). Assim, de todos os bens citados,
apenas a sabedoria assegura a felicidade, porque não é somente o uso, mas o uso correto,
determinado pelo conhecimento (episteme), que é necessário para tornar a pessoa feliz.
Apenas a prudência e a sabedoria conferem vantagem as nossas posses e ações.
Consequentemente, as coisas popularmente consideradas boas são, para Sócrates, em si
mesmas desprovidas de valor; elas não são boas nem más, mas serão boas se guiadas pela
sabedoria e más se pela ignorância. Destas duas, a sabedoria é a única coisa boa e a ignorância
a má. Por consequência, quem quiser ser feliz deve por todos os meios tentar “se tornar tão
sábio quanto possível”.
A natureza desse conhecimento que é a virtude, que dota de benefício tudo o mais na
vida e que leva à felicidade, essa natureza é díficil de determinar. Também muito disputado é
se Sócrates considerou a virtude como condição necessária e suficiente para a vida boa, ou se
apenas necessária, mas não suficiente, ou se nem uma coisa nem outra. Quanto ao que seja a
virtude, o primeiro ponto a notar é que Sócrates frequentemente usa o termo virtude (areté) no
sentido mais próprio da palavra para um grego, isto é, a excelência na funcionalidade de um
coisa, a capacidade ou poder pelo qual algo ou alguém realiza de maneira ótima sua função
própria (República, 352d-354a.). É claro que Sócrates também toma a palavra virtude em sentido

4
Σωκράτης: οὐκοῦν συλλήβδην πάντα τὰ τῆς ψυχῆς ἐπιχειρήματα καὶ καρτερήματα ἡγουμένης μὲν
φρονήσεως εἰς εὐδαιμονίαν τελευτᾷ, ἀφροσύνης δ᾽ εἰς τοὐναντίον;
Μένων: ἔοικεν.
Σωκράτης:εἰ ἄρα ἀρετὴ τῶν ἐν τῇ ψυχῇ τί ἐστιν καὶ ἀναγκαῖον αὐτῷ ὠφελίμῳ εἶναι, φρόνησιν αὐτὸ δεῖ
εἶναι, ἐπειδήπερ πάντα τὰ κατὰ τὴν ψυχὴν αὐτὰ μὲν καθ᾽ αὑτὰ οὔτε ὠφέλιμα οὔτε βλαβερά ἐστιν,
προσγενομένης δὲ φρονήσεως ἢ ἀφροσύνης βλαβερά τε καὶ ὠφέλιμα γίγνεται. κατὰ δὴ τοῦτον τὸν λόγον
ὠφέλιμόν γε οὖσαν τὴν ἀρετὴν φρόνησιν δεῖ τιν᾽ εἶναι.

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moral, mas o faz dependente daquele primeiro uso. Outro ponto a destacar é o fato de
Sócrates tratar esse conhecimento em termos de uma arte ou conhecimento técnico como
indicam as recorrentes analogias da virtude com as artes. No Eutidemo (281a-b), por exemplo,
apela aos exemplos da carpintaria e da fabricação de utensílios. Como é o conhecimento da
carpintaria que permite uma pessoa o uso correto da madeira e o conhecimento do método
correto que permite um artesão produzir utensílios, assim há o conhecimento mediante o qual
podemos fazer o reto uso de bens como saúde, riqueza ou beleza. Esse conhecimento fornece
aos homens não somente a boa sorte, mas também o viver bem.
A associação entre conhecimento, sorte e a vida bem sucedida requer uma atenção.
Quando Sócrates alega que quem tem sabedoria não precisa de sorte, certamente não estava
propondo que o sábio se torna invunerável às vicissitudes da vida ou que acontecimentos
favoráveis não sejam úteis para sua felicidade. O que sugere é simplesmente haver uma
diferença enorme entre o acerto casual e o êxito resultante da ação deliberada, da qual o
agente tem o conhecimento dos fins e dos meios para sua consecução. Assim, por exemplo,
uma estrutura de madeira eficaz e confiável construída pelo mestre carpinteiro deve ser
resultado não da sorte, mas do conhecimento que o mestre tem da carpintaria, saber em
virtude do qual compreenderá para que serve esta estrutura e que procedimentos adotar para
realizá-la (GÓRGIAS, 503d.). Análoga ideia vale para a virtude, a arte de viver. Como
apropriadamente explicitado por Guthrie, ela é o conhecimento do fim e objetivo da vida
humana, os quais envolvem e transcendem todos os fins parciais e artes individuais como
aquelas que visam a saúde, segurança física, riqueza, poder político, etc. Estas coisas podem
ou não promover a melhor e a mais feliz vida, pois são instrumentos para fins ulteriores, tudo
depende de como são usados. Além disso, a virtude requer o autoconhecimento. Com efeito, a
concepção de definição que Sócrates sustentava era teleológica: conhecer a natureza de uma
coisa é conhecer sua função. Se pudermos entender nossa própria natureza, então, devemos
saber qual é o objetivo certo e natural de nossa vida, e este é o conhecimento que nos traria a
areté que procuramos (GUTHRIE, 1995, p. 459.) .
Considerando que a virtude é a ciência do bem humano, isto é, do fim último de
nossas ações, a felicidade, e dos meios para alcançá-lo, Sócrates se compromete com a ideia
de que a virtude é necessária para o bem viver e a felicidade (embora possa não ser
suficiente). Essa necessidade talvez não trouxesse problema para entender a ética socrática
não fosse a insistência de Sócrates em dizer que ele mesmo não tinha a ciência do bem, e que

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jamais encontrou pessoa que a tivesse. Quer isso dizer, então, que, de acordo com Sócrates,
não haveria esperança de felicidade para espécie humana e, sendo assim, o Sileno estava certo
ao afirmar que o melhor para nós é morrer? Não acredito que tenha sido esse o parecer do
arauto da vida examinada.
Como entendo, Sócrates estava firmemente convencido da existência da ciência do
bem, mas também reconhecia que nossos erros, vícios e contradições eram prova de que
ninguém a possuia. Esta ciência ele põe então como ideal a ser perseguido, ainda que nunca
venha a ser plenamente alcançada por nós. Isso dá sentido a vida de exame que Sócrates
defendia como digna de ser vivida.
Carente do conhecimento moral, sabedoria ou virtude (como aliás todos os seres
humanos), mas consciente dessa falta, ele lançou-se ao árduo esforço educativo, a serviço do
deus em favor do homem, de tentar livrar as pessoas da fonte de todos os vícios: a ignorância
da própria ignorância. Seu modo de filosofar (modus philosophandi) consistia na examinação
(exetazein) de si mesmo e dos outros, exame que realizava por meio da refutação (elenchos)
da aparência de saber. O elenchos socrático visava testar a consistência do sistema de crenças
do interlocutor, na convicção de que, expostas e expurgadas as contradições e falsidades
veladas na alma do interrogado, o caminho ficaria aberto para o aprendizado (Mênon, 84a-d;
Sofista, 230b-d.). Quem se punha a dialogar com Sócrates, logo era levado a prestar contas da
própria vida, e os que se beneficiavam do exame passavam a cuidar melhor de si mesmos
(LAQUES, 187e-188b) . Ao examinar os outros, era também a si mesmo que Sócrates
examinava, pois pelo confronto de opiniões esperava chegar à compreensão mais apropriada
das coisas. Como nota R. Weiss, investigando as opiniões dos outros, Sócrates fortalece suas
próprias opiniões. O que nosso filósofo descobre como resultado do teste dos outros é que
suas próprias opiniões são as únicas que permanecem fixas. Assim, é provável que como
resultado das frequentes refutações, Sócrates se veja justificado em considerar suas crenças
verdadeiras (WEISS, 2006, p. 248.).
O benefício do exame de si mesmo e dos outros é revelar a condição de cada um a
respeito do conhecimento, questão absolutamente fundamental para Sócrates; pois, como
vimos, o bem real (a felicidade) que queremos em toda ação intencionada se atinge por meio
da ciência do bem, que é a virtude. Ainda que não tenhamos essa ciência, a consciência de sua
falta já nos permite avançar na direção desejada, permitindo-nos distanciar da ignorância e
dos vícios que acarreta para nos aproximarmos da sabedoria e da vida boa que assegura.

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Efetivamente, para Sócrates, o humano vive na situação intermediária entre dois modelos de
vida, um mau e um bom. Para afastar-se do paradigma mau, a vida na ignorância, e
aproximar-se do paradigma bom, a vida na sabedoria, Sócrates, de forma quase fanática,
exortava as pessoas a levarem a vida examinada. Examinando-se a si mesmo, ele próprio,
como alega, não alcançou a virtude e felicidade buscadas. Mas chegou a ter certas convicções
e princípios pelos quais valia a pena viver e morrer em defesa, e propalou a prioridade do
cuidado com a alma e seus bens, como a virtude, a verdade e a prudência, que conferiria a
melhor forma de vida disponível aos humanos.
Para concluir, de acordo com Sócrates, o melhor para o homem não é morrer, mas
cada dia conversar sobre a virtude e os bens imateriais da alma. Examinar a si e os outros
justifica uma vida, pois é como alguém pode conhecer-se a si mesmo, conhecimento que é
condição sine qua non para se buscar a virtude, a ciência do bem, e, por consequência, obter
felicidade. Embora nenhum ser humano possa ser sábio e virtuoso como os deuses são, deve
esforçar-se para se tornar tão sábio quanto humanamente possível. Enfim, para que a vida
valha a pena Sócrates ensinou: “conhece-te a ti mesmo”, somente assim os seres humanos
podem em algum medida participar da sabedoria e da virtude que os deuses têm no mais alto
grau.

Referências

Traduções

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