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CAMPINA GRANDE/PB
2014
ANGELA MARIA DE SOUTO
CAMPINA GRANDE - PB
2014
ANGELA MARIA DE SOUTO
__________________________________________________________
Profª. Drª. Rosilda Alves Bezerra (UEPB/PPGLI)
(Orientadora)
__________________________________________________________
Profª Drª Lílian de Oliveira Rodrigues (PPGEL/UERN)
(Examinadora externa)
_________________________________________________________
Profª. Drª. Geralda Medeiros Nóbrega (UEPB/PPGLI)
(Examinadora interna)
CAMPINA GRANDE
2014
AGRADECIMENTOS
This dissertation deals with the literary analysis of ironic language in the works of
Lispector, The Passion According to GH (1964) and The Hour of the Star (1977).
This will occur by studying the speeches of the characters, the narrative construction
of the works described here, as well as our theoretical framework. There are some
mentions the ironic aesthetics in literary production Lispector, but without that this
topic is presented in the foreground by the criticism which deals with the study of the
works of the writer. This research brings something new about Lispector literary
writing when it takes irony as the foreground. The theoretical approach is supported
in studies of philosophy and irony, from Kierkegaard (1991), Muecke (1995),
Hutcheon (2000) among others, that establish a relationship between the ironic and
non-ironic, highlighting the concept of irony of Platão until today. The stylistic irony
developed by Paiva (1961) is strictly based on the publication of a series of articles
developed by Henri Bergson in Laughter. In Contributions of stylistic irony, Paiva
(1961), relies on Bergson to classify the major types of irony (pure satire,
disfemistica, restrictive and skirting) and climates represented by shades (naïve,
rhetorical, sacred, scientific and family ). In addition to contributions on the concept of
irony, relevant studies on Lispector's work will be considered, specifically in the two
works The Hour of the Star and The Passion According to GH, including, Nunes
(1969), Sá (1979), Sant'Anna (1984), Coutinho (1997), Bedasee (1999), Kadota
(1999), Santos (2000), Iannace (2001), Montenegro (2001), Barbosa (2001),
Rosenbaum (2002), Amaral (2005), Arguelho Souza (2006), Rodriguez Lima (2009),
among other indispensable in the construction of this study. The work was divided
into three sections with the first works the irony can bring to our readers an overview
of its concepts through the ages by those who are part of our theoretical framework,
eg, Hutcheon (2000). At this same point we start some considerations about the irony
relating to the works analyzed, since we follow a line of comparative works by
Lispector, which are discussed in more detail in later chapters, the second chapter
designated to deal with The time of star and the third of The Passion According to
GH, although this was first written that we chose to work initially.
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 09
REFERÊNCIAS …………….........………………………………………….…………… 82
9
INTRODUÇÃO
Nosso trabalho tem como objeto de estudo a ironia nas obras A paixão
segundo G.H. (1964) e A hora da estrela (1977) de Clarice Lispector, dentro de uma
ótica comparativa. A escolha quanto à escritora, surgiu durante as aulas de literatura
no período da Graduação (2004) na UEPB Campus III. A partir destes primeiros
contatos passamos a estudar as obras da escritora. Por intermédio dessas aulas,
inicialmente, fizemos a leitura de A hora da estrela, e em seguida, A paixão segundo
G.H.. A romancista faz uso da linguagem irônica nestas produções literárias.
Notamos com as primeiras leituras que a linguagem manifesta determinados
recursos que fogem ao padrão de escrita usado por certos autores da época, o que
desde o início das análises feitas por críticos foram apontadas, mas não aceitas por
alguns devido à fuga ao padrão estabelecido para se considerar uma obra como
literária.
Rodrigues Lima (2009) afirma que Lispector é um nome considerado
internacionalmente e é um marco na história da escrita feminina. Muito se tem falado
sobre as obras da escritora, isso é notório, todavia não sabemos de pesquisas que
abordem a linguagem de Lispector em um primeiro plano quanto ao aspecto irônico
como objeto de investigação em suas obras.
No apoio teórico em que nos embasamos, encontramos algumas afirmações
quanto à linguagem irônica, mas não como um objeto específico estudado ou a ser
investigado. Sendo assim, após nossos primeiros contatos com a obra de Lispector
em 2004, resolvemos enveredar por esse caminho da temática da ironia em A hora
da estrela, e A paixão segundo G.H.. As duas obras serão analisadas quanto à sua
linguagem irônica por intermédio do discurso dos personagens e quanto à
construção das narrativas, observando-se de que maneira a ironia se manifesta nas
obras de Lispector, assim como a ligação da ironia à comicidade e a melancolia.
Em A hora da estrela, o narrador Rodrigo S.M., deprecia Macabéa, usando
termos pejorativos. A ironia se manifesta nessas depreciações, principalmente ao se
referir ao corpo da moça, o qual é rebaixado a estados de degradação, ora como
coisificação ora como animalização, isto se estende a outros personagens também,
como por exemplo, Olímpico.
O autor-personagem molda a jovem Macabéa como um ser alienado,
entretanto, notamos que ela é superior quando comparada aos outros personagens
10
da história, uma vez que possui uma boa índole.O personagem-autor sente-se
culpado pela vida miserável que a jovem leva, já que pertence a uma sociedade que
prolifera as “Macabéas” da vida, além de ser sua criatura. A culpa leva-o a um
estado de melancolia, assim como também chega atingir Macabéa. Rodrigo torna-se
melancólico por fingir não optar por um destino melhor para a jovem; ela, por sua
dificuldade expressional, pela falta de afetividade e pelos devaneios constantes. A
ironia se dá na necessidade que tem Rodrigo S.M. de se auto-descrever por
intermédio da jovem: “[...] Apesar de eu não ter nada com a moça, terei que me
escrever todo através dela por entre espantos meus.” (LISPECTOR, 1998a, p.24).
No entanto, para ele ela possuía “o corpo encardido” (LISPECTOR, 1998a, p.27) e
era “capim” (LISPECTOR, 1998a, p.30). A ironia se manifesta nessas contradições
contidas nas falas do autor-personagem e na sua falsa comiseração.
Em A paixão segundo G.H., a narradora G.H. depara-se com uma barata no
quarto da antiga empregada, e sente nojo. Entretanto, começa a fazer reflexões
sobre a raça humana e seus comportamentos, a partir do momento que esmaga o
inseto entre a porta do guarda-roupa. A ironia dá-se no simples fato da barata
causar repugnância em G.H. e ela entrar num estado de transe após devorá-la, a tal
sentimento, nomeamos de viagem interior ou imanentismo. A linguagem irônica
assim, se manifesta nesse estado de repulsa e atração que há na relação da G.H.
com a barata, que por sua vez, ocasiona o estado melancólico na narradora,
levando-a a sentir as mesmas sensações e agruras do inseto. A culpa de G.H. vem
da verdade de que ela e a barata são uma só, ou seja, o “eu” primitivo da barata é a
busca constante de G.H. na viagem feita por ela. No entanto, ela assassinou o
inseto e acabou por matar uma parte de si que tanto almejava. Nesse contexto, o
inseto é a alteridade de G.H, assim como Macabéa é a de Rodrigo.
O estudo da ironia nas duas obras escolhidas de Lispector abre novas
discussões a respeito da linguagem da escritora, pois faz uso da ironia nas
construções das narrativas.
A pesquisa está dividida em três capítulos, os quais se encontram divididos
da seguinte maneira:
O primeiro capítulo: Considerações sobre a ironia em Clarice Lispector,
destacamos o uso das ideias de teóricos sobre a ironia, o riso e a melancolia,
utilizando seus conceitos para situar o possível leitor do nosso trabalho acerca da
temática que escolhemos. Neste capítulo, desenvolvemos o conceito de ironia a
11
Nossa pesquisa tem como aporte teórico conceitos sobre a ironia com os
estudos de Paiva1 (1961), dentre outros autores como Kierkegaard2 (1991), Muecke3
(1995), Hutcheon4 (2000) e Braith5 (2008). A contribuição de Paiva foi a mais
relevante quanto à temática escolhida para se trabalhar nas obras de Lispector aqui
selecionadas, a ironia sob o ponto de vista da estilística.
Conforme Kierkegaard, “o conceito de ironia fez sua entrada com Sócrates”
(1991, p.23). Esta assertiva confirma-se em outros estudos, como por exemplo, o de
Braith (2008), cuja abordagem retórica da ironia segundo ela é uma tendência que
representa a tradição mais conhecida iniciada por Sócrates. A pesquisadora disserta
sobre a retórica ligada à filosofia, a ambiguidade é tratada “como configuração do
riso, do humor, do cômico e da ironia” (BRAITH, 2008, p.24). Este é o caminho pela
qual trilhamos, entretanto não nos deixamos restringir apenas às ideias ligadas à
ironia como tão somente aquela que faz uso de ambiguidades.
Braith afirma que a obra de Aristóteles em vários momentos passa pela
questão do cômico e da ironia:
1
Paiva (1965) publicou Contribuição para uma estilística da ironia dividindo-a em duas partes, sendo
que a primeira, a qual tivemos acesso baseia-se em sua dissertação de licenciatura em Filologia
Românica. Ela trabalha com análises e interpretação da ironia nesta publicação numa visão da
estilística.
2
Kierkegaard (1991) trabalha em O conceito de ironia desde Sócrates, faz um levantamento dela
através dos tempos.
3
Muecke (1995) em Ironia e o irônico trata do que é Irônico e não-irônico, assim como A evolução de
um conceito, A anatomia da ironia e A prática da ironia.
4
Hutcheon (2000) em Teoria e política da ironia a dividiu em sete capítulos. Para nós suas ideias
foram bastante significativas quando ela coloca à questão da ironia como uma subversão.
5
Braith (2008) em Ironia em perspectiva polifônica trabalha a ironia como o próprio título já sugere,
numa visão polifônica, ela dividiu o livro em duas partes, a primeira em Percursos e percalços do
estudo da ironia e a segunda em Madame Pommery: humor, ironia e civilização. Para nós a questão
das vozes que é colocada e o levantamento histórico da ironia nos auxiliaram, visto que tivemos
outros caminhos para percorrermos quanto ao conceito de ironia.
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6
A partir desse momento utilizaremos a sigla HE para A hora da estrela e PSGH para A paixão
segundo G.H..
7
Usaremos as letras “a” e “b” para diferenciar as obras de Lispector, visto que, o ano da edição nelas
é o mesmo (1998), a primeira letra será usada para A hora da estrela e a segunda para A paixão
segundo G.H..
8
O termo autor-personagem ou personagem autor o qual fazemos uso no decorrer do trabalho é
empregado por Rodrigues Lima ao se referir sobre HE e pode ser encontrado na p.73 do seu livro,
cujo mesmo se encontra em nossas referências.
15
Ratificando essa ideia de que a ironia surgiu desde Sócrates, Bezerra (2003)
nos afirma que “Uma das primeiras reflexões, em termo da palavra “ironia” surge no
Livro I de A República, de Platão. Nele, Sócrates subestima-se em relação aos
adversários com quem discute” (p. 23). Ainda, no tocante a esta ideia, Muecke alega
que “O primeiro registro de eironeia surge na República de Platão. Aplicada a
Sócrates por uma de suas vítimas, parece ter significado algo “como uma forma
lisonjeira, abjeta de tapear as pessoas” (1995, p.31). Contudo, Kierkegaard, destaca
que Platão cria um Sócrates poético, todavia de acordo com o filósofo, Sócrates era
negativo: “[...] e Platão, pelo contrário cria o seu Sócrates por meio de uma atividade
poética, já que Sócrates, precisamente em sua existência imediata era apenas
negativo.” (KIERKEGAARD, 1991, p. 28). Então, a ironia trabalhada pelo filósofo era
por meio da negação e não da maneira como Platão o criou.
Muecke (1995) argumenta que Aristóteles considerava a eironeia no sentido
dissimulativo e depreciativo, isso ao ter em mente Sócrates. Explica que nessa
época a palavra também “chegou a ser aplicada a um uso enganoso da linguagem”
(MUECKE, 1995, p.31). Cícero a usava como uma “figura de retórica”, e enfatiza que
“a palavra “ironia” não parece em inglês antes de 1502 e não entrou para o uso
literário geral até o começo do século XVIII”. (MUECKE, 1995, p. 32).
Concordamos com esse “uso enganoso da linguagem” descrito por Muecke
visto que é trabalhado por Lispector nas suas obras, mas vemos isto como uma
ponte para se atingir o outro lado ao qual se pretende chegar, no caso da escritora,
a palavra usada para se alcançar a não palavra:
Entre contar e não contar o que aconteceu, a escritora por meio de sua
personagem G.H. prefere “Forçar a palavra” e como tábua boiar e se salvar da
mudez. Mesmo que reconheça a existência da palavra como sendo artificial e
busque uma que não corresponda a esta:
16
Entre não ter “uma palavra natural a dizer”, o caminho é criar o que lhe
aconteceu, “criar sim”, mas não uma criação qualquer, “criar sobre a vida”, já que
viver não é como afirma a personagem “relatável”, nem teria como, pois criar “é
correr o grande risco de se ter a realidade”, uma realidade não experimentada pela
personagem anteriormente, mas que surgiria por meio da tradução “de sinais de
telégrafos”, de uma língua desconhecida, numa “linguagem sonâmbula”, a qual
Lispector via personagens, trata muito bem por intermédio da ironia que se instaura
nesses jogos.
Muecke (1995) definiu a ironia em seus primeiros conceitos ligando-os a
Sócrates e outros como vimos Cícero e também Quintiliano, embora não o
destaquemos. O que pretendemos com esse levantamento histórico é constatar que
esses primeiros estudos sobre a ironia estão ligados à época socrática, assim como
ao século XVIII e posterior a este. O conceito de ironia segundo o mesmo se deu
lentamente na Inglaterra e na Europa durante o período citado. Podemos assim
resumir as ideias dele sob os primeiros conceitos e os posteriores:
9
Os exemplos são expostos por Muecke na sua obra, a mesma encontra-se nas nossas referências.
17
Além de afirmar que faz “o papel de válvula de escape” para o seu leitor, ele
ironiza, pois como pode o seu leitor ter “uma vida massacrante” se possui uma “vida
bem acomodada”? Sabe que a classe pobre não o lê e ironicamente afirma “ler-me é
supérfluo para quem tem uma leve fome permanente”.
Muecke argumenta sobre os conceitos de ironia, assegura que, “a ironia é
dizer alguma coisa de uma forma que ative não uma mas uma série infindável de
interpretações subversivas” (MUECKE, 1995, p. 48). Portanto, Lispector como
escritora é um bom exemplo do que Muecke coloca, pois como leitores seus
podemos fazer “uma série infindável de interpretações subversivas” em suas obras.
É certo de que o conceito de ironia se desenvolveu através dos tempos e de
que ela esteve e está ligada ao cômico, assim como também a melancolia; faremos
uso agora de alguns conceitos para compreendermos que há uma relação entre a
ironia, a comicidade (riso) e a melancolia, a partir da obra de Bergson (2004) e Paiva
(1961), dentre outros.
Em O riso, Bergson aborda a comicidade enfatizando que ela somente é
possível no mundo humano, e que se rimos de um animal ou um objeto, é porque
neles há a presença do humano sendo tomada ou representada neles:
18
Ela, que deveria ter ficado só sertão de Alagoas com vestido de chita
e sem nenhuma: datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o
terceiro ano primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a
copiar lentamente letra por letra - a tia é que lhe dera um curso ralo
de como bater à máquina. E a moça ganhara uma dignidade: era
enfim datilógrafa. Embora, ao que parece, não aprovasse na
linguagem duas consoantes juntas e copiava a letra linda e redonda
do amado chefe a palavra "designar" de modo como em língua
falada diria: "desiguinar". (LISPECTOR, 1998a, p.15)
resposta” daqueles que tanto cobravam uma posição social de Lispector em sua
literatura.
Ainda na classificação das ironias, Paiva ao conceituar a ironia disfemística,
afirma que ela atua por meio do riso, da negação, dessa forma, nega-se o outro
como sendo inferior a nós que por sua vez somos superiores a ele e assim negamos
o seu caráter único e os tornamos banais:
10
Quando fizermos uso do termo “cinismo” queremos assinalar que é conforme a ideia de Paiva
(1961) ao se referir a Ironia Pura.
24
O tom retórico trabalha com uma linguagem literária “clássica”, mas com o
objetivo de produzir estereótipos e desta forma o cômico é produzido:
O próprio Rodrigo alerta que na sua história não usará “termos suculentos”
(LISPECTOR, 1998a, p.15), embora os conheça, portanto subentendemos que fará
uso de uma linguagem mais simples, corriqueira, porém a própria “Dedicatória do
autor” contraria essa ideia com a presença de tantas pessoas ilustres nas artes
(musicais etc):
O tom sagrado11 trabalha com o discurso religioso, porém o uso dele não
condiz com o contexto inserido e, assim, manifesta-se a ironia por meio da
dissonância:
11
O termo “sagrado” tomado aqui neste trabalho é o de Paiva (1961) ao classificar a ironia em tons,
ele é um deles.
25
consigo mesma. Desta maneira o discurso tomado pela ironia não se torna em algo
que permaneça na negatividade. O ato “negativo” aqui, a devoração do “impuro”, é
vista como algo positivo.
O tom científico é conceituado como aquele em que a ciência é evocada
como prova irrefutável ou seu uso acaba sendo inútil na medida em que se torna
desnecessário pelo luxo bizarro de linguagem:
Bergson constata que “em primeiro lugar distinguir dois tons extremos, o
solene e o familiar. Serão obtidos os efeitos mais grosseiros com a simples
transposição de um para o outro. Donde as duas direções opostas da invenção
cômica.” [1900]-(BERGSON, 2004, p.92).
Esse tom familiar é usado por Olímpico em suas expressões como fazer uso
da palavra “fresco” na presença da namorada e supostamente pedir desculpas para
encobrir o fato de não sabe responder as suas indagações e por isso dá respostas
vazias e estúpidas de significado:
A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda
em plena boca nossa. Então eu canto alto agudo uma melodia
sincopada e estridente _ é a minha própria dor, eu que carrego o
mudo e há falta de felicidade. Felicidade? Nunca vi palavra mais
doida, inventada pelas nordestinas que andam aí aos montes.
(LISPECTOR, 1998a, p.11-12).
Agora não é confortável: para falar da moça tenho que não fazer a
barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só
cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de
vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me pôr no nível
da nordestina. (LISPECTOR, 1998a, p.19).
Neste caso, sua falta de interesse por sua vida externa se enquadra em um
dos traços do melancólico descrito por Freud, a melancolia na nossa visão é quem
movimenta a ironia, esta se estabelece pela falsa comiseração na qual o narrador
finge sentir e nela se refugiar.
No luto, de acordo com Freud (1925), a inibição e perda de interesse são
explicadas pela absolvição do ego a ele, contudo, na melancolia, o ego é esvaziado.
E é nessa absolvição e nesse esvaziamento do ego que se faz a diferença entre o
30
que ama sua personagem, no entanto a mata e G.H. sente nojo da barata e mesmo
assim a devora, a mata e reconhece que foi por meio dela que G.H. voltou a “ver” o
“que já vira”:
depois, enquanto que na melancolia prevalece a relação de amor e ódio, amor pelo
apego que se tinha ao objeto perdido e ódio pela perda da libido e o esvaziamento
que se tem devido a ela.
Lambotte destaca que a melancolia desde a Antiguidade é um desequilíbrio
humoral, que atravessou o século XIX nas relações existentes, “entre corpo e
espírito quando um dos dois acaba por dominar o outro”. (2000, p.9). Chega a citar a
carta de Freud ao seu amigo Fliess na qual trata desse assunto.
Rodrigo S.M. possui um certo desequilíbrio, pois afirma que não havia falado
em “morte” para a nordestina e sim em “atropelamento” e no fim ela acaba
destinando-a a morrer:
Estou adiando. Sei que tudo o que estou falando é só para adiar -
adiar o momento em que terei que começar a dizer, sabendo que
nada mais me resta a dizer. Estou adiando o meu silêncio. A vida
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toda adiei o silêncio? mas agora, por desprezo pela palavra, talvez
enfim eu possa começar a falar. (LISPECTOR, 1998a, p.22)
Essa ausência sexual gera uma insatisfação ao melancólico que por sua vez
irá exteriorizar a reação do orgasmo “em equivalentes em outros campos, em
ausências, crise de riso, lágrimas e talvez outros”. (LAMBOTTE, 2000, p.66).
Concordamos com a ausência sexual existente no melancólico, pois ela é visível
quanto à personagem Macabéa em HE, a ausência sexual em sua vida era sentida
através de seu corpo (Iremos trabalhar esta ideia mais adiante). Seu criador afirma
que ela era assexuada:
Quando dormia quase que sonhava que a tia lhe batia na cabeça. Ou
sonhava estranhamente em sexo, ela que de aparência era
assexuada. Quando acordava se sentia culpada sem saber por que,
talvez porque o que é bom devia ser proibido. Culpada e contente.
Por via das dúvidas se sentia de propósito culpada e rezava
mecanicamente três ave-marias, amém, amém, amém.
(LISPECTOR, 1998a, p.34) (Grifo nosso)
Ironicamente, Rodrigo S.M. afirma que ela se sentia “de propósito culpada” e
rezava mecanicamente como vimos. Na narrativa ele chega a afirmar que ela não
sabia quem era Deus e que ele não sabia da existência dela.
Chegamos ao ponto que queremos com Lambotte quando ela está ligada à
melancolia e ao riso. Ela coloca o humor como um princípio de economia interna,
lembramos que esta economia foi trabalhada por Freud em seu artigo “Luto e
melancolia”.
34
Rodrigo S.M. finge sentir uma comiseração pela sua personagem, contudo a
assassina; essa falsa comiseração como iremos ver, nos leva em direção à ironia
pura.
Lambotte, como podemos notar, coloca a ironia próxima da melancolia
assim como o humor. O que para esse estudo se faz importante na medida em que,
o humor, a melancolia e a ironia possuem alguns traços em comum:
A palavra ironia, que vem do grego eironeia (lat. Ironia; in. Irony; fr.
Ironie; al. Ironie; it. Ironia), é definida como a atividade de quem dá
importância muito menor que a devida (ou que e julga devida) a si
mesmo, à sua própria condição ou a situação, coisas ou pessoas
com quem tenha estreita relação. (2003, p. 24)
1.1 A paixão segundo G.H e A hora da estrela: reflexões sobre leituras a respeito
das obras
principalmente quando faz determinadas colocações: “[...] O fato é que tenho nas
minhas mãos um destino e no entanto não me sinto com o poder de livremente
inventar: sigo uma oculta linha fatal.”(LISPECTOR, 1998a, p.20), contudo em
páginas anteriores, encontramos a seguinte assertiva: “[...] Só não inicio pelo fim que
justificaria o começo como a morte parece dizer sobre a vida _porque preciso
registrar os fatos antecedentes.”(LISPECTOR,1998a, p.12).
O que queremos assinalar com essas passagens é a questão da
dissimulação apontada por Kadota na linguagem da autora com a qual
concordamos, pois se trata da ironia, embora ele não designe desta maneira, mas
nós podemos nomeá-la assim. Rodrigo S.M., finge não saber o destino da moça,
todavia como vimos nos trechos descritos, trata-se apenas de um ato dissimulativo
já que podemos detectar uma possível morte para a protagonista desde o princípio
por meio dos paradoxos morte/vida, assim como início/fim, dentre outro presentes
na obra, estes paradoxos são indícios12 os quais prenunciam que o destino da
jovem, já havia sido traçado por ele, embora finja não ter “o poder de livremente
inventar”. Barbosa a respeito desta questão também ratifica esta ideia: “Rodrigo, em
A Hora da Estrela, que anuncia a possibilidade de matar Macabéa, [...].” (2001,
p.105). Então, desde o princípio Rodrigo S.M. já havia traçado um destino para a
moça como já expomos, embora tente falsear essa verdade no seu discurso.
Na própria “Dedicatória do Autor”, em HE, na qual consta “Na verdade Clarice
Lispector” encontramos desde a mesma outros indícios da “Saída discreta pela porta
dos fundos”, ou seja, a morte, visto que inicia com a seguinte asseveração: “Pois
que dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são hoje ossos,
ai de nós. Dedico-me à cor rubra muito escarlate como o meu sangue de homem em
plena idade e portanto dedico-me a meu sangue [...]”. (LISPECTOR, 1998a, p.9). O
jogo feito entre mortos a quem se dedica a obra e a presença da “cor rubra” ligada
ao sangue, nos encaminha para a possibilidade mais uma vez da morte para a
protagonista. A brincadeira de ideias com que Lispector joga ao citar o seu nome e
12
Para Genette o “Excesso de informação implícita sobre a informação explícita funda todo o jogo
daquilo a que Barthes chama os indícios (índices), que igualmente funcionam em focalização externa
[...]”. (1986, p.196). Portanto, esta assertiva define bem o que ocorre em a HE quanto aos indícios na
narrativa que nos direcionam para a morte da moça alagoana.
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ao mesmo tempo falar de um “homem em plena idade” (nesse caso Rodrigo S.M),
ridiculariza o discurso falocêntrico,13 a “Lei do Pai”.
Sobre essa ridicularização, Barbosa destaca que a autora faz isso tanto com
Rodrigo S.M. quanto com Olímpico:
13
O falo é a representação simbólica do pênis, é a completude que faz com que homens e mulheres
estejam interessados nele, o homem tem medo de perdê-lo e a mulher deseja possuí-lo (ideias
trabalhadas pelo psicanalista Lucas Nápoli) porque nenhum ser humano deseja ser incompleto.
Acreditamos que o falo representa simbolicamente o “poder”, por isso se tem tanta perseguição pelas
mulheres em tê-lo, tendo-o elas deteriam esse poder que tanto lhe foi negado historicamente, o qual
nas palavras de Barbosa a “Lei do pai” estabelece comportamentos para as mulheres.
39
que ele como homem detentor do “falo” deveria se sobressair melhor nesta situação,
o que não acontece e assim a ironia e o cômico se instaura.
Ainda no tocante a “Dedicatória do autor”, Barbosa afirma que:
14
Não destacamos o título da obra por se tratar de uma citação, seguimos na íntegra o que está
escrito.
15
Termo acrescentado por nós.
40
16
Para conceituarmos o termo Patriarcalismo, nos apossamos aqui e ali de algumas ideias de Xavier
em “Declínio do patriarcado”, para ele “Mais do que condição, o feminino é só natureza que melhor se
manifesta no cuidar: cuidar do homem, dos filhos, da casa.” (1998, p.9). Na família patriarcal pelo que
compreendemos os papeis eram bem definidos, o homem era o provedor de sua família e esta
estaria sujeita a ele, ele portanto mantinha o poder sobre sua mulher e filhos, detinha o direito sobre
eles, era o chefe e todos estavam submetidos ao poder paterno dele, caberia a mulher a formação
necessária para a educação de seus filhos, devendo ser prendada, boa mãe e esposa dedicada.
Nesta visão a mulher deveria ser obediente ao seu marido, com sujeição e servidão a ele. Ou seja,
havia funções diferentes para pessoas de sexos diferentes.
41
O que ela queria, como eu já disse, era parecer com Marylin. Um dia,
em raro momento de confissão, disse a Glória quem ela gostaria de
ser. E Glória caiu na gargalhada:
_ Logo ela, Maca? Vê se te manca! (LISPECTOR, 1998a, p.64).
Muito bem. Voltemos a Olímpico.
Ele, para impressionar a Glória e cantar logo de galo, comprou
pimenta- malagueta das brabas na feira dos nordestinos e para
mostrar à nova namorada o durão que era mastigou em plena polpa
a fruta do diabo. Nem se quer tomou um copo de água para apagar o
fogo nas entranhas. O ardor quase intolerável o enrijeceu, sem
43
Acordamos com Bedasee, visto que no caso das duas obras analisadas
quanto à relação estabelecida entre as personagens femininas, não existe uma
“reação contra a dominação masculina”, e assim a ironia se manifesta pela
contradição posta, pois elas lutam entre si e não contra a “violência da sociedade
patriarcal”. O que intentamos com a declaração da pesquisadora citada é que
apesar de G.H. e Glória não terem o falo, ou seja, o poder, acabam por manter a
dominação masculina na sua reprodução ideológica como já destacamos, contudo
Lispector usa de estratégia na obra para denunciar ironicamente, que as próprias
mulheres, que lutam em busca de sua liberdade acabam por atropelá-la ao agir
também do modo da ordem falocêntrica estabelecida, portanto neste sentido elas
não se diferenciam desta ordem.
A ironia em HE é perceptível não só quanto às relações femininas, mas ao
observarmos a relação entre os personagens como um todo. Há um divisor de
águas colocado pelo personagem-autor com relação à moça nordestina em
comparação a ele e aos outros.
44
O que estamos afirmando fica patente nas vozes emitidas pelo discurso do
narrador e de suas personagens, mas a ironia aqui continua trabalhando ao revés,
pelo avesso, já que apesar dele descrever a jovem aparentemente como inferior aos
demais, notamos o quanto é contraditória e fingida essa sua estratégia, por mais que
ele tente diminuí-la, acaba por demonstrar em seu discurso a boa índole da moça.
Ao depreciar a jovem ele deprecia a si, na verdade a própria Lispector os
deprecia. Mesmo assim ele a “assassina” mostrando o quanto a vida é cruel para
aqueles que não se encaixam nos moldes de uma sociedade moldada no
capitalismo selvagem. Para Rosenbaum “Não só sua escrita se faz pelo avesso —
sendo a escuta do que se cala ou a visão do que se oculta” (2002, p. 11).
A nordestina Macabéa, que Rodrigo diminui a todo instante, ao afirmar que
“Era apenas fina matéria orgânica. Existia.” (LISPECTOR, 1998, p.39), serve para
que ele descreva o mecanismo de uma sociedade na qual ele mesmo se sente
deslocado e onde sua única razão de viver é a sua literatura:
Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar
para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado
e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse
a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente
todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela
saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a
paixão e o seu desespero. E agora quereria ter o que eu tivesse sido
e não fui. (LISPECTOR, 1998a, p.21).
Ela sabia o que era o desejo embora não soubesse que sabia, era
assim: ficava faminta, mas não de comida, era um gosto meio
doloroso que subia do baixo-ventre e arrepiava o bico dos seios e os
braços vazios sem abraço. Tornava-se toda dramática e viver doía.
Ficava então meio nervosa e Glória lhe dava água com açúcar
(LISPECTOR, 1998a, p.45).
O encontro e o confronto com a barata faz com que G.H entre num rito de
passagem ao devorar o inseto como vimos em fragmentos como este “A passagem
estreita fora pela barata difícil”, reconhecemos neles o rito de passagem abordado por
Freud. Ainda para este “Os motivos mais elevados para o canibalismo entre os povos
primitivos têm uma origem semelhante. Incorporando partes do corpo de uma
pessoa pelo ato de comer, adquire-se ao mesmo tempo as qualidades por ela
possuídas” (1925, p.62). Portanto, ao devorar o inseto G.H. adquire suas
propriedades. Lembramos aqui que a barata está internalizada na personagem.
A ironia nos romances de Lispector os quais selecionamos se instaura nos
contrastes estabelecidos nas narrativas como o amor fingido por Rodrigo S.M. pela
nordestina, a deterioração da imagem desta por ele visando seu corpo, sua
inteligência, etc, contudo sua necessidade de se auto descrever por meio dela,
assim também como G.H. se descreve através da barata mesmo que a princípio
haja um sentimento de repulsa e atração que acaba lhe levando a uma busca por si
por intermédio do inseto.
48
Ele: - Pois é.
Ela: - Pois é o quê?
Ele: - Eu só disse pois é!
Ela: - Mas “pois é” o quê?
Ele: - Melhor mudar de conversa porque você não me entende
Ela: - entender o quê?
Ele: Santa virgem Macabéa, vamos mudar de assunto e já!
(LISPECTOR, 1998a, p. 47-48).
Para Genette,
17
Os conceitos de ironia pura e tom ingênuo baseiam-se em Paiva (1961), sobre a ironia pura
fizemos um resumo das ideias contidas na p.10-13 e sobre o tom ingênuo na p.30-35.
49
[...] Era mais passível de salvação que Macabéa, pois não fora a toa
que matara um homem, desafeto seu, nos cafundós do sertão, o
canivete comprido mole-mole no fígado macio do sertanejo.
Guardava disso segredo absoluto, o que lhe dava a força que um
segredo dá (LISPECTOR, 1998a, p. 57).
50
Algo que nos é relevante também é o fato da bíblia afirmar que “Criou Deus,
pois, o homem à sua imagem, a imagem de Deus o criou; o homem e mulher os
criou” (Gn. 1:27). Portanto, ao matar o próximo atinge-se também ao criador, pois o
homem foi criado a sua imagem e semelhança. Analisando o trecho retro-citado de
HE, imaginamos como é possível que o personagem Olímpico seja mais passível de
salvação que a jovem Macabéa. Como ele pode ser melhor do que “ela” cometendo
um “pecado” tão grave? Talvez o motivo esteja no fato de que os mais fortes é que
sobrevivem nessa sociedade tão desigual. A ironia se estabelece nessas
dissonâncias.
18
O sagrado como estamos frisando neste trabalho segue as ideias de Paiva (1961), contudo Eliade
(2010) afirma que há espaços sagrados para o homem religioso, este não considera o espaço
homogêneo como aquele que se diz profano, porém mesmo este também o possui: “E, contudo,
nessa experiência do espaço profano ainda intervêm valores que, de algum modo, lembram a não
homogeneidade específica da experiência religiosa do espaço. Existem, por exemplo, locais
privilegiados, qualitativamente diferentes dos outros: a paisagem natal ou os sítios dos primeiros
amores, ou certos lugares na primeira cidade estrangeira visitada na juventude. Todos esses locais
guardam, mesmo para o homem mais francamente não religioso, uma qualidade excepcional, “única”:
são os “lugares sagrados” do seu universo privado, como se neles um ser não religioso tivesse tido a
revelação de uma outra realidade, diferente daquela de que participa em sua existência cotidiana.”
(ELIADE, p.18-19, 2010).
51
É interessante o uso que Lispector faz do discurso religioso nas duas obras
estudadas, a maneira como é trabalhada a questão do sagrado ligado ao profano,
então essa ironia ingênua, pura, assim como o tom sagrado, não pode ser visto
apenas como um simples recurso, mas sentimos a dualidade vivenciada pelos
narradores que por si refletem a dualidade sentida pela escritora, uma mulher judia
que teve que fugir da perseguição nazista aos judeus quando ainda era apenas um
bebê. Como não deixar marcas em sua escritura literária se seu corpo está marcado
por tais situações? Lispector chegou a afirmar que
o judaísmo, por sua vez, era vivido de forma crítica, como declarou a
um jornalista um ano antes de morrer: "Eu sou judia, você sabe. Mas
não acredito nessa besteira de judeu ser o povo eleito por Deus. Não
é coisa nenhuma. Os alemães é que devem ser porque fizeram o
que fizeram. Que grande eleição foi essa para os judeus?"
(ROSENBAUM, 2002, p.12).
Voltando a mim: o que escreverei não pode ser absorvido por mentes
que muito exijam e ávidas de requintes. Pois o que estarei dizendo
será apenas nu. Embora tenha como pano de fundo_ e agora
mesmo_ a penumbra atormentada que sempre há nos meus sonhos
quando de noite atormentado durmo. (LISPECTOR, 1998a, p. 16).
Contudo, ironicamente sua resposta por meio desse escritor masculino como
notamos no fragmento exposto, acaba sendo frustrada, ele demonstra possuir uma
mente “atormentada” e produz um romance cômico, o qual também termina por
“lacrimejar piegas” assim como uma literatura feminina era vista socialmente; ele não
consegue ir além de uma “literatura de cordel” como reconhece. Nesta passagem o
autor-personagem, de modo irônico, afirma que o que escreve “não pode ser
absorvido por mentes que muito exijam e ávidas de requinte” (LISPECTOR, 1998a,
p.16). Então, percebemos que a ironia foi o modo apropriado que a romancista
encontrou para fazer uma crítica corrosiva aos padrões impostos para se considerar
uma literatura boa ou ruim. A ironia de Lispector é considerada subversiva, fazendo
uso das palavras de Hutcheon: “[...] pode-se usar a ironia para reforçar a autoridade,
também pode-se usá-la para fins de oposição e subversão [...]”. (2000, p. 52). Nesse
sentido a literatura de Lispector é usada para fins de oposição, ela combate aos
padrões estabelecidos.
O cinismo típico da ironia pura dentro do tom aparentemente ingênuo (ideias
de Paiva) se manifesta nas falas do personagem-autor sobre a jovem nordestina,
nelas há a presença das contradições que nos confirmam cada vez mais a falsa
comiseração sentida por ele: “(Eu bem avisei que era literatura de cordel, embora eu
me recuse a ter qualquer piedade)” (LISPECTOR, 1998a, p.33), “Devo dizer que
essa moça não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e seria a
salvação. Mas eu tenho plena consciência dela” (LISPECTOR, 1998a, p.33), “Juro
que nada posso fazer por ela. Afianço-vos que se eu pudesse melhoraria as coisas.
Eu bem sei que dizer que a datilógrafa tem o corpo cariado é um dizer de
brutalidade pior que qualquer palavrão.” (LISPECTOR, 1998a, p.35).
Na mesma página do romance, o autor-personagem se contradiz nos
trechos citados, afirma não ter piedade da moça e em seguida, revela que ela não
tem consciência dele, se tivesse teria para quem rezar, rezaria para ele. Há uma
53
contradição no discurso, pois uma vez que jura não poder fazer nada por ela,
anteriormente afirmara não ter piedade de Macabéa, e isso nos direciona para o
cinismo trabalhado no tom ingênuo da ironia descrito por Paiva (1961).
A ironia pura em HE dentro do tom ingênuo vai se instalando nas falas
contrastantes do autor-personagem em que ele finge uma falsa comiseração pela
sua personagem, no entanto, ela é um engodo e no fim da narrativa esse engodo é
mostrado por ele ao tê-la destinado a abraçar a morte.
20
A HE ao todo possui 13 títulos: A culpa é minha, A hora da estrela, Ela que se arranje, O direito ao
grito, Quanto ao futuro, Lamento de um blue, Ela não sabe gritar, Uma sensação de perda, Assovio
no vento escuro, Eu não posso fazer nada, Registro dos fatos antecedentes, História lacrimogênica
de cordel, Saída discreta pela porta dos fundos.
21
Esta ideia de autor-narrador como já colocamos aqui, é de Rodrigues Lima, mas se formos para
Genette encontramos “Admitida essa redução, estabelece-se sem grande dificuldade um consenso
sobre uma tipologia de três termos, dos quais o primeiro corresponde ao que a crítica anglo-saxônica
chama a narrativa de narrador omnisciente e Pouillon <<visão por trás>>, e que Todorov simboliza
pela fórmula Narrado>Personagem (em que o narrador sabe mais que a personagem, ou, mais
sabe”). (1986, p. 187). Portanto, Rodrigo S.M. sabe mais do que finge por meio da ironia não saber e
enquadra-se nessa tipologia classificatória quanto ao narrador.
54
acordo (Muecke e Todorov) o fato de que a obra aqui a ser analisada tem como
objeto essa “condição humana” e para isso faz uso da linguagem irônica, cômica e
melancólica, embora estas últimas não sejam o nosso principal objeto de estudo,
mas a outra. A protagonista, Macabéa, é uma jovem alagoana que veio para o Rio
de Janeiro para uma “cidade toda feita contra ela” (LISPECTOR, 1998a, p.15), assim
já afirma o autor-personagem, Rodrigo S.M.. Não se pode negar aqui neste trecho
da obra, o uso da ironia, em que esta se manifesta pela desigualdade social
vivenciada entre o “clã do sul” e o “clã do norte”.
E nas palavras de Muecke,
Não nos esqueçamos que essa “fanfarronice” sobre a ironia, nos é também
colocada por Lambotte (2000).
Em a HE a ironia atua mostrando “o registro da falibilidade humana”, em que
a protagonista é uma moça ingênua advinda de uma classe social desfavorecida,
contudo não se dá conta de que vive uma vida miserável. O criador dessa
personagem é um homem, que apesar de possuir um certo status social, tem
conhecimento de sua vida falível e de que olham para ele como um ser estranho,
também sabe que a sua literatura é vendável e não chega até as classes de
pessoas como a sua personagem, apesar da história denunciar a vida de vítimas
como a sua protagonista. A ironia está no fato do escritor ter vivido sua infância no
Nordeste “[...] Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste” (LISPECTOR,
1998a, p.12), falar sobre uma classe a qual já pertenceu um dia, contudo na sua
atual condição saber que a mesma talvez nunca seja alcançada por ele:
Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A
classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com
desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca
vem a mim. (LISPECTOR, 1998a, pp.18-19).
Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior
nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando
e expirando. Na verdade_ para que mais isso? O seu viver é ralo.
Sim. Mas por que estou me sentindo culpado? E procurando aliviar-
me do peso de nada ter feito de concreto em benefício da moça.
(LISPECTOR, 1998a, p.23).
Outro fato marcante na vida de Lispector foi à morte de sua mãe, pois
esperavam com o nascimento da escritora que sua mãe fosse melhorar de sua
doença, o mal de Parkinson. O que queremos destacar é que ela sentiu na pele o
fato de ser uma imigrante, que herdou lembranças de seus familiares sobre a
perseguição aos judeus, e que como imigrante, mulher, e criada no Nordeste, sofreu
essa discriminação. Como não iria todos esses fatos afetar sua literatura, sua
linguagem, e nada melhor do que a ironia, ligada ao cômico e a melancolia para
serem usadas num discurso de autoproteção e resistência a uma sociedade
falocêntrica com a escolha de um personagem masculino para isso.
O interessante ainda a se observar nessas passagens de a HE (p.23), é que
apesar de sua posição como escritor, Rodrigo S.M., se rebaixa a um nível inferior a
da classe social da moça de sua história, pois ele não se encaixa nem na classe
desta nem na Classe Alta, já que se sente marginalizado. Nesse sentido, sua
condição é mais desfavorecida de que a de Macabéa, e assim se manifesta a ironia
contornante pela indiferença, superioridade e desdém com que ele a trata, contudo
ele se coloca abaixo da nordestina e numa divisória de classes na passagem
descrita.
Muecke destaca que
56
O título da obra escolhido, HE, dentre outros, como por exemplo, PSGH
como fora citado por Kadota, ratifica a ideia de paródia e ironia colocada por
57
Barbosa, por isso concordamos com ele, o leitor ao manusear o romance, de início
acredita que se trata de uma obra que conterá um certo brilho, esplendor, contudo
perceberá que sua ideia fracassou, já que o autor-personagem afirma “Que não se
esperem, então, estrelas no que se segue: nada cintilará. Nesse sentido, trata-se de
matéria opaca e por sua própria natureza desprezível por todos.” (LISPECTOR,
1998a, p.16). O título, por si só, já se configura como uma ironia, visto que o próprio
Rodrigo S.M. afirma que “nada cintilará”.
Para Montenegro, a passagem em HE mostra a diluição do sujeito,
“explicando a superposição (ou contraposição de falas), uma especial objetivação,
notavelmente paradoxal, porque ela nasce de outra diluição: a da objetividade
factualista de extração positivista” (2001, p.31). Somos de acordo com esta ideia de
Montenegro, pois percebemos “a diluição do sujeito”, “o factualismo”, nas afirmações
do autor-personagem ao declarar “[...] Ela era subterrânea e nunca tinha tido
floração. Minto: ela era capim” (LISPECTOR, 1998a, p.30). Aqui, Rodrigo S.M. a
coloca num estado de coisificação contrariando com outras falas em que ele afirma
amá-la: “[...] A moça que pelo menos comida não mendigava, havia toda uma
subclasse de gente mais perdida e com fome. Só eu a amo.” (LISPECTOR, 1998a,
p.30), porém em outro trecho afirma não ter pena dela: “[...] é verdade que também
eu não tenho piedade do meu personagem principal, a nordestina: é um relato que
desejo frio.” (LISPECTOR, 1998a, p.13). A ironia se dá nessas contradições.
Conforme Rodrigues Lima, essa obra é “metalinguagem pura, uma ironia
contra os clichês narrativos, (ou antinarrativa)” (2009, p.73) e confirma-se essa ideia
dele ao vermos na obra que todos os sonhos de Macabéa são frustrados. Coutinho
afirma que “Clarice Lispector parece ultrapassar um tom de coloquialismo e de
narração sem surpresas” (1997, p. 530). Ele coloca a questão do chamamento do
narrador ao leitor nos monólogos, afirma que eles nos “dão um caráter de
familiaridade ilusória” (1997, p. 530). Declara que o engano está na linguagem
comum, porque “na coisa comum podem-se condensar perguntas que não se
deseja” (1997, p. 530). A esse “engano comum” chamamos de ironia e ela se
manifesta por um suposto amor que o personagem-autor diz ter, contudo suas ações
revelam uma contrariedade quanto a isto ao afirmar que ela era “incompetente para
a vida” e que tinha “cara de tola”, “rosto que pedia tapa”:
58
22
Termo usado por Bakhtin (2010), o qual se encontra em nossas referências.
59
Grito puro e sem pedir esmolas. Sei que há moças que vendem o
corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez de
sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem
corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz
falta a ninguém. Aliás _ descubro eu agora_ também eu não faço a
menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria, sim, mas teria
que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.
(LISPECTOR, 1998a, p.13-14).
disfemística, apesar dela não se manifestar com tanta frequência como em a HE. A
repulsa da personagem pela barata em que afirma sentir ódio acaba levando-a a
reconhecer que somos anteriores a essa montagem humana e o fato de que é por
meio dela (a barata) que ela (G.H.) chega ao seu lado mais humanizado nos
direciona para a ironia disfemística, embora reconheçamos a presença intensificada
do tom sagrado na obra.
A ironia disfemística neste romance atua nesse jogo do humano ser buscado
pelo “inumano”. Embora haja uma discussão em torno da ironia em que é colocado
como uma de suas manifestações a oposição antifrástica entre o dito e não-dito,
concordamos com Hutcheon, quando ela expõe essa questão não como uma ideia
sendo anulada pela outra(dito/não dito): “[...] o que pode ocorrer se o significado
irônico for visto como sendo constituído não necessariamente apenas por uma
substituição ou/ou de opostos, mas por ambos o dito e não dito trabalhando juntos
para criar algo novo. “ (2000, p.97).
Baseados no pensamento acima exposto, podemos considerar o fato de que
há uma interação em alguns casos de ideias opositivas, sendo assim, é por
intermédio do inumano que G.H. atinge o seu humano e reflete sobre ele, apesar do
medo e do sentimento de falta de sua humanidade:
Ao declarar que o mundo não lhe “tinha mais sentido humano” nem o homem,
a personagem manifesta em seu discurso o que estamos expondo sobre a ironia
disfemística estar presente nesta obra, e enfatizamos que unida a ela encontramos o
discurso do tom sagrado pela evocação do termo “inferno” como um empréstimo
desse tipo de alocução para destacar a problemática existencial vivida pela
escultora.
O fragmento a seguir demonstra bem o que estamos destacando a cerca da
ironia disfemística:
não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for; pois “eu” é
apenas um dos espasmos instantâneos do mundo.
Minha vida não tem sentido apenas humano, é muito maior - é tão
maior que, em relação ao humano, não tem sentido. Da organização
geral que era maior que eu, eu só havia até então percebido os
fragmentos. Mas agora, eu era muito menos que humana - e só
realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse,
como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é
inumano. (LISPECTOR, 1998b, p.178-179) (Grifos nossos).
O mundo inumano pelo qual adentrou pela via crucis, a barata, faz a
personagem descobrir um simples fato: o fim daquilo, o qual acreditava que era não
era, ela rompeu seu “invólucro” e descobriu o seu humano mais “real” pelo mundo
inumano. Notamos por meio da oposição de ideias presentes no trecho aqui, o fato
delas não anular o dito pelo não dito, todavia um completa o outro, porque a sua
suposta perda humana acaba lhe levando a um imanentismo pelo qual descobre que
o não humano não a anula, mas a completa.
A colocação de Hutcheon (2000), com a qual somos de acordo quanto ao
dito/não dito na ironia, nos leva de encontro ao pensamento de Kahn se referindo ao
conto A solução de Lispector da seguinte maneira: “A tensão irônica da narrativa é
assim produto do contraste, da relativização e da justaposição de elementos
incongruentes da linguagem; em suma, da insistência em combinar o incombinável.”
(2005, p.87).
A ironia disfemística trabalha conforme Paiva (1961), rebaixando o homem a
categoria de animal, coisa, no entanto quanto a Lispector, esse apoucamento em a
PSGH não restringe, porém aumenta a coisa que se pretendia diminuir, fazendo uso
da ideia é a “insistência de Kahn combinar o incombinável”, sendo que um não
nulifica o outro. Tomemos como exemplo no romance abordado, o nojo inicial da
personagem G.H. tido pelo inseto e sentido ao comê-lo como uma perda de sua
“humanização” e depois vista como uma bondade alcançada pela mediação de algo
que imaginara feio:
Jesus Cristo quando disse: Quem achar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a sua
vida, por amor de mim, achá-la-á. Mt.10:39; numa ambivalência na qual uma
expressão não anula a outra como ora estamos a destacar, contudo para se obter
esse “ganho” se fez necessário perder algo, mas essa perda é vista como algo
positivo já que ela trouxe um ganho atingido pelo feio, o que nos remete ao grotesco,
ironicamente isso contraria a vida anterior da personagem, pois ela trabalha no
mundo da arte e antes tinha o belo como a beleza do mundo:
No entanto, como estamos afirmando, esse nivelamento que pode ser visto
como “rebaixamento”, não pode ser tomado somente como algo negativo (inumano),
que se opõe ao positivo (humano), a própria G.H. reconhece que a sua falta de
humanidade lhe completa mais do que a sua humanidade anterior e que por isso ela
quer esse “inumano”:
de G.H. era de um outro personificado por ela, por isso uma máscara em que ela
encarnava um papel. Também a presença de expressões de uso religioso como
“novo”, “caminho” e “ver” parece querer legitimar o que está sendo dito. Ainda no
tocante a esta questão as palavras de Sá com a quais acordamos sobre os últimos
livros de Lispector e o seu ato de escrever nos clarifica o fragmento:
Quando G.H. afirma “como é que se explica que eu não tolere ver, só porque
a vida não é o que eu pensava e sim outra como se antes eu tivesse sabido o que
era! Por que é que ver é uma tal desorganização?” (LISPECTOR, 1998b, p.13).
Fazendo uma ligação com a HE é intrigante como a vida de Macabéa, (personagem
predestinada ao seu papel de encontro com a morte desde o princípio da narrativa)
se “desorganiza” frente à mesma ao lhe ser revelada por Madame Carlota. A vida
miserável a qual levava, não era de seu conhecimento, mas ao lhe ser revelada
(momento epifânico) este viver “ralo” lhe é tomado:
Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter uma
forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que
fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e cortá-la
em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha boca e pelo
tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbirei à
necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar delimitada -
então que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma
se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a
nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande
coragem de resistir à tentação de inventar uma forma. (LISPECTOR,
1998b, p.15)
[...] Teria ela a sensação de que vivia para nada? Nem posso saber,
mas acho que não. Só uma vez se fez uma pergunta: Quem sou eu?
Assustou-se tanto que parou completamente de pensar. Mas eu, que
não chego a ser ela, sinto que vivo para nada. (LISPECTOR, 1998a,
p.32).
Mas como faço agora? Devo ficar com a visão toda, mesmo que isso
signifique ter uma verdade incompreensível? ou dou uma forma ao
nada, e este será o meu modo de integrar em mim a minha própria
desintegração? Mas estou tão pouco preparada para entender.
Antes, sempre que eu havia tentado, meus limites me davam uma
sensação física de incômodo, em mim qualquer começo de
pensamento esbarra logo com a testa. Cedo fui obrigada a
reconhecer, sem lamentar, os esbarros de minha pouca inteligência,
e eu desdizia caminho. Sabia que estava fadada, a pensar pouco,
raciocinar me restringia dentro de minha pele.
Como, pois, inaugurar agora em mim o pensamento?E talvez só o
pensamento me salvasse, tenho medo da paixão. (LISPECTOR,
1998b, p.14-15).
É interesse destacar aqui o fato de sermos diferentes dos outros animais pela
nossa capacidade de “pensar” e que Descartes dizia: “eu penso, logo existo”. Desse
modo, o jogo lispectoriano se dá nesse “emaranhado” de palavras aparentemente
antagônicas, mas que atinge na medida do possível o que ela deseja estranhamente
atingir por meio de sua literatura, o dito/não-dito o qual já falamos.
Gostaríamos de frisar que a HE começa com um “Sim” e finaliza com essa
mesma expressão:
Esse “Sim” nos lembra do discurso religioso e a sua parte sobre a criação do
“mundo”, assim como Deus criou o universo pelo poder da palavra, o narrador-autor
também como Deus de sua criação e pelo poder da palavra cria a sua personagem,
concedendo que uma molécula dissesse “Sim a outra” e nascesse a vida da jovem
70
alagoana. Pelo mesmo poder que lhe foi imputado por ele (ou Lispector), ele
apunhala como “Brutus” a sua personagem nordestina a qual dizia amá-la.
O tom sagrado da ironia usado por Lispector, apesar de deslocado do
contexto religioso, serve como um recurso para se chegar a inexpressividade de
algo não-dito (inexpressivo) mesmo que pelo dito (expressivo). É uma
complementaridade que se estabelece pelo jogo de ideias que são colocadas.
O que nos chama bastante à atenção, pois a PSGH inicia com o travessão “---
--- estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.” (LISPECTOR,
1998b, p.11), e finaliza com o mesmo “A vida se me é, e eu não entendo o que digo.
E então adoro. ------” (LISPECTOR, 1998b, p.179). Refletindo sobre esse recurso,
chegamos à conclusão de que a arte da busca literária para expressar o
inexpressável em Lispector é interminável, portanto não tem como haver uma
narrativa literária com início, meio e fim na escritura de nossa autora.
Este ponto sobre o qual trabalhamos algumas ideias quanto à escrita de
Lispector nas obras em análise e mais detalhadamente quanto a PSGH, possui um
subtópico e nele analisaremos um pouco mais sobre a busca que G.H. faz por
intermédio da barata, por isso desde já adiantamos o fato de que não tem como
tratar sobre essa “busca” sem entrar no jogo de alteridade que se estabelece no
romance por intermédio do inseto, visto que a ironia é exercida por ele.
Constatamos que tanto a barata quanto a personagem Janair representam a
alteridade de G.H. assim como Macabéa é a de Rodrigo S.M. Talvez essa constante
afirmação se torne enfadonha, porém é necessária.
Também enfatizamos o jogo de classes sociais presentes na narrativa, assim
como a reprodução do discurso falocêntrico por intermédio da própria G.H. que
como mulher foge aos padrões da época, exercendo a profissão de escultora e
vivendo sozinha, não possuindo marido nem filhos, mas acaba reproduzindo ideias
preconceituosas por acreditar erroneamente que, ao pertencer a uma classe
desfavorecida, sua empregada doméstica, Janair, mantinha deste modo, seu quarto
sujo, reproduzindo assim, o uso do discurso da “lei do pai”, do poder do “falo”.
Sabemos que o nosso objeto de estudo é a ironia, no entanto, não há como
abordar sobre uma temática de forma isolada sem levar em consideração outros
fatores que se manifestam nas obras as quais selecionamos. Com isso justificamos
o fato de tocarmos em outros assuntos como alteridade, discurso falocêntrico,
71
melancolia e, assim por diante, visto que eles estão imbrincados na temática
abordada.
A ironia ligada ao tom sagrado como destacamos aqui, se faz por intermédio
de um discurso de um contexto religioso usado fora deste para legitimar o que está
sendo dito e não dito, embora o mesmo aparentemente esteja sendo “deturpado”, o
que se pretende é fazer uso do mesmo para legitimar o dito/ não dito (fazemos uso
das ideias de Hutcheon nessas expressões), portanto a ironia ligada à disfemística,
ao tom científico e sagrado quando usada nas narrativas de Lispector ora
estudadas, é para atingir o inexpressivo pelo expressivo.
G.H. como vimos no ponto anterior, começa a partir do encontro com o inseto,
a fazer indagações, a curiosidade lhe domina, e então ela passa a comparar a
ancestralidade dele com a da raça humana. Entretanto, isso só foi possível porque o
desejo lhe sobreveio; ao esmagar a barata entre a porta do guarda-roupa, ela ansiou
por degustar a pasta branca que escorria da barata, enquanto a mesma agonizava:
“[...] Pois mesmo ao ter comido da barata, eu fizera por transcender o próprio ato de
comê-la” (LISPECTOR, 1998b, p.166). Este trecho coaduna-se com a ironia
disfemística descrita por Paiva “pela aplicação de características animais ao homem”
(1961, p.22). A ironia disfemística se concretiza aqui, no ato cometido pela
personagem ao devorar a barata, ao repartir com ela sua vida, ao comer o inseto a
narradora- autora igualou-se ao mesmo estado de animalidade dele.
Há também no ato de devoração do inseto conforme Nunes, “um impulso
sádico masoquista” (1969, p.100). Essa devoração nos leva de encontro às ideias de
Bergson [1900]-(2004) e Paiva (1961). Esta coloca o recurso disfêmico (irônico)
como forma de autodepreciação do corpo pela degradação vinculada à coisificação,
ao animalesco e aquele liga o riso à transfiguração que acontece de uma pessoa em
coisa, portanto, a heroína da PSGH, intertroca-se na posição de animal pelo ato de
devoração.
Ainda quanto a essa animalidade, a esse canibalismo, Paiva afirma quanto à
ironia disfemística que ela “atua desde a aplicação de características animais ao
homem” (1961, p.22). Indo de encontro a essa ideia da pesquisadora, Nunes
concorda que em Lispector “a presença da animalidade é intensificada” (1969,
p.126), e acrescenta: “os bichos constituem na obra de Clarice Lispector, uma
simbologia do ser” (NUNES, 1969, p.126), ou seja, baseando-nos nesta concepção
com a qual acordamos, a barata simboliza a alteridade de G.H.:
_ É que, mão que me sustenta, é que eu, numa experiência que não
quero nunca mais, numa experiência pela qual peço perdão a mim
mesma, eu estava saindo do meu mundo e entrando no mundo.
É que eu não estava mais me vendo, estava era vendo.
(LISPECTOR, 1998b, p.63)
1998b, p.11). Este tripé seria a sua vida secular, que por sua vez como vimos, era
um viver organizado. A perda desse tripé faz com que G.H., personagem incógnita,
pois o romance não informa o seu nome completo, apenas suas iniciais; tenha a
necessidade de escrever o que lhe aconteceu, para isso foi preciso, que recorresse
à busca da memória através da escrita.
Para Nascimento,
A lacuna de mais informações sobre o significado das letras G.H., faz com
que ela represente na nossa visão, todos aqueles que estão à margem da
sociedade, no anonimato, inclusive a própria Macabéa, personagem que seria criada
anos depois.
Com a perda de sua humanização, devido ao encontro com a barata, G.H.,
sente a necessidade de escrever para alguém para lhe falar sobre os fatos que
sucederam desde a partida da sua empregada ao encontro com a barata. Para isso
utilizou-se do fingimento: “esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um
sentido, qualquer que seja esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para
alguém” (LISPECTOR, 1998b, p.15). Esse fingimento é típico do ironista. (PAIVA,
1961).
Segundo Amaral,
concretiza a ironia disfemística que se concretiza como viemos tratando pelo ato de
devoração efetuado pela personagem, ele a coloca num estado de animalidade,
estado este típico da ironia disfêmica de acordo com Paiva, pois a mesma se
manifesta pelo “rebaixamento” do estado em que se coloca G.H..
O ato de G.H. ao comer o inseto quebra todo e qualquer ato de vigilância
imposto pela sociedade, baseamos a nossa afirmação em Bergson [1900]-(2004).
Segundo ele nos entregamos aos automatismos fáceis dos hábitos adquiridos em
sociedade, a personagem reconhece esse automatismo ao tratar da ordem social
das coisas:
O medo que eu sempre tive do silêncio com que a vida se faz. Medo
do neutro. O neutro era a minha raiz mais profunda e mais viva - eu
olhei a barata e sabia. Até o momento de ver a barata eu sempre
havia chamado com algum nome o que eu estivesse vivendo, senão
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O que eu era antes não me era bom. Mas era desse não-bom que eu
havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu
havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo
não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo o que for
acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso.
(LISPECTOR, 1998b, p.13). (Grifos nossos)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BERGSON, Henri. O riso. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral. São Paulo:
Cultrix/Pensamento, 1997.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Trad. de
Rogério Fernandes.
HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Trad. Julio Jeha. Belo Horizonte:
UFMG, 2000.
MUECKE, D.C. Ironia e o irônico. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo:
Perspectiva, 1995.
____. A clave do poético. Org.: Victor Sales Pinheiro. São Paulo: Companhia das
letras, 2009.
Webreferência
WWW.http://lucasnapoli.com/2009/05/03/o-que-e-falo-final/. Acessado em
04/09/2014.