Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO: P
. Essas características se estendem na estrutura do romance Lavoura arcaica (1975), de
Raduan Nassar, L
comparativo entre o texto religioso, o romance e o longa-metragem,
N
literário brasileiro, o exame do filme evidencia, por um lado, desdobramentos
sacros e luzes em chiaroscuro, que traduzem a palavra em audiovisual. Por outro ângulo 328
:
lavrados em sangue. O referencial teórico se fundamenta em Mikhail Bakhtin e Giorgio Agamben,
Silva Junior e Gandara.
PALAVRAS-CHAVE: Filho pródigo. Lavoura arcaica. Cinema literário brasileiro. Tradução coletiva.
ABSTRACT: T ‟ k y
and reconciliation. These characteristics spread over on the novel structure Lavoura Arcaica (1975)
by Raduan Nassar as well as on the homonym movie by Luiz Fernando Carvalho (2001). This article is a
comparative study among the religious text, the novel and the feature film, aiming to analyse the first dialogue
between father and son in a process that results in forgiveness and family tragedy. In the scope of Brazilian
y ‟ k y
and lights in chiaroscuro, which translates the word in audiovisual; on the other hand, it shows the characters
intimate conflicts and their transformations along the way leading to that encounter: return and communion
drawn up in blood. The theoretical referential is founded in Mikhail Bakhtin and Giorgio Agamben, Silva Junior
and Gandara.
KEYWORDS: Prodigal Son. Lavoura arcaica. Brazilian literary cinema. Collective translation.
1
Instituto Federal de Goiás – IFG. Professora de Letras no IFG. Brasília – DF – Brasil. CEP: 71065-330. E-mail:
a.claramagalhaes@gmail.com
2
Universidade de Brasília – UnB. Professor de Literatura Brasileira no Departamento de Literatura da UnB.
Brasília – DF – Brasil. CEP: 70904-110. E-mail: augustorodriguesdr@gmail.com
3
Instituto Federal de Goiás – IFG. Doutorando em Literatura pela Universidade de Brasília. Brasília – DF –
Brasil. CEP: 71070-649. E-mail: gandara21@hotmail.com
Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.
Cheguei a pensar por um instante que eu tinha outrora
semeado em chão batido, em pedregulho, ou ainda num
campo de espinhos. Vamos festejar amanhã aquele que
estava cego e recuperou a vista!
Iohána, Lavoura arcaica (NASSAR, 2014, p.169)
Partidas
– em respondibilidade e
releitura” SILV JR; G ND R 3 54).
Livro e filme ensejam aspectos sagrados do texto bíblico. A ideia de redenção,
discutida por Agamben “ S ” 329
:“
” AGAMBEN, 2015, p. 11). No
desdobramento dialógico efetivado ao longo dos séculos, a parábola cristã do filho pródigo
surge exatamente como uma abertura para o intercâmbio interartes. Na segunda parte do
romance Lavoura arcaica, intitulada “O ” André, o protagonista gauche que nos
lembra o Poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade, faz uma detalhada reflexão
sobre a organização familiar e como ela influenciou nas decisões que o levaram a sair de casa:
Eram esses os nossos lugares à mesa na hora da refeição, ou na hora dos sermões: o
pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de
Rosa, Zuleika e Huda; à esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o
caçula. O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as
raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por
onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida,
um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto; podia-se quem sabe
dizer que a distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do tempo) definia as
duas linhas da família. (NASSAR, 2014, p. 154-155).
Entre o galho da direita e o braço da esquerda, o pai está no centro como um espectro
que observa e valora sua criação. Ele é detentor do conhecimento laboral, dono da terra onde
semeiam, pastor que dissemina a voz divina entre seus membros familiares. O homem
comanda a ordem instaurada nesse universo literário, que é apresentado ao leitor pelas
palavras de André, que ocupa o segundo lugar na mesa à esquerda do pai. Essa distribuição
permite pensar as relações de alteridade e os índices bíblicos numa única imagem: a ceia.
Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.
Aquele situado à direita abriga significados íntimos. Os da esquerda, os gauche, por sua vez,
representam algo a saber, a expandir- “ ” M
de tal mesa literária no cinema, esse elemento que mescla alteridade (BAKHTIN, 2003) e
relações familiares (religiosas) se reestrutura.
No livro, o narrador, distante no tempo, amadurecido, conta sua trajetória desde a
infância, passando por sua partida (desgarrar-se) de casa até a festa em celebração de seu
retorno. Nessa experiência memorialista, passado, presente e futuro se fundem e dão origem
ao tempo dos sentidos. Princípio e fim contam uma espécie de história da eternidade familiar
– repetição da história da eternidade, que o leitor latino-americano conhece dos escritos de
Jorge Luis Bor : “
” BORG S 1999, p. 394).
As palavras que definem o referido galho gauche (esquerdo, sinistro) da família
prenunciam questões íntimas e complexas, a serem confessadas ao longo da narrativa literária
e articuladas em ângulos e atuações fílmicas. Trazemos, pois, a passagem discursiva de André
para ilustrar um dos principais motivos que desencadearam sua fuga de casa para
experimentar os prazeres do tempo, ao tempo de não estar à mesa, sob o jugo do pai. Após
fracasso no amor incestuoso, sentido e concebido com a irmã, André torna-se corpo estranho
“ ” – para se pensar com o Freud do inquietante ensaio
“O ” “
” R UD 969 3
sinistro fizeram com que o rapaz partisse, “ ” desestruturando tácita e
visualmente a ordem familiar. Ordem lavrada na terra, nos corpos, há séculos: na palavra, no
campo, à mesa. Para visualizar o cenário nodal desse ambiente de estranhezas, trazemos a
passagem em imagem fílmica (Fig. 1): 330
Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.
entre André e Pedro na pensão, em seguida aos créditos iniciais. A mesa (note-se, pela
imagem, não se tratar de um banquete festivo) exibe os personagens da história e, ao mesmo
tempo, organiza o cenário para a tragédia final – o filhicídio –, marcada pelo assassinato de
Ana pelo próprio pai. No centro da cena, vemos as costas da figura paterna (Raul Cortez); do
lado esquerdo, temos o galho encabeçado pela mãe (Juliana Carneiro da Cunha) e seguido por
André (Selton Mello), Ana (Simone Spoladore) e Lula (Caio Blat). No galho da direita, estão
Pedro (Leonardo Medeiros) e as irmãs (que não são nomeadas no filme).
A fotografia, dirigida por Walter Carvalho, realça a perspectiva dos contrastes entre
luz e escuridão, via iluminação pelo lampião. O objeto próximo ao galho da direita anuncia a
chama viva da família, ao passo que o lado esquerdo embota-se em perspectiva mais
escurecida. Na cena, a luz é simbólica. Na tradução fílmica, o chiaroscuro constitui-se opção
do diretor de fotografia, reconhecido justamente pelo jogo de luzes e sombras que explora em
suas produções. Não há comida na mesa. Nela, o sermão do pai é o próprio alimento –
reedição da tradição judaico-cristã em que o Verbo é carne e a palavra faz-se semen: “
D ” BÍBLI S L 8
diretor do longa-metragem explica, a visualidade construída na obra tem relação com a
pintura:
você tem toda a pintura tenebrista espanhola, que representa um período próximo à
dominação do Império Árabe na Península Ibérica, com uma grande predominância
dos fundos negros e a presença dos dourados, que também dialogam com
Rembrandt, Van Gogh, Degas, Munch, Millet, Cézane [...] os Cristos de Velázques,
”
(CARVALHO, 2002, p. 101/102).
331
Na imagem, algumas das nuances mais importantes que depreendemos é o jogo dessa
iluminação barroca que surge da evocação ao tenebrismo do século XVII. A alusão ao negro e
ao dourado como marcas dos povos árabes no mediterrâneo, bem como carga de migração de
vozes e religiosidades. Também percebemos ecos de Rembrandt, não por acaso, pintor que
assina o quadro intitulado O retorno do filho pródigo (1666). Tema e forma, mote e
chiaroscuro repetem-se no tom trágico das artes que reeditam a misericordiosa parábola
bíblica. Além disso, na citação, a religião da família revela-se, questão que fica menos
explícita tanto no livro quanto no filme, onde estão fundidos o islamismo, o cristianismo e a
cristandade ibero-brasileira.
O texto de Nassar parecia uma obra intraduzível para a linguagem cinematográfica
devido à sua carga de subjetividade poética e à forma dada à língua e ao tempo. Entretanto,
Carvalho (mais famoso por telenovelas) decidiu traduzir Lavoura arcaica justamente com as
cargas subjetivas e poéticas. O diretor viajou para o Líbano com o objetivo de pesquisar o
universo da família que protagoniza a história, o que incluía a religiosidade praticada por eles
e as relações patriarcais como pilar do cotidiano. A pesquisa rendeu o documentário de
televisão Que teus olhos sejam atendidos (1997) e significa justamente uma espécie de
preparação para a grande arte fictícia na tela. Além de diretor, Carvalho também se ocupou
das funções de narrador (é dele a voice over de André), produtor, roteirista e montador do
longa-metragem. Isso não só rendeu a ele domínio pleno da obra logrando a concepção de um
filme autoral, mas permitiu que ele fosse instância criativa em várias partes do processo
tradutivo. Isso significa dizer que distinguimos o diretor do produtor, o cenógrafo daquele que
pensa a montagem etc.
Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.
“ ”
imagens antes e depois de traduzi- : “ nsão
da arte como uma obra espiritual, que depende das tuas vísceras, da tua alma, das tuas
I ” CARVALHO, 2002, p. 38).
Essa noção visceral e espiritual do realizador nos convida a pensar a arte como algo que
atravessa carne e alma num processo de transformação de alteridades e de reavaliação do
externo e das zonas mais sutis S “ ” – que poderia ser entendida como
centralizadora e monológica, segundo interpretação bakhtiniana – tornou-se potente,
permitindo a criação de uma obra artística que lega herança concreta em nosso cinema.
Recordemos que o filme está inserido num momento em que a sétima arte no país foi
impulsionada, principalmente, pelas transposições de narrativas preconizadas na literatura,
tais como Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, e Abril despedaçado (1975), de Ismail
Kadaré (com filmes estreados em 2002 e 2001, respectivamente).
As antíteses que vimos até agora – luz e escuridão, preto e dourado, vísceras e alma,
livro e filme – nos convidam a pensar o diálogo entre literatura e cinema no campo da
religiosidade. Nosso objetivo consiste em investigar como se dá tal encontro na relação com a
“P ” 5 S L cas, do Novo
Testamento bíblico. Esse exercício comparativo é fulcral por revelar uma das metáforas mais
importantes de/da Lavoura arcaica: o retorno do filho pródigo.
P Mk B k “
para além dos seus limites. Toda interpretação é o correlacionamento de dado texto com
O ” B KHTIN, 2003,
p. 400). Essa ideia ilumina o dialogismo, viés que fica ainda mais explícito neste seguimento:
332
Assim, quando entramos na seara do cinema literário, espaço teórico em que a sétima
arte revela e “
” SILV
JR; GANDARA 2015, p. 394), identificamos interpretações que geram comentários, citações,
imitações. Estes, por sua vez, têm muitos meios e suportes. O livro de Nassar reconstrói
dialogicamente a parábola. Esta imagem é explorada no discurso religioso brasileiro, que no
aspecto barroco de sua carga semântica é assim exposta por Padre Antônio Vieira em 1655,
S S M :“ P ?P S
P ” (VIEIRA, 2015b, p. 381). O pregador trata do encarnado
como aquele que amplia e redimensiona a prodigalidade. Excede a condição de filho
dadivoso. No livro de Nassar, esta prodigalidade também aparece com muita força. O filme,
por sua vez, faz o mesmo exercício, com sua especificidade dialógica e dialogal da sétima
arte. André constituiu a cena, constituiu o sentido familiar e expandiu (prodigiosamente) seu
retorno como redenção.
N “
” SILV JR; G ND R 4 9
Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.
Uma vez que a tradução coletiva “
” SILV JR;
GANDARA, 2015, p. 390), ela congrega múltiplas vozes e uma multiplicidade de ações, essa
ideia da coletividade é mostrada no movimento dos personagens-atores. A câmera, que não
vemos, promove o resultado final do filme. Sua projeção nas diversas quintas paredes (telas
de cinema, celulares, computadores) compõe-se de várias etapas na concepção da obra. A
encenação abriga direção, iluminação, figurino, etc. A montagem articula-se e articula trilha
sonora, exposição, fotografia e outras artes.
A contemplação estética e o ato respondível estão conjugados na unidade concreta do
filme. É fundamental termos em vista que todos os elementos e pessoas reverberam – ou
reiluminam, para ficarmos com Gadamer (1999) – na contemplação e no resultado artísticos.
A trilha sonora é uma reação musical. A fotografia faz-se respondível às cores e às luzes. A
sonoplastia delineia-se ao som do mundo no mundo cinêmico (SILVA JR; GANDARA,
2013b, p. 84). Visto por esse viés, a Lavoura arcaica fílmica desdobra o excedente de visão
do literário na tela. Determina certas esferas de nossas atividades excepcionais. Para ficar,
B k “O : ”
Estética da criação verbal, entende-se que os atos internos e externos podem ser infinitamente
heterogêneos porque dependem da heterogeneidade infinita das situações vitais (BAKHTIN,
2003, p. 44-56).@ passagem pro fim
Expusemos algumas bases das tentativas mais essenciais de definir as peculiaridades
fundamentais da relação entre o livro Lavoura Arcaica e sua tradução coletiva. Feito o
preâmbulo teórico e crítico, passemos à análise comparativa entre a parábola, o livro de
Nassar e o filme de Carvalho. Nos debruçaremos sobre o texto bíblico para chegarmos ao
literário e como este se faz tela e habita o cinema nacional. Por seu turno, também nos 333
concentramos em analisar a composição das cenas do primeiro diálogo após o retorno de
André à casa, a morte de sua irmã e o conflito entre a redenção e a criação.
Retornos
„ V -me embora, procurar o meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra o Céu e
contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus
‟ P
Ele estava ainda ao longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e
lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos. O filho, então, disse- : „P
; ‟ M
: „I -o com ela,
ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o novilho cevado e matai-o;
comamos e festejemos, pois este meu filho estava morto e tornou a viver; estava
perdido e foi encontrado! E começaram a festejar. (BÍBLIA, 1995, Evangelho
segundo São Lucas, 15, 18-24).
Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.
Na passagem, encontram-se as figuras do Pai e do Filho em retorno. Não há
questionamentos sobre as atitudes do rapaz, pelo contrário há a festividade, como resultado do
“ ” É
renascimento dos dois e uma nova oportunidade para os laços serem refeitos. Os diálogos são
econômicos, como pede o gênero, mas conseguem passar a mensagem de perdão e
reconhecimento que proporcionam a expiação de ambos. Entre a chegada do filho e a festa,
não há informações. É justamente esse hiato que Raduan Nassar propõe desenvolver em seu
romance.
Em Lavoura arcaica, Pedro, o irmão mais velho e mais próximo do patriarca, a pedido
da Mãe, vai à procura dele. É a partir do encontro entre André e Pedro (não por acaso estes
nomes evangélicos reverberam dialogicamente no livro) numa pensão que o retorno é
negociado. As motivações da fuga são explicadas à família e os caminhos para o retorno são
abertos. A recuperação da ovelha é articulada pelo lado direito do pai. Ao chegar em casa e
tomar um banho, o rapaz se encontra com o progenitor.
Em um dos poucos momentos em que aparece o sinal de travessão, ou seja, a obra sai
do horizonte prosaico e ganha marcas teatrais, aproxima-se do trágico e da tragédia
tradicional. Abaixo, temos o início do diálogo entre os dois e aproximação dialógica com o
texto bíblico:
– Meu coração está apertado de ver tantas marcas no teu rosto, meu filho; essa é a
colheita de quem abandona a casa por uma vida pródiga.
– A prodigalidade também existia em nossa casa.
– Como, meu filho? 334
– A prodigalidade sempre existiu em nossa mesa.
– Nossa mesa é comedida, é austera, não existe desperdício nela, salvo nos dias de
festa.
(NASSAR, 2014, p. 156).
Iohána afirma que o filho fez a colheita daquilo que semeou ao sair de casa, enquanto
André afirma que sua prodigalidade é um reflexo do que fora plantado pela própria família.
São duas opiniões antagônicas que expõem visões de mundo e conflitos íntimos. A rebeldia
do jovem e a mesa austera do pai anunciam a tese de uma ruptura. Conforme afirmam
Reichmann e Pelissinari (2007, p. 33) “ B „P ‟
Talmude, da mitologia greco-romana possibilitam a Nassar descontruir elementos
fundamentais da cultura judaico- ”
constatação aparece nos momentos em que o jovem contesta o pai. Em certa ocasião, ele se
: “
acredito na troca de pontos de vista, estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga
” N SS R 4 96 O
“ o, não se
aproveitam teus discernimentos, existe anarquia no teu pensamento, ponha um ponto na tua
” N SS R 4 66
estabilizam a partir deste momento:
Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.
– Estou cansado, pai, me perdoe. Reconheço minha confusão, reconheço que não me
fiz entender, mas agora serei claro no que vou dizer: não trago o coração cheio de
orgulho como o senhor pensa, volto para casa humilde e submisso, não tenho mais
ilusões, já sei o que é a solidão, já sei o que é a miséria, sei também agora, pai, que
não devia ter me afastado um passo sequer da nossa porta; daqui pra frente, quero
ser como meus irmãos, vou me entregar com disciplina às tarefas que me forem
atribuídas, chegarei aos campos de lavoura antes que ali chegue a luz do dia, só os
deixarei bem depois de o sol se pôr [...].
– Tuas palavras abrem meu coração, querido filho, sinto uma luz nova sobre esta
mesa, sinto meus olhos molhados de alegria, apagando depressa a mágoa que você
causou ao abandonar a casa, apagando depressa o pesadelo que vivemos há pouco.
Cheguei a pensar por um instante que eu tinha outrora semeado em chão batido, em
pedregulho, ou ainda num campo de espinhos. Vamos festejar amanhã aquele que
estava cego e recuperou a vista! (NASSAR, 2014, p. 168-169).
Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.
Figura 3: Diálogo entre Iohána e André II
Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.
Figura 5: Diálogo entre Iohána e André IV
Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.
Assim como o pródigo, o André palavrado e o fílmico voltam para suas casas
recebidos por seus pais, que comemoram seu retorno dos mortos, do mundo infame, com
consequente reintegração ao lar. Ana, por sua vez, recusa sua não-prodigalidade. De alguma
maneira, ela também quer estar na cena, no cerne. A estrutura paternal, contudo, só resiste às
contravenções do filho. O pai tece apenas um perdão. Ana representa aquele corpo de
:“ eu-para-mim, a carne em si mesma é um
” “
em Deus como outro para ele. Confissão e expiação que levam à conclusão de que o homem
“ - ” B KHTIN 3 52-53).
No encontro da parábola do filho pródigo com o filhicídio (tão latente no Velho
Testamento), romance e filme se respondem. Mais uma vez, necessitamos de Agamben (2015,
p. 17): “N N ência, porque
esta não tem outra consciência além do descriar- ” N
ao texto bíblico ao dar voz e vazão às emoções do rapaz que desafia a ordem do pai, apesar de
voltar a ela. O filme de Carvalho também explora a prodigalidade, embora a profusão de Ana
não passe incólume. A cena final, com seu corpo erotizado dominando a tela, no cerne da
festa para o prodígio, movimenta todas as forças articuladas nas páginas e nos cortes. O
figurino, o vinho lançado feito sangue, o enfiar dos pés nas folhas e depois todo o corpo
“ ” glória consciente de
que só o corpo do outro é carente de autori : “S - ” B KHTIN
2003, p. 53). A cena da dança, uma das mais belas e revolucionárias de nosso cinema,
movimenta a prodigalidade em sua ambiência luxuriosa. No retorno do filho evoca-se o terno
retorno da luxúria. Ana, a filha gauche, então se lança numa performance do delírio e leva ao
extremo a necessidade do perdão. Na sua morte dançante, a calmaria do retornado e do perdão 338
é suplantada pelo desejo da continuidade. Semen é cena. Verbo é morte.
Incongruências insolúveis, pois, a despeito da pluralidade dos lados, nesta tradução
coletiva, o filho, enfim à direita do pai no fim da exposição cinêmica, evoca os
vivenciamentos axiolólogicos de cada ser no todo fechado de suas vidas. A filha, evoca os
vivenciamentos cerrados pela consciência de si mesmo na consciência familiar. Os diferentes
planos de juízo de valor, de visão, de voz fazem com que cada um aceite o estar fora da
própria existência, o aceitar-se como outro, entre os seus outros – à mesa, à festa, ao luto. O
perdão traduz a reconciliação entre pai e filho no livro e na sétima arte. A morte de Ana, entre
rostos ímpares, enuncia que a Lavoura arcaica humana ainda não floresceu. Nossa literatura,
semente e verbo, vem permitindo ao cinema uma colheita prodigiosa, da qual podemos
assistir uma safra abastada e frutífera.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34,
2017.
Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.
BÍBLIA. Evangelho segundo São Lucas. A Bíblia de Jerusalém. 2. ed. Vários tradutores. São
Paulo: Paulus, 1995, p. 1926-1978.
BORGES, J. L. História da eternidade. In: _____. Obras completas de Jorge Luís Borges.
Vários tradutores. Vol. 1. São Paulo: Globo, 1999. p. 381-468.
DRUMMOND, Carlos. Poema de sete faces. Obra Completa. Rio de janeiro: Nova Aguilar,
1973. p. 53.
FONSECA, R. in: DIEGUES, C.; MERTEN, L. C.; FONSECA, R. Cinco mais cinco: os
maiores filmes brasileiros em bilheteria e crítica. Rio de Janeiro: Legere, 2007.
SILVA JR. A. R.; GANDARA, L. C. O cinema literário brasileiro: Abril despedaçado, uma
tradução coletiva. VII S N P squisa em Arte e Cultura Visual, p.
356-365, 2014. Disponível em: http://projetos.extras.ufg.br/. Acessado em: 16 nov. 2017.
Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.
VIEIRA, A. Sermão da Sexagésima. In: _____. Obra completa Padre António Vieira. Sermão
da Sexagésima e sermões da quaresma. Organização de José E. Franco e Pedro Calafate.
Tomo II. Vol. II. São Paulo: Loyola, 2015a. p. 43-73.
VIEIRA, A. Sermão Segundo do Mandato. In: _____. Obra completa Padre António Vieira.
Sermões da Quaresma e da semana Santa, 1a parte ciclo temporal litúrgico. Organização de
José E. Franco e Pedro Calafate. Tomo II. Vol. IV. São Paulo: Loyola, 2015b. p. 367-393.
Filmografia
Que teus olhos sejam atendidos. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Roteiro de Luiz
Fernando Carvalho e Raquel Couto. GNT/Videofilmes. 1997. [DVD]. (70 minutos), colorido.
Recebido em 22/01/2018
Aprovado em 07/05/2018
340
Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.