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À esquerda do pai e o retorno do

filho pródigo no cinema literário


de Lavoura Arcaica
To the left of the father and the return of the prodigal son in the
literary cinema of Lavoura Arcaica

Ana Clara Magalhães de MEDEIROS 1


Augusto Rodrigues SILVA JUNIOR2
Lemuel da Cruz GANDARA3

RESUMO: P
. Essas características se estendem na estrutura do romance Lavoura arcaica (1975), de
Raduan Nassar, L
comparativo entre o texto religioso, o romance e o longa-metragem,
N
literário brasileiro, o exame do filme evidencia, por um lado, desdobramentos
sacros e luzes em chiaroscuro, que traduzem a palavra em audiovisual. Por outro ângulo 328
:
lavrados em sangue. O referencial teórico se fundamenta em Mikhail Bakhtin e Giorgio Agamben,
Silva Junior e Gandara.

PALAVRAS-CHAVE: Filho pródigo. Lavoura arcaica. Cinema literário brasileiro. Tradução coletiva.

ABSTRACT: T ‟ k y
and reconciliation. These characteristics spread over on the novel structure Lavoura Arcaica (1975)
by Raduan Nassar as well as on the homonym movie by Luiz Fernando Carvalho (2001). This article is a
comparative study among the religious text, the novel and the feature film, aiming to analyse the first dialogue
between father and son in a process that results in forgiveness and family tragedy. In the scope of Brazilian
y ‟ k y
and lights in chiaroscuro, which translates the word in audiovisual; on the other hand, it shows the characters
intimate conflicts and their transformations along the way leading to that encounter: return and communion
drawn up in blood. The theoretical referential is founded in Mikhail Bakhtin and Giorgio Agamben, Silva Junior
and Gandara.

KEYWORDS: Prodigal Son. Lavoura arcaica. Brazilian literary cinema. Collective translation.

1
Instituto Federal de Goiás – IFG. Professora de Letras no IFG. Brasília – DF – Brasil. CEP: 71065-330. E-mail:
a.claramagalhaes@gmail.com
2
Universidade de Brasília – UnB. Professor de Literatura Brasileira no Departamento de Literatura da UnB.
Brasília – DF – Brasil. CEP: 70904-110. E-mail: augustorodriguesdr@gmail.com
3
Instituto Federal de Goiás – IFG. Doutorando em Literatura pela Universidade de Brasília. Brasília – DF –
Brasil. CEP: 71070-649. E-mail: gandara21@hotmail.com

Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.
Cheguei a pensar por um instante que eu tinha outrora
semeado em chão batido, em pedregulho, ou ainda num
campo de espinhos. Vamos festejar amanhã aquele que
estava cego e recuperou a vista!
Iohána, Lavoura arcaica (NASSAR, 2014, p.169)

Quando nasci, um anjo torto


desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
(DRUMMOND, Poema de sete faces, 1973, p. 53)

Partidas

O presente trabalho é dedicado ao estudo da relação entre religiosidade e sua


representação dialógica e criativa no livro Lavoura Arcaica (1975), escrito por Raduan Nassar
e no filme (2001) de mesmo nome dirigido por Luiz Fernando Carvalho. Para essa investida,
optamos pela abordagem da tradução coletiva – perspectiva teórica criada e desenvolvida por
pesquisadores do centro-oeste brasileiro –, metodologia que analisa textos transpostos para o
cinema, “o filme resultante de um livro traz em sua es polivisual

– em respondibilidade e
releitura” SILV JR; G ND R 3 54).
Livro e filme ensejam aspectos sagrados do texto bíblico. A ideia de redenção,
discutida por Agamben “ S ” 329
:“
” AGAMBEN, 2015, p. 11). No
desdobramento dialógico efetivado ao longo dos séculos, a parábola cristã do filho pródigo
surge exatamente como uma abertura para o intercâmbio interartes. Na segunda parte do
romance Lavoura arcaica, intitulada “O ” André, o protagonista gauche que nos
lembra o Poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade, faz uma detalhada reflexão
sobre a organização familiar e como ela influenciou nas decisões que o levaram a sair de casa:

Eram esses os nossos lugares à mesa na hora da refeição, ou na hora dos sermões: o
pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de
Rosa, Zuleika e Huda; à esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o
caçula. O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as
raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por
onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida,
um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto; podia-se quem sabe
dizer que a distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do tempo) definia as
duas linhas da família. (NASSAR, 2014, p. 154-155).

Entre o galho da direita e o braço da esquerda, o pai está no centro como um espectro
que observa e valora sua criação. Ele é detentor do conhecimento laboral, dono da terra onde
semeiam, pastor que dissemina a voz divina entre seus membros familiares. O homem
comanda a ordem instaurada nesse universo literário, que é apresentado ao leitor pelas
palavras de André, que ocupa o segundo lugar na mesa à esquerda do pai. Essa distribuição
permite pensar as relações de alteridade e os índices bíblicos numa única imagem: a ceia.

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Aquele situado à direita abriga significados íntimos. Os da esquerda, os gauche, por sua vez,
representam algo a saber, a expandir- “ ” M
de tal mesa literária no cinema, esse elemento que mescla alteridade (BAKHTIN, 2003) e
relações familiares (religiosas) se reestrutura.
No livro, o narrador, distante no tempo, amadurecido, conta sua trajetória desde a
infância, passando por sua partida (desgarrar-se) de casa até a festa em celebração de seu
retorno. Nessa experiência memorialista, passado, presente e futuro se fundem e dão origem
ao tempo dos sentidos. Princípio e fim contam uma espécie de história da eternidade familiar
– repetição da história da eternidade, que o leitor latino-americano conhece dos escritos de
Jorge Luis Bor : “
” BORG S 1999, p. 394).
As palavras que definem o referido galho gauche (esquerdo, sinistro) da família
prenunciam questões íntimas e complexas, a serem confessadas ao longo da narrativa literária
e articuladas em ângulos e atuações fílmicas. Trazemos, pois, a passagem discursiva de André
para ilustrar um dos principais motivos que desencadearam sua fuga de casa para
experimentar os prazeres do tempo, ao tempo de não estar à mesa, sob o jugo do pai. Após
fracasso no amor incestuoso, sentido e concebido com a irmã, André torna-se corpo estranho
“ ” – para se pensar com o Freud do inquietante ensaio
“O ” “
” R UD 969 3
sinistro fizeram com que o rapaz partisse, “ ” desestruturando tácita e
visualmente a ordem familiar. Ordem lavrada na terra, nos corpos, há séculos: na palavra, no
campo, à mesa. Para visualizar o cenário nodal desse ambiente de estranhezas, trazemos a
passagem em imagem fílmica (Fig. 1): 330

Figura 1: Os lugares à mesa da família

Fonte: filme Lavoura arcaica (metragem ooh13min00seg)

Diferentemente do livro, a passagem com lugares rijamente demarcados aparece, no


filme, logo em seu princípio. Ela surge, emblemática e metonimicamente, no primeiro diálogo

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entre André e Pedro na pensão, em seguida aos créditos iniciais. A mesa (note-se, pela
imagem, não se tratar de um banquete festivo) exibe os personagens da história e, ao mesmo
tempo, organiza o cenário para a tragédia final – o filhicídio –, marcada pelo assassinato de
Ana pelo próprio pai. No centro da cena, vemos as costas da figura paterna (Raul Cortez); do
lado esquerdo, temos o galho encabeçado pela mãe (Juliana Carneiro da Cunha) e seguido por
André (Selton Mello), Ana (Simone Spoladore) e Lula (Caio Blat). No galho da direita, estão
Pedro (Leonardo Medeiros) e as irmãs (que não são nomeadas no filme).
A fotografia, dirigida por Walter Carvalho, realça a perspectiva dos contrastes entre
luz e escuridão, via iluminação pelo lampião. O objeto próximo ao galho da direita anuncia a
chama viva da família, ao passo que o lado esquerdo embota-se em perspectiva mais
escurecida. Na cena, a luz é simbólica. Na tradução fílmica, o chiaroscuro constitui-se opção
do diretor de fotografia, reconhecido justamente pelo jogo de luzes e sombras que explora em
suas produções. Não há comida na mesa. Nela, o sermão do pai é o próprio alimento –
reedição da tradição judaico-cristã em que o Verbo é carne e a palavra faz-se semen: “
D ” BÍBLI S L 8
diretor do longa-metragem explica, a visualidade construída na obra tem relação com a
pintura:

você tem toda a pintura tenebrista espanhola, que representa um período próximo à
dominação do Império Árabe na Península Ibérica, com uma grande predominância
dos fundos negros e a presença dos dourados, que também dialogam com
Rembrandt, Van Gogh, Degas, Munch, Millet, Cézane [...] os Cristos de Velázques,

(CARVALHO, 2002, p. 101/102).
331

Na imagem, algumas das nuances mais importantes que depreendemos é o jogo dessa
iluminação barroca que surge da evocação ao tenebrismo do século XVII. A alusão ao negro e
ao dourado como marcas dos povos árabes no mediterrâneo, bem como carga de migração de
vozes e religiosidades. Também percebemos ecos de Rembrandt, não por acaso, pintor que
assina o quadro intitulado O retorno do filho pródigo (1666). Tema e forma, mote e
chiaroscuro repetem-se no tom trágico das artes que reeditam a misericordiosa parábola
bíblica. Além disso, na citação, a religião da família revela-se, questão que fica menos
explícita tanto no livro quanto no filme, onde estão fundidos o islamismo, o cristianismo e a
cristandade ibero-brasileira.
O texto de Nassar parecia uma obra intraduzível para a linguagem cinematográfica
devido à sua carga de subjetividade poética e à forma dada à língua e ao tempo. Entretanto,
Carvalho (mais famoso por telenovelas) decidiu traduzir Lavoura arcaica justamente com as
cargas subjetivas e poéticas. O diretor viajou para o Líbano com o objetivo de pesquisar o
universo da família que protagoniza a história, o que incluía a religiosidade praticada por eles
e as relações patriarcais como pilar do cotidiano. A pesquisa rendeu o documentário de
televisão Que teus olhos sejam atendidos (1997) e significa justamente uma espécie de
preparação para a grande arte fictícia na tela. Além de diretor, Carvalho também se ocupou
das funções de narrador (é dele a voice over de André), produtor, roteirista e montador do
longa-metragem. Isso não só rendeu a ele domínio pleno da obra logrando a concepção de um
filme autoral, mas permitiu que ele fosse instância criativa em várias partes do processo
tradutivo. Isso significa dizer que distinguimos o diretor do produtor, o cenógrafo daquele que
pensa a montagem etc.

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“ ”
imagens antes e depois de traduzi- : “ nsão
da arte como uma obra espiritual, que depende das tuas vísceras, da tua alma, das tuas
I ” CARVALHO, 2002, p. 38).
Essa noção visceral e espiritual do realizador nos convida a pensar a arte como algo que
atravessa carne e alma num processo de transformação de alteridades e de reavaliação do
externo e das zonas mais sutis S “ ” – que poderia ser entendida como
centralizadora e monológica, segundo interpretação bakhtiniana – tornou-se potente,
permitindo a criação de uma obra artística que lega herança concreta em nosso cinema.
Recordemos que o filme está inserido num momento em que a sétima arte no país foi
impulsionada, principalmente, pelas transposições de narrativas preconizadas na literatura,
tais como Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, e Abril despedaçado (1975), de Ismail
Kadaré (com filmes estreados em 2002 e 2001, respectivamente).
As antíteses que vimos até agora – luz e escuridão, preto e dourado, vísceras e alma,
livro e filme – nos convidam a pensar o diálogo entre literatura e cinema no campo da
religiosidade. Nosso objetivo consiste em investigar como se dá tal encontro na relação com a
“P ” 5 S L cas, do Novo
Testamento bíblico. Esse exercício comparativo é fulcral por revelar uma das metáforas mais
importantes de/da Lavoura arcaica: o retorno do filho pródigo.
P Mk B k “
para além dos seus limites. Toda interpretação é o correlacionamento de dado texto com
O ” B KHTIN, 2003,
p. 400). Essa ideia ilumina o dialogismo, viés que fica ainda mais explícito neste seguimento:
332

Em cada época, em cada círculo social, em cada micromundo familiar, de amigos e


conhecidos, de colegas, em que o homem cresce e vive, sempre existem enunciados
investidos de autoridade que dão o tom, como as obras de arte, ciência, jornalismo
político, nas quais as pessoas se baseiam, as quais elas citam, imitam, seguem
(BAKHTIN, 2017, p. 54).

Assim, quando entramos na seara do cinema literário, espaço teórico em que a sétima
arte revela e “
” SILV
JR; GANDARA 2015, p. 394), identificamos interpretações que geram comentários, citações,
imitações. Estes, por sua vez, têm muitos meios e suportes. O livro de Nassar reconstrói
dialogicamente a parábola. Esta imagem é explorada no discurso religioso brasileiro, que no
aspecto barroco de sua carga semântica é assim exposta por Padre Antônio Vieira em 1655,
S S M :“ P ?P S
P ” (VIEIRA, 2015b, p. 381). O pregador trata do encarnado
como aquele que amplia e redimensiona a prodigalidade. Excede a condição de filho
dadivoso. No livro de Nassar, esta prodigalidade também aparece com muita força. O filme,
por sua vez, faz o mesmo exercício, com sua especificidade dialógica e dialogal da sétima
arte. André constituiu a cena, constituiu o sentido familiar e expandiu (prodigiosamente) seu
retorno como redenção.
N “
” SILV JR; G ND R 4 9

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Uma vez que a tradução coletiva “
” SILV JR;
GANDARA, 2015, p. 390), ela congrega múltiplas vozes e uma multiplicidade de ações, essa
ideia da coletividade é mostrada no movimento dos personagens-atores. A câmera, que não
vemos, promove o resultado final do filme. Sua projeção nas diversas quintas paredes (telas
de cinema, celulares, computadores) compõe-se de várias etapas na concepção da obra. A
encenação abriga direção, iluminação, figurino, etc. A montagem articula-se e articula trilha
sonora, exposição, fotografia e outras artes.
A contemplação estética e o ato respondível estão conjugados na unidade concreta do
filme. É fundamental termos em vista que todos os elementos e pessoas reverberam – ou
reiluminam, para ficarmos com Gadamer (1999) – na contemplação e no resultado artísticos.
A trilha sonora é uma reação musical. A fotografia faz-se respondível às cores e às luzes. A
sonoplastia delineia-se ao som do mundo no mundo cinêmico (SILVA JR; GANDARA,
2013b, p. 84). Visto por esse viés, a Lavoura arcaica fílmica desdobra o excedente de visão
do literário na tela. Determina certas esferas de nossas atividades excepcionais. Para ficar,
B k “O : ”
Estética da criação verbal, entende-se que os atos internos e externos podem ser infinitamente
heterogêneos porque dependem da heterogeneidade infinita das situações vitais (BAKHTIN,
2003, p. 44-56).@ passagem pro fim
Expusemos algumas bases das tentativas mais essenciais de definir as peculiaridades
fundamentais da relação entre o livro Lavoura Arcaica e sua tradução coletiva. Feito o
preâmbulo teórico e crítico, passemos à análise comparativa entre a parábola, o livro de
Nassar e o filme de Carvalho. Nos debruçaremos sobre o texto bíblico para chegarmos ao
literário e como este se faz tela e habita o cinema nacional. Por seu turno, também nos 333
concentramos em analisar a composição das cenas do primeiro diálogo após o retorno de
André à casa, a morte de sua irmã e o conflito entre a redenção e a criação.

Retornos

“P P ” primogênito que requer


antecipadamente a porção que lhe cabe da herança paterna, sai de casa e gasta o dinheiro com
luxúrias. Após esse desregramento e suas implicações, ele retorna à casa do pai e, em
comemoração, este lhe dedica uma festa. Nosso foco concentra-se no encontro entre o filho
que estava perdido e o pai que o recebe com alegria. Sobre o fato, chama a atenção este
fragmento:

„ V -me embora, procurar o meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra o Céu e
contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me como um dos teus
‟ P
Ele estava ainda ao longe, quando seu pai viu-o, encheu-se de compaixão, correu e
lançou-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos. O filho, então, disse- : „P
; ‟ M
: „I -o com ela,
ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o novilho cevado e matai-o;
comamos e festejemos, pois este meu filho estava morto e tornou a viver; estava
perdido e foi encontrado! E começaram a festejar. (BÍBLIA, 1995, Evangelho
segundo São Lucas, 15, 18-24).

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Na passagem, encontram-se as figuras do Pai e do Filho em retorno. Não há
questionamentos sobre as atitudes do rapaz, pelo contrário há a festividade, como resultado do
“ ” É
renascimento dos dois e uma nova oportunidade para os laços serem refeitos. Os diálogos são
econômicos, como pede o gênero, mas conseguem passar a mensagem de perdão e
reconhecimento que proporcionam a expiação de ambos. Entre a chegada do filho e a festa,
não há informações. É justamente esse hiato que Raduan Nassar propõe desenvolver em seu
romance.
Em Lavoura arcaica, Pedro, o irmão mais velho e mais próximo do patriarca, a pedido
da Mãe, vai à procura dele. É a partir do encontro entre André e Pedro (não por acaso estes
nomes evangélicos reverberam dialogicamente no livro) numa pensão que o retorno é
negociado. As motivações da fuga são explicadas à família e os caminhos para o retorno são
abertos. A recuperação da ovelha é articulada pelo lado direito do pai. Ao chegar em casa e
tomar um banho, o rapaz se encontra com o progenitor.
Em um dos poucos momentos em que aparece o sinal de travessão, ou seja, a obra sai
do horizonte prosaico e ganha marcas teatrais, aproxima-se do trágico e da tragédia
tradicional. Abaixo, temos o início do diálogo entre os dois e aproximação dialógica com o
texto bíblico:

– Meu coração está apertado de ver tantas marcas no teu rosto, meu filho; essa é a
colheita de quem abandona a casa por uma vida pródiga.
– A prodigalidade também existia em nossa casa.
– Como, meu filho? 334
– A prodigalidade sempre existiu em nossa mesa.
– Nossa mesa é comedida, é austera, não existe desperdício nela, salvo nos dias de
festa.
(NASSAR, 2014, p. 156).

Iohána afirma que o filho fez a colheita daquilo que semeou ao sair de casa, enquanto
André afirma que sua prodigalidade é um reflexo do que fora plantado pela própria família.
São duas opiniões antagônicas que expõem visões de mundo e conflitos íntimos. A rebeldia
do jovem e a mesa austera do pai anunciam a tese de uma ruptura. Conforme afirmam
Reichmann e Pelissinari (2007, p. 33) “ B „P ‟
Talmude, da mitologia greco-romana possibilitam a Nassar descontruir elementos
fundamentais da cultura judaico- ”
constatação aparece nos momentos em que o jovem contesta o pai. Em certa ocasião, ele se
: “
acredito na troca de pontos de vista, estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga
” N SS R 4 96 O
“ o, não se
aproveitam teus discernimentos, existe anarquia no teu pensamento, ponha um ponto na tua
” N SS R 4 66
estabilizam a partir deste momento:

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– Estou cansado, pai, me perdoe. Reconheço minha confusão, reconheço que não me
fiz entender, mas agora serei claro no que vou dizer: não trago o coração cheio de
orgulho como o senhor pensa, volto para casa humilde e submisso, não tenho mais
ilusões, já sei o que é a solidão, já sei o que é a miséria, sei também agora, pai, que
não devia ter me afastado um passo sequer da nossa porta; daqui pra frente, quero
ser como meus irmãos, vou me entregar com disciplina às tarefas que me forem
atribuídas, chegarei aos campos de lavoura antes que ali chegue a luz do dia, só os
deixarei bem depois de o sol se pôr [...].
– Tuas palavras abrem meu coração, querido filho, sinto uma luz nova sobre esta
mesa, sinto meus olhos molhados de alegria, apagando depressa a mágoa que você
causou ao abandonar a casa, apagando depressa o pesadelo que vivemos há pouco.
Cheguei a pensar por um instante que eu tinha outrora semeado em chão batido, em
pedregulho, ou ainda num campo de espinhos. Vamos festejar amanhã aquele que
estava cego e recuperou a vista! (NASSAR, 2014, p. 168-169).

Nos três momentos do texto, temos a metáfora da palavra e da semeadura – que


também retoma a parábola do semeador, tornada monumental na língua portuguesa com Padre
V :“ ” (VIEIRA, 2015a, p. 44).
André se fecha aos pontos de vista distintos, à planta, à palavra, à escuta. O pai não
compreende o filho, ou melhor, não compreende sua atitude, visto que não sabe da paixão
entre ele e Ana. As fissuras são preenchidas com a constatação de que estivera orgulhoso e
deseja voltar para o campo, para a lavoura, para casa. A atitude de Iohána é a mesma do Pai
dos dois filhos do Evangelho de Lucas: “
mas, muito mais, pelo fato daquilo que se faz – que em si não é diferente do que se realiza
” G MB N 15, p. 160). Não por acaso, a festa de redenção da família é a
celebração de morte para Ana – que enfeita e usa o corpo para o não-trabalho, para o deleite, 335
para o desejo de prodigalidade negado à filha (à mulher, por extensão).
N “ P -se
” ONS
2007, p. 193). Essa atitude aparece, principalmente, no diálogo à mesa após o retorno do filho,
que traduz a sequência que discutimos a pouco, como vemos na sequência de imagens abaixo
nas figuras 2, 3, 4 e 5:
Figura 2: Diálogo entre Iohána e André I

Fonte: filme Lavoura arcaica (metragem 2h19min51seg)

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Figura 3: Diálogo entre Iohána e André II

Fonte: filme Lavoura arcaica (metragem 2h27min31seg)

Figura 4: Diálogo entre Iohána e André III 336

Fonte: filme Lavoura arcaica (metragem 2h30min51seg)

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Figura 5: Diálogo entre Iohána e André IV

Fonte: filme Lavoura arcaica (metragem 2h32min04seg)

As quatro imagens referem-se ao diálogo de retorno do filho. Elas formam um painel


de como os tradutores, coletivamente, leram a passagem literária enquanto obra. A
perspectiva dos contrastes projetada por Walter Carvalho na fotografia reaparece no jogo
entre claro e escuro, possível pela lamparina – única luz em tela – que retorna à cena, mais
uma vez, ao lado do pai (fig. 2 e 3). No entanto, o foco da iluminação está em André. Ele é o 337
centro da composição, como se banhado pelo sermão do pai, pela sua palavra. Mas também
podemos ler como o momento de tomada de consciência durante o diálogo. Na mesa e neste
diálogo, os lados direito e esquerdo do pai se definem enquanto narrativa. Já na tela, por sua
condição tridimensional, o expectador tem o sentido inverso. Se recuperarmos a presença
potente do diretor nas várias instâncias do filme, arriscamos enxergar uma forma velazquiana
de estar dentro da tela, ser parte da própria obra, captar o olhar de quem está de fora num
mundo espelhado.
O “ ”
cena para o público. No início da conversa, André fica posicionado em um nível abaixo do
pai, ou seja, o enquadramento o capta inferiormente, menor, diante do patriarca. À medida
que as tensões afloram, ele se diminui ainda mais. Quando toma consciência e resolve aceitar
a família e sua lida, o corpo do ator fica mais rijo e a diferença de tamanho se transforma (fig.
4). Na última figura (5), temos um close que coloca o rosto dos dois atores no plano: a esta
altura, estão praticamente no mesmo nível – integrados em redenção dialogal e simbólica.
Além desses aspectos, um dos fatores mais instigantes dessa mise-en-scène é que,
durante toda a projeção, André está do lado direito da tela cinêmica. Ele está à direita do pai.
Entendemos que, assim como a família o recebe, ele também se vê parte dela. Movimento
diverso daquele expresso na imagem inicial, com o jovem à esquerda, como uma chaga. Seu
retorno, enfim, o torna um membro que resistiu às tentações do mundo e se viu como parte
fundamental da lavoura austera e arcaica. Fato que verte lágrimas no rosto do pai e se torna
motivo para celebrações, que contrastam com um filhicídio – a dadivosa Ana, que toma a
cena final, é destituída da festa, da vida, pelo pai.

Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.
Assim como o pródigo, o André palavrado e o fílmico voltam para suas casas
recebidos por seus pais, que comemoram seu retorno dos mortos, do mundo infame, com
consequente reintegração ao lar. Ana, por sua vez, recusa sua não-prodigalidade. De alguma
maneira, ela também quer estar na cena, no cerne. A estrutura paternal, contudo, só resiste às
contravenções do filho. O pai tece apenas um perdão. Ana representa aquele corpo de
:“ eu-para-mim, a carne em si mesma é um
” “
em Deus como outro para ele. Confissão e expiação que levam à conclusão de que o homem
“ - ” B KHTIN 3 52-53).
No encontro da parábola do filho pródigo com o filhicídio (tão latente no Velho
Testamento), romance e filme se respondem. Mais uma vez, necessitamos de Agamben (2015,
p. 17): “N N ência, porque
esta não tem outra consciência além do descriar- ” N
ao texto bíblico ao dar voz e vazão às emoções do rapaz que desafia a ordem do pai, apesar de
voltar a ela. O filme de Carvalho também explora a prodigalidade, embora a profusão de Ana
não passe incólume. A cena final, com seu corpo erotizado dominando a tela, no cerne da
festa para o prodígio, movimenta todas as forças articuladas nas páginas e nos cortes. O
figurino, o vinho lançado feito sangue, o enfiar dos pés nas folhas e depois todo o corpo
“ ” glória consciente de
que só o corpo do outro é carente de autori : “S - ” B KHTIN
2003, p. 53). A cena da dança, uma das mais belas e revolucionárias de nosso cinema,
movimenta a prodigalidade em sua ambiência luxuriosa. No retorno do filho evoca-se o terno
retorno da luxúria. Ana, a filha gauche, então se lança numa performance do delírio e leva ao
extremo a necessidade do perdão. Na sua morte dançante, a calmaria do retornado e do perdão 338
é suplantada pelo desejo da continuidade. Semen é cena. Verbo é morte.
Incongruências insolúveis, pois, a despeito da pluralidade dos lados, nesta tradução
coletiva, o filho, enfim à direita do pai no fim da exposição cinêmica, evoca os
vivenciamentos axiolólogicos de cada ser no todo fechado de suas vidas. A filha, evoca os
vivenciamentos cerrados pela consciência de si mesmo na consciência familiar. Os diferentes
planos de juízo de valor, de visão, de voz fazem com que cada um aceite o estar fora da
própria existência, o aceitar-se como outro, entre os seus outros – à mesa, à festa, ao luto. O
perdão traduz a reconciliação entre pai e filho no livro e na sétima arte. A morte de Ana, entre
rostos ímpares, enuncia que a Lavoura arcaica humana ainda não floresceu. Nossa literatura,
semente e verbo, vem permitindo ao cinema uma colheita prodigiosa, da qual podemos
assistir uma safra abastada e frutífera.

REFERÊNCIAS

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Filmografia

Lavoura arcaica. Direção (roteiro e adaptação) de Luiz Fernando Carvalho. LFC


Produções/Vídeo Filmes. Barueri: Europa Filmes, 2007. [DVD]. (171 minutos), colorido.

Que teus olhos sejam atendidos. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Roteiro de Luiz
Fernando Carvalho e Raquel Couto. GNT/Videofilmes. 1997. [DVD]. (70 minutos), colorido.

Recebido em 22/01/2018
Aprovado em 07/05/2018

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Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 26, p. 328-340, jan./abr. 2018.

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