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Sinopse

C onheça os valentes homens do Clube Inferno, que estão enfrentando seu maior

desafio.

O casamento!

Sebastian, Visconde de Beauchamp, vive guiado por um código de honra, e agora essa
mesma honra lhe diz que deve se casar com a senhorita Carissa Portland. Não se
arrepende de ter roubado um beijo dessa adorável intrometida..., e um adequado castigo
por meter aquele delicioso nariz onde não devia. Mas agora, flagrado em uma situação
comprometora, sabe que deve torná-la sua esposa.

Ele já havia enfrentado o perigo antes...

Mas nada comparado a isso!

Carissa não é fofoqueira..., apenas uma..., ‘dama da informação’. E tudo o que ela
estava tentando fazer era avisar o libertino Beauchamp sobre um marido furioso. Mas
nem sequer ela pode alardear isso para a sociedade, e enquanto sua cabeça lhe diz que
Beau é um notório sem-vergonha, o coração – e o corpo – está cativado por aquele
perigoso encanto. Mas, à medida que Carissa vai se aproximando da espionagem, o
segredo que descobre sobre o Clube Inferno pode, inclusive, acabar sendo mais perigoso
do que se apaixonar pelo próprio marido.

Capítulo 1
A lgumas pessoas neste mundo (tolos) ficavam satisfeitas cuidando da própria

vida.
Mas a senhorita Carissa Portland não era uma delas.
Sentada entre as primas, as formidáveis Filhas Denbury, com a preceptora, a senhora
Trent, roncando levemente no outro extremo, varreu a audiência com os delicados
binóculos de ópera, à qual estavam presentes mais ou menos mil pessoas no sábado à
noite, no Teatro Covent Garden.
Sem dúvida, os pequenos dramas, comédias, farsas e joguinhos da audiência eram bem
mais interessantes do que qualquer coisa que acontecesse no palco. Além do mais,
conhecer todos os demais segredos da alta sociedade parecia a forma mais segura de
proteger os próprios.
Examinando os três níveis de palcos dourados, esquadrinhou pausadamente a plateia,
enquanto as lentes dos binóculos das outras damas piscavam o olho de volta. Como
dominava a linguagem dos sinais, também, procurou aqueles tímidos sinais nos quais uma
dama discreta poderia enviar uma mensagem para um amante.
Hmmm..., bem ali. Lady S. – sentada ao lado do marido, havia acabado de abrir o leque
com uma batida e fazer um arco para o Coronel W. – que havia acabado de chegar com os
companheiros de regimento. O mequetrefe uniformizado sorriu com malícia ao receber o
convite. Carissa semicerrou os olhos. O homem tinha olhos verdes, típico. Melhor ter
cuidado com ele. Aleatoriamente, escolheu outros diferentes rumores daqui e dali: a
Condessa Jeweled, por exemplo, corria à boca pequena que ela estavade namorico com o
lacaio; e aquele senhor, político, que havia tido gêmeos com a amante que jurou de pés
juntos que não tinha.
Dos extremos opostos da sala, dois ramos de uma mesma família – Feuding –
fulminavam uns aos outros com o olhar, enquanto na parte de baixo, um notório caça-
dotes jogava um beijo sutil para a herdeira de algum invasor estrangeiro, que
aparentemente possuías algumas carvoarias.
Tsc, tsc, pobre homem, pensou, quando a ocasional espionagem recaiu na triste figura
de um marido enganado que havia apresentado queixa contra o sedutor da esposa.
Bom, as demais acompanhantes da frisa onde estavam exibiam seus produtos em
decotados vestidos e pareciam mais do que dispostas a consolá-lo.
Humpf! – pensou Carissa.
De repente, aquela exploração da plateia chegou a um ponto morto em uma frisa em
particular, no segundo nível, à esquerda.
Ela deixou escapar um suspiro. Ele está aqui!
No ato, seu nécio coração começou a bater com força. Oh, meu Deus!
Contornado pela lente do delicado binóculo, lá estava ele, recostado na cadeira, os
musculosos braços cruzados sobre o peito...
E o olhar cravado nela!
Um sorriso malicioso se abriu lentamente no rosto dele, e só para confirmar que, oh,
sim, viu que ele a comia com os olhos, aquele bonito demônio lhe enviou uma saudação
um tanto descarada.
Ela soltou um assobio quase felino e e soltou o impertinente binóculo no colo, como se
tivesse se queimado com ele.
Jurou que não voltaria a tocar nele até que o público soltasse uma nova onde de riso.
Oh, que inferno! Remexeu-se no assento, aflita, e olhou em volta inquietamente. É
claro que não estavam rindo dela, embora provavelmente ela merecesse.
Ao diabo com ele, com aquele olhar malicioso que a fez se sentir como uma prostituta.
Para a própria consternação, Carissa Portland estava se sentindo secretamente
fascinada por um libertino.
Mais uma vez.
De onde vinha aquela fraqueza, aquela suscetibilidade vergonhosa por um homem
atraente? Ela estava desesperada para descobrir.
Talvez devesse culpar seu cabelo castanho.
Os ruivos eram conhecidos por ter uma natureza mais apaixonada.
Provavelmente uma bobagem, admitiu, mas soava como uma boa desculpa.
E qual era a desculpa dele? Bom, nem se incomodou em procurar uma. Um semideus
de ouro caminhando sobre a terra como um filho desgarrado de Afrodite não precisava de
desculpa. Encanto, agudeza, incrivelmente atraente, com um sorriso que poderia derreter
as placas de gelo do Mar Nórdico.
Sebastian Walker, Visconde de Beauchamp, poderia ter conseguido o que bem
quisesse. Ele era o Conde de Lockwood, conhecido na alta sociedade como Beau.
Os dois haviam se conhecido fazia algumas semanas através de amigos em comum:
suas amigas mais próximas, Daphne e Kate, estavam casadas com companheiros dele do
Clube Inferno, Lorde Rotherstone e o Duque de Warrington. Frequentavam os mesmos
círculos e, é claro, havia ouvido falar sobre a reputação dele. Quase saíra no tapa com ele
não fazia muito tempo. O besta havia lhe dado um escandaloso beijo!
Em público!
Havia cometido o erro de detê-lo quando ele estava com pressa para ir a algum lugar.
Ficou receosa diante dele, mas precisava apenas de uma resposta simples a uma pergunta
muito séria: Aonde tinha ido todo mundo?
Tanto Daphne quanto Kate estavam ausentes da cidadefazia semanas, sem nenhuma
explicação. Isso era totalmente inusitado nelas.
Devido à amizade de Lorde Beauchamp com os respectivos maridos, tinha certeza de
que ele devia saber de algo. Os maridos também haviam sumido, supostamente em
alguma viagem de caça nos Alpes.
Mas Carissa estava começando a duvidar de tudo o que acreditava que sabia sobre
seus amigos. Todos estavam agindo muito misteriosamente antes de desaparecerem.
Tudo aquilo era muito incômodo. Ela não tinha nenhuma informação concreta, (Oh,
desesperador!), mas estava claro que ele estava tramando algo. Não entendia por que
havia sido excluída. A verdade era que, francamente, isso doía.
Felizmente, havia recebido uma carta de Daphne, finalmente, o que confirmava que
estava a salvo, mas a verborreia da amiga parecia deliberadamente vaga. E assim, com o
alívio chegou um incômodo ainda maior.
Por que diabos estavam mantendo-a no escuro deliberadamente? Por acaso não
confiavam nela?
Em um esforço para obter respostas, havia encurralado Beauchamp em um lugar
seguro (ou pelo menos ela acreditava nisso) e público. Mas, como ele havia se atrasado
demais, como ele mesmo disse, ralhando com ele, aquele magnífico bruto havia se
limitado a tomá-la nos braços e a por um ponto final às suas perguntas com um beijo
cheio de luxuria.
Como se ela fosse uma rameira de esquina, sem importância!
Se não estivesse chovendo..., se ele não os tivesse protegido da visão dos outros com o
guarda-chuva..., tinha certeza de que o escândalo teria sido tão desastroso que ter-se-ia
enforcado, ou, (para acompanhar a moda), ter-se-ia afogado no lago Serpentine.
Bom, o canalha obviamente não entendia as primeiras regras do comportamente
decente. Apesar de que, certamente, sabia como dar um beijo dos infernos em uma
mulher!
Propôs a si mesma se esquecer dele e de todo aquele episódio desconcertante,
tirando-o da mente pela força de vontade, direcionando a atenção para outra coisa.
O programa da noite começou com um concerto exuberante da Primavera, de Vivaldi,
seguido de uma trabédia medíocre chamada de A Filha Grega.
A segunda peça era uma comédia, A Fortuna da Guerra, à qual todos estavam
esperando. Tratava-se da última peça cômica do popular Senhor Kenney, um gênio notável
dentre a classe de escritores e membro fundador do Clube de Cavalheiros de Boodle.
Embora a obra não tivesse a presença do amado personagem recorrente do Senhor
Kenney, o malicioso Jeremy Diddler, parecia que a plateia estava gostando bastante.
Ondas de risadas tomaram conta da plateia enquanto os personagens faziam
brincadeiras de um lado para o outro do cenário. Carissa fez o possível para prestar
atenção, mas, pelo rabo do olho, estava bastante consciente de Lorde Beauchamp.
Quando a cortina se fechou brevemente para que os contrarregras pudessem mudar o
cenário, não conseguiu resistir e olhou cautelosamente na direção dele mais uma vez.
Teve a curiosidade recompensada quando viu uma das vendedoras de laranjas entrar
no camarote do Visconde para lhe entregar uma mensagem.
Carissa o viu pegar a pequena nota e lê-la, enquanto a moça das laranjas esperava uma
moeda.
Bom, Carissa não tinha escolha. Sua natureza inata de bisbilhoteira a obrigou. Pegou do
colo o binóculo de ópera e o levou aos olhos exatamente a tempo de ver o olhar ardente
que iluminou o rosto cinzelado de Lorde Beauchamp, que olhou para o outro lado da sala
com semblante suave, reconhecendo o remetente. Carissa focou o binóculo naquela
direção, também, tentando seguir o olhar dele.
Em vão.
Quem quer que tivesse lhe enviado o recado se perdeu em meio à multidão.
De fato, poderia ter sido qualquer uma daquelas rameiras de berço da alta sociedade
que queriam ter vez com ele nessa noite. Com o cenho franzido, fez uma busca nas
arquibancadas diante dele. Sinceramente, não sabia se estava mais irritada com
Beauchamp por todos os costumes de um puro-sangue, ou consigo mesma, por estar com
ciúmes por ele ser tão livre nas relações sem importância.
Virou de novo o binóculo para o Visconde, para ver o que ele faria em seguida. Beau se
virou para a vendedora de laranjas, pediu-lhe algo e ela lhe entregou um lápis.
Enquanto ele rabiscava a resposta, Carissa memorizou a figura da vendedora de
laranjas: meio baixinha, rosto cansado, como de camponesa. Ato contínuo, o libertino lhe
entregou uma nota junto com uma moeda e ela se foi para entregar a resposta.
À medida que a vendedora sumia pela pequena porta do camarote particular do
Visconde, as perguntas começaram a corroer Carissa. Com quem eleestava envolvido
ultimamente? É claro que ela sabia que havia muitas mulheres que o cercavam, como
regra geral, mas, havia alguém em particular?
E por que você se importa com isso? – perguntou seu bom senso.
Não sei. Preciso de algum motivo?
Sim, respondeu para si mesma.
Deu de ombros, negando-se a admitir qualquer coisa.
Só quero saber por que..., porque quero saber, ora!
De repente, teve uma inspiração malvada.
Podia ficar sentada ali, ardendo de curiosidade sobre qual mulher irresponsável estava
destinada a se jogar nas garras dele nessa noite, ou podia fazer algo.
Investigar.
Afinal de contas, como dama da informação, fazia tempo que descobrira que as
vendedoras de laranjas podiam ser..., subornadas.
Ótimo.
Levantou-se da cadeira instantaneamente e se desculpou com um sussurro. A
senhorita Trent acordou com um sobressalto, desorientada, enquanto as Filhas Denbury
reviraram os olhos. Aliás, essa era a resposta das belezas mimadas à maior parte das
coisas, na verdade.
— O que estás fazendo? – Queixou-se Lady Joss, de dezenove anos.
— Preciso ir à sala das senhoras.
— Não consegues segurar?
—Não.
— Oh, isso é repugnante – opinou Lady Min, de dezessete anos.
— Desculpai-me. – Fazendo caso omisso da irritação das primas, esgueirou-se para fora
do camarote Denbury e fechou a porta atrás de si.
Em seguida, Carissa, cujos sapatos repicavam barulhentamente em meio ao silêncio do
lugar,desatou a correr pelo corredor do terceiro andar.
Precisava encontrar e interceptar aquela vendedora de laranjas.
Sabia que não deveria se importar com quem Lorde Beauchamp compartilharia a cama
nessa noite, mas tinha que dar uma olhada naquela nota. Vê-la com os próprios olhos,
pensou, sem dúvida a ajudaria a se lembrar de que preciosas caveiras como Lorde
Beauchamp não passavam de problemas. Perseguiam o prazer e não se importavam com
quem sairia lesado.
Ela já deveria saber disso.
Por outro lado, com toda justiça – supunha – tinha que admitir que às vezes parecia
haver nele mais do que um simples encanto e carisma. E ombros largos. E músculos
encantadores. E tinha ainda aquela fascinante cor da espuma do mar dos olhos dele que
dançavam quando ria, o que acontecia amiúde, a mandíbula robusta, e lábios que pediam
muitos beijos...
Apressou-se para realizar a tarefa e avançou correndo. De fato, deixando a atração
física de lado, ele havia feito realmente algumas coisas interessantes na vida.
Usando os próprios métodos costumeiros, havia dado um jeito para descobrir uma
série de coisinhas estranhas sobre ele, incluindo algumas façanhas bastante coloridas do
passado de Beau.
É claro que a origem dele provinha de uma linhagem tão excelente quanto a dela. A
mãe, Senhora Lockwood, havia sido a grande beleza da época, e, de fato, ainda era,
mesmo aos cinquenta anos. Do pai, o Conde de Lockwood, dizia-se que era um brusco
ranzinza e que quase não ia à cidade, pois preferia caçar e atirar, a típica vida de um lorde
no campo.
Não sabia onde Beau havia passado a infância, mas que, como todo jovem nobre, havia
frequentado Oxford, estudou grego e latim e se sobressaiunas aulas sem ter que se
esforçar, conforme o que havia ouvido. Inteligente demais para o próprio bem, segundo
suas fontes, havia se aborrecido facilmente e se ocupara com sofreguidão de todo tipo de
aventuras selvagens. E até mesmo na juventude ele havia tido mulheres.
Aliás, um número indecente de mulheres.
Mas, ao que parecia, o jovem aristocrata luxurioso teve seus momentos heroicos,
também. Em uma ocasão, quando tinha vinte e um anos, de acordo com os rumores, ele
estava voltando para casa às primeiras horas da manhã, depois de uma longa noite de
orgia, quando se deparou com a casa de hóspedes tomada pelas chamas.
Não se sabe se foi devido ao uísque que estivera bebendo a noite toda que o deixou
estupidamente valente ou se ele sempre fora assim, mas, o fato é que ele havia se
precipitado para o prédio em chamas e resgatou todos que estavam lá dentro, antes
mesmo que os bombeiros chegassem. Salvou a vida de umas vinte pessoas mais ou
menos.
Não muito depois disso, seu pai, o Conde, fê-lo membro do Parlamento, usando um
dos municípios que controlava.
Havia colocado o filho no cargo para que este pudesse adquirir experiência, para ajudá-
lo a se preparar para que um dia ocupasse o lugar que tinha na Câmara dos Lordes.
Pouco importava ao conde que o jovem deputado tivesse provocado a indignação dos
líderes de ambos os partidos por causa do idealismo ardente, das críticas abrasadoras e a
negativa lamentável de se comprometer.
Supunha que era bom saber que nem sempre havia sido um cínico e que tinha senso
do dever cívico, apesar dos muitos pecadinhos românticos. Quando renunciou ao cargo
um ano mais tarde, desgostoso e irritado, voltou à antiga vida de libertino. Havia feito
inimigos políticos o suficiente para o resto da vida.
Esses, por sua vez, foram à forra contra o audaz e jovem Visconde, e correu à boca
pequena que ele havia se batido em duelo contra um rival exaltado por causa dos favores
de uma cadelona da alta classe da sociedade.
Beauchamp, universalmente conhecido como um atirador de primeira, nem se dignou
a matar o homem que o havia desafiado, somente o deixara ferido. Como resultado disso,
o rival teve que amputar a perna logo abaixo do joelho e, infelizmente, acabou que era o
sobrinho de um ministro de gabinete.
É claro que não havia nada escrito contra o duelo, pois era mais como uma cortesia à
classe alta que vivia e morria pela honra, mas essas leis quase nunca era aplicadas.
A menos que alguém tivesse inimigos nos altos escalões.
Os burocratas haviam derrubado Beauchamp como um martelo, dizendo que tinham
que fazer dele um exemplo, para mostrar aos outros jovens ingleses que não podiam
simplesmente sair por aí assim, atirando uns nos outros.
Foi só o que Lorde Lockwood pôde fazer para impedir que o filho escapasse
alegremente de Newgate. Em vez disso, depois de pagar uma grande multa e dos danos
causados ao agora atraente e jovem duelista com uma perna só, havia sido enviado, como
era de se esperar, para fazer uma viagem. Mandou o filho esfriar a cabeça selvagem no
estrangeiro, por assim dizer. Deram-lhe um posto ligeiramente unido ao esforço da guerra,
segundo se soube, mas, diante da insistência do pai, manteve-se geralmente fora de
perigo, bem atrás das linhas de combate.
Era muito difícil imaginar que não se metesseem encrenca, disse para si mesma, mas,
de alguma maneira, a guerra terminou e ali estava ele de novo, ileso.
Corria o rumor de que ele havia voltado para casa, para sempre.
E, é claro, mal havia se passado três meses que voltara à Inglaterra e já estava metido
em encrencas outra vez.
Ela não sabia muito bem o que diabos ele havia feito dessa vez, mas havia escutado
algo sobre o último atrito enquanto bisbilhotava no escritório do tio.
Sabia que seu tutor, Lorde Denbury, e seus compinchas da Câmara dos Lordes se
mantinham continuamente informados sobre as idas e vindas nas mais diferentes
incursões. Um daqueles informes parlamentares enviados ao seu tio havia lhe revelado
que o Visconde Beauchamp estava sendo investigado por uma equipe secreta do
Ministério do Interior. Não deram mais nenhum detalhe além disso.
Tudo isso era surpreendente demais, e era apenas uma parte da prova de que, por trás
daquele sorriso radiante, era uma semente formosa e má.
Correndo pela escadaria vazia, seguiu por entre os mezaninos, olhando para todos os
lados à procura de uma das vendedoras de laranjas em particular, aquela que tinha
aspecto cansado.
Um diálogo surdo vindo do palco e as risadas da plateia se fez ouvir através das
paredes da peça em curso. O Senhor Kenney estava, obviamente, matando a plateia de
tanto rir com o famoso senso de humor que tinha.
Carissa não tinha tempo para tal entretenimento, no entanto, o corredor entre os
mezaninos estava animado com todo tipo de serviço.
— Posso ajudar, senhorita? – Sussurrou um dos assistentes uniformizados quando ela
passou por ele.
Ela negou com a cabeça e deu, o que esperava que parecesse, um sorriso inocente, e
acelerou o passo.
Não seria bom que qualquer pessoa descobrisse o método secreto que ela tinha para
conseguir informações. Conferiu o bolso para se certificar de que tinha algumas moedas
para o suborno. Chegando ao longo da curva do corredor, escondeu-se no fundo do
contorno da sala fechada.
Quando virou o canto do corredor, finalmente viu a vendedora que procurava, mas
logo se agachou no vão mais perto das cortinas com um ofego. Alguém havia chegado
primeiro!
Cautelosamente, Carissa assomou pela beirada da cortina.
Maldição, mas quem era aquele?!Roubou meu plano!
Então, um calafrio a percorreu enquanto ela analisava o homem que falava com a moça
das laranjas.
Era bonito, tinha o cabelo preto e como que jogado para trás pelo vento, como se
tivesse acabado de chegar de viagem. Estava com o cenho franzido e viu que o corpo era
musculoso mesmo no escuro, ambora parecesse decididamente tacanho.
A boca de Carissa secou enquanto o via subornar a vendedora de laranjas para dar uma
olhada na nota que a dama, talvez sua senhora, havia trocado com Beauchamp. O coração
de Carissa bateu com força.
Oh, Beauchamp, espero que você não tenha assinado o bilhete com o seu próprio
nome.
Ninguém nunca assinava aqueles bilhetinhos clandestinos.
Com certeza ele era inteligente e experiente demais para cometer tal estupidez. Mas,
se tivesse cometido esse erro, temia que o libertino estivesse prestes a participar de outro
duelo. Pelo visto, parecia que ela não era a única a sentir ciúmes nessa noite.
Escondida atrás da cortina do balcão, viu com inquietude que o belo homem de
cabelos pretos estava lendo a nota e fazendo zombaria.
Ele soltou uma gargalhada cínica. Sacudiu a cabeça com um sorriso amargo e depois,
tensamente, pediu à vendedora outro pedaço de papel, o qual ela lhe deu. Amassou o
bilhete original e o enfiou no bolso da camisa.
Depois escreveu outra mensagem por conta própria.
Com um olhar sombrio, entregou o bilhete para a vendedora, colocando um dedo nos
lábios, como se lhe avisasse que era segredo.
Enfiou uma moeda na mão dela e a mandou de volta. O estranho ficou olhando a
vendedora se afastar, com as mãos nos quadris e as pernas afastadas. Depois, com um
sorriso frio, como se estivesse satisfeito por ter começado a armadilha, girou sobre os
calcanhares e se foi.
Carissa saiu facilmente do esconderijo, logo depois, e um terrível formigamento
percorreu-lhe o corpo todo.
Oh, Beauchamp, estão lhe estendendo uma armadilha!
Mal se atrevia a imaginar o que poderia acontecer com ele se fosse se encontrar com a
tal mulher do dia, fosse ela quem fosse. Poderia acabar morto!
Mais uma vez, Carissa se pôs em movimento, correndo atrás da vendedora de laranjas
para que não entregasse aquele bilhete, que não passava de um pedaço de traição.
Beauchamp podia ser um libertino mau e decadente, mas ela não estava disposta a
permitir que ninguém o matasse!
Correu atrás da vendedora de laranjas pelo corredor lateral, mas desacelerou ao
chegar à fileira de camarotes particulares, patinando até parar.
Tarde demais!
A vendedora já havia entrado por uma das portas estreitas até a metade da fileira.
Oh, não! E agora, o que é que eu faço?!
Com o coração trovejando no peito, olhou em volta inquietamente.
Estar simplesmente ali, de pé, sem acompanhante, em uma parte do teatro à qual não
pertencia, era algo assim como jogar na roleta. Depois de ter perdido a vendedora de
laranjas, a ideia de se aventurar na frisa de Beauchamp para alertá-lo lhe gelava o sangue
por ter que se arriscar a ser vista ali pelos outros bisbilhoteiros da plateia. Não podia se
dar ao luxo de forma alguma de se transformar em objeto de fofocas.
Já tinha coisas demais a esconder.
Foi então que se deu conta de que o mais inteligente que podia fazer era abandonar
aquela louca procura imediatamente, voltar correndo para o seu assento e fingir não não
havia visto nada.
Porém, a vida de um homem poderia estar em jogo.
E embora fosse completamente desesperador, o mundo seria um lugar mais escuro e
opaco sem ele. No entanto, pensando bem, talvez pudesse transformar essa pequena
virada do destino a seu favor...
Oooh, pensou. Uma troca de informação! Sim!
Se ele me disser onde estão Daphne e Kate e que diabos está acontecendo, então eu lhe
direi o que vi. É justo, não é? Se ele se negar, então talvez o libertino mereça o que possa
vir a receber.
Insegura sobre o que fazer, foi devagar até a porta do camarote, depois parou.
Provavelmente ele estava lendo o bilhete falso naquele preciso instante, começando a cair
na armadilha.
Ficou ali, destroçada e hesitante, quando algo lhe ocorreu. Se tentasse alertá-lo sobre o
que havia visto, ele se daria conta que ela estivera bisbilhotando seus assuntos pessoais.
Dar-se-ia conta também de que ela estava com ciúmes, e então, oh, então iria rir na
sua cara e zombaria dela como um colegial! E então, pouco importava o marido ciumento,
pois ela mesma mataria e torceria o pescoço daquele safado!
Nesse instante, antes que ela tivesse decidido o que fazer, a pequena porta do
camarote dele se abriu e a vendedora saiu correndo.
E atrás dela, o próprio arrogante surgiu, alto e principesco, a caminho do encontro.
Mas ele parou no mesmo instante no qual a viu, e arqueou as sobrancelhas.
Carissa ficou imóvel, olhando-o fixamente, com a língua presa. Sabia que fora
apanhada em flagrante. Ele esboçou um sorriso lupino que lhe deu ganas de gritar com
fúria mortificada e sair correndo. Mas se manteve firme e engoliu em seco, enquanto a
vendedora saía correndo, deixando-os a sós no corredor escuro e silencioso.
Próximos o suficiente para se tocarem.
— Ora, ora, minha querida Senhorita Portland, – ronronou ele, passeando o olhar
sobre ela em agradecimento pelo olhar de apreço à sua masculinidade. – Que surpresa
mais agradável. – Queres..., algo?

Capítulo 2
A pesar do habitual sorriso despreocupado, que usava como se fosse máscara de

carnaval, Beau havia entrado no teatro nessa noite e se flagrou com o humor sombrio e
desagradável, sentindo-se muito só naquela luta.
Estava sob enorme pressão, no limite mesmo, e irritado como o inferno por causa de
todos os golpes sofridos pela Ordem no último mês. Seu treinador, Virgil, estava morto, a
fuga e possível traição de Drake, seu companheiro Nick, Trevor e seus agentes
desaparecidos, e agora, a sombra do Ministério do Interior escarafunchando os métodos
de trabalho clandestino da Ordem.
Farto de tudo aquilo, havia entrado no território de caça dos ricos procurando o
remédio habitual: uma companheira de cama disposta a distrai-lo, mudando a frustração
que sentia por algumas horas de felicidade física.
Isso lhe faria bem, como a chuva pela manhã. Mas, quando saiu do camarote,
esqueceu-se da duquesa que havia lhe feito propostas. Ali estava um bocado bem mais
doce, a inimitável Senhorita Portland, olhando-o fixamente, como o gatinho malvado que
comeu o canário.
Não sabia explicar, mas algo naquela moça o fazia rir. Parecia que ela estava sempre
tramando algo, e por algum motivo, achou-a adoravelmente divertida.
Inclusive agora, a simples visão dela ali, de pé, iluminou seu estado de ânimo, como
sempre. Não conseguia controlar, parecia que sempre ficava meio estúpido quando ela
estava perto. Não conseguia parar de rir, como o bobo do povoado apaixonado pela
rainha da colheita. Reprimiu um sorriso.
Isto vai ser divertido.
— Minha querida Senhorita Portland – ele a cumprimentou com ar de grave
cavalheirismo, sabendo o quanto ela preferia o seu amigo, o grave e cavalheiresco Senhor
Falconridge, a ele. – O que te traz ao meu camarote esta noite? Com certeza eu não me
atrevo a esperar que tenhas vindo aqui só para ver a minha humilde pessoa.
Ela inclinou a cabeça e lhe deu um longo olhar de sofrimento.
— Se for assim, é claro, sou seu servo.
— Humpf... Talvez... – admitiu ela, levantando o queixo e cruzando as mãos atrás das
costas.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— É sério? E até admites? Geralmente tu somes toda vez que me vê.
— E por acasotu podes me culpar por isso? – Replicou ela com leveza.
Beau ficou olhando para ela.
Deus, quando sentiu aquele interesse feminino por ele, foi quase mais do que podia
suportar, e recuou um passo. Sentiu que suas regiões inferiores clamavam por ela e se
obrigou a afastar o olhar. Mas era verdade. De todas as mulheres naquele teatro,
incluindo atrizes e meretrizes (todas muito fáceis), a sobrinha de Lorde Denbury era a que
ele mais queria levar para a cama.
Infelizmente, isso era apenas fantasia, porque seus Irmãos Guerreiros já haviam
tratado de lhe descrever o que aconteceria se brincasse com a inocente amiguinha de
Daphne.
Geralmente ele não tinha medo de ninguém, mas eles eram agentes da Ordem, e três
deles,muito bem treinados, um pouco mais velhos e até com mais experiência do que ele.
Não, na verdade ele não gostaria de ter a cara amassada pelo punho de Rotherstone, ou
as costelas quebradas por um ataque de Warrington, isso para não falar do que
Falconridge poderia fazer com ele, tendo em conta o grande interesse do irmão do conde
de cabelo louro pela miúda dama da informação.
Jordan Lennox, Lorde Falconridge, recém-casado com a noiva que lhe fora designada
desde a infância, era do tipo tranquilo que nunca se irritava, mas quando se irritava, já era
tarde demais. O sujeito já estava morto.
Esses agentes experientes, um pouco mais velhos, conscientes das tendências
sedutoras de Beau e de como era seu amigo, avisaram-lhe que, como ela era a amiga
preferida de Daphne, conseguiram lhe arrancar, a contragosto, a promessa de não tocá-la.
Pouco importava o fato de que a lutadora, e por pouco rainha das fadas, quisesse ser
tocada.
Ah, bom. Mas isso não queria dizer que não podia olhar..., não é?
Ela estava usando um vestido simples de seda verde claro de primavera, parecendo
uma fantasia fugaz em torno do esbelto corpo. Mas, para sorte dela, ele já havia tomado a
decisão de não agir de acordo com a luxúria, além disso tinha as ameaças de morte por
parte de Rotherstone.
O fato era que Carissa Portland era uma mocinha bisbilhoteira e intrometida que tinha
paixão por desenterrar segredos, enquanto ele era um espião acusado de escondê-los da
Coroa. Uma moça como ela era problema. Problema esse que ele não precisava. Já tinha
muitos deles por conta própria.
— Então, o que posso fazer pela senhorita? – Murmurou, apoiando o ombro contra a
parede.
— Bom – ela mordeu o lábio e baixou o olhar, olhando-o fixamente por baixo dos cílios,
hesitando. – Para começar, podes me dizer com quem tu vais te encontrar...
— Como é que é?! – Exclamou ele, muito surpreso.
Ela se limitou a olhá-lo. Ele riu suavemente, cruzando os braços sobre o peito.
— E exatamente por que isso te importa?
— Por nada – disse ela, encolhendo os ombros e evitando o olhar dele. – Sou estou
curiosa.
Ele a olhou com ceticismo.
— Aliás, como é que a senhorita ficou sabendo disso, posso saber? Estavas me
espionando?
— Tenho olhos.
— E um nariz meio intrometido – ele concordou, dando pancadinhas com o dedo na
ponta do nariz dela. – Mas prefiro os lábios. Diz-me, – acrescentou com um murmúrio
confidencial, inclinando-se para mais perto – tu pensaste naquele beijo tanto quanto eu?
— Beauchamp!
—Portland.
Ela esboçou um sorriso hesitante, ao que parecia, apesar de si mesma, e se apoiou
contra a parede.
— Não – respondeu finalmente. – Não pensei nisso em absoluto. – E a pele macia de
marfim ficou rubra escarlate.
Beau a olhou, divertido.
— É uma lástima. Pensei que poderíamos ter outro...
— Creio que não. – Com olhar severo, ela o cortou e se afastou, colocando uma
distância segura entre eles.
— Muito bem, então, só que não tenho a noite toda, mocinha. Por que estás aqui?
Ela não respondeu imediatamente, mas considerou as palavras com cuidado.
— Seja lá com quem for que tu pretendes se encontrar esta noite, eu te aconselho a
não ir.
— E por quê, posso saber? – Ele arqueou uma sobrancelha fazendo uma careta
brincalhona. – Tens ideia melhor?
— Oh, agora chega. Eu te digo por que, assim que me disser onde está Daphne.
Beau gemeu e largou o corpo todo contra a parede.
—Por favor, não comeces com isso outra vez. Pensei que Daphne teescreveu.
Ele sabia com toda a certeza que assim era, porque foi o único que pediu à Senhora
Rotherstone que escrevesse para Carissa.
— Sim, eu recebi a carta, e te agradeço por isso. Eu sabia que tinhas algo a ver com
isso. Mas, mesmo assim, ela foi muito vaga. Olha, eu sei que está acontecendo algo, e sei
também que tu sabes o que é. Agora, tu podes me dizer o que é ou...
— Ou nada. – Interrompeu ele. – Não posso dizer nada.
— Por quê?
— Porque... Tuas amigas estão a salvo. E isso é tudo o que precisas saber.
Ela se afastou da parede, levantando os ombros com um gesto elegante.
— Está certo. A escolha é tua. Boa noite, Lorde Beauchamp. – Ela começou a se afastar.
— Espera aí, mocinha! – Ele a pegou pelo cotovelo para que ela parasse. – O que é que
tu ias me dizer?
— Hmmm?
—Estás sabendo de algo que eu não sei?
— Será que isso seria possível? – Zombou ela.
— Hmmm... Está bem, dona sabetudo. Vem cá. Vou sair com alguém. Reconheço, tu és
perita nas bisbilhotices da sociedade. Sabes de algo sobre a dama com a qual vou passar a
noite, que deveria ter em conta?
Ela riu zombeteiramente e soltou o braço do aperto dele com um puxão.
— Estás querendo que eu te diga, quando sei que não vais me dar nada em troca? Oh,
mas suponho que tu esperas que as mulheres caiam aos teus pés e façam o que tu lhes
diz!
— Seria bom – disse ele, encolhendo os ombros.
Ela se aproximou mais
— Ahá!
Então ficou sem fôlego quando ele lhe deu um belo sorriso.
— Então, é agora que eu te beijo? – Ele a atraiu para si, e embora ela franzisse o cenho,
permitiu que a aproximasse com suficiente boa-vontade. O pulso dele disparou com
aquela aquiescência. – Estás linda esta noite..., outra vez, atrever-me-ia a dizer.
— Elogios não vão te levar a parte alguma. Especialmente quando estás prestes a te
encontrar com outra mulher! Tu és um homem interessante, Lorde Beauchamp.
— Ora, vamos, o que há contigo? – Ele emgambelou-a com um sussurro sensual. –
Estás com ciúmes, querida? É por isso que estás aqui? Para que eu não preste atenção em
ninguém mais?
Ela se afastou com um resmungo.
— Na verdade, teu ego não conhece limites.
— Bom, não vejo por que isso deveria te interessar. Tu já deixastes bem claro que não
gosta de mim.
— Eu não fiz nada disso!
— É claro que não – disse ele com uma leve careta de sofrimento.
— Eu simplesmente não quero te ver ferido – admitiu ela com o cenho franzido com
cautela. –Deverias ter mais cuidado.
— E por quê?
Ela olhou para a parede e encolheu os ombros.
— Oh, não sei..., talvez pelos perigos que poderias esperar ao marcar esses encontros
idiotas se parasses para considerar os riscos.
— Por exemplo...? – perguntou ele, imensamente divertido.
— E se ela tiver aquela doença francesa? – sussurrou.
— E daí se ela tiver? – Respondeu ele.
Ela abriu a boca, horrorizada.
— Estás falando sério?!
— Ela está infestada dessa doença... Ora, vamos, estou brincando!
Ela deu um tapa no braço dele e sussurrou:
— Pois isso não é nada engraçado, diabos! – Em seguida apontou para o camarote
dele. – Por que não ficas longe de problemas e vais assistir a peça?
— Isso me entedia. Tanto quanto entedia a ti, aposto. Além do mais, aquela mulher me
prometeu prazeres os quais sequer tu poderias imaginar, – disse ele em tom desafiante,
só para ver o que ela ia fazer.
Ela o olhou, e seus olhos verdes dispararam chispas.
— Esse tipo de prazer, meu senhor, amiúde conduz à dor.
— Mas de vez em quando tem seus encantos, também. O que é que estás tentando me
dizer, boneca?
— Onde está Daphne? – insistiu ela.
Ele franziu o cenho, olhou para o relógio de bolso e se afastou da parede.
— Eu sinto muito, mas preciso ir.
— Está bem, então vai! Mas, já te ocorreu que essa senhora pode ter marido?
— Nem todas têm.
— Isso se chama adultério! – sussurrou.
— Ora, ora, estás preocupada com minha alma imortal... Que doçura!
— E com o teu corpo!
— Verdade? – Murmurou ele, fascinado.
—Eu não quis dizer dessa maneira! – Replicou ela, nervosa.
Ele riu baixinho.
— Pois meu chef poderia flambar algo nas tuas faces, amor.
— Só estou tentando te manter longe do escândalo!
— Mas eu gosto de escândalo. Os mexericos te deixam tanto tempo livre assim?
— Eu não sou mexeriqueira!
— Ah sim, desculpa-me. Dama da informação. Mas suponho que tens razão. Tu és
inocente e eu sou completamente malvado. Não devo te corromper – disse ironicamente.
– Portanto, despeço-me de ti, bela dama, mas devo te lembrar de que foitu quem veio me
procurar. Eu te desejo uma boa noite no teatro, e te peço desculpas por ter ofendido tua
delicada sensibilidade. Mais uma vez, isso é apenas uma sugestão, mas se minha
depravação te ofende, sempre podes tentar não te intrometer mais nos meus assuntos.
Piscou-lhe um olho e disse:
—Au Revoir!¹
— Aaaaiii! Beauchamp!
Ele parou e continuou de costas para ela, com um sorriso diabólico curvando seus
lábios.
— Sim, querida? – E se virou lentamente. – Precisas de mais alguma coisa? – perguntou
ele em tom de deliberada insinuação.
Ela levantou as mãos para cima com os punhos fechados.
— Por que és tão impossível assim?! Já pensastes alguma vez na dor que deves causar
a essas mulheres?
Ele zombou, fazendo caso omisso de algum remorso na consciência.
— Todas elas sabem muito bem que não devem me levar a sério. E tu deves aprender a
fazer o mesmo.
¹ - Au revoir – significa adeus em francês.
Ela se virou e começou a se afastar.
— Está bem, então, vai! E espero que aprendas a lição – completou ela em voz baixa. –
Bem que tu mereces o que lhe dão.
— E tu mereces uma auréola, suponho – respondeu ele.
— Isso significa o quê, pode-se saber?
Ele franziu o cenho e olhou para o outro lado, irritado por ter permitido que ela
chegasse até ele.
—Não importa.
— Nada disso, diz, o que é que quisestes dizer com isso? – Ela insistiu.
Ele olhou-a com o rabo do olho.
—Tu podes enganar toda a alta sociedade, Carissa Portland, mas receio que a mim não
enganas. Olha para ti, de pé aí, madura demais para ser enganada – e se aproximou. – Por
que vens até mim e me tortura? Hã? Por que não me deixas em paz?! Afinal, o que tu
queres que eu faça?!
Ela deu um passo atrás, três tons mais vermelha do que antes.
— Eu..., te rogo que me perdoe.
Ele arrastou um olhar ardente sobre o delicioso corpo de Carissa.
—O que tu precisas é de um bom beijo, para começar. – Sua boca se encheu d’água
enquanto percorria com o olhar os seios dela, cujos mamilos pareciam querer furar o
tecido do vestido, implorando pelo seu toque. Seu sangue se inflamou de desejo. – Oh,
sim. Está bastante claro que estás interessada. Mas o que é que tu esperas que eu faça
exatamente? Que e pegue à força? Sinto muito, não faço esse tipo de joguinho – informou
ele em voz baixa. – A não ser que tu venhas até mim por vontade própria..., caso
contrário, é nada, em absoluto. Mas, até que tu decidas o que vai ser, menina, corre para
tua casa, para o colo da tua babá. Vai em frente. Corre e te esconde de mim outra vez,
como fazes todas as vezes que nos encontramos. Sim, eu tenho defeitos, mas pelo menos
não sou hipócrita. Se tu tens medo do que sente, é problema teu. Mas não me procure
fingindo que tudo o que queres fazer é ralhar comigo. Acredite, fico feliz por satisfazer tua
curiosidade, e a minha própria também, sobre como vai ser entre nós quando estiveres
pronta para me pedir. Mas até então, eu preciso é de uma mulher de verdade, não de
uma menina. Portanto, se me deres licença, tenho um encontro, e com alguém que é
maior de idade, uma mulher adulta.
Isso é o que tu pensas, Carissa pensou furiosamente, muito consciente de que, na
verdade, era um homem que o esperava.
Um homem que ia dar a bela sova que o canalha merecia.
—Tu és rude, grosseiro, orgulhoso, horrível! Como te atreves?!
Sacudindo a cabeça e praguejando em voz baixa enquanto se afastava, saboreou a
ideia de que o canalha teria o merecido. Cada pancada que levasse nessa noite naquela
linda cara era totalmente culpa dele. E ele bem que merecia!
Algumas pessoas insistiam em cortejar o perigo. Mas ela estava tentando salvar o
diabo. E ela havia lhe insinuado o suficiente. O que acontecesse com ele, seria culpa era
apenas dele.
Ficou cravada no mesmo lugar, apertando os punhos, olhando-o ir embora pelo
corredor lateral mal iluminado. Quando desapareceu, ela bateu o pé no chão e amorteceu
um grito mental de raiva, como convém a uma dama.
— Oooooh!
Ele era a criatura mais exasperante da face da terra!
Um tremor de indignação mortificada a percorreu, furiosa consigo mesma por permitir
que ele percebesse que se sentia atraída por ele. E que estava com ciúmes!
Só podia estar louca se sentisse outra coisa que não fosse desprezo por aquele
libertino arrogante!
A forma como ele a olhava! Quem sabe até a tivesse despido com os olhos ali mesmo,
no corredor. Ainda indignada, voltou a si morrendo de vergonha.
Sentia-se nua pela forma com a qual ele havia olhado para o seu corpo e pelas coisas
atrevidas e pouco cavalheirescas que havia lhe dito. Mais alarmante ainda era o fato de
que, ao que parecia, ele a enxergou através daquela farsa virtuosa.
Lembrando-se da própria falsidade, imediatamente se deu conta de que era melhor
voltar para o seu assento.
Não lhe serviria de nada ter as primas lhe perguntando por que havia demorado tanto
no salão das senhoras. E mais difícil ainda se a Senhora Trent tivesse pedido a uma delas
que fosse procurá-la, para se certificar de que ela estava bem.
Como é que iria se desculpar se a preceptora não a encontrasse em parte alguma perto
do lugar onde ela havia dito que estaria?
Seu puritano tio a vigiava como um falcão, totalmente preparado, desconfiado, para
puxar-lhe a orelha se ela saísse da linha de novo.
Um erro apenas e a família já havia se preparado para protegê-la, graças à sua
inocência e juventude, e à influência duvidosa da alegre e mundana Tia Josephine, que
havia se encarregado da tarefa de criá-la depois que seus avós morreram.
Tia Jo era irmã do Conde de Denbury, que tinha dois anos a mais do que ele, embora
nunca o admitisse, e certamente não parecia, com o cuidado pródigo que tinha com o
cabelo e a cútis.
Vestia-se sempre de acordo com a moda, e ainda conseguia o que queria dizendo aos
muitos admiradores masculinos que tinha apenas trinta e três anos.
Depois do incidente, houve tal disputa entre tia Jo e tio Denbury que, às vezes, Carissa
ainda tinha pesadelos. Ela desejou não ter decidido espionar naquela ocasião em
particular.
Estremeceu enquanto se apressava para cruzar o mezanino para voltar ao camarote
antes que alguém notasse que ela estava demorando demais.Esperava que as primas
estivessem distraídas com as brincadeiras obscenas do Senhor Kenney. Com um pouco de
sorte, a Senhora Trent ainda estaria dormitando.
Lorde Beauchamp não estava à vista no andar de baixo. Carissa recolheu a saia para
evitar pisar no vestido devido à pressa e correu para a escadaria até o terceiro andar do
teatro. Ao mesmo tempo, a luta da família um ano e meio atrás lhe veio à mente, agora
que havia se lembrado.
Não tinha sentido se queixar do destino pela forma com o qual havia sido tratada, seus
pais morreram e depois os avós. A perda foi um acontecimento familiar àquela altura. Ela
havia aprendido a tratar, em todos os momentos, de antecipar o próximo golpe antes que
o mesmo chegasse.
Uma das melhores maneiras que havia encontrado para fazer isso era nunca se arriscar
se aproximando demais de ninguém, uma lição em dose dupla muito bem aprendida
depois da forma como havia sido traída.
Sentiu dor no estômago ao se lembrar de como havia decepcionado a família e de
como havia humilhado a si mesma. Ainda podia ouvir tio Denbury trovejando para a irmã.
— Como é que tupudestes permitir que isso acontecesse, Josephine?! Tu és a
responsávelpor ela! Se não fosse protegê-la, deverias ter deixado que Caroline e eu
cuidássemos dela anos atrás! Mas não, tu tinhas que criar a filha de Ben como se fosse
tua própria. Nossa pequena sobrinha..., e eu cedi porque tu não tinhas filhos. Mas não era
para ela ser tratada como adulta, Jo! Ela não passava de uma criança!
— Oh, Edward! Relaxe, tu estás parecendo velho. Todas as mocinhas já beijaram nessa
idade. Faz parte do crescimento.
— Mais do que beijar, foi o que aconteceu, Jo, e tu sabes muito bem disso! Aquele
bastardo conseguiu o pagamento que queria para comprar seu silêncio, e agora está em
algum lugar por aí e ninguém consegue encontrá-lo. Fugiu para a França, ou para a Itália,
pelo que me disseram.
— E o que me importa isso – Tia Jo havia disparado de novo, suavemente. – Eu jamais
deixaria que minha sobrinha se casasse com um idiota inútil daquele, mesmo que
conseguíssemos encontrá-lo. Oh, sim, ele é bem bonito, e até que não nasceu em berço
tão ruim, mas é um tolo. Fantasia consigo mesmo que será o próximo Lorde Byron! Foi por
isso que ela se apaixonou por ele, e por aqueles cachos despenteados e aquela poesia
idiota, eu te garanto isso!
— E ainda me pergunto quantas outras senhoritas esse Benton enganou – havia
grunhido o conde. – Se alguma vez ele colocasse a mão sobre uma das minhas filhas...,
mas eu nunca deixaria que isso acontecesse. Esse desastre aconteceu debaixo do teu
nariz, minha irmã. Tu falhastes com o nosso irmão, deixando-a sem controle. De fato, ela
seguiu o teu exemplo à risca! Essa mocinha é ingênua demais para perceber que uma
viúva de quarenta e três anos pode conseguir o que quiser, mas que isso é proibido para
uma debutante. Muito mal feito, Jo! Todos vós contribuísteis para a ruína dela.
— Eu não fiz nada disso! Podemos manter isso em segredo, e é golpe baixo se referir
assim à minha idade, isso é uma merda. Achas mesmo que eu queria isso para ela? Eu
adoro Carissa, eu a amo como se fosse minha!
— Tua o quê? Teu animalzinho de estimação? Teu gatinho fofo? Ela não é um
animalzinho de estimação, Jo! Não é um brinquedo. Venho dizendo isso para ti desde que
ela tinha seis anos! Ela não é um acessório feito para combinar com as tuas roupas, para
ser posta no colo e mimada quando tu te lembras de que ela existe, e depois te
esqueceres dela, quando estiveres ocupada demais com tua agenda social.
— Como é que te atreves a me criticar?! Eu fiz o melhor que pude para criá-la direito.
Eu sou a mãe dela! Bom, ela acabou sendo melhor do que aquele par de harpias mimadas
que tu tens!
— Agora tu insultas as minhas filhas?! – Havia berrado o conde. – Agora chega,
Josephine! Isso eu não vou tolerar. Tuas loucuras já causaram bastante dano à vida da
nossa sobrinha! Vou levar Carissa para Londres, essa é a minha decisão! Sou o tutor legal
dela, por isso talvez seja eu, em última instância, o único culpado. Ela só ficou contigo com
minha permissão, a quel eu revogo neste instante!
Os dois irmãos não mais se falaram desde então.
Carissa odiava ter sito a responsável por uma monstruosa disputa familiar. Tia Jo havia
partido em uma magnífica e longa viagem, enquanto Lorde Denbury havia levado Carissa
para a cidade.
Depois de uma severa reprimenda que havia posto nela o temor a Deus, ele a instalara
na própria casa como o mais novo membro da família, debaixo da proteção dele, caso
algum outro sedutor pretendesse desenhar um alvo no peito dela.
Mas o tio havia guardado o segredo dela, e quando subiu as escadas apressadamente,
Carissa entendeu muito bem que se cometesse só mais um erro, que saísse fora do
caminho reto e estreito que lhe fora traçado, não seria tolerado.Ela seria jogada na rua, ou
talvez, enviada para um convento de freiras. Atualmente, seu tio a olhava com
desconfiança e desaprovação quando em particular. O único ponto a seu favor era que ele
não havia contado nada para ninguém, nem mesmo para a própria esposa, o que havia
acontecido em Brighton. A verdade era que Lady Denbury jamais teria permitido que ela
ficasse na casa se soubesse. Não ia querer que Carissa contaminasse as filhas dela.
Somente três pessoas neste mundo, além de ela mesma, conheciam o segredo da
vergonha pela qual passara, apenas tia Jo, o tio e o canalha mentiroso que a havia
enganado. Rezava todas as noites para que Roger Benton não tivesse contado a ninguém
como havia conseguido se deitar com ela.
Esse havia sido o acordo: uma soma em ouro a troco desse segredo.
Uma bela poupança para que ele pudesse continuar com as atividades artísticas.
Ninguém queria pagar por aquelas rimas estúpidas, no fim das contas.
E acabou que ele não era nenhum Byron.
Não era de estranhar que fosse Lorde Beauchamp que houvesse visto através da
máscara de pureza que ela usava, admitiu para si mesma. Ao chegar à parte superior da
escadaria, prometeu a si mesma, pela oitava ou nona vez em dois dias, que não ia passar
perto dele outra vez. E a promessa se manteve até chegar à porta do camarote de
Denbury, onde fez uma incômoda pausa.
Ele ia morrer.
Se entrasse por aquela porta, voltasse ao seu assento e fingisse que nada havia
acontecido, ela bem poderia terminar com sangue nas mãos. O sangue dele.
Mais uma perda. E essa seria por culpa dela, porque, devido à ira e ao orgulho, havia
optado por não dizer nada quando podia ter falado e tê-lo advertido sobre o perigo que
corria.
Inferno, deveria ter lhe dito claramente o que havia visto, não porque merecesseou
não, mas porque era o certo.
Fechou os olhos.
Oh, Senhor, o que foi que eu fiz?! Não tenho consciência?
Olhou tristemente para a escadaria, depois mordeu o lábio, indecisa.
Mas o que há para decidir?! A vida dele pode estar em jogo! Tu tens que ir atrás dele!
Avisá-lo, como deveria ter feito antes. Precisas pelo menos tentar.
Só esperava que não fosse tarde demais...
Capítulo 3

Caramba, aquela mulher era uma absoluta dor de cabeça!


Quem ela pensava que era para querer corrigi-lo pela falta de moralidade..., sua mãe?
Na verdade, nesse assunto sua mãe era pior que ele, refletiu Beau, caminhando pelo
amplo e opulento vestíbulo do teatro, ainda enfumaçado.
Realmente ele não precisava desse mero deslize de uma mocinha, apontando coisas
que preferia passar por alto, como o lado feio do esporte favorito da alta sociedade tão
em voga: a infidelidade.
De fato, conhecia em primeira mão a forma pela qual famílias inteiras eram devastadas
depois de verem o dano causado pela separação dos respectivos pais.
Ele não gostava de pensar nisso, então tirou o assunto da cabeça. Isso era apenas a
forma com a qual o mundo funcionava, e protestar seria admitir quanto dano isso lhe
havia causado quando criança. Isso para não falar de como tudo que havia acontecido
havia magoado seu pai. Confie nos teus companheiros e nos teus cavalos, rapaz, havia lhe
dito uma vez um amargurado Lorde Lockwwod para seu herdeiro, quando Beau tinha
apenas onze anos, ao tentar explicar por que sua mão viveria na cidade dali em diante, e
por conta própria.
Apega-te a uma mulher e ela vai arrancar a metade do teu coração. Queres lealdade? –
aconselhou-o seu pai – arranja um cachorro.
Diabo, ele sequer queria dormir com a duquesa mais uma vez, mas, obstinadamente,
agora era uma questão de princípio. Não ia permitir que aquela ruiva desconcertante
cantasse vitória. Grunhindo baixo, foi até o corredor ao lado do vestíbulo, em direção à
discreta saída dos fundos.
Alijando Carissa Portland da mente, fixou os pensamentos no encontro que teria nessa
noite. A duquesa deliciosamente pecaminosa de Somerfield seria sua companheira por
uma parte dessa noite, depois cada um tomaria o próprio rumo, conforme o previsto.
Na porta dos fundos do teatro, Beau fez uma pausa e, paranoico como sempre,
inclinou-se, tirou a pistola do coldre do tornozelo, escondida pelo tecido das calças. Em
seguida, colocou a arma no cós das calças na parte das costas, onde seria mais fácil de
alcançar caso necessário, mas ainda escondida pelo casaco.
Só então pegou a maçaneta da porta e a abriu, saindo para o beco no qual ela havia lhe
dito que se encontrariam.
Pegariam o coche ali e iriam para onde lhes desse na veneta, se é que iriam muito
longe. O próprio coche serviria, e só isso importava.
O ar fresco da noite o invadiu quando a porta se fechou atrás dele. Deu as boas-vindas
ao frio calmante, tratando de sacudir a frustração com Carissa.
Mas o que é que havia com ela, afinal? Por que deveria sequer lhe importar o que
pensava dele?
Colocou o pé no beco, mas antes que os olhos pudessem se adaptar à escuridão, uma
furtiva sombra toda de preto se afastou da parede, à direita, e de repente se chocou
contra ele, colocando-o de costas contra a porta.
Beau mal teve tempo de reagir. A figura avançou sobre ele, agarrando-lhe o braço
direito enquanto lhe tirava a arma, como se antecipasse o movimento. A luz da lua brilhou
na lâmina de prata pressionada contra o pescoço dele, enquanto uma voz dizia:
— Boa noite, Sebastian.
— Nick? – Beau congelou, aturdido, sem fazer a mínima tentativa de se defender. Ficou
em estado de choque ao reconhecer seu irmão guerreiro, há tanto tempo desaparecido. –
Tu estás vivo!
O outro o soltou imediatamente.
— Desculpa-me, companheiro. – Nick tocou o casaco de Beau para verificar o dano
causado, depois deu um passo atrás com cautela, permitindo que ele se afastasse da
porta. – Não sabia se tu tinhas ouvido falar mal de mim. Tinha que me certificar de que tu
não viestes armado para brincar no jardim.
— Armado? Pensei que eu tinha vindo aqui para dar uma trepada.
Nick sorriu.
— Bom, não olhes para mim. – E a tensão começou a diminuir no rosto dele.
Assombrado, desatou na risada. Beau lhe deu uma palmada nas costas e um abraço de
urso, sentindo um nó na garganta pela emoção. A alegria e o alívio se debateram dentro
dele.
— Meu Deus, homem, onde diabo temetestes?! Não temos notícias tuas faz meses. Tu
estásbem?
— Sim, estou bem.
— Estás bem mesmo? – Beau deu um passo atrás e o analisou. Apesar de contente
demais por ver de novo o amigo de infância com vida, não conseguia evitar a sensação de
que havia algo errado.
Nick parecia desarrumado e meio descuidado, com barba de alguns dias e o longo
cabelo preto havia crescido desordenada e selvagemente. Mas no geral, não parecia tão
ruim quanto o desgaste em si.
Beau meneou a cabeça.
— O que aconteceu? E Trevor, onde está? Por que não entrastes em contato conosco?
— Não te preocupes com Trevor – garantiu Nick. – Atiraram nele na Espanha, mas ele
está se recuperando.
— E o tiro pegou onde?
— Foi ferido no ombro direito. A bala perfurou e quebrou a clavícula, mas está fora de
perigo e estão cuidando dele desde então. Ele vai ficar bem.
Beau olhou ao longo do beco.
— Ele está aqui?
— Não, é melhor mantê-lo longe de encrenca no atual estado dele.
— Que tipo de encrenca estás esperando? – Beau varreu todo o beco com olhar
inquieto. – Eles podem chegar em breve? Tu fostes seguido?
— Creio que não. Olha, – disse Nick, triste – fiquei sabendo sobre o Virgil.
A lembrança da morte do treinador deles o sacudiu. Beau esboçou uma expressão
sombria.
— A equipe de Rotherstone está no estrangeiro agora. Vão chegar até o filho da puta
que matou Virgil.
— Sabem quem fez isso?
— Niall Bancos – respondeu Beau.
Nick arqueou as sobrancelhas.
— O filho de Malcolm?
— Bom, sim e não. É que há uma probabilidade muito grande de que Niall seja, na
verdade, filho de Virgil, e não o sobrinho.
— O quê?!
— Creia-me, essa revelação nos pegou de surpresa também. Virgil e o irmão eram
apaixonados pela mesma mulher fazia anos, ou algo assim. – Beau encolheu os ombros. –
Então, Niall pode ter sido concebido por um dos dois
— Mas que merda! – disse Nick.
— Pois é. Capturamos Niall enquanto tu não estavas aqui, e quando vimos o velho e o
suposto sobrinho, acabou que eram cara de um, focinho do outro. Nunca vi o Highlander
tão fora de si! – Nick meneou a cabeça. – Infelizmente, temos mais problemas além da
morte de Virgil – continuou Beau em voz baixa. – Drake Perry, o Conde de Westwood.
Conheces?
— Sim, eu o conheço.
— Parece que ele se voltou contra nós. Toda a equipe dele morreu na Alemanha, e ele
foi capturado. Foi torturado. Os Prometeos deterioraram o cérebro dele de tal forma que
receio que possam tê-lo transformado em um deles.
Nick o olhou desconcertado.
— Se Rotherstone não conseguir pegá-lo, terão que matá-lo.
— Bom, esse é o protocolo padrão, não é? – Murmurou Nick com cinismo, olhando
para baixo.
Beau assentiu.
— Estou esperando notícias de Rotherstone, informando-me se encontraram Niall ou
Drake, e quando vão voltar. No entanto, por enquanto, a única coisa que sei é que,
quando eles voltarem, faremos uma cerimônia fúnebre em memória a Virgil, na Escócia. –
Então meneou a cabeça de novo, ainda emocionado até a medula por ver seu amigo com
vida, ali, de pé, ileso, diante dele.
Ele estivera se preparando semanas a fio para o pior.
— Eu estava até meio convencido de que íamos ter cerimônia fúnebre para Trevor e
para ti também. Homem, é bom demais te ver.
— É muito bom te ver também. Lamento te fazer passar por tudo isso. Não havia como
evitar.
— Mas que diabos aconteceu? – E deu uma palmada no ombro dele. – Por que não me
dissestes nada? Achou que minha amiga não ia chegar? – acrescentou secamente.
Nick sorriu.
— Não, não ia chegar.
Beau bufou.
— Obrigado pela mensagem, filho da puta.
— De nada.
— Então, quer ir até um bar ou até Dante House?
— Não posso. Não tenho muito tempo. – Nick parecia muito inquieto, olhando por
cima do ombro de novo.
— Está bem – disse Beau com cautela. – Dá-me a versão resumida, então. Onde
estivestes, e tudo o mais, Coloquei todos os agentes ativos na Europa à tua procura e de
Trevor.
— Eu sei. E é sobre isso que eu queria falar contigo. – Nick se virou e o olhou
duramente. – Preciso que tu recolhas os cães de caça, Beauchamp.
— Como é que é?!
— Para de te preocupar comigo.
— Bom, é óbvio, não é... – Beau franziu o cenho. – Tu estás bem aqui, exatamente
diante de mim. Tu voltastes.
— Não exatamente.
— O que queres dizer com isso?
Ele o olhou duramente de novo.
— Coloquei um ponto final. Com a Ordem. Quero sair – disse. – Não vou voltar.
— Como é que é?!
— É isso mesmo. Já fiz o meu serviço. Creio que agora tenho o direito de ter vida
própria – disse Nick friamente. – A guerra terminou. Napoleão morreu. Os Prometeos
foram todos dizimados. Chegou o momento de eu seguir em frente, e espero que tu
fiques fora do meu caminho.
— Seguir em frente?! – Beau fez eco incredulamente, inclusive mais surpreso com essa
conversa do que estivera enquanto procurava encontrar Nick com vida. – É isso que
viestes me dizer? É isso mesmo?
— Sim. É isso mesmo.
— Espera um pouco – ordenou-lhe, segurando Nick pelo ombro enquanto começava a
se afastar. – Sabes muito bem que não é assim que funciona. Não se cai fora. Tufizestes
um juramento. A Ordem é para o resto da vida.
— E quem foi que disse isso? Virgil? Virgil está morto. – Nick baixou o olhar para a mão
de Beau segurando seu casaco. Depois sacudiu a cabeça. – Não. Já dei o suficiente de mim
para o rei e para o país. Mas agora não posso fazer mais, não dá mais. Eu só quero sair.
—Nick, não podes dizer isso.
— Ora, mas é claro que sim! – Replicou ele. – Chegou a hora de eu começar a procurar
por mim mesmo. Nem todos nascem em berço de ouro, Beauchamp.
— Ah não, Nick! – O sangue sumiu do rosto dele. – Tu te metestes em encrenca nas
mesas de jogo de novo.
— Todo mundo tem algum vício. Não tenta bancar o santo comigo! Tu mais do que
ninguém. Tu e tuas mulheres. Mas não importa. Eu encontrei a solução. Tem gente por aí
disposta a pagar grandes somas em ouro por um sujeito com o meu talento. – Mostrou a
arma e sorriu.
Beau o olhou com surpresa.
—Tu te transformastes em mercenário?! – Um novo pensamento lhe ocorreu.
Aproximou-se de Nick com agressividade. – Onde está Trevor, exatamente? Ele nunca te
apoiaria nisso. No entanto, por mais desiludido que estivesse, jamais renunciaria. O que
fizestes com ele?
— Nada, por enquanto.
— Eu te juro que se fizestes alguma coisa a ele, que Deus te ajude!
— Não vai acontecer nada com Trevor..., desde que tu recolhas teus cães de caça –
disse Nick em tom pouco razoável. E manteve o olhar de advertência. – Deixa-me ir
embora, Beau, e esquece que tivemos esta conversa. Informa que fui dado como morto
no rol de vítimas da Ordem. Não que alguém vá sentir a minha falta...
— Mas Nick! Informar que fostes dado como morto?! – Estava tão surpreso pelo que
estava ouvindo que mal conseguia falar. – Perdestes o juízo?!
— É verdade, tem que ser algo mais do que isso. Devias informar que fui abatido numa
luta. – Assentiu com a cabeça. – Vai ser mais fácil assim.
— Não vou mentir para a Ordem por ti! Olha, se é uma questão de dinheiro, eu posso
te emprestar.
— Não! Eu te agradeço, mas não. Não quero mais tua caridade, tens sido mais do que
generoso. Sempre fostes um verdadeiro amigo para mim, Beauchamp. É por isso que vim
te dizer tudo isso cara a cara.
O coração de Beau acelerou no peito, olhando Nick incredulamente.
— Dizer o quê, que és um traidor?
— Não, eu não sou traidor, só quero sair – respondeu com cansaço.
— Todos nós estamos cansados, Nick, acredita. Mas isto está muito perto de terminar.
Se puderes esperar...
— Isso não me serve mais. Eu preciso ir agora. – E se afstou.
— Receio que não vou poder permitir que te vás. – Pegou a pistola e apontou para o
amigo, fazendo caso omisso da angústia, mas não tinha outro jeito a não ser fazer isso.
Nick o olhou, olhou para a pistola e depois o olhou nos olhos com olhar duro e
desafiante.
— Queres mesmo fazer isso com um irmão seu?
— Costumo cumprir as promessas que faço – respondeu ele em voz baixa.
Nick suspirou e olhou para o céu.
— Beau, Beau... Tu sempre fostes aquele que acreditou de verdade, não é? A valente
Cavalaria. Nós éramos crianças quando fomos recrutados. Que opção tínhamos na época?
— A Ordem é nossa herança. E nosso dever.
Nick riu suavemente e olhou para o chão.
—És muito engraçado. Deus! – E meneou a cabeço. – Olha, não tenho tempo para isso.
Adeus.
— Vou atirar em ti se preciso for.
— Não entendestes ainda? Nada disso vale a pena. Tu não estavas lá, Beau. Quando
Trevor foi atingido, pensei que o havia perdido. Felizmente, ele é forte e sobreviveu. Mas
no instante no qual eu o vi ser atingido, foi o cúmulo para mim. E tu, acreditas mesmo que
aqueles filhos da puta, os do alto escalão do comando, importam-se uma vírgula com o
que acontece com qualquer um de nós?
Beau engoliu em seco.
— Nick, precisamos de ti nessa luta.
— Lamento muito, creio que não sou tão desinteressado quanto o resto de vós. Só
estou em Londres para executar um trabalho. Diz aos demais o que achares que deves.
Como líder de equipe, vou ficar fora do teu caminho, e do deles, se ficares fora do meu.
Quem sabe eu vá viver em uma ilha isolada em algum lugar, assim que tenha conseguido
amealhar minha fortuna – acrescentou com um meio sorriso triste. – Agora, se eu ficar
sabendo algo novo sobre os Prometeos, fique tranquilo que vou me certificar de que a
informação é verdadeira e lhes mandarei um relatório. Enquanto isso, não quero ser
perseguido pela Ordem, nem que mandem franco-atiradores atrás de mim. Vou ficar com
Trevor como garantia para me certificar de que me deixarão em paz.
— Quero vê-lo primeiro.
— Não vai dar. Receio que vais ter que confiar em mim.
— Confiar em ti? Depois disto?! Pode ser que estejas mentindo! Tu és um grande
jogador, no fim das contas. Como vou saber que Trevor não está morto?
— Ora, tu me conheces suficientemente bem para saber quando minto, Beauchamp.
Eu te disse a verdade. Trevor está vivo e bem. Não está muito contente, claro, – admitiu
Nick – mas continuará incólume, desde que a Ordem me deixe em paz, repito. Do
contrário, pode ser que ele nunca mais veja a noiva dele.
Beau não se atrevia a acreditar que Nick realmente prejudicaria o terceiro membro da
própria equipe. Trevor era como um irmão para os dois. Mas todo esse episódio o havia
flagrado com a guarda baixa, por isso ficou se questionando se ainda podia confiar no
próprio julgamento da situação, principalmente quando, no fundo, algumas das coisas
que haviam decepcionado Nick faziam eco nele, também.
Deus sabia que ele entendia exatamente como Nick se sentia. Ele só optou por ignorar
esses sentimentos, junto com tantas outras coisas que escondia no coração.
—Eu te peço por favor que não faça isso, Nick – disse sem se alterar, invocando cada
grama de autoridade calma e tranquilizadora que já tivera alguma vez como líder de
equipe. – As coisas ainda podem se ajeitar. Quanto ao que aconteceu, sabes que pode
contar comigo. Sou teu irmão, e sempre serei. Só me diga do que é que precisas. Dinheiro
eu posso te emprestar. Influência... Vou junto contigo para falar com os anciãos.
— Chega! Eu mesmo luto minhas próprias batalhas, e podes ter certeza de que não vou
te arrastar comigo nisso. Acha mesmo que quero fazer isto deste jeito? Mas é como tem
que ser. Eu devia ter tomado esta atitude faz muito tempo. A vida de mercenário combina
com a minha natureza – disse com um sorriso triste. – Aceito trabalho quando quero.
Mudo de lado quando não me agrada o aspecto do mesmo. Tenho a liberdade de escolher
o trabalho e com quem trabalho. Ninguém me dá ordens. Eu faço minhas próprias regras.
Tu devias te unir a mim, Beau. Devias mesmo. Não que precises de dinheiro, mas há um
inferno de muita diversão.
— Meu Deus, Nick!
— Ainda estou tentando convencer Trevor, mas creio que ele vai se juntar a mim
redondinho. Ele está começando a ficar muito entediado naquele porão.
— Porão? Maldição!
— Relaxe. Lá ele tem tudo que precisa.
— Mas então ele é teu prisioneiro. Teu melhor amigo, aquele que te salvou a vida
várias vezes dando o próprio sangue, se bem me lembro. Teu refém...
— Digamos que ele é a minha aposentadoria por anos de serviço fiel. Um seguro de
vida, meu amigo. – Assentiu com a cabeça. – Bom, nós mercenários não somos muito
agradáveis, não é? Não somos como vós, valentes Cavalheiros da Ordem.
Beau fechou os olhos por um instante, suando frio. Isso era um pesadelo. E o pior de
tudo era que ele nunca havia previsto que isso pudesse vir a acontecer. De todos os
destinos terríveis que havia imaginado em meio à escuridão da noite, tentando inventar
alguma explicação lógica para o sumiço de Nick, mas esse de agora era um que jamaisteria
sequer imaginado.
Por outro lado, Nick sempre havia sido rebelde, mesmo para os padrões da Ordem, e
foi, sem dúvida, o mais feroz membro da equipe de Beau, que era o líder, e da qual Trevor
era o cérebro, o estrategista, o planejador. Mas Nick sempre havia sido o assassino mais
hábil. Um pesadelo sangrento.
O olhar de Nick desviou para a pistola na mão de Beau e apontou para ela.
— Agora eu preciso ir – disse. – Vou transmitir a Trevor teus cumprimentos. E não te
preocupes, vou libertá-lo assim que eu estiver livre. Cuida-te bem, Beauchamp. – Hesitou.
– Foi uma honra servir convosco.
Ele inclinou a cabeça como sinal de despedida e, ato contínuo, virou-se
deliberadamente e começou a se afastar.
— Pare! – Gritou Beau. – Tu estás preso, Nick!
— Não, não estou – respondeu, embora fizesse uma prudente parada, levantando as
mãos.
— Não me obrigue a atirar em ti.
Nesse preciso instante, a porta do teatro à direita e atrás de Beau se abriu de repente,
batendo nas costas dele, que deu um passo à frente para recuperar o equilíbrio. Seu
primeiro pensamento não foi que Nick esperava problemas, mas sim que ele devia ter
trazido alguns parceiros mercenários como companhia. Beau reagiu instantaneamente e,
apontando para a perna de Nick, apertou o gatilho.
Nick praguejou e se abaixou, segurando a coxa. Mas, como o agente bem treinado que
era, o contra-ataque foi igualmente rápido. Disparou também quando Beau se virou para
olhar a terceira pessoa à porta.
Beau ouviu o disparo e praguejou quando a bala disparada por Nick pegou-lhe de
raspão no bíceps. A bala, porém, seguiu a trajetória até atingir o recém-chegado, também.
Só que não era um maldito mercenário
Já com o punhal na mão, Beau parou antes de atacar.
Carissa!
Seu rosto ficou branco quando ela levantou a mão enluvada e tocou o lado direito da
cabeça.
Nick pragueijou.
O tempo pareceu parar enquanto Carissa olhava para a luva branca manchada de
sangue.
Em seguida, levantou o olhar sem entender nada e viu Beau olhando para ela,
horrorizado.
— Oooohhh! – murmurou. Arregalou os olhos e desmaiou.
Beau a segurou quando desmaiou, mas, olhando por cima do ombro, começou a
praguejar como um lobo do mar.
Nick havia desaparecido, e a moça dos seus sonhos jazia inconsciente e sangrando nos
seus braços.
Capítulo 4
C arissa acordou no escuro e com uma sensação de velocidade. Estava em uma

carruagem. O barulho dos cascos e das rodas sobre as pedras desiguais do calçamento
fazia com que sua cabeça doesse ainda mais. De repente, o terror se apoderou das suas
entranhas, pois além de tudo, não sabia onde estava nem o que havia acontecido. A parte
de trás da cabeça parecia que estava em chamas.
Lutando para se orientar, começou a entrar em pânico de novo ao encontrar sua
mente, geralmente ocupada, com um grande espaço em branco.
Quando começou a se levantar, braços fortes a acalmaram.
— Shhh, deita de novo – disse ele num sussurro.
— Beauchamp? – Foi então que se deu conta de que ele a estava segurando, mantendo
algum tipo de tecido apertado contra um dos lados da sua cabeça.
— Estou contigo, meu bem. Apenas deita e relaxa. Vai ficar tudo bem – garantiu ele,
mas ela ouviu tensão na voz dele.
Os braços de Beau eram maravilhosamente bons em volta dela, muito protetores, mas,
enquanto se perguntava por que iam a toda velocidade cruzando ruas escuras numa
carruagem, de repente se lembrou.
Aquela explosão no instante no qual havia aberto a porta do teatro para adverti-lo
sobre o perigo...
E atiraram nela! Na cabeça.
Só que a bala era para ele.
— Eu vou morrer? – murmurou.
— Não, meu bem, é claro que não – garantiu ele. – Tu vais ficar bem. – No entanto, seu
tom de voz, sufocado, não foi muito convincente. Pensou que estava agindo com muita
brusquidão para que soasse tranquila. – Eu vou cuidar de ti, eu prometo. Agora só
precisas relaxar. Mantém a calma. Fica quietinha e deixa que eu mantenho a pressão no
ferimento, caso contrário a coisa pode piorar.
— Estou assustada – gemeu ela.
— Eu sei, meu anjo. Mas tu precisas ser valente um pouco mais. Estamos quase lá.
— Lá onde? – Lutando para manter os olhos abertos, olhou através da janelinha da
carruagem e viu a silhueta negra das torres distorcidas à luz da lua, envoltas pela névoa.
Ficou sem fôlego e tentou se levantar.
O Clube Inferno!
— Não! Eu não posso entrar lá! – Gritou freneticamente, ou pelo menos foi o que
pensou. Na verdade, sua voz saiu como um murmúrio.
— Calma, está tudo bem. Tu vais estar a salvo.
— Nenhuma moça decente entra lá. Vou ficar arruinada...
— Shhh... – sussurrou ele de novo, tranquilizando-a com um aperto na mão. – Meu
bem, tu vais ter que confiar em mim – sussurrou. – Confia em mim.
— Ooohh! – Seu pulso acelerou e a luta fez com que o sangue fluísse mais rápido pelo
ferimento, como ele havia lhe avisado.
Ela sentiu o sangue escorrendo quente junto ao ouvido e pela lateral do pescoço, e
essa sensação era tão repugnante, tão horrível que, muito a seu pesar, como uma idiota,
desmaiou de novo.
Beau a aconchegou nosbraços, tentando evitar que ela balançasse muito, quando se
aproximaram da sede da ordem. O coração dele batia forte, tomado de horror.
Havia visto muitos homens levarem tiro na vida. Ele mesmo havia sido o responsável
por muitos dos quais havia se dado ao trabalho de contar. Mas isto..., isto era
completamente diferente, pensou enquanto olhava o sangue que saía da cabeça de
Carissa Portland.
Na verdade, estava em um estado inaudito de puro terror, logo ele, um agente
rigorosamente treinado para não ter medo de nada. Mais do que isso, estava furioso.
Ia matar Nick por causa disso!
E se Carissa sobrevivesse ao tiro, era bem capaz de matá-la também, por ter ido atrás
dele para bisbilhotar e ainda por cima levar um tiro!
Quem sabe agora ela aprendesse a lição!
Estás vendo, meu pai? Estás vendo por que não me caso? – pensou, irritado. – Encontro
uma maldita moça de quem eu realmente gosto e ela acaba levando um tiro. É por isso
que só lhes ofereço cama e mantenho distância delas.
Será que era tão difícil assim de entender?
Não deu atenção alguma ao próprio ferimento no braço. Já havia tido piores. Era ela
que importava, e, no escuro, com todo aquele cabelo longo e grosso, não dava para saber
ainda a extensão do ferimento. Mas, com um pouco de sorte... Argh!
A cabeça dela estava sangrando muito, mas isso era bom, pelo menos era o que os
chefes diziam, conforme a própria experiência, tentou convencer a si mesmo. Sangue
demais não era nada bom, mas quando se tratava de lesões na cabeça, as pancadas das
quais não saía sangue algum, às vezes eram os piores. A pessoa adormecia e não acordava
de novo.
Se o céu tivesse misericórdia de um pecador como ele nessa noite, o ferimento poderia
ser apenas um corte, igual ao que ele tinha no braço.
Escolheu acreditar por enquanto que a bala havia pegado de raspão nela. Até que
pudesse examiná-la sob a luz, passar os dedos através daquelas luxuosas madeixas
castanhas, olhar o couro cabeludo e limpar o ferimento, determinando a gravidade do
mesmo, aferrava-se à esperança de que talvez não fosse tão ruim quanto parecia por
causa de todo aquele sangue. Ou poderia ser até pior.
Porém, uma coisa era certa: nesse momento podia entender com clareza o porquê Nick
queria deixar a Ordem.
No momento, com a carruagem sacolejando através das escuras e enevoadas ruas de
Londres, com o cocheiro chicoteando os cavalos para galoparem o mais rápido que
pudessem, sentia-se tentado a ir para o campo e viver uma vida tão aborrecida quanto a
do seu pai.
Sim, esquecer-se daquele jogo de espiões e todas aquelas emoções ilícitas.
Seu pai havia se transformado em um velho chato, fazendeiro que fumava cachimbo,
sem mais preocupações aflitivas do que decidir qual raça de ovelhas comprar para a
próxima primavera.
— Aguente firme. Luta, por mim, mocinha – murmurou para ela, pois já estavam se
aproximando do Clube Inferno. – Há uma lutadora dos diabos dentro de ti. Eu sei. Eu já vi.
Vamos, aguenta. Fica comigo, amor...
Graças a Deus, a carruagem finalmente parou diante de Dante House. Ir para ali era um
ato reflexo que tinha todas as vezes que tinha problemas, e pelo próprio treinamento em
tratamento médico de sobrevivência no campo de batalha, para que pudesse cuidar de si
mesmo e da própria equipe durante as missões, sabia que era o lugar onde teria tudo o
que precisasse para cuidar dela adequadamente.
Se o ferimento na cabeça dela estivesse além da sua capacidade de lidar com ele, a
Ordem sempre tinha dois ou três competentes médicos-cirurgiões dispostos a ajudar os
agentes se preciso fosse.
O cocheiro abriu rapidamente a porta da carruagem. Beau e Carissa estavam suando
frio, a testa de ambos perolada de gotas de suor, e as longamente esquecidas orações
correram céleres pela mente deles.
Ela ia ficar bem. Tinha que ficar. Não conseguia suportar a ideia de que qualquer dano
sobreviesse a ela, principalmente quando era culpa dele.
Ela não podia morrer, especialmente quando as últimas palavra que havia lhe dito
foram tão grosseiras e impróprias, proposições de um profundo canalha, quando a
verdade era que, no fundo, ela tinha mais sentido para ele do que a maioria das pessoas
em Londres.
Tirou-a da carruagem, a qual agora também tinha manchas de sangue, carregou-a com
cuidado até a sede, a casa do seu treinador.
— O portão – ordenou.
O cocheiro correu à frente, abriu de par em par o portão preto de ferro forjado e
correu de novo até a porta principal de Dante House.
Beau avançou pela trilha carregando o corpo inerte de Carissa nos braços.
— Cuidado com os cães – disse ao cocheiro. – Espera aqui. Pode ser que eu precise que
tu vás buscar o cirurgião, caso isto esteja além da minha habilidade. Do contrário, vou
precisar de uma mãozinha para ajudar.
— Sim, meu senhor. – Respondeu o cocheiro, abrindo a porta principal, e quando Beau
entrou, a matilha dos ferozes cães guardiões correram em volta dele para cumprimentá-
lo.
Fechou a porta com um pontapé e gritou em alemão com os cães, para que se
calassem. As feras negras se sentaram e se calaram.
— Gray! – berrou Beau.
O velho mordomo veio correndo enquanto Beau levava a insensata dama da
informação até o salão mais próximo, deitando-a cuidadosamente no sofá.
Então se deu conta de que estava tremendo.
Deus, o que é que havia de errado com ele? Havia tido ferimentos piores do que esse
através dos anos e nunca havia reagido tão mal!
Mas esse era diferente. Ela era inocente. Uma civil. Não tinha ligação alguma com o
caso. Ela não passava de uma mocinha.
O mordomo se apressou.
— Senhor?
—A senhorita está ferida.
— E o senhor a trouxe para cá? – Gritou.
Beau o olhou, mas só então se deu conta de que, inexplicavelmente, talvez, havia se
assustado um pouco.
Bom, agora era tarde demais para se sentar e tentar pensar em outro plano.
— Mas que inferno, homem, ela precisa de ajuda! Traz água quente e ataduras. E traz
lamparinas também, e velas. Precisamos de mais luz aqui. Vai buscar a maleta! Vai, anda!
E cuida dos cachorros, – acrescentou – o cheiro de sangue pode deixá-los assanhados.
— Sim, senhor, mas, senhor, o seu braço!
— Não importa! Apressa-te! – Ordenou, tirando o elegante casaco, agora arruinado.
Gray saiu para fazer o que Beauchamp havia lhe ordenado e fechando obedientemente
a porta atrás de si para evitar que os ferozes cães de guarda da Casa de Dante entrassem
para incomodá-los. Beau sentiu pena dos pobres animais. Aquelas pobres criaturas mal
sabiam o que fazer desde que o mestre, Virgil, havia sido assassinado. Ele gostaria que o
velho escocês estivesse ali naquela ocasião.
Ao pensar no brusco agente escocês, que havia tratado de ferimentos à bala e de
cabeças quebradas mais do que podia contar, Beau se encolheu. Achava que não
conseguiria aguentar outra perda de alguém com quem se importava, em meio a toda
aquela situação. Estava obcecado, e isso já era suficiente.
Como diabo ia explicar tudo para Rotherstone, de qualquer forma?
Não, eu não seduzi a moça, é claro, mas receio que a culpa seja minha por matarem-
na. Lamento, velho, mas tua esposa vai ter que encontrar uma nova melhor amiga.
Engoliu em seco. Não. Ela tinha que estar bem. Abaixou-se para alisar a testa dela
levemente. Ela estava pálida. E ele apertou a mandíbula.
— Espera, meu anjo. Eu volto já. Tu vais ficar bem, eu te garanto. E depois, nunca mais
vou te deixar longe da minha vista outra vez, querida pequena dor no traseiro.
Sem saber de onde havia vindo tal pensamento possessivo, afastou-se dela,
aproximou-se da estante, onde pegou o que parecia um simples objeto para segurar livros
no formato de uma pequena estátua de bronze, e a girou.
Ouviu-se o clique de um mecanismo, e então, uma porta disfarçada de uma das
estantes embutidas apareceu, levemente afastada da parede. Beau foi até lá e a abriu.
Fazendo uma pausa, olhou para Carissa por cima do ombro mais uma vez. Ela ainda
estava inconsciente. Então esgueirou-se para dentro da passagem secreta e correu para
pegar a maleta.
Carissa teve um sonho muito estranho. Foi encantador e aterrador ao mesmo tempo,
uma mistura febril de sangue e sensualidade. Sonhou que Lorde Beauchamp estava
afastando seu cabelo com delicadeza, afrouxando o vestido e o espartilho para ela respirar
melhor.
As mãos dele era quentes e firmes, e quando abriu os olhos e encontrou os dele, a
mesma veemência ardia nela.
— Está tudo bem – sussurrou ele, enquanto ela ofegava e se aferrava a ele com medo.
– Confia em mim – sussurrou de novo, com a mão na lateral do seu pescoço, apoiada na
nuca e calando seus protestos.
Fechou os olhos, dando um tempo para si mesma. Mas, por que ele ficava sempre
dizendo a mesma coisa? Ou seja, para confiar nele... Era rematada tolice dizer isso, vindo
de um libertino...
Ela sentiu que ele pressionava panos quentes e úmidos na sua cabeça, depois ouviu-o
expremer os trapos ensanguentados em um balde com água.
— Isso mesmo. Boa menina – sussurrou ele.
Quando olhou de novo, gemeu ao ver o próprio sangue tingindo a água de vermelho.
— Não quero morrer, Beau.
—Tu não vais morrer – disse ele com calma, soando bem mais seguro agora do que
quando estavam na carruagem. – Fico feliz de poder te dizer que a bala pegou de raspão
na tua cabeça. Tu só vais precisar de alguns pontos, aí vai ficar melhor. Tu já levastes
pontos de sutura antes, meu anjo?
— Não... – Ela se encolheu com a ideia da agulha. – Isso dói?
— É só uma picada. Nada comparado a levar um tiro, o qual já levei como soldado.
Ela se encolheu de novo. Ele acariciou-lhe a face, sustentando seu olhar com confiança
incondicional nos olhos azuis.
— Não te preocupes. Vou suturar isso rapidinho.
— Espera, o que vais fazer? Onde está o médico?
— Eu mesmo posso fazer isso.
— Tens certeza?
— Já dei pontos em muita gente, até em mim mesmo. Não é nada demais. Apenas
fecha os olhos e me deixa trabalhar, certo? Quanto mais rápido fecharmos esse corte,
melhor será. A sutura vai deter o sangramento. Agora, relaxa. E confia em mim.
— Eu gostaria que parasses de falar isso. – Disse ela em voz baixa, meio infeliz e
hesitante, gemendo, mas cooperou quando ele inclinou sua cabeça para começar a
suturar.
Então, à luz das lamparinas e das velas espalhadas por toda parte, deu-se conta de que
uma longa mecha do próprio cabela estava ao lado de uma tesoura, sobre a mesa.
—Tu cortastes o meu cabelo?! – reclamou ela.
— Só um pouco, da parte mais curta! Ora, eu precisei cortar! Estava atrapalhando. Mas
eu prometo que ninguém sequer vai notar. Se quiseres, levar-te-ei até a loja da melhor
modista de Londres e vou comprar todos os chapéus que tu quiseres. Mas agora,
podemos acabar logo com isto?
Carissa fechou os olhos de novo.
— Odeio-te!
— Eu sei, amor. – Ela pôde ouvir o sorriso na voz dele, sentir o calor perigoso do
encanto de Beau. – Agora, fica quietinha, ou vou te beijar de novo. Igual àquele dia, em
White Hall.
Ela sorriu, esquecendo-se de franzir o cenho, depois olhou-o com um olho só e ele
esboçou um meio sorriso malicioso. Mas quando ela o viu colocar a agulha sobre a chama
da vela para esterilizá-la, sentiu náuseas de novo.
— Argh! Agulhas e balas, tudo numa noite só!
Ele segurou sua cabeça. Ela fechou os olhos, mas de alguma forma ele a impediu de se
afastar, dando-se conta de que só estava se torturando com a desculpa de ajudá-la.
Então se pôs a trabalhar, juntando e segurando as bordas do corte na pele perfurando
os dois lados com a agulhar.
— Eu decidi – comentou ele em tom tranquilo enquanto suturava – que quando tudo
isto terminar... Vou procurar um marido para ti.
—É mesmo? – Murmurou Carissa, consciente de que ele estava falando com ela para
distrai-la do trabalho que estava fazendo no ferimento.
— Uhum... Tu precisas de alguém que cuide de ti, atrever-me-ia a dizer. Alguém bonito,
seguro e capaz de te manter na rédea curta.
— Eu te dou a rédea – murmurou ela.
— Tem seu lado bom, um companheiro sólido, sensível, que te impeça de seguir cada
impulso como uma lebre. Por que me seguistes? Só para me espionar? Nunca ouvistes
dizer que a curiosidade matou o gato?
— Não fui lá para te espionar – murmurou. – Fui lá para te salvar.
— Para me salvar? Mas de que diabo estás falando?!
— Eu o vi. Vi aquele homem. E não te avisei. Lamento tanto...
— Oh não, querida, não chora. Eu te perdoo.
— Foi por isso que fui até o teu camarote esta noite. Queria trocar informações, mas tu
não quisestes. Tu és teimoso demais! – disse ela. — Que tipo de Visconde serias, de
qualquer forma, se só tu soubesses dar pontos?
—Tu devias ver meus bordados...
— Isso lá é hora para anedotas, quando atiraram em mim?!
— Pois pela minha experiência, sim, este é o momento perfeito para uma anedota.
Ouve, tenho uma ótima para ti. Um sapo entrou em uma taverna e...
— Tem sangue sangue saindo da minha cabeça, caramba!
— Sim, mas não tanto quanto eu havia temido. Acredita, fico muito contente por isso.
Encantado mesmo. Tu não fazes ideia do quanto estou contente neste momento porque
isto tudo não foi bem pior.
— E o que seria pior?
— Pensei que ia encontrar a bala lojada nos teus vasos sanguíneos, mas fico feliz de
dizer que teu inteligente cérebro está fora de todo esse alvoroço. Foi só de raspão. Aliás,
para ser sincero, tivestes uma sorte incrível. Uma polegada mais abaixo e a bala poderia
ter tirado o lóbulo da orelha ou rasgado esse teu rostinho bonito. Ou algo bem pior, o qual
não quero nem pensar. E não te recomendo que pense nisso, tampouco.
Ela deu de ombros.
— Então, o que aconteceu com o sapo?
— Ah, sim. Acontece que o sapo saltou sobre um tamborete e daí para o balcão e
pediu uma bebida...
E continuou com a historieta, mas de forma tão íntima que ela agradeceu intimamente
pelo esforço dele para consolá-la. Carissa não conseguia prestar atenção na anedota,
porque ele estava costurando tranquilamente seu couro cabeludo de novo.
Fechou os olhos, decidida a aguentar firme. Em última instância, conseguiu se distrair
finalmente ao reviver a grata lembrança do beijo dele naquele dia.
— Espera, meu anjo. Só mais um. Quase terminamos já. Estás indo muito bem.
Pronto..., terminei.
— Quantos pontos?
— Sete, o número da sorte. Muita sorte, aliás, para que tu te dês conta. – Puxou a
agulha pela última vez e em seguida atou as pontas do fio, dando um nó. – Um bom
espetáculo, minha linda. Agora tu és oficialmente um soldado. E agora, se me deres
licença, creio que é a minha vez de desmaiar.
Beau tomou um longo gole da garrafa de brandy mais perto para se recompor depois
daquela terrível experiência, e em seguida ofereceu para ela.
— Vamos, toma um gole. Vai ajudar a acalmar a dor.
Ela franziu o cenho em sinal de desaprovação, o qual foi suave e leve, depois aceitou a
bebida cautelosamente e a levou aos lábios.
Beau a olhou com o coração inundado de alívio. Ela estava viva. E ficaria bem.
Finalmente, podia respirar.
Só que agora, com a adrenalina baixa, começou a sentir o braço latejando. E doía como
o inferno. Pegou a garrafa das mãos dela e tomou outro gole da ardente bebida.
O conhaque lhe esquentou até o ventre, mas não tanto quanto os olhos dela, com
aquela pele leitosa e o cabelo despenteado, o corpete do vestido de noite solto e o longo
cabelo solto, esparramado sobre os ombros nus.
Tudo nele ansiava por tomá-la.
Ele se negou a acreditar que não era assim tão depravado, depois de tudo o que
haviam passado. No entanto, curiosamente, sentia-se mais perto dela, como se a
confusão dessa noite os tivesse unido de forma meio estranha.
Cheio de vontade de protegê-la, um sentimento que nunca havia conhecido, o impulso
para reclamá-la para si grassou através dele.
Afastou o olhar, pegou um trapo limpo e derramou nele um pouco de conhaque.
— O último passo – murmurou, pressionando o corte suturado, para desinfetar.
Depois, inclinou-se e beijou-a longamente na testa, bem na linha do cabelo.
Ao fechar os olhos, fez uma oração de agradecimento por ela ter se salvado.
—Tu fostes muito valente.
— Bom, – disse ela com incerteza – eu tive a ajuda do sapo.
—Tu és um sapo – disse ele com carinho.
— Não, não sou, tu que és.
— Mas se me beijares, eu poderia me transformar em um príncipe.
— Nós dois sabemos que tués um príncipe.
— Acho que tem alguém aqui um tanto enjoado pela perda de sangue. – Ele deu um
passo atrás. – Quer ver os pontos? – E lhe ofereceu o espelho de mão que havia trazido
consigo, caso fosse necessário Gray segurá-lo para iluminar mais o corte para ele trabalhar
melhor.
Ela ficou olhando para o espelho com má vontade, pensando.
— O que foi isso, meu Deus? – murmurou ela, olhando-o. – Lorde Beauchamp, – disse
ela timidamente – Creio que tu salvastes a minha vida. – Então estremeceu e afastou o
olhar.
— Provavelmente.
— Agora vou colocar a atadura, depois tu mesma terás que fazer isso. – Ela se pôs de
pé. Mas depois se sentou obedientemente, observando-o enquanto ele enrolava uma
faixa branca limpa em volta da sua cabeça, a qual ficou parecendo a faixa de um chapéu. –
Apertado demais?
— Não, está bom, obrigada.
Enfiou a ponta da atadura por baixo da faixa, depois lhe ofereceu a garrafa de brandy.
Ela não discutiu, pegou-a e tomou mais um gole.
Beau se sentou de novo, pegou um trapo limpo e molhou-o em um recipiente com
água morna. Depois se inclinou sobre ela e, com cuidado, limpou o sangue seco da pele
dela, esfregando, limpando com ternura.
Ela não protestou.
Por fim, deixou escapar um suspiro, recostou-se no sofá de novo e fechou os olhos.
— Vou ficar arruinada agora, não é?
— Por que achas isso?
— Dante House. O malvado Clube Inferno. A ruína... Meu tio vai me expulsar de casa...
– refletiu em voz alta. – Não vou ter para onde ir..., jogada na rua...
— Ora, vamos, isso não vai acontecer. Teu tio pode ser um pouco severo, mas não me
parece que seja cruel. Além do mais, ninguém precisa saber que estivestes aqui, a menos,
claro, que um de nós o diga.
Ela o olhou com receio.
— Como assim?
— Bom, – enxaguou o trapo outra vez, então acariciou o ombro dela. – Tu és boa
mentirosa?
Ela desatou a rir, com cansaço, mas cinicamente.
Estava intrigada.
— O que significa isso? – perguntou ele.
— Oh, sou uma mentirosa muito boa quando preciso ser. Não te preocupes com isso. –
Ela tomou outro gole de brandy.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Está bem. Então, vamos refazer um pouco a história, e ninguém vai perceber.
— Achas mesmo que sempre podes conseguir o que queres?
— É claro que sim. – Ele analisou-a por um instante. – Em primeiro lugar, preciso saber,
por que não me avisastes que eu estava caindo em uma armadilha?
— Eu já te pedi desculpas por isso. Mas tu fostes muito grosseiro comigo. Tu sabes que
foi! Então pensei que finalmente ias aprender uma lição sobre flertar com todas aquelas
mulheres casadas. Mas então eu me senti culpada, então te segui.
Ele a olhou tristemente.
—Tu és uma pedra a ser lapidada – disse ele.
Ela se recostou contra as almofadas.
— Então, quem era? O marido ciumento, quero dizer.
— Oh, aquele não era um marido ciumento.
Ela pestanejou.
— Não? Então, quem era aquele que atirou em nós?
Ele bufou.
— Aquele..., era o meu melhor amigo. É melhor que tu me dês esse brandy.
Ela o olhou com assombro.
Beau encolheu os ombros e tomou mais um gole direto da garrafa, cujo volume ia
diminuindo rapidamente.
— O que foi que fizestes para ele? Por que ele tentou nos matar?
— Por que estás jogando a culpa em cima de mim? Acabastes de assumir que fiz algo
ruim para ele. Já te ocorreu pensar que sou um bom rapaz?
Não esperou resposta, mas ela estava pensando.
— Acredita em mim, se Nick quisesse nos matar, tu e eu já estaríamos mortos. Ele é
terrivelmente bom nesse tipo de coisa. Aliás, por falar nisso, se me deres licença, preciso
cuidar do meu braço.
— Teu braço? – Repetiu ela. Então ficou sem ar. – Por que não me dissestes que estavas
ferido também?!
— Hã..., porque estavas inconsciente?
Com olhar aflito, ele apertou a mão sobre a boca de Carissa.
Depois de todo aquele incômodo que havia lhe causado nessa noite, sentiu uma
cômica satisfação diante da contrição emocional que perpassou aqueles grandes olhos
verdes.
— Eu vou ficar bem – disse ele, tirando a mão lentamente dos lábios ela.
— Mas devias ter me dito algo! Não percebi que estavas ferido! – Olhando a carne
rasgada do braço dele, começou a ver tudo verde em volta. – Quer que eu te ajude? –
ofereceu-se ela, no entanto, tomando um gole.
Ele desatou a rir.
— Não, obrigado. Posso cuidar de mim mesmo.
O alívio foi nítido no rosto dela.
— Tens certeza?
— Sim, e Gray pode me ajudar se eu precisar. Gray é o mordomo. Chame-o se precisar
de algo.
— Ah, bom, então tu estás a salvo.
— Descansa um pouco, Carissa. Perdestes muito sangue. Decerto estáste sentindo
como o próprio diabo. Permita-me cuidar deste ferimento, – disse, inclinando a cabeça e
olhou para o próprio braço – depois, levar-te-ei para casa.
— Está bem. – E ela afundou de novo entre as almofadas.
Ele amenizou um pouco a bem iluminada sala para que ela pudesse descansar. Apagou
algumas velas e deixou apenas a lamparina a óleo, depois, pegou alguns sumprimentos
médicos e se virou para sair da sala.
Teria que tirar a camisa a fim de estender o braço, e ela era uma jovem cuja
sensibilidade já havia sofrido bastante por uma noite. Não precisava de um homem semi
nu e ensanguentado diante dela, tampouco.
— Lorde Beauchamp? – Murmurou, enquanto ele se dirigia à porta.
O som do próprio nome na língua dela esquentou-o mais do que o brandy.
Ele se virou.
— Sim?
— Obrigada por salvares a minha vida – disse ela com seriedade.
Ele olhou para baixo.
— Em primeiro lugar, foi culpa minha terem atirado em ti.
— Não, não foi. A culpa foi minha. Se eu tivesse te avisado imediatamente ao ver que
aquele homem havia trocado os recados, nada disso teria acontecido. Mas eu fui
orgulhosa demais, obstinada demais. Espero sinceramente que me perdoes.
— Fico feliz porque a bala só pegou em ti de raspão – respondeu ele, olhando-a nos
olhos.
Ela esboçou um sorriso hesitante, ao qual ele devolveu. O olhar que trocaram o
esquentou até a medula. Um tanto desconcertado, assentiu em despedida e mais uma vez
se dispôs a sair.
— Hã... Lorde Beauchamp? Mais uma coisinha...
— Sim, Senhorita Portland? – E a olhou por cima do ombro.
—Tu tinhas razão – admitiu. – Eu estava com um tantinho assim de ciúme.
— Ahá! – Disse ele com um sorriso de cumplicidade, que se estendeu de orelha a
orelha. Com um sorriso malicioso, despediu-se dela. – Eu sabia.

Capítulo 5
D epois que ele se foi, Carissa fechou os olhos e tentou descansar. Mas agora que

o pior já havia passado e sabia que ia viver, sua curiosidade voltou como uma vingança.
Dante House!
Não conseguia areditar que estivesse dentro do lendário clube de cavalheiros, onde os
homens se comportavam como qualquer coisa, menos como cavalheiros. Nervosa demais
depois de ter visto a morte tão de perto, não conseguiu relaxar, então se sentou
lentamente e olhou em torno.
Ficar deitada como uma violeta murcha não era o seu estilo, afinal de conta.
Já era bastante ruim ter desmaiado como uma tola. Não, o Senhor Beauchamp nunca
ia deixá-la viver com isso.
Em todo caso, ela não havia ficado tão inconsciente quanto Beau pensava quando
voltou com a maleta de primeiros socorros, entrando por aquela estranha porta oculta
atrás da estante. Tinha uma ideia para conseguir dar uma olhada mais de perto nisso.
Olhando em torno para se certificar de que ninguém ia aparecer, Carissa respirou
profundamente para reunir forças, em seguida se levantou.
Ainda meio cambaleante, mas sentindo-se bem melhor, apesar de tudo, tranquilizou-
se. Talvez o conhaque tivesse lhe subido à cabeça, mas persistia a sensação daquelas
mãos sobre ela. A forma com a qual ele havia lidado com tanta perícia com a sua roupa e
com o cabelo dava-lhe uma sensação muito incômoda. Provavelmente fosse a influência
perversa desse lugar, o qual alimentava os maus pensamentos de ceder à tentação.
Bom, não vou ficar aqui por muito tempo, disse para si mesma, e, sinceramente,
quantas senhoritas decentes tinham a chance de conhecer em primeira mão o que
realmente acontecia naquele antro de iniquidade escandalosa? Porque, enquanto dama
da informação, era praticamente seu dever dar uma olhada em tudo para que pudesse
contar para Daphne e Kate sobre o clube que os maridos delas frequentavam.
E então, Carissa se dispôs a bisbilhotar.
Bom, a decoração sem dúvida era chamativa, anotou mentalmente. Móveis em veludo
e couro, nas cores vermelho e preto. Andando nas pontas dos pés, tinha perguntas em
abundância. Por que tinha aquelas portas secretas e aqueles ferozes cães de guarda? Por
que Lorde Beauchamp sabia o que fazer em uma emergência médica?E por que, dentre
todos os maridos ciumentos nos quais ele havia posto chifre, era logo o melhor amigo
dele que queria matá-lo?
Eram muitos mistérios...
Enquanto se dirigia ao outro lado da sala até a estante que abria como uma porta, viu-
se no espelho e ficou horrorizada com o que viu.
O sangue havia secado na lateral do vestido e fazia com que ela parecesse a louca de
alguma história gótica. Mas estava ainda mais surpresa pela sua aparência imprópria.
O corpete estava solto, caindo dos ombros, o espartilho havia sido desamarrado, as
mãos estavam sem luvas e o cabelo caía livremente até a cintura. Céus, apenas sua criada
de quarto e a família a viram assim, e isso em raras ocasiões!
Por Deus, aquele homem a deixara semi nua!
Talvez isso fosse algo corriqueiro para ele, porque era liberal ao tratar uma dama, mas
ficou escandalizada mesmo assim. É claro, a obra principal sobre ela haviam sido os
pontos que havia suturado na cabeça dela, e, sem eles, supunha que ainda estaria
perdendo sangue.
Deu um passo para o espelho e ficou olhando para a atadura em volta da cabeça,
morbidamente assombrada.
Por que estou parecendo um soldado das tropas de Welly, marchando para o combate
em Boney House?
Diante do espelho, meneou a cabeça olhando para o próprio reflexo. E agora, que
diabos ia dizer para o tio?!
Certamente a Senhorita Trent e as primas deviam estar fora de si no momento,
perguntando-se o que havia acontecido com ela.
Ou talvez não. Olhou com incerteza para o relógio na parede.
Que horas eram, afinal de contas? Provavelmente quase meia noite.
A peça no teatro terminaria logo.
A cabeça começou a latejar com força enquanto se indagava como explicaria tudo
aquilo à família. Sentou-se na cadeira mais próxima, chamativa como as demais, e fechou
os olhos até que o enjoo passou.
Não, não podia pensar nisso agora.
Dali a pouco ela encontraria uma explicação inteligente para explicar sua ausência e o
aspecto chocante que tinha. Por enquanto, tinha bem pouco tempo para investigar o
mistério daquela porta secreta antes que ele voltasse.
O cavalheiro da agulha.
Então riu. A perda de sangue e o conhaque a deixaram tonta.
Arrumou apressadamente o espartilho, puxou o vestido e ajeitou-o o melhor que pôde
nas costas, pois não tinha a ajuda da criada, então se aproximou da estante e analisou-a,
batendo no lábio com o dedo enquanto procurava descobrir como funcionava.
Experimentou puxar alguns livros e bibelôs da estante, mas nada aconteceu, até que
pegou a estatueta, aquele discreto e pequeno busto de bronze de algum rei do passado.
A ideia surgiu quanto tentou tirá-lo do lugar e ele não se mexeu. Estava preso, e isso
não fazia sentido algum.
Mas logo descobriu que podia girá-lo, então ouviu o clique do mecanismo e a estante
se mexeu. Prendeu a respiração e segurou a beirada, puxando a porta e abrindo-a
lentamente, fascinada.
Era pesada, mas, mesmo camuflada, era uma estante cheia de livros de verdade, e
abria como uma porta comum.
Carissa assomou a cabeça e viu que estava tudo escuro lá dentro, e o coração
retumbando no peito. Um corredor escuro de menos de um metro de largura se abriu
naquele negrume em ambas as direções.
Ooohhh! Mal posso esperar para contar para Daphne sobre isto!
Correu de volta para pegar a lamparina a óleo, aumentando a iluminação ao máximo.
Depois a levantou bem no alto e se inclinou para dar uma olhada.
Uma passagem secreta dava para duas direções. Olhou para os dois lados, sentindo um
calafrio de emoção formigando suas extremidades. Onde será que vai dar isto?
Olhou por cima do ombro para se certificar de que a porta da sala continuava fechada.
Nem sinal de Beauchamp ainda.
Decerto ele está dando pontos em si mesmo, pobre homem.
Então fez uma pausa e mordeu o lábio, sentindo um tantinho de culpa porque ninguém
estava ajudando Beau da mesma forma com a qual ele a ajudara.
Oh, bom, concluiu rapidamente, dando de ombros mentalmente. Ele parecia
sumamente autossuficiente, não do tipo que iria querer uma mulher se lamentando perto
dele.
E o que era mais importante, ele estaria de volta a qualquer momento. Se quisesse
continuar bisbilhotando, é claro que, provavelmente, tivesse somente essa chance.
Respirou profundamente. Só uma olhadinha...
Sempre com a máxima cautela, passou pela porta da misteriosa biblioteca, deixando-a
aberta para evitar qualquer contratempo.
Infelizmente, ela não sabia que o funcionamento do mecanismo era ativado pelo peso
e, assim que pisou na primeira tábua depois do umbral, a porta-estante se fechou e a
trancou ali dentro.
Ofegante, ela se virou e percebeu que estava sepultada dentro da parede! Engolindo
em seco, levantou a lamparina, tratando de encontrar algum dispositivo ou o que fosse
para abrir aquela coisa de novo.
Então, viu um simples cabo, ou algo assim, em um nicho. Mas, quando o empurrou, a
estante não se mexeu.
— Ora, vamos lá, vamos lá! – Sussurrou, tentando abrir, mas nada aconteceu.
Levantou de novo a lamparina, esquadrinhando tudo em torno da porta e percebeu que,
no nível dos olhos, havia uma placa de bronze um tanto estranha, na parede.
Tinha uma linha central cercada de números, parecido com o mostrador de um relógio.
Ela arregalou os olhos e sentiu o coração encolher ao se dar conta do que era. Uma
fechadura de combinação, como um cofre. Para sair, seria preciso saber o código.
— Oh, não! Não, não, não! – sussurrou ela, passando os dedos no centro da esfera,
mas parou e tirou a mão.
De repente podia acionar algum mecanismo estranho com um movimento que não
fosse o correto.
Acalme-se, ordenou a si mesma, com a boca seca.
Essa passagem obviamente levava a algum lugar. Ela só teria que seguir em frente e
encontrar outra saída. Isso. Então poderia voltar à sala, retomar a pose de violetinha
murcha estendida no sofá e ele nunca ficaria sabendo.
Muito bem, pensou, assentindo mentalmente. Não sabia qual caminho tomar, já que a
maldita passagem se estendia tanto à direita quanto à esquerda. Dando de ombros,
escolheu aleatoriamente o lado esquerdo, armou-se de coragem e se foi, erguendo a
lamparina no alto. O brilho trêmulo emitia uma misteriosa luz à curta distância no estreito
espaço. Carissa se consolou ao se lembrar de que, se odiava ver sangue, pelo menos não
era claustrofóbica.
A cada passo à frente se sentia mais intrigada do que assustada.
O cheiro ali, dentro das paredes, era de mofo e umidade pelo tempo. Depois de ter
visto Dante House do lado de fora nas muitas vezes que havia passado pela Strand, ela
sabia que era uma fila de mansões antigas da cidade situadas ao longo do Tâmisa, uma
relíquia da época Tudor.
Agora, dentro daquelas paredes, podia sentir o peso da idade do prédio, e só conseguia
pensar em todos os transtornos de Londres dos quais aquela casa havia sido testemunha
durante séculos. Gemeu, como se a casa estivesse enfeitiçada. Ali estava cheio de teias de
aranha.
A passagem secreta tinha curvas demais, como um labirinto, fazendo-a subir e descer
degraus desiguais, mostrando caminhos ramificados aqui e ali, que a deixavam na dúvida
sobre qual deles tomar.
Tudo aquilo era um delicioso mistério, como o próprio Beau, mas sabia que não tinha
muito tempo para explorar e ainda não havia encontrado uma saída. O labirinto, negro
como tinta, parecia distorcer a noção do tempo e a sensação de espaço também, então
era difícil calcular onde diabos estava em relação à casa, e muito menos quanto tempo já
havia se passado.
Dez minutos, talvez? Ao mesmo tempo, ela caminhava depressa, tentando não gastar
as forças demais, principalmente depois da terrível experiência pela qual passara.
Quando chegou a outro escuro cruzamento, ficou aflita, sem saber se decidia se ia para
a direita, para a esquerda, ou se descia as escadas até o espaço vazio que tinha à frente.
Se não estivesse com a lamparina, pensou, teria caído naquele buraco e quebrado o
pescoço.
Segurou a lanterna à frente, tentando descobrir o que podia haver além da escuridão,
porém, não conseguiu. Mordeu o lábio inferior e decidiu que só havia uma maneira de
saber.
Dispôs-se a descer a escada com cuidado por causa do vestido longo, então, pendurou
a lamparina no pulso e pisou no primeiro degrau. Em seguida começou a desceu, rindo
por dentro ao pensar na reação de algum membro do clube se passasse ali agora e a visse.
Bem poderia confundi-la com o fantasma macabro de alguma senhora que assombrava o
velho prédio.
Ao chegar à parte inferior da escada, pisou em outro degrau, mas então pôde sentir
uma corrente de ar muito tênue roçar suas faces. Tirou-a do pulso antes que a chama se
apagasse e a ergueu bem alto.
— Nem pensar. – suspirou. Mas nem a ameaça de perder a luz a impediu de invadir as
trevas, e sorriu para si mesma.
O que será que diria Beau a respeitodo que ela estava fazendo?
Mais adiante, o brilho da lamparina revelou uma abertura.
— Mas o que é isso? – Murmurou em voz baixa.
Um pequeno cômodo surgiu diante dela, e então franziu o cenho ao olhar para a
principal característica do local: um grande buraco no centro do piso. Devia ter uns três
metros de diâmetro e ocupava a maior parte do cômodo.
Mas por que diabos alguém ia querer um enorme buraco no chão, e logo dentro de um
cômodo?!
Desconcertada, levantou o olhar e viu uma resistente corda pendurada no teto, com
grossos nós a intervalos regulares. A corda cheia de nós descia bem no centro do buraco,
a guisa de escada, pensou, mas estava fora do seu alcance, a não ser que ela viesse
correndo e desse um salto.
Mas também, é claro, se não conseguisse se segurar com força suficiente na corda,
cairia, pensou. Que diabos...!? Cautelosamente, andou até a borda e inclinou-se à frente,
perguntando-se o que havia ali. Ela devia estar no mesmo nível do alicerce da casa,
pensou, abaixo das poderosas vigas de madeira, já que agora só via paredes de pedra.
O buraco parecia ser fundo, cavado na pedra de calcário. Mas, por quê? Se quisessem
fazer uma simples adega embaixo da casa, por que fazê-la acessível apenas por uma
traiçoeira escada de pedra? Muito interessante, isso.
Segurou a lamparina sobre o buraco, tentando ver lá embaixo.
Tinha que haver algo ali embaixo que os homens do Clube Inferno não queriam que
ninguém mais descobrisse.
Ela sentiu um estremecimento na coluna vertebral. Só esperava que não fosse algo
sinistro. Mas, se fosse normal ou inofensivo, então, por que tomar todas aquelas
precauções para mantê-lo oculto? Lembrou-se de que o Ministério do Interior estivera
falando com Lorde Beauchamp sobre algo... Oh Deus! E se houvesse algo criminoso,
ilegal, acontecendo ali? E se houvesse, sei lá, pensou ela, cadáveres, ou coisa pior lá
embaixo?!
Engoliu em seco.
De repente lhe ocorreu que ela só podia estar completamente fora de si para fazer
aquilo. Havia parecido inofensivo, bisbilhotices comuns, então não seria nada demais.
Desejou que nunca tivesse lhe ocorrido xeretar em assuntos que teriam sido melhor
deixar de lado.
De fato, sequer aquela onda de curiosidade desmedida era forte o suficiente para fazer
com que ela corresse o risco de dar um salto para pegar a corda, e que era melhor usar a
escada para ver o que havia lá embaixo.
Principalmente porque, se pulasse, teria que largar a lanterna. Sem luz, poderia me
perder naquele labirinto para sempre, pensou, e foi então, justamente nesse instante, que
uma rajada de ar úmido apagou de repente a chama da lamparina.
Ela cambaleou, quase caiu no buraco e ofegou, horrorizada, então a lamparina escapou
da sua mão e caiu lá embaixo. Ela ouviu o estrépito no chão de pedra, vários metros
abaixo. Seu coração batia com muita força, e ela se viu olhando às cegas para a escuridão
total.
Oh, meu Deus! Como é que vou encontrar o caminho de volta, agora?!
Não conseguia ver nada, mas pelo menos teve o bom sendo de se afastar do buraco.
Quando sentiu a parede sólida às costas, soltou um trêmulo suspiro de alívio. Ótimo.
A primeira coisa a fazer era encontrar o caminho de volta para a escada.
Virando-se com a máxima cautela, voltou até o canto do corredor por onde tinha
vindo.
O pânico se enganchou nas bordas da sua mente, mas ela deu um jeito de mantê-lo à
margem enquanto caminhava tateando pelo longo e estreito corredor, até que finalmente
encontrou a escada. Disposta a manter a calma, começou a subir degrau por degrau.
Isso, pelo menos, ela conseguiu com facilidade.
Ao chegar à parte de cima da escada, tinha que escolher de novo para onde ir: direita,
esquerda, direita... Bom, ela tinha vindo pelo corredor e não havia nenhuma saída
diferente. Ficou olhando em uma direção, depois na outra. Encolheu os ombros e decidiu
tentar ir à direita.
Enquanto avançava pelo estreito corredor, tudo aquilo não conseguira distrai-la. A
escuridão fazia com que ela se sentisse oprimida, o ar viciado a sufocava. A cabeça estava
latejando de novo, e os pontos, ardendo.
O pior de tudo era que a escuridão estava começando a lhe pregar uma peça,
enchendo sua imaginação com pensamentos terríveis.
Tinha a impressão de que a casa estava viva e não a queria ali, que ela era uma intrusa.
E a sensação de milhares de coisas aterrorizantes, todas em volta dela na escuridão, e um
medo absurdo sussurrava dentro da sua cabeça que, uma vez lá dentro, nunca mais ia
sair...
Justo quando o pânico ia brotar da sua garganta, virou uma esquina e viu luz à frente.
Oh, graças a Deus! Aproximou-se em silêncio, atraída pela luz como uma traça.
A tênue luz se transformou em um ovalado suave que brilhava intensamente na parede
do corredor escuro.
Não parecia grande o suficiente para ser uma porta ou algo assim. De fato, não sabia
muito bem do que se tratava, até que se aproximou e olhou..., era um salão de refeições.
Fascinada, percebeu que estava olhando através de uma típica parede convexa de
espelho, com duas velas iguais de cada lado. Todos os lares da classe alte a tinham, pois
essa curva de vidro ajudava a amplificar a luz. Mas normalmente não se podia ver através
deles!
Ficou maravilhada com aquela brilhante invenção, sem ter ideia de como era feita,
embora,enquanto dama da informação, sabia que tinha que ter um daqueles. Uma janela
de espionagem disfarçada de espelho!
As chamas que dançavam acima das velas eram, obviamente, a fonte de luz que havia
visto antes. Em seguida, olhando através do vidro trabalhado, viu o Senhor Beauchamp.
Sem camisa. E cuidando do ferimento.
Oh, meu Deus!
Ela o olhou fixamente. Aquele homem era absurdamente belo.
Não era de estranhar que aquelas desavergonhadas escandalosas da alta sociedade
não conseguiam deixá-lo em paz!
Uma leve sensação de desmaio fazia com que ela se sentisse enjoada, mas atribuiu à
perda de sangue. No entanto, só pestanejou, olhando para aquele magnífico corpo com
apenas uma pontinha de culpa, escondida atrás do vidro.
Ela percebeu que o tratamento dado ao espelho para que ficasse transparente havia
também escurecido um pouco o vidro. De onde estava enxergava ligeiramente distorcido,
como se estivesse olhando através de uma garrafa de vidro marrom. Não dava para ver
muito bem os traços dele, mas, na verdade..., o que estava vendo já era suficiente para
um festim visual.
O formato dos largos ombros... O peito e os braços musculosos... A cintura elegante... A
visão impressionante do abdômen cinzelado...
Sem dúvida, isso já era mais do que suficiente sem precisar acrescentar as cores reais e
quentes da pele dele, a sedução daqueles olhos azuis esverdeados e o ouro angelical do
cabelo.
Mas algo a sacudiu daquele olhar aturdido, porque também podia ouvir através do
espelho, e a conversa em curso era das mais intrigantes.
— Custa-me acreditar, por Deus, que Forrester atirou no senhor!
Carissa inclinou-se à frente para ver quem havia falado.
Um mordomo, idoso e com o rosto marcado de rugas, muito sério, combinava com a
descrição que o visconde havia feito. O mordomo passou ao lado dos enormes cães de
guarda deitados no chão e parou perto da mesa, ao lado de Lorde Beauchamp.
Argh! – pensou, olhando para aquelas bestas estendidas no chão, com bocas e caninos
enormes, babando e ofegantes.
Teria sorte se não fosse comida por eles se conseguisse encontrar uma maneira de sair
daquele labirinto.
Beau, por sua vez, deu de ombros.
— Pois é, mas, como posso ficar zangado com ele?! Aquele cara é como um irmão para
mim! E fico feliz por ele estar vivo. – Fez uma careta enquanto lavava o ferimento com um
pouco de brandy. Ficou aliviada ao constatar que a bala só pegou de raspão. – Mas eu
atirei nele, também. Acertei na perna. Obviamente, nenhum dos dois queria causar
grandes danos um no outro. O problema todo aconteceu por causa da moça.
Francamente...
Carissa franziu o cenho.
— Ela bateu nas minhas costas com a porta, ao abri-la. Na hora pensei que Nick havia
trazido reforços. Ela teve sorte por eu não tê-la matado acidentalmente, pensando que
estava sendo atacada por ambos os lados.
O mordomo assentiu com a cabeça e disse:
— Bom, um ferimento na perna deve reduzir as reações do barão, pelo menos.
Beauchamp assentiu. Secou o ferimento com um pano, limpou o sangue e colocou
mais brandy sobre o mesmo.
— Bom, de qualquer forma, é por isso que não estou zangado. Tu deves saber o que
estive pensando todo esse tempo no qual ele esteve sumido, Gray, embora eu tenha me
negado a dizê-lo em voz alta.
— De fato, meu senhor. Todos nós temíamos o pior – assentiu o ancião com olhar
compreensivo.
— Agora que eu sei que ele e Trevor estão vivos, é só isso que importa.
— Está se referindo a contar para os anciãos? – perguntou o mordomo, inclinando a
cabeça na direção de um papel.
— É claro. Sim..., mas simplesmente não... Ainda.
— Senhor? – Respondeu ele, surpreso.
Anciãos? – perguntou-se Carissa.
— Gray, tu não entendes... – disse com olhar frustrado. – Vão colocar um preço na
cabeça dele, igual fizeram com Drake. Não vou mandar assassinos atrás do meu melhor
amigo. Eu vou contar tudo para eles, mas só depois que eu tiver resolvido tudo isto.
— Depois?
— Sim, depois – repetiu. – E estou contando contigo, Gray. Vou precisar do teu silêncio
e da tua cooperação. E tu vais ser tão leal comigo quanto o foi com Virgil, não vais?
Carissa acompanhava a cena que se desenrolava diante dela na mais completa
confusão. Sem dúvida, isso era muito mais interessante do que a peça no palco do Teatro
Covent Garden!
Gray, o mordomo, por sua vez, havia cruzado as mãos atrás das costas e fixou no
Visconde um olhar cético.
— Parece que o senhor tem muita certeza quanto a isso.
— Nick está confuso no momento. Isso ficou bem evidente. – Ele meneou a cabeça. –
Eu tenho que ajudá-lo. Posso fazê-lo voltar à razão, tenho certeza disso. Só tenho que
seguir o rastro dele.
— E quanto à moça? Ela lhe comprometeu, meu senhor.
Eu o comprometi?! Replicou ela mentalmente. Atrevo-me a dizer que é o contrário!
— Tenho consciência disso, crê em mim. É claro, tenho certeza de que eu a
comprometi, também. E sabes qual é a pior parte? O tio dela é aquele danado do Conde
de Denbury. Aquele que exige os mais altos padrões! Como eu queria que Rotherstone e a
equipe dele estivessem aqui!
Carissa franziu o cenho totalmente confusa quando Beau mencionou o marido de
Daphne. Lorde Rotherstone estava envolvido nisso de alguma forma? Equipe? –
perguntou-se ela, cada vez mais desconcertada.
— Quero dizer, não vejo por que Falconridge tinha que ir com eles. Sequer deveria ter
ido junto na missão, não com aqueles ferimentos.
Missão?Carissa inclinou a cabeça. Pensei que tinham viajado para caçar.
— Já se passou mais de um mês desde que matou aquele assassino – disse Gray. –
Tenho certeza de que ele está se recuperando bem.
Carissa arregalou os olhos. Assassino?!
O cavalheiresco Senhor Falconridge?! O modelo do universo, o conde maravilhoso, o
erudito ade quem ela ficaria encantada de ter como irmão mais velho, já havia matado...,
assassino?!
— Bom, ele deveria estar na cidade. Imperturbável como é, teria sido perfeito para
enfrentar Ezra Green. Melhor do que eu estou fazendo, pelo menos.
— Se os anciãos pensassem que o senhor não estaria à altura da missão, meu senhor,
não teriam hesitado em designar outro para tanto.
— Obrigado. – Beau largou o trapo que estivera pressionando sobre o ferimento e
pegou uma atadura. Enrolou a mesma em torno do bíceps e depois enfiou a ponta por
baixo da mesma, como há havia feito centena de vezes antes. – Tenho que levar a
Senhorita Portland para casa.
— Está bem, senhor. – O mordomo assentiu cordialmente, mas depois hesitou e
abaixou a cabeça, com ar de preocupação do rosto. – Meu senhor, acredita mesmo que o
Senhor Forrester tenha traído a Ordem?
Ordem?!
Beau deixou escapar um suspiro e negou com a cabeça.
— Eu realmente não sei, Gray – admitiu. – Só sei que Nick nunca trabalharia contra
nós. – Encolheu os ombros. – Ele disse que só queria sair, e na verdade, depois desta
noite, não posso dizer que o culpo por isso. Quando vi essa moça levar o tiro... – Um olhar
assassino endureceu seu rosto, e o grande corpo se eriçou, mas ele se recompôs. – Ela
teve sorte de não ter sofrido danos.
Alô! Uma bala passou de rastão pela minha cabeça!
— Diabos, depois da noite que tive, eu também odeio minha vida de espião!
A boca de Carissa escancarou, enquanto ele pegava a camisa, e então, todas as peças
do quebra-cabeças voaram para se juntar na sua mente. Os olhos pareciam duas luas
cheias, e o coração estava disparado. Em meio à escuridão, ela cobriu a boca muito aberta
com ambas as mãos, olhando-o com o maior assombro da vida.
Mas não havia engano nenhum. Seus ouvidos não a enganaram. O Senhor Beauchamp
era espião, e o Clube Inferno era uma fachada para uma espécie de cobertura secreta.
Daphne e o marido de Kate..., até mesmo o querido e cavalheiresco Senhor Falconridge!
Mas como pode ser isso?! Ela não sabia. Mas era. Tudo o que havia escutado não lhe
deixou dúvida alguma a respeito.
Não era de estranhar que Dante House tivesse todos aqueles corredores misteriosos! O
coração dela batia como se fosse explodir a caixa toráxica de tanto entusiasmo por aquele
verdadeiro tesouro de informação secreta.
Nunca havia ouvido uma fofoca na sociedade que chegasse perto de algo com isso!
Quanto à caçada nos Alpes, que Lorde Rotherstone, o Senhor Falconridge e o Duque de
Warrington haviam ido, bom, agora não havia lugar para meias-verdades!
Sem dúvida tinha a ver com o motivo da espionagem, não com Beau em si. De repente,
franziu o cenho e se perguntou se esse era o verdadeiro motivo pelo qual Daphne e Kate
haviam sumido da cidade.
A conversa entre Beau e o mordomo havia deixado bem claro que os problemas
estavam em curso. Talvez as esposas dos agentes tivessem sido simplesmente enviadas
para algum lugar, para a própria segurança delas. Mas é claro!
Esse era o motivo pelo qual a carta de Daphne lhe pareceu sem pé nem cabeça, sem
sentido algum! E por isso também que Beauchamp havia se recusado a dar mais detalhas.
Agora via tudo com toda clareza. Daphne não teve permissão de lhe revelar onde
estavam ela e Kate.
Oooohhh, mas é claro! É claro, é lógico! Carisa apertou a mão sobre o coração, cheia
de importância, na verdade, com imensa alegria, por entender finalmente que suas
amigas não a estavam excluindo. Havia ficado meio que convencida de que elas haviam se
voltado contra ela. Mas ela sabia também que não havia feito nada para ofendê-las!
Fechou os olhos, enquanto as dúvidas a respeito da amizade de Daphne se dissolviam.
Arrependeu-se de ter duvidado, alguma vez, fosse de Daphne ou de Kate. Não havia sido
rejeitada, afinal de contas. Deus, como havia agonizado por temer que suas amigas
tivessem ficado sabendo de alguma maneira sobre aquele incidente em Brighton e a
estivessem relegando ao ostracismo pela falta de moral e por esconder delas tal segredo.
Quanto a Lorde Beauchamp, ela agora o via, também, como novos olhos.
Pelo menos agora entendia por que ele sabia dar pontos. E por que viajara por todos
aqueles anos para o estrangeiro. E por que havia construído aquele corpo de ferro com
tantos músculos? Não, não era por vaidade, nem para atrair amantes, mas sim, por razões
práticas, para ser ágil e capaz de lutar pelo seu país.
No salão de refeições, ele começou a tirar a camisa de novo, depois viu que tinha
sangue por toda parte, então suspirou e começou a recolher o lixo.
— Podes me arrumar outra camisa, Gray?
— Agora mesmo, senhor. – O mordomo fez uma reverência e se retirou.
Beau pegou a vela mais próxima e tirou uma folha de papel de um calhamaço sobre a
mesa.
Carissa ficou olhando para ele, saboreando a nova compreensão sobre homem
misterioso, quando, de repente, sentiu cócegas estranhas subindo pelo braço.
Reagiu automaticamente, tirando a aranha do braço com a outra mão e soltando um
agudo grito de repulsa.
Ficou em silêncio tarde demais, então, e apertou os lábios, fechando-os e fazendo uma
careta, enquanto um frio desgosto continuou percorrendo todo seu corpo. Todo
movimento na sala de refeições cessou.
O mordomo havia parado a meio caminho da porta.
OSenhor Beauchamp estava olhando para o espelho. Os cães de guarda deitados no
chão, perto dele, haviam levantado as orelhas. Um deles grunhiu, levantou-se e os outros
começaram a se eriçar também.
— Hã..., ouviu algo, meu senhor?
— Ouvi sim. Espera um pouco, Gray. – O rosto de Beau endureceu, entãoafastou-se da
mesa e começou a espreitar o espelho. – Parece que temos um intruso.
Com o torso desnudo, aproximou-se e olhou para o vidro, em silêncio, por um longo
instante. Ela recuou, embora duvidasse que ele pudesse vê-la. Seu rosto se retorceu em
uma careta.
— Carissa! – Repreendeu ele com um profundo estrondo de reprovação.
Mas ela continuou perfeitamente imóvel.
O olhar dele se intensificou no dela a escassos centímetros de distância, enquanto na
verdade ela rezava para que ele não conseguisse vê-la através do vidro.
Ele cruzou os braços sobre o peito.
— Não adianta, eu sei que tu estás aí.
Ela fechou os olhos e praguejou baixinho.
— Vamos, responda! – ordenou ele.
Mas que diabos! Com o coração disparado, não sabia o que fazer, principalmente
porque ainda não havia conseguido encontrar uma maneira de sair daquele estúpido
labirinto.
Além do mais, não sabia como ele ia reagir diante dessa instrusão, então teve certeza
de que agora sim, estava encrencada. Nunca havia cruzado com nenhum libertino
ordinário que nem ele. Só havia desobedecido àquele homem, a quem, agora ela tinha
certeza, era um espião da Coroa.
Maldizendo a si mesma por ser uma rematada bisbilhoteira, cruzou os braços sobre o
peito.
Certo. Seria melhor acabar com aquilo de uma vez.
— Estou aqui – admitiu ela.

Capítulo 6
— M as é claro que estás aí – disse ele, sentindo uma nova onde de exasperação

por ela.
Gray o olhou, alarmado.
Beau olhou para o espelho.
— Pensei que havia te dito para descansar.
A voz dela chegou triste através do espelho:
— Eu sei, e lamento muito por tudo isto.
Ele cruzou os braços sobre o peito, mais indignado do que permitia que seu rosto
mostrasse.
Justo. Valente. Perfeito.
— O que é que estás fazendo aí, Carissa?
Ela soltou um suspiro.
— Eu tive que ficar aqui. – A frustração podia ser notada na resposta amortecida pelo
vidro. – Estou presa dentro da parede, ora!
Gray fechou os olhos e levou a mão à testa.
Um dos cães trotou e ficou de pé para colocar as patas dianteiras sobre o console
embaixo do espelho, farejando o cheiro dela com o nariz nervoso. Beau empurrou o
animal com um murmúrio tranquilizador antes que ele começasse a latir.
— Podes fazer o favor de me tirar daqui? – Insistiu ela. – Não consegui encontrar saída
alguma neste estúpido labirinto!
Ele franziu o cenho para a própria imagem distorcida pelo espelho convexo.
— Talvez não. Quem sabe tu não deves sair daí – isso lhe ensinaria uma lição. – O que
achas disso? Que tal é o sabor do próprio remédio, hein, querida?
— Senhor Beauchamp, por favor! Eu sei que não devia ter feito isso.
— Não, tu não devias ter feito mesmo! – concordou ele.
— Por favor, só me deixe sair daqui! Eu posso explicar...!
— Explicar o quê? Que és uma xereta meio descarada?! Ora, isso eu já sei
perfeitamente.
— Belas palavras, vindas de um espião... – replicou ela.
Beau estacou ao ter a confirmação de que ela havia escutado a conversa, e, oh sim,
Gray estava certo!
Trazê-la para Dante House havia comprometido seu disfarce, junto com o de todos os
seus companheiros agentes. Resumindo, trazê-la foi um rematado erro.
Afastou o olhar praguejando baixinho. E agora, que diabos vou fazer com ela?!Como
havia sido estúpido ao assumir que aquela mocinha, na verdade, não era como lhe
diziam!
Ela deve ter visto a expressão assassina no rosto de Beau.
— Eu não vou contar nada para ninguém – prometeu ela em tom solene.
— Ah, sim, isso faz com que eu me sinta muito melhor! – Zombou ele.
— Eu te dou a minha palavra!
— Sei, a palavra de uma mocinha que já me disse que é uma excelente mentirosa!
— Oh, por favor, não sejas grosseiro comigo outra vez, eu te rogo! Deixe-me sair deste
labirinto, então poderás gritar comigo o quanto quiser. Por favor! Está escuro aqui dentro,
estou com dor de cabeça e as aranhas são repugnantes.
—Tu bem que mereces – murmurou ele, mas a contenda chegou ao fim. E ela levou o
prêmio de amulher mais irritante da face da terra!
Ele falou com o mordomo com expressão tensa no rosto.
— Leva os cães para outro aposento. Se alguém aqui vai mordê-la, esse alguém sou eu.
— Sim, senhor – respondeu Gray, mas lhe lançou um olhar de censura enquanto
pegava a coleira do cachorro alfa. O olhar dizia claramente: Isto tudo é culpa sua! Beau
franziu o cenho de novo, muito consciente disso.
Ele poderia estrangular a si mesmo por levá-la para ali, uma reconhecida bisbilhoteira!
Mas que diabos, que outra coisa ele poderia ter feito com ela? Deixá-la sangrando
naquele beco? Uma civil? E mulher ainda por cima?!
Sim, ela estivera bisbilhotando assuntos que não eram da sua alçada, mas um dos
principais mandamentos da Ordem era a de proteger os inocentes.
Não que ele a teria levado de volta para o teatro, com metade da alta sociedade lá
dentro. Era apenas uma manobra para desviar a atenção.
Então teria que explicar aos burocratas, bem como às toneladas de bisbilhoteiros, que
alguém havia tentado matá-lo do lado de fora do Teatro Covent Garden.
E por que havia ficado a sós com Carissa Portland, em primeiro lugar? De fato, o tio
dela era político, sem dúvida ia querer saber a resposta para tanto. E isso era tudo o que
precisva. Os Conservadores iriam ficar muito irritados com ele, bem como os Liberais, com
tendência radical, que já andavam querendo encerrar as atividades da Ordem, começando
por baixo.
Com a investigação em curso, Beau não precisava de nenhuma atenção extra no
momento, nem queria ter o poderoso Senhor Denbury como inimigo.
Talvez ele pudesse ter tomado outra carruagem e levá-la para a casa dele, mas ficava
muito longe na cidade, e com o tanto de sangue que ela estava perdendo, cada minuto
era precioso.
Pois é, nenhuma boa ação ficava impune, pensou, com o pulso acelerado. Quando Gray
saiu com os cães e fechou a porta, Beau atravessou a sala.
Enquanto ia até a lareira, o pensamento mais inquietante que o atormentava era uma
suspeita persistente latejando no fundo da sua mente, e era que, de alguma estranha
maneira, ele havia feito aquela coisa idiota de propósito..., trazê-la para cá.
Mas não só por razões práticas.
Uma dúvida fugaz perpassava sua consciência, que talvez, apenas talvez, algum
demônio perverso e desesperado na sua cabeça havia se aproveitado do momento de
pânico quando a vira sangrando, fazendo com que ele reagisse pela emoção em vez de
usar a lógica habitual.
Não seria ele, já que estava tentando entender porque quando Carissa Portland estava
falando, aquele sorriso tolo e feliz geralmente aparecia no seu rosto quando entrava em
um recinto no qual ela estivesse.
Talvez seu coração, longamente negado dentro do peito, havia aproveitado essa
oportunidade para lhe mostrar a verdade sobre ele e sua vida, ou, pelo menos, para puxá-
lo pelo nariz, sabendo que ela, dentre todas as pessoas, engoliria a isca e faria
exatamente..., bom, o que havia acabado fazendo.
Porque ela estava ali agora, gostasse do fato ou não. Apesar de a razão lhe dizer que
isso era um desastre, o coração transbordava com a possibilidade de que talvez,
impaciente como era, agora ia encontrar alívio para a solidão na qual vivia.
Talvez, se ela soubesse a verdade sobre ele, finalmente pudesse se deixar conhecer e
ter uma ligação verdadeira com uma mulher.
Em primeiro lugar, Beau odiava a ideia de admitir sequer para si mesmo que estava
solitário, e mais ainda, que os próprios impulsos pudessem tê-lo enganado.
A ideia era ameaçadora demais. Zombou da mesma e a afastou, garantindo a si mesmo
que não passava de um tolo. Ainda perturbado, aproximou-se da lareira de mármore
branco, que era uma peça maciça da época da Renascença.
Os dois acessórios iguais no formato de candelabros ficavam nos dois lados da lareira.
Ele se aproximou do da direita e segurou no meio, torcendo a base de latão até que ouviu
um estalido mecânico.
O som de engrenagens pesadas veio de debaixo do piso e, de repente, a parte
posterior da lareira se abriu.
Ele passou por baixo do aparador da lareira e por cima do caixote com carvão, e saiu no
estreito corredor.
— Carissa! Aqui, vem! – Chamou severamente ao entrar na passagem secreta.
Não demorou nada e ela se apressou a voltar, tateando à procura do caminho certo
através da escuridão.
— Oh, graças a Deus! Obrigada, obrigada, obrigada! – Exclamou, correndoaté ele. – Tu
és um anjo de misericórdia! Está escuro demais aqui!
— Isso é para dissuadir pessoas que não pertencem ao nosso meio – respondeu ele
secamente.
Virgil havia feito com que os agentes memorizassem os labirintos anos atrás, para que
não precisassem de luz para percorrer as passagens.
— Eu sinto muito – murmurou ela em tom defensivo, correndo até ele torpemente por
causa da escuridão. Ele a segurou pelos braços quando ela levou as mãos à frente às
cegas, tentando se equilibrar quando tropeçou. As palmas das mãos de Carissa bateram
em cheio no peito nu de Beau e ela as puxou para trás bruscamente, com um ofego suave.
Não era o que ela tinha em mente. De fato, o impacto daquele toque provocou um
estremecimento de consciência, percorrendo cada uma das suas terminações nervosas.
—Tu estás bem? – Murmurou ele, consciente de repente de que estavasemi nus e que
estavam só os dois ali.
— Sim – ela se obrigou a responder, meio sem fôlego.
Bom..., ele nunca havia feito sexo em um labirinto antes.
Alijou o pensamento libertino e fez um gesto mostrando para ela a parte de trás da
lareira.
— É por aqui. Cuidado com a cabeça. – Ele estendeu-lhe a mão para ajudá-la.
— Obrigada. – Disse ela, pondo os dedos ligeiramente nos dele, cujo tato lhe deu outra
sacudida de prazer, mas ele não lhe fez caso. Já havia sido bastante estúpido por causa
dela.
Beau não se importava com o que teria dito o falecido grande Virgil sobre o erro que
ele cometeu, mas tinha certeza de que nenhum dos agentes mais experientes da equipe
de Rotherstone teria permitido que isso acontecesse. Teria muitas contas a prestar
quando eles voltassem.
Enquanto isso, Carissa estava olhando fascinada para a pedra aberta que formava a
porta secreta e meneou a cabeça.
— Fascinante – murmurou ela, inclinando-se para se aventurar através da mesma.
Os lábios dele torceram ante o assombro de Carissa, e quase que perguntou:
— Achaste que o labirinto fosse apenas uma brincadeira?
No entanto, continuou em silêncio, segurando-a, enquanto ela levantava a barra da
saia longa e, com muito cuidado, passou por cima do caixote de carvão. Quando
conseguiu atravessar com segurança para o outro lado, endireitou o corpo já na sala de
refeições, só aí ele passou também.
Em seguida, fechou a porta secreta girando o candelabro para o outro lado, e a porta
atrás da lareira ficou oculta.
Ela então começou a passar as mãos nos braços para tirar as teias de aranha,
verificando se não havia aranhas neles.
Beau apertou os lábios, recusando-se a sorrir.
— O que estás fazendo?
Ela correu até ele.
— Tem aranhas no meu cabelo?
Ele a olhou, muito tentado a fazer uma brincadeira, pois sabia muito bem que ela
merecia. Mas, quando olhou para o cabelo e viu sangue seco grudado nos fios castanhos,
lembrou-se de novo de tudo que ela havia passado nessa noite e decidiu tratá-la com
cuidado.
Mas é claro que ele ia ter que colocar o temor a Deus nela, para que compreendesse a
necessidade de manter segredo.
—Não – murmurou. – Mas receio que tens um problema maior do que o das aranhas
neste momento. – Ele pegou-a pelo cotovelo e a conduziu até a cadeira mais próxima. –
Senta aqui, Senhorita Portland. Não deves ficar andando por aí.
E ele realmente devia vestir uma camisa, pensou ela nervosamente, quando ele a levou
até uma cadeira junto à parede para que ela se sentasse.
Não conseguia parar de olhar para aquele corpo. A beleza natural e masculina do físico
dele era avassaladora a tão curta distância. Ele ficou de pé diante dela, completamente
decidido, inconsciente do quanto se parecia aos nus dos mármores greco-romanos
masculinos. Estava com as mãos na cintura, parecia que organizando os pensamentos
sobre como tratar com ela.
Ela não tinha sugestão alguma.
De fato, mal conseguia pensar, olhando para a luz das velas brincando com aquele
torso forte, cinzelado, bem diante dela, e aquele encantador umbigo bem ao nível dos
seus olhos. A iluminação das chamas quentes estava se divertindo à custa dela, fazendo
com que tivesse uma vontade imensa de tocar e explorar a suavidade daquela pele de
veludo.
Duvidava que o famoso libertino tivesse se importado, mesmo ela sabendo como ele
era na verdade. No entanto, ela era louca o suficiente para tentar, principalmente agora
que sabia que estava tratando não com um libertino comum, mas com um espião.
Então ele se aproximou, segurou nos braços da cadeira de madeira e se acocorou
diante dela.
E ela ficou ali, encurralada no assento, enquanto ele a olhava fixamente nos olhos, com
aqueles penetrantes olhos azuis e cheios de desconfianças.
—Tu tens sido uma mocinha muito travessa, Carissa. – Ela engoliu em seco. – Por que
ficastes ali, escutando? – Exigiu em tom baixo.
— Ma-mas e-eu já te disse, eu me perdi. Não consegui encontrar a saída...
— E me dissestes antes também que eras uma boa mentirosa. Portanto, agora não sei
se posso aceitar a tua palavra. Mas já te advirto, quero saber a verdade. Quanto tuestás
sabendo...?
Ela empalideceu.
— De tudo.
Ele arqueou as sobrancelhas inquisitivamente.
—Eu teouvi conversando com o mordomo. Quero dizer, não sei exatamente, é claro,
mas me dei conta de que...
— Sim? – Perguntou ele, olhando-a fixamente.
—Tu és uma espécie de agente secreto – sussurrou ela, mal conseguindo conter a
emoção. – Mal posso acreditar! E o senhor Rotherstone, o Senhor Falconridge e o Duque
de Warrington também são, não é? E este lugar é o quartel general de vocês, certo? – Ela
olhou em torno meio sem fôlego, mas Beau não respondeu.
O salão de refeições do clube estava tranquilo, escuro e vazio, mas só para eles. Só
então ela percebeu o estranho mural pintado nas quatro paredes sobre o revestimento de
madeira, como retorcidas visões nascidas da febre. Ela o olhou, dando-se conta de que
tais cenas representavam as viagens de Dante através dos diversos círculos do inferno, as
chamas, os demônios, os monstros e tudo o mais.
Ele ainda não havia respondido, mas ela tomou tal silêncio como uma confirmação.
Ele a olhava de maneira estranha.
— Finalmente, tudo agora faz sentido – disse ela em tom de cumplicidade. – É por isso
que Daphne e Kate tiveram que sair da cidade, não é? Vós estáis com algum tipo de
problema. É esse o motivo da investigação do Ministério do Interior?
—Sabes sobre isso também?
Ela abaixou a cabeça recatadamente e lhe deu um leve sorriso culpado.
— E quanto àquele teu amigo, agente secreto também, o que atirou em nós... Ele é
traidor?
— Carissa.
— Foi por isso que ficastes viajando todos aqueles anos? Por causa desse trabalho?
Não, não precisa te preocupar – ela apressou-se a tranquilizá-lo. – Eu sei guardar segredo.
Não vou contar para ninguém.
— Não, tu não vais contar – ele concordou.
Ela franziu o cenho diante do aço daqueles olhos e da frieza na voz dele.
— Estás zangado comigo. Bom, suponho que estás sim. E eu mereço, sei disso. Na
verdade, eu sinto muito. Estou me dando conta de que eu não deveria andar
bisbilhotando por aí, mas, como eu poderia resistir? Tu sabes que a minha natureza é
curiosa. Dentre todas as pessoas, slguém com o teu tipo de trabalho deveria entender
isso. Passagem secreta? Nossa, isso é interessante demais!
— Como eu te disse agora há pouco, tu não sabes o que aconteceu com a curiosidade
do gato?
Ela o olhou, consternada.
—Tu não vais me perdoar, não é?
— Não.
— Mas por que não?! O que eu fiz foi tão ruim assim?
— Há consequências para os teus atos, não entendes isso? – exclamou ele, a ira
chispando nos seus olhos.
— Consequências? O que queres dizer com isso?
Ele apenas a olhou, e seu silêncio só a deixou mais nervosa ainda.
— O que é que vais fazer comigo?
— Nem a metade do que eu gostaria – grunhiu ele.
— Está bem! Continua zangado comigo, então. – Ela tentou se levantar da cadeira, só
para ser pressionada de novo pela firme mão dele sobre sua coxa.
Ela ficou muito quieta.
Se a mão na perna não era o suficientemente inquietante, o duro olhar daqueles olhos
azuis fez com que um calafrio lhe percorresse as costas.
Foi então que ela começou a entender que poderia estar com problemas, e muito
sérios, na verdade.
— Muitas pessoas foram mortas por causa da informação que possuis agora, Senhorita
Portland – informou ele em voz baixa.
Concluiu com desgosto que, por mais que geralmente desaprovasse que a chamassem
pelo primeiro nome, dadas as circunstâncias preferia muito mais que ele a chamasse de
Carissa.
Senhorita Portland – dito assim, soava quase que como uma velada ameaça,
destacando a distância que de repente ele colocou entre eles.
Procurou os olhos dele, sentindo um aperto de aço em torno do coração.
— Eu já te disse, não vou contar para ninguém. Tu precisas acreditar em mim. – Passou
a língua pelos lábios, sentindo a boca seca. – Bom, pelo menos tens que admitir que sou
tão leal quanto qualquer inglesa!
Ele se limitou a olhá-la, um verdadeiro monumento de homem. Silêncio..., enigmático
e difícil.
O coração disparou com um medo repentino de que nunca mais sairia dali com vida,
depois de tudo. Talvez ela tivesse visto demais! Talvez aquele buraco com a corda fosse
um calabouço para os visitantes que foram lá espionar...
Ela engoliu em seco.
— Se o teu propósito aqui é realmente servir ao teu país, então certamente deves
reconhecer que eu nunca faria nada para por em perigo a segurança da Inglaterra.
Levantou o queixo ligeiramente, mas aqueles olhos que pareciam duas pedras
preciosas não revelaram nada, e ele simplesmente deixou que ela continuasse se
retorcendo.
— Daphne e Kate..., elas sabem de tudo isto? – perguntou ela esperançosa, tentando
outra tática. – Elas devem saber – respondeu à própria pergunta, sentindo o coração
retumbar no peito. – Bom, então é isso! Se podes confiar nas minhas amigas, então,
obviamente, podes confiar em mim também!
A resposta dele foi um grunhido.
— A única razão pela qual confiamos nas outras damas foi porque elas estão casadas
com os nossos agentes, Senhorita Portland. Entendes? Elas têm um interesse pessoal
muito forte na sobrevivência dos respectivos maridos, por isso que geralmente é seguro
podermos confiar nelas para que mantenham a boca fechada. Mas essa condição não se
aplica a ti. Além do mais, – acrescentou – elas não são damas da informação.
— Bom, isso é verdade. Mas eu sou digna de confiança!
— Digna de confiança? Tu?! – Exclamou ele, mostrando um pouco de emoção, mesmo
sendo indignação. – Ha!
— Como é que é?! Eu também sou digna de confiança sim! – insistiu com a dignidade
ferida.
— O que não passa de uma absurda pretensão da tua parte! Só que tu não és nada
disso.
Ela engasgou e tossiu.
— Tudo o que fizestes esta noite refuta esse teu argumento. – Desgostoso, ele se põs
de pé, um semideus zangado pairando sobre ela, seminu em meio à própria ira. – Como é
que pudestes fazer isso comigo, Carissa? Eu só te trouxe aqui para salvar a tua vida! Não
consigo acreditar inclusive que pudesses chegar tão longe! Arrisquei a minha vida para
salvar a tua, e quando eu viro as costas por um minuto, o que fazes? É assim que me
pagas? Invadindo um lugar ao qual tu não pertences? O que tu és, alguma criança, por
acaso? Tu nunca consegues deixar as coisas como estão?
Ela respirou fundo para responder, mas as palavras não saíram.
Santo Deus, ele tinha toda a razão!
Ela fechou a boca e abaixou a cabeça, pois sabia muito bem que merecia mesmo a
descompostura.
— E agora, o que vais fazer comigo? – Murmurou depois de um longo tempo. – Vou ser
presa ou algo assim?
— Não, tu não vais ser presa por ter sido intrometida. Só há uma coisa que posso fazer
contigo – resmungou ele. – É óbvio. Nós dois temos que nos casar.
— Como é que é?! – Ela olhou para ele com os olhos arregalados como dois pratos.
— As consequências..., lembra-te? – disse ele todo satisfeito, cruzando os braços
musculosos (um deles com atadura) sobre o peito, o perfeito Adonis irritado.
— Nós dois..., casar?!
— É a única maneira pela qual posso me certificar pessoalmente de que vais manter
essa boca fechada – declarou ele.
Ela o olhou boquiaberta por alguns segundos e, finalmente, fechou a boca e os olhos e
pressionou a testa com os dedos.
Sentia a cabeça latejar de novo, de fato, enquanto lhe dava voltas tirânicas procurando
uma solução.
Ela se esforçou para manter um tom tranquilo e relaxante, embora o pânico fervesse a
fogo lento debaixo da superfície da voz.
—Tu não achas que está sendo, oh, talvez, só um pouquinho exagerado, meu senhor?
— Que lástima!
—Tu queres te casar comigo tanto quanto eu!
— Isso agora pouco importa. Mesmo tendo boa intenção, eu cometi um erro ao te
trazer aqui, e agora tenho que pagar por isso.
Ela o olhou, assombrada.
— Qual dama de berço como eu se casaria com um homem em termos tão insultantes?
— Aquela que não tem opção.
Ela se levantou da cadeira com o cenho franzido.
— Não sejas tolo! Estás exagerando completamente! Já sabes onde me encontrar se
alguma vez eu contar para alguém os teus segredos. Então poderemos falar sobre
casamento.
— E então será tarde demais, pois o dano já estará feito. Posso te manter na linha com
maior eficácia quando estás comigo. Debaixo do meu teto. Conforme as minhas regras –
acrescentou sombriamente.
— Ora, espera um pouco – protestou ela, recuando. – Casamento não é o tipo de coisa
para ser imposta como castigo. Além do mais, nós mal nos conhecemos, e o que sabemos
um do outro começa pelos nossos defeitos.
— E...?
— Pense nisso! Esta noite, por exemplo, eu vi que estavasplanejando um encontro para
praticar o adultério e, crê em mim, não quero, de forma alguma, casar-me com um
homem que não vê nenhum problema nisso! E da minha parte, nós dois sabemos que
rapidamente eu poderia te deixar louco. Sou uma pessoa imperfeita demais, tu não irias
me aguentar!
— Não diz isso.
— Mas é verdade! Olha, eu sou covarde. E vivo xeretando a vida dos outros.
—Tu és curiosa – acrescentou com um sorriso frio e zombeteiro. – Teimosa como o
diabo. A típica ruiva.
— Bom, obrigada – replicou ela. – Mas tu és um anjo, eu te conheço.
— Não, eu não sou – ele negou vigorosamente. – Tampouco tenho intenção alguma de
me corrigir.
— Bom, isso resolve tudo, então. Não nos convém.
— Então, suponho que ambos estamos fadados a uma vida miserável, porque eu vou
me casar com você – retrucou ele.
— Não, não vai.
— Sim, eu vou.
— Oh, vamos, Beauchamp! – O alarme estava estampado nela, porque sentia que já
estava perdendo a batalha. – Metade das damas da alta sociedade vão morrer de angústia
se apareceres com uma esposa! Haverá gente ferida em massa! Vão se matar a
punhaladas pelas ruas!
— Nada disso é problema meu – disse ele com um brilho terrível nos olhos, parecendo
a luz de um farol.
Carissa o olhou com nostalgia.
Ah, seu sacana! Se ela fosse sincera consigo mesma, esteve apaixonada por ele por
várias semanas, e pouco importava se o desaprovava ou não.
Como poderia deixar passar tamanha oportunidade? Ele era agradável de
temperamento, fisicamente irresistível, e, em termos práticos, o malandroseria Conde um
dia. Casar-se com ele poderia vir a ser algo bom para ela, embora, sem dúvida, tivesse
seus riscos.
A questão era sobre que tipo de vida levaria se se casasse com um espião, o que já era
bastante aterrador, se é que essa noite pudesse servir de exemplo.
Por outro lado, era a chance que tinha de sair da casa do tio, onde havia vivido como
uma parente pobre no último ano e meio. Como uma órfã, que havia passado de mão em
mão entre os parentes, sem raízes, sem lar próprio, acampada onde realmente não
pertencia. Nunca havia tido nada de seu.
Essa poderia ser uma oportunidade de ouro de ser dona da própria casa, e ninguém
poderia expulsá-la de novo, nunca mais. Quanto ao seu vergonhoso segredo, pensou,
olhando para o chão, sem dúvida, se alguém pudesse entender por que ela havia caído em
desgraça, certamente seria Beauchamp, que era um pecador.
— E então? –ele a apressou.
Não que ele realmente estivesse lhe dando muitas opções.
Carissa o olhou fixamente, com o coração na garganta. Esse casamento poderia se
transformar rapidamente em um desastre para os dois, já que ele estava fazendo isso só
para mantê-la calada.
Aquele discurso sobre mão de ferro, sobre regras a serem seguidas, soava como se
fosse ser pior se ela tivesse se casado com aquele poeta estúpido.
Porém, que outra coisa poderiam fazer? Ela havia passado já quase duas horas a sós
com um dos sedutores mais famosos de Londres.
Nenhuma reputação de uma jovem dama podia suportar tal fato.
Ela devia ficar contente por ele estar disposto a se casar com ela para lhe salvar o bom
nome, além de salvar sua vida. Deus sabia que ela não queria submeter a família do tio a
outro escândalo...
— Carissa, eu quero uma resposta. – Cruzou os braços com o cenho meio franzido. –
Vais cooperar ou vou ter que te arrastar até o altar?
O coração dela batia com muita força.
—Tu não precisas me arrastar para canto algum – ela se forçou a dizer com voz
sufocada. Em seguida, pigarreou para limpar a garganta e aprumou o corpo para olhar
para o futuro marido. – Eu aceito.
Os olhos azuis de Beau se estreitaram ligeiramente de satisfação.
— Pronto. Vistes? Foi tão difícil assim?
Ela abaixou os olhos, sentindo-se tonta outra vez pela perda de sangue, ou talvez fosse
mais pelo fato de que havia aceitado se casar com um espião.
Beau pegou a camisa limpa que o mordomo havia lhe trazido e deixado sobre a mesa
ali perto.
Ela envolveu os braços em volta de si mesma, sentindo um pouco de frio.
— Sabes que horas são?
Ele assentiu, apontando com a cabeça para o relógio na parede.
— Passa um pouco da meia-noite.
A peça de teatro devia ter acabado uns quinze minutos atrás.
Refletiu sobre as consequências do fracasso que tivera ao tentar voltar para o
camarote. As primas e a preceptora decerto estariam frenéticas àquela altura.
Não sentia vontade alguma de presenciar o que viria depois.
Ele vestiu o casaco ensanguentado.
— Vamos – disse ele com olhar cauteloso. – Vou te levar para casa. E vamos contar à
tua família as boas novas.
Capítulo 7

B eau estava ainda meio emocionado pela dificuldade que havia sido convencer

aquela obstinada mocinha a dizer sim. Não havia lhe escapado aquela veemente recusa
em um primeiro momento. Bela mal-agradecida! Pensava mesmo que ia conseguir melhor
oferta de outra pessoa?
Bom, suponha que, talvez, os termos que havia usado não haviam sido uma proposta
para fazer uma dama desmaiar. Mesmo assim! Ele era Sebastian Walker, por Deus, o
futuro Conde de Lockwood. Era, de longe, uma estratégia brilhante. Não sabia quantas
mulheres da nobreza, e das mais belas, perseguiam-no todos os dias?
Isso era algo que ele não conseguia sequer imaginar. Cada vez que acreditava ter
descoberto os mecanismos secretos do cérebro feminino, ela virava em outra direção e ia
zumbindo e estalando como um autômato pouco engenhoso criado pelo próprio Merlin,
com o propósito de levar os homens à loucura.
Seu orgulho masculino engasgou. Imaginou tudo o que podia significar; no entanto, era
o que pelo menos havia conseguido como sua noiva.
Nenhum dos dois falou muito enquanto se dirigiam à casa do tio de Carissa. Ele
esperava encontrar a casa do conde virada em um escândalo pela falta da sobrinha de
Denbury. Não estava com boa disposição para aquela visita.
Logo os cavalos pararam diante da elegante casa toda cercada de jardins. Ficaram ali
um pouco, à luz da lua. A rua estava escura demais.
Beau olhou as brilhantes janelas da mansão Denbury, depois olhou-a, e podia dizer,
pelo olhar nervoso no rosto pálido de Carissa, que ela tampouco estava com vontade de
entrar ali.
Virou-se e encontrou o olhar dela.
― Chegamos – disse ela.
― Preparada? Lembra-te do que tens que dizer? – murmurou. Haviam combinado tudo
antes de sair de Dante House.
Ela assentiu com a capeça.
― Não te preocupes. Eu vou ficar bem – garantiu ela em voz baixa.
― Como está a cabeça?
Ela tocou a atadura com olhar tímido.
― Nada mal.
― Deixa-me ver. – Ele estendeu a mão e virou o rosto dela para ver se havia sangue na
atadura, mas não havia mancha alguma, nem pontinhos vermelhos. – Creio que estamos
até com boa aparência.
Ela sorriu ironicamente na escuridão.
―Tu estás me devendo um chapéu.
― Pois é, devo-te sim – ele concordou com uma piscada tristonha. – Certo, então.
Vamos acabar logo com isto.
Foram até a porta principal, trocaram um olhar inquieto, então Carissa entrou primeiro,
com Beau atrás dela.
Pela atividade na casa, parecia que um galinheiro havia sido invadido por uma raposa.
Ouviam-se gritos, parecidos com cacarejos histéricos, e correria, principalmente das
mulheres, as quais nunca haviam visto Beau.
A Senhora Denbury estava fora de si, a preceptora chorava, e as duas famosas harpías,
conhecidas como as Filhas Denbury, berravam com as criadas.
Todo aquele caos se intensificou quando a mulher viu a atadura em volta da cabeça de
Carissa e o sangue no casaco.
Como o velho Denbury conseguia aguentar tudo aquilo? Beau se perguntou, mas
quando o Senhor Denbury chegou e passou por toda aquela algazarra, as três escapuliram
do escritório deixando-os a sós, e o conde fechou a porta. Em seguida, contaram para o
poderoso tio de Carissa a história previamente combinada.
Lado a lado, os dois contaram ao presidente patrício de um número infinito de
comissões parlamentares que quando Carissa, sentindo-se mal dentro do teatro, saiu para
tomar ar fresco e havia sido assediada por alguns bandidos que estavam escondidos, à
espreita na praça em frente.
Então Beau explicou qie, enquanto estava esperando um amigo, ouvira um grito de
socorro, e saiu correndo para salvá-la. Mas, ao afugentar os ladrões horrorosos que
estavam tentando roubar a bolsa e o colar de Carissa, um deles, enquanto fugiam, virou-
se e disparou.
― Como o senhor pode ver, a bala pegou no meu braço. – E olhou para a manga
rasgada e ensanguentada do casaco, a prova de que o que estava dizendo era verdade,
bom, pelo menos essa versão se aproximava da mesma. – Eu estava protegendo a sua
sobrinha, mas a senhorita Portland queria ver o que estava acontecendo.
― Como sempre – murmurou o conde, arqueando uma sobrancelha.
― Quando ela surgiu atrás de mime assomou a cabeça por trás do meu corpo, a
mesma bala pegou de raspão na cabeça dela. Como já lhe disse, ela tem muita sorte.
Poderia ter morrido ali mesmo.
― Então o senhor a levou a um médico?
― Não, senhor. Não havia tempo para tanto. Eu mesmo a atendi.
― Como é que é?!
― Ela já estava inconsciente, e, devo lhe dizer, havia muito sangue. Quando servi na
guerra adquiri prática em cuidar desse tipo de ferimento. Mas tive que levá-la para onde
eu tinha os suprimentos necessários à mão e espaço para trabalhar sem ser um teatro
cheio de mexeriqueiros olhando.
― Então, para onde o senhor a levou, exatamente? – perguntou o conde.
― Para Dante House.
O Senhor Denbury gemeu e cobriu o rosto com as mãos.
― Felizmente, logo constatei que a bala havia pegado só de raspão – continuou Beau. –
Mas ela precisava de alguns pontos, e eu também. Assim que terminei e coloquei a
atadura, eu a trouxe para cá. Posso lhe garantir, senhor, que não aconteceu nada de
desonroso. Eu lhe dou a minha palavra. Infelizmente, como nós dois sabemos, a alta
sociedade não vai encarar isso dessa forma.
― Absolutamente. – Denbury tirou as mãos do rosto e o olhou com receio. – Mas,
como o senhor é um cavalheiro, espero que saiba o que isso significa.
― Eu sei sim, senhor – disse Beau com firmeza. – E é justamente por isso que estou
aqui. Posso proporcionar à sua sobrinha uma boa vida, e não vejo nenhum motivo pelo
qual ela seja inadequada para mim. – Carissa e ele trocaram um olhar cauteloso. – O
sobrenome dela é mais do que honrado, e, além do mais, meu pai já está velho –
continuou. – E ele já me falou várias vezes sobre o desejo de ter um neto que garanta a
continuação da nossa linhagem.
A expressão do Senhor Denbury mudou à menção do Senhor Lockwood.
– Sim... Já ouvi falar sobre o seu pai. Um homem sólido. Os amigos dele sentem a falta
dele em Londres. Precisa dizer isso para ele.
― Obrigado, senhor. Eu vou dizer – murmurou Beau, baixando o olhar.
O Senhor Denbury olhou para Carissa com receio, estudando-a por um instante.
― Esse compromisso é adequado para ti também? Apesar da tua reputação? –
Acrescentou o tio secamente.
Ela manteve a cabeça baixa, com ar tão manso que Beau achou surpreendente.
― É sim, meu tio – respondeu ela.
Então ele meneou a cabeça.
― Muito bem, Beauchamp. Já que o senhor é mesmo filho de Lockwood, não posso
negar meu consentimento. Especialmente nestas circunstâncias, que, diga-se de
passagem, são bastante duvidosas. Atrevo-me a dizer que os dois formam um belo casal.
― Obrigado, senhor – respondeu Beau com um sorriso e fazendo caso omisso do fato
de que o que o conde dissera provavelmente não era um elogio.
Carissa ficou olhando para os dois homens que se parabenizaram com um aperto de
mãos e, em seguida, pegaram um cálice de Porto para brindar.
E com isso, o destino de Carissa estava selado.
E foi assim que tudo começou.
Os preparativos do casamento demoraram o tempo que o Arcebispo de Canterburry
levou para expedir a licença especial para que pudessem se casar rapidamente, o que
provocou um verdadeiro turbilhão de atividade, e ambas as partes se esforçavam para
organizar tudo para a iminente união.
Tío Denbury ficou encarregado da igreja, enquanto a esposa dele ficou com a partes
das flores, da música e do bolo. Beau foi procurar um anel e ordenou à criadagem da
própria casa que tudo estivesse pronto para a chegada da nova senhora. Carissa, por sua
vez, escapuliu para a loja da sua modista favorita, onde pediu para ver os vestidos formais
que a famosa costureira pudesse ter, algo que pudesse estar pronto dentro de poucos
dias. Foi necessário até agendar a visita para ficar longe das mexeriqueiras da sociedade.
Ambos queriam que o casamento fosse um fato consumado antes que a alta sociedade
começasse a fazer perguntas.
A inteligente modista mostrou ser sua salvadora ao sair do quarto de costura nos
fundos da loja com um vestido de cetim quase terminado. Era uma criação refinada em
rosa claro muito delicado, com um leve tom de vermelho, muito suave, para não entrar
em conflito com o cabelo ruivo de Carissa.
Vendo ali uma oportunidade, a modista sugeriu acrescentar bordas de renda branca
com pérolas. Carissa concordou com entusiasmo, e em seguida tratou de verificar o resto
do enxoval. As luvas e os sapatos seriam brancos, a combinação teria de ser a melhor e a
mais bonita, e debaixo desta, como supunha que seu noivo descobriria na noite de
núpcias, estariam as meias de seda branca sustentadas por ligas cor de rosa.
Carissa deu à costureira dois dias para fazer as modificações, então se dedicou a se
programar para sair da casa do tio. Os próximos dois dias ela dedicou a empacotar e
organizar toda a roupa, livros e demais pertences, inclusive com a ajuda de várias criadas.
As primas de Carissa observavam tudo aquilo tecendo poucos comentários. Pareciam
estranhamente abaladas pelo fato de que ela estava indo embora. Pela primeira vez não
se queixaram dela desde o dia no qual havia chegado àquela casa, e não havia dúvida de
que ficariam encantadas por se livrarem dela, pensou. Mas, ver as primas um pouco mais
velhas, realmente, sair dali para inicial uma nova vida com seu marido, parecia fazer com
que elas se lembrassem que em breve elas próprias estariam fazendo o mesmo, pois era o
curso normal das coisas.
Elas ficaram estranhamente grudadas à mãe, e a tia Denbury decerto estava pensando
a mesma coiss, porque não questionou nada, mas puxava as moças contra o próprio peito
para lhes dar muitos abraços e beijos ocasionais na testa de ambas.
Carissa se absteve de fazer comentários. Perguntou-se o que será que a própria mãe
teria dito do seu futuro marido. É claro, ela ainda era criança quando viu a mãe com vida
pela última vez. Encolheu os ombros àquelas dolorosas recordações e se concentrou na
tarefa de organizar um baú cheio de pertences pessoais.
Carissa não queria parecer ingrata, mas, na verdade, seria um alívio sair da casa do tio.
Depois de quize anos passando de mão em mão de parentes diferentes, mal podia esperar
para ter o verdadeiro e próprio lar, finalmente.
Apesar do pequeno broto de entusiasmo esperançoso, e de seu coração ir aos poucos
se enchendo de orgulho ante a perspectiva de se estabelecer em um lugar para senpre, ao
qual realmente pertencesse, esse otimismo acabou se misturando ao temor cada vez
maior sobre como seria sua noite de núpcias.
Agora que compartilhar a cama com ele era uma certeza, e apenas uma questão de
tempo, viu-se corroída por inumeráveis temores, imaginando todas as possíveis formas
com as quais ele poderia reagir diante da revelação de que havia se casado com uma
moça que não mais era virgem.
E se ele não fosse tão compreensivo quanto ela esperava...?
Aliás, o que aconteceria se ele ficasse furioso? Afinal, ele era um guerreiro. E se ficasse
violento? Podia matá-la tão facilmente quanto a um mosquito. Certo, provavelmente não
a matasse, admitiu. Mas, e se a abandonasse? Se anulasseo casamento? Se se divorciasse
dela? Será que ele a envergonharia diante de todo mundo?!
Fantasmas aterrozizantes desse tipo a mantiveram acordada durante os três dias antes
do casamento, dando voltas e mais voltas na cama.
Só que ela não se atrevia a contar para ele antes do tempo. Senão ele poderia cancelar
o casamento, e os rumores já começariam a correr entre a sociedade, e tudo porque o
primo de Araminta havia contado a fofoca para o melhor amigo.
O relógio continuava correndo. Rumor era como uma febre infecciosa que levava certo
número de horas para recuperar forças antes que a doença se instalasse completamente
no hospedeiro.
Talvez devesse tentar fingir que ainda era virgem, na noite de núpcias, pensou, olhando
para o teto. Alguma coisa para que ele pudesse passar através da mesma. Afinalde contas,
nem todas as mulheres sangravam na primeira vez. Tia Jo havia lhe dito isso quando
tiveram uma conversa terrivelmente incômoda.
Mas será que conseguiria fingir inocência suficientemente bem para enganar um
espião? Um homem que havia tido mais mulheres do que um sultão com um harém? E ela
realmente queria começar um casamento tendo como base o engano? Primeiramente, ele
só estava se casando com ela porque não confiava que ficaria em silêncio sobre a Ordem.
Por outro lado, se ela escolhesse ser honesta e lhe contasse tudo, então ele poderia
concluir que havia se casado com uma mulher na qual não seria capaz de confiar, e
simplesmente a descartaria.
Mas ele pode confiar em mim, insistiu seu coração, enquanto continuava deitada e
acordada nessa noite. Aquele deslize não havia passado de uma ingenuidade juvenil. Era
tão importante assim trazer à baila tudo o que era desagradável?
E quanto ao bom senhor, enquanto espião, o que poderia fazer com Roger Benton se
ela lhe contasse a história de como havia sido seduzida? Não que ela se importasse se
Beau reorganizasse a cara do poeta, mas não pretendia mandar o novo marido de
imediato para outro duelo.
Ora, vamos, argumentou consigo mesma. E por que tinha que contar tudo para ele, na
verdade? Isso tudo aconteceu no passado. Todo mundo tem segredos, e tinha certeza
absoluta de que Beauchamp jamais lhe contaria os dele.
Tais preocupações se prolongaram até o dia seguinte, enquanto terminava de
empacotar a última leva de coisas a serem enviadas para o novo lar.
Pressionou o conteúdo para que tudo coubesse ali, em seguida fixou as presilhas de
latão. Tirou a poeira das mãos e pediu ao lacaio que levasse o último baú até a carruagem.
Enquanto o baú era retirado, tia Denbury fervilhava, envolvida nos preparativos
relacionados ao casamento. O bolo de Gunther já havia sido encomendado.
Ela havia procurado os serviços de um dueto de harpa e flauta para tocar na cerimônia.
Os poucos buquês de flores também estariam prontos pela manhã, só que, em meio a
isso tudo, havia um problema. Faltando apenas vinte e quatro horas para o evento, ainda
não se sabia onde seria celebrado o casamento.
Nessa noite, então, tio Denbury chegou em casa com um sorriso incomum, largo, do
tipo que dizia que acabara de salvar o dia. Ele os chamou e anunciou, à família e à noiva,
que depois de ter mexido alguns pauzinhos, e graças a uma doação importante, havia
acabado de conseguir permissão para que o casamento fosse celebrado em um lugar não
menos magnífico do que a capela da Virgem, dentro da não menos também magnífica
Abadia de Westminter. Esse era o presente de casamento para eles.
Carissa o abraçou, agradecendo-lhe a gentileza, mas ainda estava meio abalada com
aquilo tudo, quando o dia seguinte chegou. O dia do grande evento.
Depois de todo aquele frenesí de frenética atividade, todo mundo conseguiu finalizar
os preparativos no último instante, como que por obra de magia.
Estava na hora e todos já estavam na abadia, fascinados diante da beleza serena dos
vitrais da capela.
O harpista e o flautista estavam tocando, os buquês de flores perfumavam o ar, seu
vestido era esplêndido, e enquanto ela olhava solenemente através do véu branco que lhe
cobria a cabeça, via que, pelo menos naquele instante, não tinha nada para se
envergonhar como a noiva de berço que era, digna de um futuro conde.
A sociedade poderia até arquear uma sobrancelha diante daquele casamento a toque
de caixa, mas estava tudo certo no final. Na verdade, a cerimônia estava meio terminada.
Talvez agora ela pudesse começar a se concentrar no casamento em si. Acontecesse o que
acontecesse, ela ia fazer tudo o que fosse possível para que desse certo. Beauchamp não
era perfeito, mas também não era ruim.
Como o tio havia dito brincando, eles eram um casal.
As asas que brotavam da emoção alcançaram seu coração, ao se posicionar diante do
altar. Deu uma olhada nervosa para o atraente visconde ao seu lado. Celestial, alto,
orgulhoso e nobre naquela casaca cinza-pombo, parecia um anjo de ouro visitando a terra
sob a aparência de um cavalheiro inglês.
A gravata branca brilhava à perfeição, e a ponta mais longa do cachecol de seda claro
assomava por baixo da casaca feita sob medida, listrada em azul e prata. As calças eram
brancas e os sapatos, pretos.
Ela olhou para a própria mão enluvada apoiada na dele enquanto o vigário lia o
Corínto.
— O amor é paciente. O amor é bondoso...
Ela sabia essa passagem de cor, então sua mente divagou. Apesar da beleza do lugar,
não podia negar que era bastante solitário para um casamento.
Os únicos convidados eram tio e dia Denbury, que serviram como testemunhas, e as
filhas do casal; a senhorita Joss ainda parecia desconcertada com tudo aquilo. Araminta
levou a mão à boca para esconder um bocejo. A senhorita Trent secou lágrimas silenciosas
de novo, enquanto o futuro senhor Denbury, seu primo de dez anos de idade – o jovem
Horácio – franzia o cenho inquietamente por ter que vestir roupa de domingo no meio da
semana. Era um monstrinho aquele menino.
Carissa queria que Daphne estivesse ali. E também o Senhor Falconridge, por quem
tinha um carinho especial. Oxalá pelo menos pudesse esperar que tia Jo tivesse sido
convidada e viesse de Paris. Ela deveria chegar dali alguns dias, mas o senhor Denbury
disse que era melhor assim. Não se atrevia a dar à mundana irmã a chance de vir com
aquelas cenas alegres, como costumava fazer, e que dissesse algo indigno que assustasse
o noivo, ou pior, que a abandonasse. No entanto, parecia que não havia nenhum perigo
disso.
Beau estava firme ao seu lado, atento à leitura do vigário.
Então ela se perguntou se ele já não estaria lamentando tudo aquilo. Quando ela o
olhou de novo, viu que ele estava sorrindo. Apenas um toque de suavidade em torno dos
lábios.
A ansiedade e a obsessão de pura agonia fizeram com que ela contraísse todos os
músculos. Querido Deus, por favor, não permita que ele note nada estranho em mim esta
noite! Eu não aguentaria se ele me odiasse!
Em meio a toda aquela loucura de três dias de pura preocupação, havia jogado suas
cartas e decidira mais ou menos provar que era tudo um engano. Não queria fazer isso,
mas, com todos os problemas de espião, ele já tinha preocupações suficientes sem ter
também o medo de que havia se casado com um prostituta sem perceber.
Depois de tudo, o que aconteceria se pensasse que ela lhe daria carta branca para
continuar a levar a vida de libertino, à qual ele estava acostumado, em vez de se
comportar como um marido adequado? Ela já havia sentido ciúme dos relacionamentos
dele com outras mulheres antes mesmo de falarem sobre casamento. Se ele retomasse
aquela vida depois de casados, ela realmente não sabia como iria suportar.
Então ela decidiu que, nessa noite, bancaria a inocente, o que não deveria ser difícil, já
que só havia feito uma vez, de qualquer forma.
Se ele expressasse desconfiança depois, repreendê-lo-ia por ser canalha e patife,
desonrando-a com dúvidas e acusações. Porque, diga-se de passagem, ela poderia ter um
ataque histérico digno de Araminta, se fosse o caso.
A ideia original, de ser capaz de lhe confiar seu segredo, desvaneceu-se na escuridão
conforme o momento da verdade se aproximava.
— O amor não registra erros...
O sábio vigário olhou Carissa como se soubesse, de alguma forma, que as palavras que
estava dizendo entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Ela olhou para o noivo de
soslaio, esse homem perigoso e encantador estava a ponto de se transformar no seu
companheiro para a vida toda, e queria uma coisa bastante simples, com todo o seu
coração.
Que ele a amasse.
Cheio de terno protecioninismo em relação à noiva, Beau olhou para ela, encantado
mais uma vez com tamanha beleza. Ela parecia radiante hoje, e quase que não aguentava
esperar para por as mãos nela nessa noite. Finalmente teria o direito de usufruir dela
como bem lhe aprouvesse, com o pleno consentimento de Deus e dos homens.
Lamentou o fato de que nenhuma das pessoas das quais havia esperado que fossem ao
casamento estivessem presente, mas de nada adiantava se queixar. Afinal, Virgil estava
morto. A equipe de Rotherstone estava na Europa, e Nick e Trevor, Deus sabia onde.
Enquanto sua noiva estava febrilmente envolvida com os preparativos do casamento,
ele havia feito o mesmo, e mais, fez um cálculo de cada recurso que lhe restava para por
todos os agentes ativos em Londres à procura de Nick.
O barão não tinha família para que Beau pudesse entrar em contato com eles, então
havia coberto os ângulos legais e financeiros. Notificou os bancos e advogados caso Nick
tentasse alguma manobra para tomar posse de todo o dinheiro que haviam lhe pagado
por atos nefandos. Beau também havia dado um alerta sobre o paradeiro de Nick para um
oficial de Bow Street em particular, que às vezes os ajudava a seguir pistas.
Da mesma forma, havia ativado sua rede de informantes naqueles infernos de
jogatinas e tavernas que Nick costumava frequentar. Também havia alertado os armeiros,
cujos serviços haviam utilizado no passado, para que o avisassem caso Nick entrasse em
contato com eles, mas sem colocar o ex-agente de sobreaviso.
Nick, sem dúvida, havia se escondido em algum lugar no qual ia ser impossível
encontrá-lo, mas, com centenas de olhos espreitando, em breve ele não conseguiria
beber um gole sequer em toda Londres sem que Beau ficasse sabendo, bem como onde e
quando.
No entanto, ainda sofrendo pela traição do amigo que sempre havia esperado que
fosse seu melhor homem, alijou Nick da mente e se concentrou na cerimônia.
O vigário fez a célebre pergunta.
Sorrindo, Beau olhou para Carissa, talvez fosse hora de arrumar um novo melhor
amigo. Pôs a mão sobre os dedos dela, para que os apoiasse levemente no seu antebraço.
Depois olhou à frente e exibiu um semblante cheio de orgulho para o sacerdote.
— Sim, eu aceito.
Capítulo 8
Q uando voltaram para a casa dos Denbury, Carissa não conseguia parar de olhar

o anel que tinha no dedo.


A cerimônia havia sido concluída, o pacto entre eles estava consolidado. O refinado
círculo de ouro no dedo era uma prova surpreendente de que os dois estavam realmente
casados.
Agora ela era Lady Beauchamp.
Tudo aquilo era um pouco cansativo. Que ironia, fazendo uma retrospectiva, que duas
pessoas tão experientes em guardar segredos devessem agir com tanta rapidez para que
aquele período no qual estiveram juntos dentro de Dante House não fosse mencionado.
Quem sabe, no fundo, os dois haviam realmente desejado isso, mas foram covardes
demais para admitir. Só sabia que aquele dia parecia o fragmento de um sonho, uma
mistura de redemoinhos de felicidade inesperada e a recorrência súbita em vez da própria
agonia íntima quanto àquela noite.
Mal conseguia acreditar que o elegante e atraente homem ao lado fosse seu.
Cambaleava entre o assombro e o terror de que tudo viesse abaixo em um piscar de
olhos. A vergonha ainda a espreitava nos cantinhos ocultos do seu coração desde que
Roger Benton havia lhe roubado a inocência.
Se Beau descobrisse – e se ele perguntasse – será que deveria lhe dizer a verdade?
Não conseguia parar de olhá-lo, tentando lê-lo, procurando qualquer sinal que lhe
dissesse o que devia fazer.
É claro, ele cativou rapidamente a família toda, embora, quiçá, não o tio de Carissa. Tia
Denbury e a senhorita Trent estavam simplesmente maravilhadas com ele.
Até mesmo o monstrinho parado diante dele, que adotou um ar fraternal, depois
passou pelo flerte superficial de Araminta e inclusive descongelou a altivez da irmã mais
velha, e a senhora Joss, ao falar com ela sobre o potro de corrida que a famosa amazona
havia escolhido para seu pai nos estábulos.
Apesar de ser apenas a família, tiveram uma ceia elaborada na qual Carissa mal tocou,
seguida pelo esplêndido bolo de casamento com champanhe. Obolo de baunilha e
amêndoas de Gunther era uma confecção artística de sete camadas, com a formação de
gelo esponjoso e maravilhosas flores esculpidas.
Depois veio a troca de presentes, começando pela contribuição chorosa e lacrimejante
da tia para o seu enxoval. Entre esses tesouros estava um serviço de chá de prata que
havia sido transmitida para a família, e uma peça de renda de Bruxelas deslumbrante para
fazer toalhas ou qualquer outra coisa que pudesse vir a precisar para fazer na nova casa.
A senhora Trent lhe deu o último livro publicado sobre a virtude de uma esposa e outro
sobre a gestão de uma grande família.
Araminta lhe deu um xale verde de Paisley; Joss lhe deu um diário em branco forrado
com tecido e um jogo de plumas. Horace lhe entregou um presente obviamente
providenciado pelo pai, um pequeno quadro de todos eles juntos, que havia feito fazia
anos na época do Natal.
Ela abraçou um por um, muito surpresa por aquela rara demonstração de carinho. Ou
bem haviam se preocupado com ela ao longo dos anos, mais do que jamais haviam lhe
demonstrado, ou era o delírio de um momento de culpa, pensando que poderiam ter feito
com que ela se sentisse um pouco mais incluída durante o tempo no qual ela esteve com
a família Denbury.
Agora que ela estava indo embora, talvez sentissem um arrependimento tardio. Ou
então, conforme o lado cínico com o qual observava tudo, talvez essa demonstração de
afeto viesse de um conhecimento mais prático quanto à nova posição dela na sociedade.
Carissa, porém, alijou da mente pensamentos tão pouco caridosos. Ela não pertencia
mesmo àquele lugar, àquela família. Qualquer que fosse a causa pela qual a família fosse
tão amável com ela, no dia do seu casamento, não pretendia questionar nada,
simplesmente senti-los e agradecer.
E então, seu marido de três horas se virou para ela com um sorriso maroto e disse:
— Então, minha senhora, gostarias de ver os meus presentes para ti?
— É claro que sim.
Ele se levantou, pegou-a pela mão e puxou-a para que ficasse de pé, sustentando seu
olhar.
— Vem comigo.
— Para onde vamos?
Um brilho travesso dançou naqueles olhos azuis.
— Oh, bem, tu já vais ver.
— Aonde tuestá levando-a?
— Juntai-vos a nós – ele convidou os parentes dela, com aquela maneira descontraída
de sempre. – Tenho certeza de que todos ficareis muito interessados em ver a reação
dela.
—Beauchamp, o que foi que fizestes? – Murmurou ela, assustada, enquanto ele a
conduzia até a porta principal.
Ele a abriu sem dizer uma só palavra, fazendo um gesto e convidando-a a sair para o
mundo, enquanto mantinha a porta aberta.
Carissa o olhou perplexa, em seguida, arrepanhou a saia e saiu. O sol, ao se pôr, havia
deixado o céu em chamas, as folhas das altas bananeiras de jardim captavam a luz e
brilhavam como se tivesse moedas de ouro em cada folha.
Depois de sair, Beau levou dois dedos à boca e soltou um assobio penetrante, como era
moda entre alguns pescadores do porto ou entre os corpulentos cocheiros dos coches do
correio.
Horace, impressionado por tamanha façanha, no mesmo instante tentou imitá-lo, mas
tia Denbury puxou a mão do menino, tirando-a da boca.
— Nem pensa nisso, Horace.
— Fecha os olhos – Disse Beau para Carissa. – Em frente!
Ela avançou, mas como estava de olhos fechados, prestou atenção ao tato, naquela
mão suave, calmante na parte baixa das suas costas. E então ouviu o clip-clop de cascos
de cavalo e o barulho das rodas de uma carruagem que se aproximava.
Um sorriso curioso puxou seus lábios.
— Quem está chegando? Trouxestes alguém para me ver? – Então, de repente, ficou
sem fôlego. – Trouxestes Daphne?!
Ele pigarreou.
— Não.
O som parou.
— Agora já podes abrir os olhos. – Ela obedeceu.
Parada junto à calçada, viu uma magnífica carruagem puxada por quatro cavalos. O
cocheiro de libré tirou o chapéu para ela.
— Milady. – disse ele.
O queixo de Carissa caiu. Com olhos arregalados, virou-se para o marido. – Para mim?!
Ele sorriu.
— Agora tu podes te locomover com estilo.
— Oh! Beauchamp! – Surpresa, cobriu a boca com as mãos e o olhou de novo.
As partes metálicas da carruagem haviam sido polidas até ofuscar a todos com tanto
brilho.
Os acessórios de latão também brilhavam, e os cavalos, oh, os cavalos! Uma parelha de
cavalos brancos como a neve, contrastando com o arnês preto, haviam sido enfeitados
com plumas vermelhas na cabeça para a ocasião.
— Jamison será teu cocheiro – Informou Beau, apontando para o condutor. – Ele está
com minha família faz muito tempo. Confio nele implicitamente.
Carissa inclinou levemente a cabeça para o seu novo cocheiro.
— Encantada por te conhecer, Jamison.
Ele fez uma reverência, sorrindo para ela.
— Parabéns, Milady.
— Obrigada. – E virando-se para o marido – É lindo, Beau! É simplesmente lindo –
repetiu ela com incredulidade persistente.
Brincando, ele deu uma batidinha com o dedo no nariz dela e se aproximou mais.
— Só para que tu saibas – acrescentou em tom conspirador. – Dei ordens estritas a
Jamison para te manter fora de qualquer travessura quando eu não estiver presente. Dada
a inclinação que tens para te meteres em encrenca, não pretendo deixar que fiques
perambulando pela cidade, seja por bem ou por mal, quando eu não estiver aqui para
fazer isso. Se pedires que ele te leve a qualquer destino que possa considerar imprudente,
dei ordens a Jamison para se negar discretamente até que tenha verificado comigo
primeiro.
— Sério? Então colocastes um homem teu para me espionar? – Murmurou ela com
olhar mordaz.
Ele sorriu serenamente, com o rosto perto do dela.
— Incomoda quando os papéis são trocados, não é mesmo, querida? – Ele pegou sua
mão. – Vem. Tem mais.
— Mais? – exclamou ela.
Ele foi de novo até a casa, puxando-a atrás de si.
— Oh, sim. Estamos apenas começando. Apressa-te, meu amor. Não podemos ficar
aqui a noite toda. Se é que me entendes.
Os olhos dela se arregalaram com a insinuação.
Quando chegaram à sala de estar, três caixas amarradas com laços de fita haviam
aparecido sobre a mesa baixa diante da lareira, junto a um grande e misterioso montículo
com a forma do objeto que havia debaixo de um quadrado de seda azul, também
amarrado com uma fita.
— Tudo isso é para mim?! – exclamou.
—És tu a noiva, não é? Começa por este. – Apontou o objeto de seda drapeada. –
Apressa-te – acrescentou, olhando para o relógio da lareira.
Faltavam dois minutos para as seis horas.
— Não seja impaciente, Lorde Beauchamp. Francamente... – disse o tio, com um
murmúrio.
Carissa inspecionou o presente que tinha forma estranha, em seguida olhou de novo
para o marido com curiosidade cética.
— O que é que tem aqui debaixo?
— Nunca vou te dizer. Vamos, abre. No entanto, não tenta levantá-lo. É pesado demais.
E é muito fácil tirar a roupa.
Os primos dela gritaram travessamente. Os olhos de tia Denbury se arregalaram, a
senhora Trent engasgou e o conde franziu o cenho.
Reprimindo a risada, Carissa deu uma olhada de advertência para ele, repreendendo-o
e dizendo-lhe para se comportar. Em seguida, com as faces rosadas pelo flerte, ela
começou a abrir o presente. À medida que desamarrava a fita, deu-se conta de que nunca
na vida ninguém havia feito tanto alvoroço por causa dela. Era realmente estranho.
Pegou um canto da seda, olhou para onde ele estava sentado, em uma cadeira
próxima. Mas ele devolveu o olhar como se estivesse em um jogo de cartas, cujo rosto
não revelava nada, e apoiou o queixo no punho.
Em seguida, levantou a seda completamente e gritou de espanto ao ver a peça
ornamentada e dourada, uma floreira em forma de relógio, construído em camadas. O
fundo era um frontão robusto de madeira enfeitado com guirlandas de flores e
medalhões. Por cima tinha uma pequena pintura em tons pastéis do que parecia o
pavilhão principal de Vauxall e, por cima, havia estatuetas douradas de quatro músicos
com os respectivos instrumentos.
— É lindo – disse ela, olhando o misterioso objeto. – Mas é um..., o que é isso, afinal?
— Espera trinta segundo e já vais ver.
Ela se virou para ele, com o cenho franzido.
—Por quê, o quê é isto?
— Eu sei o que é! – Disse Horace, dando um passo à frente. – É um relógio automático!
Justamente nesse preciso instante, deu as seis horas e o relógio tomou vida com um
melodioso timbre.
Dentro da caixa de madeira soaram um grande zumbido e um clique mecânico. As
badaladas soaram em forma de música, os músicos bateram os instrumentos dourados,
cujos bracinhos trabalhavam para tilintar pequenos sons.
Ao mesmo tempo, um pequeno cartaz apareceu diante do Vauxall, onde estava escrito:
Baile.
E então, figuras coloridas, aos pares, do tamanho do dedo mindinho de Carissa,
emergiram do lado da caixa e começaram a girar em frente à pintura do Vauxall e de novo
para o outro lado. Contou dez diferentes pares de pequenos bailarinos pintados, cada um
vestido com a roupa da moda.
As moças exclamaram com assombro quando, com o clique seguinte, um Cupido em
miniatura surgiu de uma pequena porta dourada e começou a girar por cima dos
bailarinos, subindo e descendo mecanicamente com o arco e a flecha, como se estivesse
procurando um objetivo.
— Oh, perfeitamente encantador, Lorde Beauchamp!
— Que maravilha!
Todos aplaudiram quando o pequeno espetáculo terminou. Os músicos pararam, os
bailarinos se retiraram até o próximo quarto de hora, e Cupido voou de volta para o
esconderijo.
— E tu, gostasttes?
— Sim! Muito obrigada, querido marido. É mágico. – disse ela com olhar cálido.
—Tu te esquecestes de ler a inscrição na parte de trás – disse ele em voz baixa.
Perplexa, Carissa contornou a tábua para olhar a parte de trás do relógio musical
automático. Aproximou-se mais para ler a pequena placa de bronze, colada à base de
madeira, e viu que havia sido gravada.
Na placa estavam gravados os nomes de ambos e a respectiva data do casamento, e
logo abaixo, em caixa alta, leu a inscrição: PARA A MINHA DOCE CARISSA. DANCE
COMIGO PARA SEMPRE. TEU CARINHOSO MARIDO, BEAU.
Seu coração se agitou quando leu pela segunda vez. Sem palavras, aproximou-se e o
abraçou.
Quando ele a atraiu para os seus braços com uma risadinha, ela adorou, e o beijou
fervorosamente na face.
Creio que vou gostar de estar casada contigo – pensou ela.
Antes de ela se afastar, ele pegou seu rosto entre as mãos e a olhou nos olhos,
sorrindo. A falta de um comentário engraçado a encheu de deliciosa e trêmula esperança
de que, na verdade, ele queria mesmo dizer cada palavra daquela inscrição romântica, e
não porque fosse de praxe, devido a uma graciosa hipérbole.
Talvez ele não tivesse se casado com ela apenas com a finalidade de se certificar que
seus segredos não fossem descobertos. Talvez ele realmente se importasse com ela.
Quando ele a puxou suavemente pelo queixo e lhe disse que continuasse abrindo os
presentes, ela não conseguiu encontrar voz. A generosidade dele e as palavras gravadas
no esplêndido relógio praticamente a transformaram em uma poça de mel no chão.
— Vai em frente – incentivou-a, apontando com a cabeça para outro presente. – Não
vou te revelar nada.
Aquela sensação de sonho a envolveu de novo quando ele a deixou assombrada mais
uma vez, com um belo e pequeno colar de opalas, para não entrar em conflito com a
pequena estatura dela. Grande parte das joias da época do Renascimento, de estilo tão
popular, era demais para uma mulher de apenas um metro e meio. A senhora Trent a
ajudou a colocar o colar e todos a admiraram, enquanto ele sorria como marido
orgulhoso.
— Tive a sensação de que essa pedra ficaria perfeita na tua pele.
O calor nos seus olhos ficava cada vez mais forte enquanto o beijava em
agradecimento, e depois, um cauteloso beijo nos lábios. Aqueles presentes, graças a Deus,
deixaram seu estado de ânimo mais leve.
Ela sabia que ele estava tramando algo quando colocou a caixa maior no colo dela. Era
larga e alta, redonda, mas, pelo tamanho, parecia mais leve do que parecia.
Ela tirou a fita, depois levantou a tampa. E em seguida caiu na risada quando tirou de
dentro o chapéu mais horrível que o mundo jamais havia visto.
— O que foi? Não gostastes? – exclamou, fingindo-se magoado.
— Parece um pavão real afogado em cima de um ninho de ratos! – Ela ria às
gargalhadas, mais pelo alívio da tensão nervosa do que por achar graça realmente.
Os parentes de Carissa estavam em silêncio, educadamente desconcertados, sem saber
como reagir. Não conseguiam sequer imaginar por que Beau lhe daria tal coisa nem por
que ela ria tanto, mas via-se que era uma brincadeira particular entre os dois. Era o
prometido chapéu.
O momento ficou gravado na memória daquela noite em Dante House, quando ele
havia prometido levá-la à loja da melhor modista de Londres e comprar qualquer chapéu
que ela quisesse, contanto que ficasse quieta e deixasse que ele desse os pontos.
Essa era a maneira dele de pedir desculpas por ter cortado um pouco do seu cabelo
para limpar e suturar o ferimento.
— Muito bem! És fiel à palavra dada, meu senhor! – Declarou ela.
— Mas é claro que sim. Quero ver o quanto ficas linda...
Ela colocou o chapéu e fez uma reverência.
— Linda! – disse ele.
— Oh! Mas, prima, você não pode usar isso em público! – Explodiu Araminta, incapaz
de continuar calada.
— Tem razão – concordou Joss severamente. – É horrível.
Carissa riu mais ainda.
— Não, não é! É lindo de morrer!
— Ela está com ciúme – disse Beau com conhecimento de causa, cruzando os braços
sobre o peito e a expressão astuta.
— Não sejas ciumenta, Min. Tu podes me pedir emprestado quando quiseres!
—Os dois estão loucos – murmurou tio Denbury.
— Beauchamp pirado – sugeriu o mostrinho Horace.
— Huuummm..., prefiro assim – disse Beau. O presente final acabou sendo o motivo
para a volta do seu humor descarado: o presente perfeito para uma dama da informação.
Esperou a reação dela quando abriu a caixa e afastou cuidadosamente o tecido para
descobrir a próxima porção da frivolidade de joias que ele havia lhe comprado.
Sobre o papel de seda, viu um diamante incrustado em um binóculo de ópera, para
poder espionar com estilo.
Ela o olhou, adoravelmente divertida, sem saber se ria ou se sacudia a cabeça,
repreendendo-o. Ele sorriu, aparentemente sabendo o que o presente significava para ela.
A aceitação da fraqueza dela. O afeto que tinha por ela, de qualquer forma, apesar de que
ela era uma..., dama dos mexericos.
Ali ela podia admitir tal coisa.
Logo chegou o momento de partir, deixando a casa do tio pela última vez. Foi
estranhamente difícil, apesar de que estava se mudando para algumas poucas quadras de
distância. Ainda estaria em Mayfair.
Mesmo em meio às despedidas, continuava nervosa devido à noite de núpcias que
tinha à frente. Ele devia saber que ela se sentiria assim, por isso havia procurado apoio
para fazê-la rir e ajudá-la a dissipar a tensão.
Saber que ele era um homem bom também a ajudou a ficar à vontade.
Se ela pudesse tão somente conseguir passar por aquela noite, com todas as
incertezas, então teria que acreditar que tudo ficaria bem.
Além do mais, no seu coração, sabia a verdade: esse homem fazia muito tempo que a
havia seduzido.
Capítulo 9

C asado. Será que ele queria isso mesmo? Beau estava na carruagem, em silêncio,

pensando no fato de que seus dias de libertino haviam acabado.


Havia pensado que uma parte dele lamentaria o final da carreira como sedutor, mas
estava feliz por deixar aqueles velhos costumes para trás. Tudo o que precisava era
encontrar a mulher certa. Olhou para a esposa, ao seu lado. De mãos dadas, iam em um
silêncio confortável depois de um longo dia cheio de acontecimentos.
Estudando-a, deu-se conta de que ela parecia um tanto apreensiva com essa noite.
Comovido pela inocência dela, sorriu intimamente. Em breve ele acabaria com aqueles
medos virginais. Ele levou a mão dela aos lábios, beijando-lhe os nós para lhe passar uma
tranquilidade silenciosa.
Ela lhe deu um sorriso de agradecimento.
— O dia foi bom, não achas? – murmurou.
Ela concordou com a cabeça.
— Creio que tudo correu bem.
— Fico feliz por teres gostado dos meus presentes.
— Tenho algo para ti também. – Ela se virou para ele. – Eu simplesmente não queria
dá-lo para ti diante de todos.
— Sério? – Ele brincou com um olhar malicioso.
— Não é nada fora do comum, seu malandro – disse ela com um sorriso. – Apesar de
eu ter comprado algo especial para usar esta noite. – Ela mordeu o lábio timidamente.
— Juras? – Ele se sentou com as costas retas. – De que cor?
Ela desatou a rir.
—Tu vais ver em breve.
Ele gemeu, e ela o olhou afetuosamente, divertida.
—Fostes maravilhoso com a família do meu tio. Obrigada por isso. Eles podem ser um
tanto quanto difíceis de lidar, às vezes.
— Entendo. – Fez uma pausa. – Sentes falta deles?
— Não, são apenas algumas quadras de distância. É o suficiente – acrescentou
maliciosamente.
— Então, por que parecias tão sombria agora há pouco?
Ela soltou um suspiro e meneou a cabeça.
— Eu estava pensando no que as más línguas vão dizer sobre tudo isto. O que tu achas
que a sociedade vai pensar deste nosso casamento apressado?
Recostou-se no encosto acolchoado e encolheu os ombros.
— E quem se importa com isso?
Ela o olhou, surpresa.
— Bom, a mim, ora, importa a mim!
— E por quê?
— Não gosto que as pessoas façam mexericos sobre mim. O quê foi?
Ele a olhou, cético.
— Nada... Só que..., bom, é um pouco tarde para isso, não acha?
— O que queres dizer? – exclamou ela.
— Pondo de lado a rapidez do nosso..., noivado, tu vais ser condessa, querida. Receio
que serás o assunto principal das conversas e observações que vêm com a coroa.
Especialmente porque foi comigo que te casastes.
Ela o olhou fixamente.
— Não te preocupes, tenho certeza absoluta de que estarás à altura.
— Menos mal que pelo menos tu tens certeza disso – murmurou. – Não sabes o que as
pessoas vão pensar?
Ele não conseguiu evitar um sorriso.
—És tua perita nessas coisas. Explica-me.
— Essas irregularidades tiveram lugar entre nós, sendo tu quem és. E se pensarem que
este casamento precipitado foi necessário? Se é que tu me entendes! – Ela apontou para o
próprio ventre.
— Ah... Mas ninguém vai pensar isso, e mesmo que pensem, vão ver que estavam
errados quando Júnior não chegar antes dos nove meses de praxe.
— Sim, eu sei, só que, enquanto isso, não me agrada nada ser objeto de especulações
grosseiras e indecentes.
— Certo... Vamos fazer assim, se alguém fizer mexericos sobre ti, procura o teu marido
que ele vai dar um tiro nesse alguém...
—Tu não estás levando este assunto a sério!
—Não.
— Mas é claro que não! Não éstu cujo nome será arrastado para a lama. Será o meu!
— Mas por que diabo achas isso?!
— Devido ao fato de que poderias ter escolhido qualquer uma! – Exclamou ela. – Por
que ias escolher logo a mim?! É isso o que vão dizer. Ninguém será capaz de dar sentido à
escolha que fizestes!
— Enlouquecestes?! – Perguntou ele, indignado. – Olha para ti, Carissa! Você é linda!
Inteligente. Encantadora. Tu és perfeita para mim. – Inclinou-se à frente, franzindo
levemente o cenho para ela. – Parece que és a única pessoa a pensar que é estranho o
fato de eu te querer.
— Mas aí é que está, tu não me queres! – Respondeu ela, sustentando o olhar dele
desafiadoramente. – Tu te vistes obrigado a te casar comigo porque me flagrou
bisbilhotando em Dante House, lembra-te? Teu único objetivo ao te casares comigo era
me manter calada.
Ele a olhou fixamente.
—E tu ainda achas mesmo que esse é o único motivo, mesmo depois do que mandei
gravar naquela placa no relógio automático?!
Ela inclinou a cabeça, procurando o rosto dele e olhando-o por um longo instante.
—Tu me desconcertas.
— E tu pensas demais. Relaxa um pouco, amor. – Ele fez um carinho na face dela. –
Jamais vou permitir que ninguém diga uma só palavra negativa sobre ti. Enquanto isso,
sugiro que trates de impedir que os mexeriqueiros tolos te incomodem tanto. Digam o
que disserem, são realmente muito sem sentido, acredita em mim. Afinal de contas, tu
sabes quem são os teus verdadeiros amigos, e são as opiniões deles as que realmente
importam. E eles vão ficar muito felizes por nós.
Carissa ficou em silêncio e ele a olhou atentamente.
— Certamente tu não és tão desconfiada assim a ponto de duvidar dos teus amigos,
não é?
Ela o olhou nos olhos, suplicante.
— Duvidas de mim?
— Não, eu não duvido – admitiu.
Arrastando o olhar pelo lindo rosto dela, viu a angústia naqueles olhos verdes e tentou
entender.
—Tu achas que não merece o meu carinho?
— Não, não é isso. Eu confio em ti sim, só que..., se eu me permitir precisar de
alguém... – Ela lutou com as palavras e olhou para baixo. – Todas as vezes que me deixei
depender de alguém, simplesmente desapareceram. É por isso que sempre procuro
confiar apenas em mim mesma.
— Carissa – disse ele em voz baixa. – Eu sou teu marido. Tu podes contar comigo. Trata
de te acostumar a isso, está bem?
Ela concordou com a cabeça, mas um cautelososorriso puxou seus lábios.
— Agora, tira essas preocupações da cabeça, minha senhora! Essas são as minhas
ordens, como teu senhor e marido. Hoje é o dia do seu casamento! Sê feliz! – Ele a pegou
pela cintura e a atraiu para o colo, pespegando-lhe um sonoro beijo na face justo quando
a carruagem parou.
— Estás louco? – Ela o repreendeu em tom suave, entrecortado, mas ele a puxou mais
e lhe deu um beijo mais demorado. A leve carícia dos lábios de Beau evocava um suspiro
de sonho dos dela, que lhe disse que havia conseguido afugentar os temores, pelo menos
por enquanto. O toque de seda da língua dele lhe deu um sabor tentador quanto ao que
estava por vir mais tarde, enquanto a emoção da química entre eles temperava cada
centímetro do seu corpo.
Então, o criado desceu e abriu a porta da carruagem.
À medida que o criado descia a escadinha, Beau sorriu para ela.
— Bem-vinda à tua nova casa! – Ele saiu, ajeitou a casaca e chamou o mordomo
alegremente. – Abre a porta, Vickers! – Ato contínuo se virou para a esposa.
Quando ela apareceu à porta da carruagem, ele a pegou no colo.
— Seja muito bem-vinda à tua casa, meu bem – sussurrou ele, enquanto acarregava
até o vestíbulo da entrada. Parecia que era ele quem mais queria ouvir essa frase.
Ela apertou o abraço em torno do pescoço dele enquanto devolvia o beijo. Em seguida
ele a colocou de pé no chão e a segurou, enquanto ela piscava para conter as lágrimas de
emoção. Quando ela se recompôs, o marido começou a lhe apresentar a criadagem ali
reunida para receber a nova senhora da casa.
Sob o comando do mordomo Vickers, sempre eficiente, eram mais ou menos vinte
criados no total, sem contar o grupo externo de cavalariços e jardineiros. Os lacaios
vestiam a libré Lockwood completa para o dia especial do casamento do seu amo, toda
em brocado dourado com azul-pavão real, e as camareiras vergavam os melhores
uniformes, com aventais brancos bem engomados. Todos inclinaram-se e fizeram uma
reverência diante dela, presenteando-a com flores e presentinhos de pouca monta.
Beau estava mais do que satisfeito pela forma com a qual o pessoal da casa dele quis
dar as boas-vindas à sua esposa. A criadagem era sempre maravilhosamente eficiente,
mas o mais importante, para ele, é que era um grupo alegre.
Nunca havia sido o tipo de pessoa que tolerasse alguém rude debaixo do próprio teto.
Essa era uma das grandes necessidades que tinha na vida para ter um lar feliz, portanto,
os agitadores ou nuvens escuras se despediam rapidamente. E aqueles que
correspondiam aos seus requisitos e continuavam ali, apreciavam-no, já que ele era um
senhor generoso e tratava bem seus criados. Como consequência, eles se dedicavam a ele
mais ainda e sentiam orgulho do trabalho que executavam, especialmente pelos
frenéticos preparativos da semana passada, preparando a casa para a chegada da nova
Lady Beauchamp.
Assim que ele a apresentou a todos, levou-a para um tour pela casa, pois estava
decidido a fazer com que sua esposa se sentisse em casa.
A casa da cidade não era tão vasta quanto a mansão Lockwood, que ele herdaria
quando o pai morresse. Obviamente, ele não tinha pressa alguma para que esse dia
chegasse. Além do mais, sua casa atual lhe servia muito bem. Era tão elegante quanto
confortável, conveniente sob todos os aspectos, e, com um mínimo de manutenção, não
tinha dores de cabeça quando tinha que viajar por longos períodos. Ele só esperava que
fosse grande o suficiente para Carissa.
Tinha a impressão de que havia inúmeras mocinhas casadouras por aí que teriam
insistido em algo mais magnífico. Beau não tinha vontade alguma de se mudar. Os anos
que levara percorrendo o continente como um nômade fizeram com que ele agradecesse
a estabilidade de ter um endereço fixo para poder voltar para casa.
Mostrou os primeiros cômodos do andar de baixo, por onde haviam entrado, abrindo a
porta da antessala da entrada. Havia fileiras de estantes e uma larga janela com vista para
a rua, o qual ele geralmente usava como escritório, e o lugar mais provável para receber
visitas de negócios quando tinha reuniões.
Ato contínuo, conduziu-a pelo corredor, passando ao pé da grande escadaria até o
salão formal de refeições. Todas as velas estavam acesas, pois ele queria que o salão
brilhasse para que ela ficasse impressionada. Olhou-a então, e viu que havia conseguido.
Os olhos dela brilhavam à luz das velas. Ótimo, pensou, aliviado porque a azáfama
barulhenta e poeirenta na casa, para se adaptar ao gosto da nova senhora,tinha acabado.
Levou-a então até a parte dos fundos da casa, à cozinha bem equipada. A cozinheira
havia se certificado de que nem uma migalha havia ficado no chão. Carissa admirou a
ampla cozinha muito moderna e confessou que não tinha a mínima ideia de como usá-la.
Mas a Senhora Tarleton lhe garantiu que lhe explicaria qualquer coisa que ela quisesse
saber.
— Em uma outra hora – respondeu Beau, brincalhão, puxando a viscondessa para a
porta dos fundos no outro extremo do corredor central. Levou-a lá para fora para dar uma
olhada no jardim e, além deste, os estábulos, onde estava guardada a nova carruagem de
Carissa.
Voltaram contornando a casa pelo lado de fora, então ele a conduziu até a entrada,
depois pela escadaria até o andar principal. Pelo caminho, ela admirou o nicho com
estátuas no vão da escadaria, depois mudaram de direção.
Saíram na parte superior da escadaria, do outro lado do salão formal, com
candelabros, flores, e paredes e luzes azuis. Mostrou como as portas podiam ser
recolhidas para unir essa sala à de música, criando um grande espaço para o
entrenimento.
Ela parecia contente, e então passou pela porta e entrou na sala de música. Olhou para
o piano e perguntou se ele tocava.
— Um pouco – respondeu ele. – E tu?
— Um pouco – respondeu ela com um modesto sorriso.
Seguiram em frente. Na parte de trás do andar principal, chegaram ao cômodo favorito
de Beau na casa, um salão acolhedor, alegre, ou uma sala de desjejum, com uma mesa
informal e cadeiras.
Uma janela em arco dava para o jardim. Carissa passou a mão pelo sofá de veludo
macio diante da lareira e depois olhou em torno, para todas as árvores floridas, com um
leve sorriso nos lábios.
— É aqui que eu costumo tomar o desjejum – informou ele. – Assumindo que vamos
fazer isso juntos a partir de amanhã, escolhe um lugar para te sentares.
Ela riu, olhando para as cadeiras.
— Aqui. Assim posso olhar pela janela.
— O sol bate em cheio aí, vais ter o sol no rosto a manhã toda.
— Bom, pelo menos vou me deliciar com a vista. E se o sol ficar forte demais, mudo
para a outra cadeira ao lado desta.
— Ótimo – disse ele sabiamente. – Agora que esse importante negócio foi solucionado,
é melhor que sigamos em frente. A noite está avançando – acrescentou, saboreando o
rubor de Carissa à essa insinuação.
Beau estava animado, porque Carissa parecia contente com tudo até o momento.
Ao sair da sala, apontou para uma porta fechada na escada de serviço.
— Os quartos das criadas ficam no quarto andar da casa – explicou ele enquanto
caminhavam. – Os quartos dos homens ficam no porão, ao lado da adega e da despensa.
Tenho certeza de que tu vais ver tudo com calma depois, se quiseres examiná-los.
Ela assentiu, mas pareceu satisfeita por deixar isso para depois. Mais uma vez, voltaram
pela escadaria principal. Beau já podia sentir o sangue esquentando enquanto iam até o
terceiro andar, onde ficavam os quartos. Acompanhou-a pelo corredor onde os os
cômodos vazios esperavam para serem preenchidos com crianças.
— Esses dois quartos poderiam ser para o meninos ou para as meninas, e na parte da
frente da casa podia ser um espaço para as crianças brincarem, ou uma sala de aula –
explicou.
— Quantos? – Perguntou ela, sorrindo, virando-se para ele com as faces rosadas por
aquela conversa da futura descendência.
— Pelo menos quatro, dois meninos e duas meninas – respondeu ele com firmeza.
—Tu já estás com tudo planejado, não é?
Ele se evadiu da pergunta com um brilho nos olhos.
— E assim, minha senhora, acabou o tour. Alguma pergunta? – Ela sacudiu a cabeça,
sustentando o olhar dele. Nenhum dos dois conseguia desviar o olhar. – É um lugar
confortável e eficiente. Por isso eu o comprei. Não vamos ficar aqui para sempre, é claro –
acrescentou. – Quando meu pai faltar, vamos herdar a casa de Lockwood. É cinco vezes o
tamanho deste lugar inteiro. Isso é mais do que suficiente para mim. – Ele a olhou nos
olhos, animado pela aprovação de Carissa. – Espero que sejas feliz aqui – acrescentou
suavemente.
— Eu sei que serei – sussurrou ela com um leve tremos na voz.
— Ótimo. Então, tens mais um cômodo para ver. – Pegou a mão dela e a levou até o
último aposento do tour.
Quando cruzou a porta e entrou no espaço escuro e acolhedor, Beau olhou e inclinou a
cabeça em uma despedida silenciosa para os criados que haviam se reunido ali. Vickers e
alguns criados os seguiram com a fascinação de uma nova amante, desejosos de serem
úteis e saltar para ajudá-la se preciso fosse, ou caso ela encontrasse qualquer coisa fora
do lugar. Nem mesmo Beau sabia o quanto eles estavam ansiosos para ver seu amado
senhor assentado na vida. Em seguida, fechou a porta e se juntou à esposa no quarto
dela.
Carissa havia cruzado o aposento olhando para seus baús de viagem, que haviam sido
trazidos da casa do tio, mas que não haviam desempacotado ainda.
Ajoelhou-se diante do baú menor, de couro, levantou a tampa e ele percebeu que ela
estava procurando alguma coisa.
— Achei! – Ela levantou um pequeno pacote do tamanho de um livro, envolto em um
lenço de seda e amarrado com um laço de fita. Ela o levou até ele e o entregou. – Eu o fiz
para ti. Pega.
—Bom..., isso é muito amável da tua parte. – Ele pegou o embrulho com um sorriso,
intrigado. – Tu não tens que me dar nada, mas obrigado.
— Mas é claro que sim, é o dia do nosso casamento. Mas cuidado! – Ela o advertiu. –
Ainda não está totalmente seco.
Ele franziu o cenho, muito curioso, e mesmo depois de ter desembrulhado o objeto,
não sabia muito bem o que exatamente estava vendo.
— Hmmm... – Ele o levou para perto da luz, em seguida examinou a caixa de papelão
sob a fraca luz dos candelabros. Habia pequenos pedaços de papel colados na superfície a
guisa de verniz, e decorado aqui e ali com pedaços de vidro colorido.
Depois de uma inspeção mais de perto, descobriu que na verdade o papel estava
coberto por recortes de jornais que haviam escrito sobre suas diversas façanhas nos
últimos anos, no Times e no Post.
— É uma caixa de segredos – murmurou, aproximando-se dele à mesa. – Olha, eu já
sabia sobre tihá mais tempo do que tu tenhas percebido. As coisas boas. Suponho que
poder-se-ia dizer..., hã..., que fiz algumas averiguações sobre ti aqui e ali...
— E por quê? – perguntou ele sorrindo.
—Tu vais fazer com que eu admita, não é? – Exclamou ela.
— Sim.
— Está bem! Eu admito! Eu estava mais interessada em ti do que dava a entender!
— Viu? Não foi tão difícil, não é? Ou foi? Bom, mas eu também tenho uma confissão a
fazer. Eu também estava interessado em ti.
—Verdade?!
— Ora, não estava na cara não?
— Eu... – Ela o olhou fixamente, com os olhos arregalados e muito ruborizada.
— Vai me dizer que tu nunca desconfiastes... – disse ele, irônico.
— Mas tu nunca te atrevestes a me dizer nada!
— Bom..., os maridos das tuas amigas ameaçaram me bater se eu tocasse em ti.
Mesmo assim, parecia que eu não conseguia resistir...
— O Senhor Rotherstone ameaçou te bater por minha causa?!
— E Warrington, e, é claro, Lorde Falconridge. Eles são muito protetores com relação a
ti.
— Que doçura! – Ela sorriu àquela revelação sobre a preocupação dos seus amigos. –
Bom, – disse ela, colocando a mão sobre o peito dele. – Agora eu tenho um marido que
me protege. Mas, voltemos ao assuntosdo qual estávamos tratando. Deixa-me te dizer o
que significa o meu presente.
— Vamos lá, sou todo ouvidos!
— Essa é a minha maneira de te dizer o quanto te admiro por tudo o que já fizestes. O
quanto estou orgulhosa de estar casada com um homem assim. Tu fizestes muitas coisas
interessantes na vida, e tenho certeza de que vais fazer muito mais ainda. Agora eu sei
que a maior parte delas têm que ser secretas, mas não há nada de errado em celebrar
aquilo que me for permitido saber, certo? E, acima de tudo, essa caixa vem com a minha
promessa de que os teus segredos estarão sempre a salvo comigo.
Ele meneou a cabeça com assombro diante de tanta doçura.
— Eu adorei o presente. E te adoro também. – Pôs a caixa sobre a mesa, virou-se para
ela e pegou o seu rosto entre as mãos. Beijou-a na testa e os lábios dele ficaram ali. –
Obrigado, minha querida – sussurrou.
Ela inclinou a cabeça para trás para olhá-lo fixamente.
— Estou me dando conta de que nosso casamento teve um início bem pouco
convencional, mas quero que saibas que sou sincera, também, e pretendo te fazer feliz.
—Tu já estás fazendo isso faz semanas sem sequer saber disso – sussurrou ele, então a
atraiu mais para perto e baixou a cabeça para reclamar sua boca. Ela deslizou os braços
em torno dele, separando os lábios quando ele aprofundou o beijo.
Carissa podia sentir o coração dele batendo contra o próprio peito. Aferrou-se a ele,
tonta de tanto desejo. Apesar do longo período de ansiedade por essa noite, sentiu que a
mesma estava começando a desaparecerao se ver envolvida pela paixão por ele, pela
fome que sempre havia tentado ignorar. De fato, era difícil se lembrar dos temores
quando os hábeis dedos de Beau começaram a desabotoar seu vestido. Aquelas mãos
errantes a distraíram, fazendo com que ela se esquecesse de tudo, menos do momento.
— Estás usando roupa demais – informou ele, respirando pesadamente. – Há que se
fazer algo quanto a isso.
Ela lhe deu um sorriso meio torto. Seus lábios úmidos brilhavam à luz das velas.
—Vira de costas para mim – sussurrou ele. – Vou te ajudar com o vestido.
Ela obedeceu e se levantoutremendoenquantoeledesabotoava osbotões das costas. E
logo sentiu o frescor do ar lambendo sua pele e os dedos dele na pele. Quando havia
desabotoado todo o vestido até a cintura, as mãos dele pousaram nos seus ombros e ela
tremeu violentamente quando sentiu os lábios de Beau na nuca. Ele a beijou no pescoço
várias vezes, enquanto empurrava com as mãos as mangas bufantes para baixo dos
ombros.
Com Beau não era nada parecido com a experiência que tivera com o poeta, pensou
aturdida, absorta nas sensações. Ela mal conseguia se lembrar do nome daquele canalha
no momento, nem tinha desejo algum de lembrar. Ele havia sido apressado, torpe e
egoísta.
Beau era exatamente o contrário, e completamente seguro de si. Podia sentir isso em
cada toque dele. Aquele ar de comando era um afrodisíaco embriagador. Sem dizer uma
palavra, soltou-lhe os braços das mangas e, ainda de pé atrás dela, fez o vestido
escorregar pelo seu corpo até o chão. As mãos dele acompanharam o vestido, passando
pelas curvas dos seus quadris até que ela saiu da poça de cetim no chão.
Mas ele ainda não havia terminado.
Quando ela se virou, ele pegou seu queixo e inclinou-lhe a cabeça para trás,
capturando seus lábios para outro beijo lento e demorado. Os dedos dele desceram pela
sua garganta até o peito, depois, escorregou a palma abaixo da cintura, para as fitas que
seguravam as anáguas.
— De volta aos negócios – sussurrou ele, sorrindo.
Então viu a profunda emoção de excitação que diligentemente havia desencadeado
nela. Caiu de joelhos e deu-lhe um tempo, demorando para tirar as anáguas também.
O peito de Carissa estava ofegante agora que estava diante dele, usando apenas o
espartilho, as meias e a combinação. Ele estava com os olhos no mesmo nível dos seus
seios.
— Vira de costas para mim – pediu ele com voz rouca, mais uma vez. Ela se virou
lentamente, com as mãos no quadris.
Quando ela ficou de costas ele desamarrou o espartilho com movimentos quase
ternos. A rígida peça foi deixada de lado.
— Vira de novo – murmurou, com voz que mal se ouvia. Carissa engoliu em seco e
obedeceu, girando lentamente para olhar o marido.
Ele a estudou em silêncio, uma tormenta de paixão escurecendo aquele rosto
cinzelado. Ainda de joelhos, passou os dedos pelo braço dela, fazendo com que cada
centímetro formigasse. Ele estava olhando-a com o mesmo entusiasmo com o qual ela
havia olhado o relógio musical.
—Tu és tão linda... – sussurrou.
— Que bom que estás contente – forçou ela com um murmúrio tímido, estrangulado.
— Essa pele branca..., essas doces sardas... – Um beijo aqui, uma carícia suave ali,
percorrendo toda a clavícula, de um ombro ao outro, de um lado do peito ao outro. Ela
estremeceu com ânsia e mordeu o lábio, esperando, com aquele prazer agonizante de
saber o que iria acontecer a seguir. Quando a quente mão de Beau fechou sobre um seio
através da fina musselina da combinação branca, ela ficou imóvel. Mas estava tudo certo,
então ela não se opôs.
Beau se aproximou e a beijou no vale entre os seios através da fina roupa.
—Tu és incrível, – sussurrou – elegante, encantadora..., doce, da cabeça aos pés.
Então, lentamente começou a se pôr de pé, beijando-lhe o corpo enquanto se
levantava até o centro entre os seios. Carissa inclinou a cabeça para trás e seus dedos se
crisparam quando os beijos exploraram o vão do seu pescoço. Os lábios dele brincavam
com ela, fechando-se no lóbulo da orelha com uma mordidinha que a esquentou um
pouco e a fez rir também. Ela se apoiou nele, ardendo de desejo. Os braços dele a
envolveram, então começou a tirar as forquilhas do cabelo dela.
Logo, os longos cachos caíam livremente sobre seus ombros.
—Tu não tens nem ideia de quanto tempo faz que estou esperando por isto –
sussurrou ele com um brilho sensual nos olhos.
— Agora podes fazer quando quiser – disse ela sorrindo, meio sem fôlego.
— Sou um homem afortunado. – Ele puxou o nó da gravata já frouxa.
Ela levantou a mão com dedos trêmulos e o ajudou a desamarrá-la. Em meio àquela
tarefa de esposa, flagrou-se admirando o belo pomo de Adão no pescoço dele. Com a
gravata pendurada no ombro, viu-se apreciando de novo aqueles lábios macios e
esculpidos, a linha da robusta mandíbula e o movimento da garganta sedutora.
Finalmente, voltou a si e terminou o que havia começado, chegando mesmo a empurrar
para trás dos ombros dele a bela casaca.
Sustentando o olhar dele, desabotoou o colete e o afastou.
Deslizou os suspensórios pelos ombros com uma caríciae o profundo V da camisa
sumiu, deixando a descoberto o musculoso peito nu. Ficou emocionada por aquela beleza
masculina, mas seu olhar focou no colar que ele usava: uma pequena cruz em uma
resistente corrente de prata. Ela esticou a mão e tocou a cruz maltesa de esmalte branco
contornada por uma moldura de ferro polido. Levantou os olhos e olhou nos dele, que
ardiam com uma chama azul.
— É a insígnia da Ordem.
Absorta e facinada, soltou a pequena cruz de metal e ele se inclinou para beijá-la. Ela
devolveu cada beijo com avidez, acariciando aquele peito encantador e musculoso, com
os braços dele em volta da sua cintura. Ela levou a mão até o cós das calças de Beu. Ainda
o beijava, e pôde sentir o dorso dos nós dos dedos roçando o ventre dele quando as
soltou.
A sensação a enchia de fome selvagem, impaciente. Afastou-se o suficiente para tirar a
camisa dele pela cabeça. Ela conteve a respiração diante daquela visão. Ele era um
homem perfeitamente delicioso.
Ele jogou a camisa para um lado e disse:
— Quero mais de ti.
Carissa não conseguia falar, mas Beau não a deixaria de qualquer forma, pois a boca
delea consumia e seus braços a envolviam inteira.
Enquanto as mãos dele a exploravam, suas palmas percorreram as duras auréolas do
peito dele. Ficou maravilhada principalmente com o calor do ventre firme e as marcas
esculpidas daquele abdômen musculoso. A sensação era de passar a mão sobre veludo, e
a cada instante a pele dele queimava de tão quente que ia ficando.
Beau a beijou apaixonadamente, passando os dedos por dentro do cabelo dela.
— Quero estar dentro de ti. – Ele a conduziu suavemente até a beirada da cama.—
Senta. – sussurrou.
Ela o fez, e abriu mais as pernas para que ele ficasse de joelhos entre as mesmas e
começasse a explorar. O quarto se encheu de respiração ofegante enquanto o observava.
As batidas do seu coração estavam descompassadas. Ele passou a língua em um
mamilo através da musselina enquanto apertava o outro com a mão.
Carissa gemeu, retorcendo-se debaixo dele. Aos poucos ele foi escorregando a
combinação pelo seu ombro, soltando o braço da alça e deixando um seio a descoberto.
Ela ficou sem fôlego ao sentir o choque quente e úmido da boca dele no mamilo.
Enquanto sugava um seio, os dedos brincavam com o outro, titilando o mamilo, mexendo
nele e puxando-o, apertando, até que ela ficou em chamas.
Ele mudou de lado, então abaixou a outra alça e libertou o outro braço enquanto
sugava e tocava o seio desse lado. O vai e vem do corpo dele entre as coxas de Carissa a
encantava, embora ainda estivesse de joelhos. Ele acariciou seu cabelo e cada centímetro
do seu magnífico corpo. Ela sabia que ele tinha um propósito, deixá-la completamente
louca com toda aquela tentação sensual.
Ela gemeu o nome dele, suplicante, mas Beau continuou brincando com ela. Com um
aperto final no mamilo, desceu os dedos pelo centro do seu ventre até que chegou ao
montículo. Apertou suavemente com o polegar e deu-lhe uma batidinha carinhosa, abriu-
a com a mão e começou a lhe dar prazer com o dedo.
Um suspiro agudo escapou dos seus lábios quando ele a penetrou com o dedo médio.
Carissa não sabia quanto poderia aguentar quando ele se ajoelhou ao lado dela, beijando
suas coxas, saboreando seu corpo com a língua enquanto continuava a lhe dar prazer com
o dedo. Enquanto a paixão ameaçava superar seus sentidos por inteiro, ela tentou se
conter, quase que desejando que ele visse aquele lado sem sentido que tinha, mas ele a
olhou e lhe deu um sorriso diabólico, consciente.
— Preciso de ti, agora.
Beijando-a na boca, no queixo, no pescoço, nos seios, afastou-se o suficiente para tirar
as calças e aproveitou para jogar longe os sapatos. Carissa ficou olhando-o, assombrada
com a glória da nudez do seu guerreiro. Quadris elegantes e nádegas musculosas, que ela
via no espelho atrás dele e, de onde estava, deitada na cama, ela viu seu pau grande, cor
de rosa, forte e duro debaixo do tecido. Quando ele tirou as calças, ela ficou olhando-o,
assombrada. Tinha coxas fortes, elegantes pernas musculosas, e até seus pés descalços
eram bonitos. Ele subiu na cama e, apoiando as mãos nos dois lados dela, cobriu seu
corpo com o próprio.
A sensação do corpo nu de Beau sobre o dela era de felicidade. Passou as mãos por ele,
tocando-o onde conseguia alcançar, enquanto ele esfregava o nariz no seu, depois a olhou
nos olhos, passando-lhe tranquilidade em silêncio. A Cruz de Mata estava suspensa sobre
ela.
— Quero que me digas se sentir qualquer tipo de desconforto ou dor – sussurrou ele. –
Quero que cada instante disto seja bom para ti, para que saibas que pode confiar em
mim.
A voz dela sumiu diantes daquelas ternas palavras, lembrando-a que ela o enganava no
mais íntimo dos momentos. Ela odiava a si mesma por isso, no entanto, não se atrevia a
interrompê-lo agora. Não suportava a ideia do seu passado tão tolo. Ele era tudo o que
importava ali.
—Tu estás bem? – Murmurou ele.
Ela assentiu com a cabeça, pegou aquele rosto cinzelado suavemente entre as mãos e
puxou-o, para beijá-lo. E fez com que ele a enchesse completa e lentamente.
Carissa não sentia medo nem dor, pois ele acabara de mostrar como era excelente na
arte da sedução. Ela não hesitou enquanto o corpo forte de Beau a penetrava,
reclamando-a para si. Só queria pertencer a ele. Percebeu que as batidas do seu coração
estavam no mesmo ritmo do dele, cujo peso era delicioso em cima dela, que começava a
se mexer com terno cuidado. A respiração luxuriosamente ofegante de Beau enchia seu
mundo. Ela envolveu as pernas em torno dele, que entrelaçou os dedos nos dela,
apertando-a na cama. Movimentaram-se em uníssono por um tempo que pareceu eterno,
como se tivessem sido feitos um para o outro..., como se aquilo estivesse destinado a ser.
Ela sabia que assim era.
— Meu Deus, tu és deliciosa – sussurrou, girando para o lado e deitando-se de costas
para ela ficar por cima dele. Ela gemeu diante da onda de sensações que a nova posição
lhe proporcionava.
— Gostas assim? – Perguntou ele com um sorriso maroto.
— Eu gosto do que tu quiseres – respondeu ela, ruborizada e sem fôlego. Na verdade,
mal conseguia formar um pensamento seguer devido à névoa de prazer sensual que havia
tomado conta dela.
Os dois estavam suando em bicas. Ela estava sensível e apertada, mas não sentia dor
enquanto o duro membro empurrava mais profundamente a cada investida. Sentia-se
completamente livre com ele e emocionada com cada grunhido, a evidência audível do
quanto ele estava usufruindo. Ele gemeu seu nome quando ela montou sobre ele,
apoiando as mãos nele.
Ela abriu a palma da mão no peito dele.
—Tu és realmente meu? – Sussurrou.
— É exatamente isso que sou – grunhiu ele, com os dentes apertados de tanto prazer. –
Sempre que me quiser.
Essa resposta a inundou com uma onda ardente de paixão, então se inclinou para
consumir aquela boca com um beijo quase bárbaro. Ele a agarrou pelas nádegas e a puxou
para baixo com firmeza sobre seu eixo de ferro.
Ela ficou sem fôlego ao senti-lo profundamente dentro de si, pelo tamanho e pela força
com a qual ele a tomava.
Depois de algum tempo ele se sentou, e ela teve que mudar de posição para
acompanhá-lo, ficando de joelhos sobre o colo dele. Com as mãos apoiadas atrás do
corpo, ele movimentou os quadris para cima e para baixo, dando a Carissa a viagem da
sua vida. Ela estava com os olhos fechados e a cabeça para trás, em completo abandono,
entãoaferrou-se aos ombros de Beau, enquanto ele a conduzia várias vezes ao clímax.
Enquanto ele a olhava com olhos brilhantes, o prazer e a doçura da vida deles dali por
diante a pegou de surpresa, com uma torrente de emoção que brotava e parecia sair do
nada. Sabia que ele pensaba que era uma prova, mas não conseguia evitar, e na agonia da
paixão no leito nupcial, as lágrimas encheram seus olhos, como se o muro impenetrável
que havia construído fazia tanto tempo em torno do coração tivesse explodido de
repente, e caído.
Foi então, nesse instante, que ela se entregou a ele sem reservas.
Mas Beau era sábio demais para acreditar que as lágrimas da esposa eram o mero
resultado da liberação, mas sim, de algo muito belo. Como se pudesse saber exatamente
o que passava pela mente dela, puxou-a delicadamente pela nuca e aproximou os lábios
dos dela, enquanto as lágrimas desciam-lhe pelas faces.
A respiração era entrecortada com mais liberação física, e seus beijos o levaram à
borda tremulante do clímax. O prazer era avassalador por todos os lados, por dentro e por
fora, e tinha a sensação de que estava caindo, mas ele estava ali para segurá-la com
braços fortes e seguros.
O grito que ela soltou mais parecia um soluço, e se aferrou a ele quando o disparo do
desejo voou para o alto, como uma estrela ardendo através do seu corpo, do coração,
perfurando através da própria alma. Com o fogo daqueles lábios contra os dela, a
compreensão de que o amor não estava perdido para ela bateu em cheio, depois de tudo.
A traição que havia sofrido fizera com que um dia fizesse o voto de nunca amar de novo,
mas sabia que, naquela noite, ela havia se enganado. Pela deliciosa confiança do amor,
valia a pena tentar.
Ela o abraçou com mais força, mal tinha consciência de que os gritos de prazer que
enchiam o quarto eram os seus, até que a onda de prazer foi diminuindo, então Beau a
pegou devagar e com ternura e deitou-a de costas, em seguida, apoiando-se nos
cotovelos, ele também chegou ao clímax com movimentos fortes, profundos e
apaixonados.
Pegou alguns punhados do longo cabelo de Carissa, enrolando-os nos dedos, como se
quisesse se enrolar nela, mas não a ponto de machucá-la. Enterrou o rosto no pescoço
dela, gemendo na própria liberação.
Os gemidos de Beau envolviam cada músculo dela enquanto tremia e enchia seu corpo
com sêmen. Ela lhe deu as boas-vindas às cegas, ansiando, para sua surpresa, o futuro
como mãe dos filhos dele.
Aos poucos a razão voltou e o peso controlado dele foi ficando pesado, parecendo
chumbo em cima dela, que sorriu intimamente. Depois daquela noite no teatro, a
curiosidade, sem dúvida, havia sido o melhor erro da sua vida.
—Oh, marido, —ronronou ela por fim.
Com os lábios tensos pela emoção, Beau a beijou na testa e colocou os braços em volta
dela, que ainda podia sentir o corpo dele trêmulo. Ele, porém, não disse nem uma
palavra.
Capítulo
10

A lgum tempo depois, Beau se sentou na cadeira junto à janela, no escuro,

olhando a esposa que dormia na cama. Fisicamente estava muito satisfeito, mas,
mentalmente, mal sabia o que fazer com aquela experiência. O mistério de Carissa tinha
que, decididamente, ser mais aprofundado.
Um beijo dizia para um homem muitas coisas sobre uma mulher quando fazia amor
com ela, inclusive mais, e, a partir desse momento, mal sabia o que pensar da bela
desconhecida com quem havia se casado. Ela dormia no esgotamento saciado, depois de
ter cumprido com os deveres de esposa muito além das suas expectativas mais selvagens.
Beau estava confuso. Não tinha muita certeza do que ela havia lhe presenteado..., não
tanto a união física, mas, talvez, a falta de inibição durante a mesma.
Ele havia se deleitado na paixão dela, com o entusiasmo dela, mas depois, havia
começado a questionar. E quando o brilho do prazer se dissipou, a realidade havia
começado a se estabelecer, trouxe também perguntas que pareciam nuvens de tormenta
à sua mente enquanto olhava Carissa dormir.
Agora, sentado ali, estudando-a no escuro do quarto, sombriamente preocupado pela
falta de menção de qualquer coisa que quisesse saber sobre isso. No entanto, ao mesmo
tempo, olhando para ela percebeu que nunca havia sentido ternura maior por qualquer
outra criatura, nem havia se sentido mais protetor.
Ela estava na sua cama, ele sabia que ela estava exatamente onde pertencia, mas, além
disso, realmente não sabia o que devia pensar ou sentir.
Por mais que odiasse que lhe mentissem, no entanto, podia entender por que ela
tentou conseguir o que queria nessa noite através do engano.
Qualquer outro homem estaria gritando com ela agora e levando-a de volta para a
família, cheia de vergonha. Fossem quais fossem seus defeitos, no entanto, Beau nunca
havia sido um homem cruel, principalmente com as mulheres.
Maldição, ele achava que era um bom espião. Devia tê-la investigado antes de se meter
nisso. Mas também, quando é que havia tido tempo para isso?
Havia sido uma correria doida desde o instante no qual a arrastara para Dante House
para lhe salvar a vida. Ele temia que o destino havia lhe pregado uma peça, mas a verdade
mais provável era que havia se deixado cegar pela luxúria. Todas as vezes que havia
olhado Carissa Portland, ele a quis. Será que teria sinais que poderia ter notado se não
tivesse pensado com o pau, no que se referia a ela?
Ato contínuo, um frio nó de medo se formou na boca do estômago enquanto se
perguntava se essa chocante revelação na sua noite de núpcias era apenas uma mostra do
que viria pela frente.
Meu Deus... E se ele havia se casado com uma mulher que acabaria por lhe ser infiel no
futuro, assim como sua mãe havia feito com seu pai? Será que sua apaixonada ruiva faria
dele um cornudo?! Estava condenado a trilhar o mesmo caminho de humilhação do pai?
Mas também, como é que podia ele, mais do que ninguém, queixar-se honestamente
depois de todas aquelas aventuras do passado com as esposas de outros homens?
Provavelmente ele merecia isso.
Sim, talvez isso não fosse mais que o destino irônico fazendo com que ele pagasse em
espécie pelo próprio passado como libertino. Franziu o cenho e apertou o queixo com ira
defensiva. Está certo, ele não era nenhum santo, mas nunca havia tentado esconder dela
esse fato.
Carissa, por outro lado, havia tentado enganá-lo, embora enquanto se entregava a ele,
havia se rendido. Era uma baixa terrível da parte dela. Era uma questão de caráter, na sua
opinião. Falta de honestidade. Falta de juízo. E uma clara falta de respeito. Por acaso ela
achava que ele era algum estúpido?! Era um insulto ver que realmente não confiava nele.
Por enquanto, ele tampouco confiava nela.
Beau fechou os olhos e esfregou a testa e, depois de lutar consigo mesmo por algum
tempo, decidiu, por pura força de vontade, que não ia se irritar com isso.
Ficou tentado a usar suas sutis habilidades de interrogatório para convencê-la a lhe
dizer a verdade, pela manhã. Ele poderia facilmente trabalhar nela aos poucos até
conseguir extrair a história toda.
Mas retrocedeu diante da possibilidade de usar o treinamento que tinha para espionar
a própria mulher. Ela não era um daqueles violentosPrometeos.
Não. Deixaria que ela viesse até ele e lhe contasse tudo quando estivesse pronta.
Pensou na inscrição de luxo no relógio musical e se deu conta de que o mínimo que podia
fazer era lhe dar algum tempo. Até então, podia evitá-la, mas também teria que ter
cuidado com a esposa até que, voluntariamente, ela abrisse o jogo.
Sabia que não seria fácil para ela. Ela já havia lhe dito que não confiava em ninguém.
No entanto, obrigá-la a lhe dar detalhes, humilhá-la com o fato de que sabia que ela
estava lhe mentindo, ou prejudicá-la de alguma forma, era inaceitável. Jurou para si
mesmo que, mais cedo ou mais tarde, ia ganhar a confiança de Carissa. Afinal de contas,
se havia uma coisa da qual tinha absoluta certeza era que ela não lhe desejava mal algum.
E nunca desejou. Não quando o havia seguido até aquele beco. Não quando o seguiu,
colada à parede, naquele labirinto secreto. A lembrança do medo que ela sentira pelas
aranhas o fez sacudir a cabeça, enquanto o coração se encolhia.
Tu és uma calamidade ambulante, menina. Mas é a minha calamidade.
Além do mais, era importante ter isso em perspectiva. Entre Nick e o Ministério do
Interior, tinha tantos outros problemas maiores no momento que a última coisa que
queria era uma guerra com sua esposa, quando havia se casado fazia apenas doze horas.
Com um suspiro triste e incerto, Beau se levantou da cadeira e voltou a se deitar ao
lado da esposa na cama, pois era melhor dormir ali, com ela. Deitou-se e puxou para os
seus braços aquela criatura encantadora, enlouquecedora. Carissa dormia sobre seu
peito, tranquila como uma criança.
Ele a beijou na cabeça com ternura demais apesar de si mesmo, então se deu conta,
muito surpreso, o quando lhe doía desconfiar com tanta intensidade e não saber ao certo
por que ela havia se entregado a outra pessoa antes dele. Então, pensou inquietamente,
essa era a dor que ele havia causado àqueles homens, deitando-se casualmente com as
respectivas esposas.
Agora que havia calçado o sapato alheio e sabia que sua esposa mignon não mais era
virgem, tal fato lhe alterou a consciência, obrigado a enfrentar a verdade do próprio
comportamento no passado. Mas nem o sermão de um pregador poderia tê-lo mudado
mais do que a vergonha que estava sentindo, agora que compreendia realmente o que
havia feito aos outros, já que parecia que, finalmente, estava colhendo o que havia
semeado.
Como é que não havia conseguido ver isso antes?! – perguntou-se. Acontece que ele
não quis ver, bloqueou cuidadosamente toda maldade da mente enquanto desfrutava dos
prazeres onde e com quem queria e continuava alegremente seu caminho.
Mas agora seus olhos se abriram, e se rebelou contra si mesmo. O libertino estava
angustiado e muito contrito, em silêncio, enquanto a repreensão de Carissa naquela
noite, no teatro, ressoava nos seus ouvidos.
Alguma vez pensaste na dor que tu deves ter causado àquelas mulheres?
É claro que, para ele, nunca havia significado nenhum dano em especial, mas já não
podia ignorar o quanto havia sido cruel, o quanto havia sido destrutivo por causa do
egoísmo. A costumeira e alegre desculpa que usava, a de que todo mundo fazia isso, foi
reduzida a pó. Sem dúvida, qualquer ideia sobre a possibilidade de ser infiel à esposa em
um futuro imediato desapareceu no ato. Essa pequena mostra do tipo de angústia que
havia causado a terceiros era suficiente para postergar para sempre o esporte favorito da
sociedade.
Estremeceu e se aproximou mais de Carissa, ardentemente feliz pela vida fiel que teria
com ela. Enquanto estava deitado ali, tratou de impedir que o orgulho masculino ficasse
obcecadamente indignado pelo fato de quem diabos havia tido sua mulher antes dele.
Vou te dizer uma coisa, pensou, olhando para a escuridão. Seja lá quem for, se ele te
forçou, é um homem morto.
Capítulo
11
D urante o desjejum, na manhã seguinte, o segundo dia oficial de casados,

Carissa olhou para Beau, do outro lado da mesa, tentando lê-lo.


O belo rosto dele se animou um pouco e o sorriso fácil ficou firme no lugar. Só havia o
leve rastro de uma sombra por trás dos olhos dele, mas estava galante, educado e não
podia ser mais solícito.
Sentiu o calor que havia entre ambos e tratou de por os temores de lado.
Ele não havia notado nda.
Quando ela lhe passou o açúcar para colocar no chá antes que ele pudesse perguntar
pelo mesmo, sorriu agradecido, mas ela sentiu que havia alguma coisa por trás daquela
máscara de tranquilidade, e as preocupações persistiram. Ele parecia..., distante, até
brilhante demais.
Deus! Será que havia sido liberal demais com ele na noite anterior?
Mas ela só queria fazê-lo feliz...
No entanto, a culpa por enganá-lo a estava carcomendo, como se já não estivesse
nervosa o bastante por conhecer os pais dele hoje. Os nervos à flor da pele a deixaram
com pouco interesse pelo desjejum, mas o aposento, pela manhã, era muito agradável,
cheio de sol, que brilhava como prata na porcelana com cores pastéis. Lá fora, um
brilhante dia de primavera iluminava o jardim.
Disse para si mesma, pela décima vez, que tudo ia ficar bem, e justo quando havia
começado a se animar, Beau falou e reacendeu o fogo dentro dela.
— Antes de saírmos, receio que realmente devo te advertir sobre minha mãe.
Ela levantou os olhos do prato quase sem tocar, muito surpresa.
— Advertir?
Pôs um pouco de leite no chá, ignorando o jornal matutino que o mordomo havia
trazido.
— Quando te encontrar com ela, tenta não levar para o lado pessoal se ela te
incomodar. A verdade é, receio, que ela acha que mulher alguma na face da terra virá a
ser boa o suficiente para mim. Pouco importaria se tu fosses uma princesa de verdade.
Portanto, se ela for hostil, faz ouvidos moucos, não dês importância, por favor.
Carissa arqueou as sobrancelhas.
— Está bem.
— Vamos ficar apenas alguns minutos. Mostraremos nossos respeitos, permitiremos
que ela dê uma boa olhada em ti e depois vamos para Hampshire.
Ela sacudiu a cabeça, inquieta.
— Não se pode culpá-la por estar zangada. Ainda não entendo por que te negastes a
convidar teus pais para o nosso casamento.
— Para que? Para que pudessem estragar tudo?
— Deixá-los de fora foi uma barbárie. Provavelmente vão colocar a culpa em mim.
— Não, crê em mim, eles sabem muito bem por que eu não os convidei. Já passamos
por isso muitas vezes. Se eles conseguissem agir como adultos quando estão perto um do
outro seria diferente, mas se eles fossem, a cerimônia teria se transformado em um
verdadeiro espetáculo, e só Deus sabe o tipo de estrago que teriam causado.
Ela soltou um suspiro.
— Então, o que devo esperar do teu pai?
— Ele não vai te causar maiores problemas. Vamos passar alguns dias no campo com
ele. Estou ansioso para te mostrar a quinta da nossa família.
— Estou com muita vontade de conhecê-la. – Ela fez uma pausa, olhando para a xícara
de chá. – É uma pena que teus pais não consigam se dar bem. Foi casamento arranjado?
— Não, foi um romante apressado, isso sim, mas em poucos anos, mal podiam olhar na
cara um do outro. – Ele encolheu os ombros. – Na verdade, não sei por que, nem qual
deles foi o primeiro a começar a ter medo. – Olhou-a com estranheza. – Tudo o que sei é
que quando fui eleito para a Ordem, foi a gota d’água para minha mãe. Meu pai aprovou,
e ela nunca o perdoou por isso. Ele tampouco parecia se importar se era o que ela queria
ou não.
— Hmmm...
Ele parecia ansioso para mudar de assunto.
— Temos que ir logo.
Ela pousou o garfo, perguntando-se o que lhe esperava o dia de hoje.
— Estou pronta.
Dali a pouco estavam no vestíbulo, prontos para sair, então Beau colocou uma peliça
nos ombros dela, depois pegou o chapéu e a bengala que o mordomo lhe estendia.
— Não vamos demorar, Vickers – disse, enquanto se dirigiam à porta.
— Está bem, senhor. – O mordomo abriu a porta para eles, deixando entrever lá fora
não só um belo dia de primavera, mas também um visitante que acabava de chegar.
O homem que descia da carruagem era magro e tinha o rosto pálido e altivo. Parecia a
figura sombria de um clérigo todo de preto.
Ele tirou o chapéu-coco quando os viu, expondo uma maçaroca de cabelo preto e
gorduroso.
— Senhor Beauchamp! Fico muito contente por ter lhe encontrado – disse, indo até
eles com grandes passadas.
Carissa sentiu o marido, normalmente tranquilo, ficar tenso ao ver o homem, e isso era
o suficiente para deixar intrigada qualquer dama da informação.
— Senhor Green – cumprimentou o visitante com um tom sutil de voz. – A que devo a
honra? O senhor chegou em má hora, porque, receio, estamos de saída.
— Só preciso de um instante, senhor.
O casal não poderia sair nem que quisesse, pois o homem havia estacionado o coche
em um ângulo que bloqueava o de Beau, contra o meio-fio.
— Vim para devolver os documentos – disse o homem.
Beau se aproximou rapidamente.
— O senhor os trouxe até aqui?
— Bom, sim. – O senhor Green começou a entregá-los, mas parou e arqueou a
sobrancelha. – Algum problema nisso?
A boca de Beau apertou em uma linha reta, eele olhou para o coche.
— Não aconteceu nada de errado, suponho.
—Por quê? – respondeu o homem.
— São documentos confidenciais, senhor Green, como o senhor bem sabe. No entanto,
parece que o senhor não tomou as devidas precauções.
— Eu os trouxe para o senhor pessoalmente, para entregé-los na sua mão. O que mais
se pode pedir?
— Pode me dar sua palavra de que ninguém viu esses documentos?
— É claro que não – disse ele. Carissa estava maravilhada com aquela troca de palavras
e tentou dar uma olhada nos importantes papéis. O visitante levantou o queixo. – Não sou
tolo, meu senhor. Eu só quis trazê-los aqui para sua própria conveniência.
Duvido muito, parecia dizer a tensa postura de Beau.
— É claro – continuou o senhor Grenn – que eu tinha outro propósito ao vir aqui.
— É claro que sim – disse Beau em voz baixa.
— Tenho uma pergunta que eu gostaria que o senhor me respondesse.
— Não pode esperar? Como pode ver, minha senhora e eu estamos prestes a sair.
— Senhorita – o visitante finalmente olhou para Carissa com uma ponta de má
vontade, segurando o chapéu no peito.
— Senhora, na verdade – ela o corrigiu com um amplo sorriso, esperando que uma
pitada de encanto feminino pudesse aliviar a tensão entre os dois homens.
Em troca, o Senhor Green olhou Beau, muito espantado.
—O senhor se casou?! Mas o senhor não me falou nada sobre isso!
— Não sabia que eu precisava de permissão do governo para isso – disse ele
secamente.
Os olhos verdes se estreitaram.
— Desejo-lhe felicidades, meu senhor.
Beau se virou para ela, a impaciência afinando seus belos traços.
— Minha senhora, este é o Senhor Green, um dos nossos estimados deputados.
— Como vai, senhor? – disse ela, mas o leve sorriso de réptil do homem fez com que
ela se arrepiasse.
— Senhor Green, esta radiante criatura é a minha esposa, Lady Beauchamp.
Carissa sorriu com carinho para Beau, enquanto o Senhor Green fazia incômodos
ruídos.
— Eu poderia falar em particular com o senhor, milorde? – perguntou ele para Beau.
Beau não respondeu, mas desculpou-se ligeiramente com Carissa com um ligeiro toque
no cotovelo dela, em seguida, deu um passo atrás para falar em particular com a pessoa a
quem ele chamava de desagradável.
Carissa voltou para dentro de casa e Beau se dirigiu até as carruagens com o Senhor
Green. Ela fingiu que estava procurando algo na bolsinha e aguçou o ouvido para ver se
conseguia ouvir o que eles falavam em voz baixa.
— Não pense que por ter conseguido se casar vai parecer mais respeitável perante a
comissão, Senhor Beauchamp. Fico feliz pelo senhor, é claro, mas eles não se deixam
enganar tão facilmente não.
— O que o senhor quer? – retrucou Beau laconicamente. – O que veio fazer aqui? Só
devo me apresentar perante a comissão daqui uma semana.
A atitude beligerante de Green aliviou um pouco a recusa de Beau de estremecer.
Retrocedeu um pouco e ajeitou a casaca com um puxão nervoso.
— Preciso lhe perguntar algo a respeito de uma das missões de Warrington.
O marido de Kate! – pensou Carissa.
— E qual é a pergunta? – questionou Beau sombriamente.
— O senhor deve se lembrar que um dos cortesãos favoritos do Rei de Nápoles acabou
morto. Se a Ordem deu autorização ao Duque para matá-lo, não tenho ciência disso.
Beau fez ar de zombaria, olhou para o céu e cruzou os braços sobre o peito.
— E o senhor acha que fizeram isso só para se divertirem?
Green mostrou a ira que estava sentindo.
— Quer saber o que eu penso de verdade, Senhor Beauchamp?
— Pode falar.
— Acho que vós, senhores grã-finos do Clube Inferno, estáis tão embriagados pelo
próprio poder e pelos próprios e duvidosos talentos que se sentem no direito de sairem
correndo por toda a Europa fazendo o que querem, incluindo a eliminação de qualquer
um que se interponha no vosso caminho. E por que não haveriam de fazê-lo, não é?
Nunca há consequências mesmo. A Coroa vos dá carta branca.
— Tudo o que fazemos é a serviço da Coroa – replicou Beau.
— Será que é mesmo? Ainda não estou totalmente convencido. O senhor afirma que
esse é o caso e dispensa o bom negócio que a Ordem quer nos fazer acreditar. Só que
agora entendemos a extensão que Virgil Banks lhe permitiu ter, quem sabe o que poderia
fazer por aí por conta própria? Ou que poderia planejar agora?
— Oh, agora somos nós os conspiradores?! Ora, Green, a ameaça são os Prometeus!
— Isso..., se é que eles realmente existem.
— Gostaria de ver as cicatrizes no meu corpo, que provam que eles existem?
— É claro que não. – Green deu uma olha de má vontade para ele.
— Não? Devo oferecer também o meu corpo à comissão? Os nobres inquisidores
querem pegar tudo além das pobres vidas dos nossos agentes...
— Apenas me dê os documentos adequados que mostrem quem autorizou Warrington
a matar o italiano. Quero ver a cadeia de comando.
— Como queira, senhor. Mas vai levar alguns dias.
— Está bem. Mas não me provoque, Beauchamp. Tenho certeza de que sabe que a
Ordem é bastante inocente a respeito de todas as coisas, mas isso é apenas parte do
problema. Sequer vê a ameaça que se apresenta. Já é hora que todos sejam obrigados a
prestar contas, e se a Coroa não vai fazer isso, a Câmara dos Comuns, a vontade e o
Ministério do Interior o farão. Já não estamos vivendo na era medieval, se é que os
senhores ainda não perceberam isso e, no entanto, o senhor e sua turma parecem pensar
que ainda são a lei.
Beau se limitou a olhá-lo.
— Cuidado, Senhor Green. Está começando a soar como seu antigo mentor.
Green semicerrou os olhos e deu um passo atrás.
Em seguida desviou o olhar até ela.
— Felicidades mais uma vez pelo seu casamento, meu senhor. Sua esposa é muito
bonita.
Como se atreve a fazer comentários sobre minha esposa? Parecia dizer o olhar de
Beau, mas, para alívio de Carissa, manteve a indignação aristocrática para si mesmo.
Quando o altivo deputado se afastou, Beau permaneceu onde estava por algum tempo,
para controlar a ira. Carissa olhou para o marido, preocupada.
Ele respirou profundamente, endireitou os ombros e se virou para voltar para casa.
Foi até ela e sorriu distraidamente, pretendendo tranquilizá-la.
— Tenho que colocar estes documentos no cofre. Volto já.
Ela assentiu com a cabeça, mas enquanto o esperava, estava inquieta por tudo que
havia escutado. Parecia pouco o fato de o Senhor Green querer o sangue de Beau,
especialmente o de Warrington. Pobre Kate!
Perguntou-se se Daphne e as demais sabiam sobre a investigação do Ministério do
Interior...
Quando Beau voltou, Carissa enfiou o braço no dele, que colocou a mão sobre a dela e
lhe deu um sorriso confiante.
— Vem, vamos pegar a nova carruagem para dar uma volta – disse descontraidamente,
mas ela viu preocupação nos olhos dele.
Lá fora o sol brilhava sobre as placas de latão polido e os cavalos batiam graciosamente
as patas no chão, como se estivessem ansiosos para mostrar o tipo de andadura que
tinham. Carissa se aproximou do marido.
—Tu estás bem?
— É claro que sim. Por quê?
Ela o olhou com receio, sentindo-se muito protetora.
— Suponho que aquele desagradável homenzinho-lagarto é o tal da investigação.
— Ele está encarregado dela sim – admitiu ele com um sombrio olhar de soslaio. – Não
se deve dar poder para algumas pessoas. Elas acabam gostando demais.
— Eu percebi.
— Ah, não te preocupes, querida. Vai ficar tudo bem. Só precisodançar conforme a
música deles por algum tempo até que fiquem satisfeitos.
— Se houver algo que eu possa fazer para te ajudar com ele...
—Não.
— Talvez pudéssemos enfeitiçá-lo, que tal? Convidá-lo para jantar? Apresentá-lo à boa
sociedade? Fazer uma generosa contribuição para a campanha dele?
— Ei, querida, isso é o que chamam de corrupção.
— Oh... Sério? – exclamou ela. – Eu só estava querendo ser gentil!
Ele soltou uma risadinha e, para seu próprio alívio, começou a relaxar.
— Não, está tudo bem. E não te preocupes com o homem-lagarto. Eu o tenho sob
controle.
— Tens certeza? Pelo jeito dele parecia que estava querendo o sangue de Warrington.
— Quer dizer então que estavas ouvindo às escondidas de novo. Eu devia saber. Afinal,
quem de nós é o espião aqui?
— Não pude evitar! Kate está sabendo disso?
Beau soltou um suspiro.
— Não é só Warrington que eles querem. Na verdade eles querem todos nós. Vai ficar
tudo bem, relaxa – disse ele, mas não pareceu nada bem para ela. – Disputas territoriais
entre a Ordem e os diversos ramos do governo ocorrem há milhares de anos. Este é
apenas o último round.
— Posso ajudar em algo?
—Tu só tens que segurar a língua a respeito disso. Estou falando sério, mulher –
advertiu ele severamente. – Repito, tu não podes falar sobre isso com ninguém. Sequer
com as outras esposas. As mulheres já têm preocupações suficientes sabendo que seus
homens estão em missão perigosa no estrangeiro. A ameaça era bastante grave, por isso
tivemos que levá-las para fora de Londres às pressas, para que elas passem um tempo em
uma das quintas seguras da Ordem. É uma linda villa, onde elas estão cômoda e
seguramente instaladas, vigiadas vinte e quatro horas por alguns dos nossos melhores
homens. Porém, não há necessidade de incomodá-las com tudo isso. Principalmente
agora que Lady Falconridge está grávida, não quero que ela tenha uma comoção.
Carissa assentiu com seriedade, digerindo a informação.
— Eu prometi a Rotherstone e aos demais que cuidaria das mulheres deles. E,
francamente, não quero que eles se incomodem com nada disso até tudo esteja
esclarecido.
—Entendo.
—Ótimo. —Ele levantou a mão dela ea beijou.
Ela ficou em silêncio por algum tempo, processando tudo no cérebro e procurando
alguma forma de poder ser útil, não obstante.
— Talvez meu tio pudesse ajudar. Sei que ele estaria disposto, pois gosta de ti.
— Apesar do que ele pensa de mim? – Beau esboçou um sorriso irônico. – Não te
preocupes, só preciso ser paciente, responder às perguntas e que se contentem com
Green um pouco mais. Tenho certeza de que o Regente porá um ponto final nessa
baboseira em breve. E quando tudo isso acabar, vou te levar para uma viagem de lua de
mel como manda o figurino.
— Vai mesmo? – disse ela, toda animada.
— Mas é claro que sim. E é melhor que trates decomeçar a pensar para onde quer ir.
Tenho que estar de volta para a próxima rodada de interrogatório em mais ou menos uma
semana. Mas vai ser muito bom poder escapar contigo por alguns dias.
Ela apoiou a cabeça no ombro dele, olhando-o.
— Beau? Quem é o mentor do Senhor Green?
— Ah, ouvistes isso também, é?
Ela assentiu com a cabeça.
— Enquanto Green estava em Cambridge, parece que ele fez parte de um círculo de
estudantes seguidores de um senhor carismático, o professor Blake Culvert. Um tanto
esquentadinho, conhecido como O Profeta. Culvert já era famoso pelos princípios radicais,
mas quando declarou publicamente que era ateu, a Universidade o dispensou. É
compreensível então que, por isso, – acrescentou, encolhendo os ombros – a maioria das
Universidades de Cambridge está pedindo clérigos jovens.
Ela assentiu com a cabeça.
— O ateísmo vai contra a política da escola de Oxford também, não é?
— Sim. Mas então, os seguidores de Culvert se infiltraram entre os estudantes que se
amotinaram quando o herói deles foi despedido. Não que o professor caído em desgraça
tenha se saído tão mal desde então sem o posto de professor. Culvert passou a escrever
uma série de livros ilegais na França depois do que aconteceu lá. Mas entendo os escritos
e discursos públicos que faz uma vida decente na Inglaterra. As detenções ocasionais que
recebeu devido às acusações de motim, ou qualquer outro dano, pareciam ajudar nas
vendas dos livros.
Ela bufou.
— Todas as vezes nas quais foi detido, nenhuma das acusações contra o professor
Culvert teve êxito. Continua livre, e talvez isso tenha algo a ver com o fato de que muitos
dos antigos discípulos dele estão agora generosamente espalhados por todos os cargos do
governo.
Ele disse isso casualmente, mas Carissa se surpreendeu quando começou a perceber o
alcance do que Beau enfrentava.
— Ouvi dizer que Culvert também recebe subsídios e pensões de ricos mecenas
anônimos que simpatizam com as ideias dele. Isso é bastante desconcertante, – admitiu
com tom sarcástico. – Quem será que pode ser...
— O Senhor Green é um dos clientes dele? – murmurou ela.
— Isso seria muito perigoso para a carreira política de Green, que cortou todos os laços
com o antigo ídolo quando entrou para a política. Em público, pelo menos.
— Ah – disse ela.
Beau olhou tristemente para ela.
— Ouvi dizer que nas eleições nas quais Green conseguiu a cadeira, o oponente o
acusou de ainda compartilhar os pontos de vista extremos de Culvert. Green desautorizou
o velho várias vezes e se apresentou aos eleitores como moderador dos Liberais.
— As pessoas devem ter acreditado nele.
— Talvez. Ele também é muito bom na arte da calúnia e na de assassino de caráter, que
é principalmente a forma com a qual derrotou o rival, pelo que ouvi. Jogo sujo na política.
Ela absorveu tudo isso com um calafrio que lhe percorreu as costas.
— Quer dizer então que esse burocrata horrível, louco pelo poder, a quem tu tens que
responder, pode ainda ter simpatias radicais com aqueles que estão espionando a Ordem?
Beau suspirou.
—Não tenho duvida alguma de que esse é o caso.
—Meu Deus, e isso não te preocupa?! Ele sequer é sincero sobre seus reais motivos!
Ele encolheu os ombros.
— E o que é que eu posso fazer?
— Mas isso não é conflito de interesses?
— Pouco importa – disse ele com certa veemência. – Ele não vai destruir a Ordem. Não
enquanto eu estiver lá. Ele pode até tentar, mas já estamos no meio do inferno há muito
mais tempo do que esses homens modernos do progresso e suas novas ideias brilhantes.
— Que tipo de ideias?
— Dissolver a monarquia. Dissolver a aristocracia. O casamento também é antiquado
nos círculos deles. O amor livre é que reina entre eles.
Ela lhe lançou um olhar sardônico.
— Como é que é?! Isso soa como uma tonelada de besteiras.
— Não, não, há uma grande diferença entre a antiga tradição de adultério na
aristocracia e a noção radical do amor livre, querida. Um, abusa da santidade do
casamento com inativa galhardia, e o outro o rechaça desde o princípio, junto com
qualquer noção de cavalheirismo.
— Eles não acreditam em cavalheirismo? – exclamou ela.
— Eu diria que não. Encaram isso como um insulto.
— Como?
— No mundo deles, as mulheres são iguais aos homens, e elas não querem nem
precisam de nenhum tipo de proteção masculina, nem deferência.
Carissa lutava para compreender esse mundo que ele descrevia.
— Mas se não há casamento..., e as damas são os próprios cavalheiros..., então, o que
acontece com as crianças? E quem se encarrega dos idosos? E quanto às famílias?
— Ah, querida, tu és lamentavelmente provinciana. Não me ouviu? A família é um
sistema artificial da opressão – respondeu ele. – Não tem mais serventia para ele do que
para a igreja. Tu não lestes o inimitável Godwin, nem notou como poetas como Shelley e
Blake sempre estão fazendo as próprias religiões?
— Só que ninguém pode inventar o bem e o mal.
— Pode-se tentar, se for suficientemente arrogante. Em cima é embaixo, o bom é mau,
as mulheres são homens, e antes que se perceba, ninguém precisa de ninguém.
Esqueçam-se da civilização e a raça humana será então livre para terminar a perpétua
guerra do homem contra seu próximo, que Hobbes descreveu faz 200 anos.
— Isso soa infernal.
— Pois é. No entanto, eles acreditam que estão construindo a utopia. Aqueles
benfeitores manipuladores.
Carissa meneou a cabeça ao ouvir essa diatribe, mas quando a carruagem parou diante
de uma elegante varanda, virou-se para Beau com surpresa.
— Pensei que tua mãe vivesse em Lockwood House!
— Bom, isso tornaria as coisas mais difíceis quando os amantes dela viessem visitá-la,
não achas?
Ela fez uma careta.
— Desculpa-me. Não me dei conta de que era tão ruim assim.
Ele suspirou, desceu da carruagem e ato contínuo se virou para ajudá-la.
— Meus pais ficaram os mais perto possível para poderem se divorciar sem ter que
passar por todo o escândalo e os inconvenientes que redundam dos procedimentos
formais.
— Quer dizer então que agora eles se odeiam?
— Não sei – respondeu ele cansadamente. – Sempre me pergunto se eles poderiam ter
resolvido todos os problemas faz anos se não fossem tão orgulhosos. – Evitou o olhar dela
enquanto fechava a porta da carruagem. – Se ela tivesse procurado meu pai e falado com
ele, dizendo-lhe por que estava tão triste, sei que ele tê-la-ia escutado. Ele é um homem
razoável.
Ele a olhou significativamente. Carissa não tinha certeza sobre qual tipo de pista ele
estava lhe dando, ou se era apenas sua imaginação culpada.
— Se meu pai tivesse tido a chance de ouvir a versão dela sobre os fatos, se minha mãe
tivesse confiado nele o suficiente para lhe explicar tudo, então, quem sabe como as coisas
poderiam ter sido entre eles? Se eles tão somente tivessem tentado serem sinceros um
com o outro...
Ele lhe dirigiu um olhar pensativo, depois caminhou diante dela até a porta.
O coração de Carissa disparou.
Foram então ver a condessa.

Capítulo
12
O mordomo de Lady Lockwood abriu a porta antes de eles chegarem lá, e

conduziu-os até o vestíbulo de entrada com um gesto cortês de boas-vindas.


—Meus parabéns, Senhor – disse o mordomo para Beau em voz baixa.
— Obrigado, Franklin.
— Lady Beauchamp, se me permite, eu lhes desejo muitas alegrias.
— Muito obrigada – disse ela calidamente, corando um pouco.
— Franklin está aqui desde que era menino – Beau lhe informou. – Ajuda a cuidar do
gene da idade.
— Senhor... – repreendeu Franklin de leve, lutando contra um sorriso de desaprovação.
– Posso pegar seu casaco, minha senhora?
— Talvez não – interrompeu Beau em voz baixa. – Não vamos nos acomodar até
vermos que tipo de recepção vamos ter.
Franklin olhou para o visconde e fez um sutil gesto com a cabeça.
— Se tiver a bondade de esperar aqui, meu senhor, vou ver se ela pode vos receber.
— Eis aí a esperança – murmurou ele.
Franklin fez uma reverência e depois subiu a escadaria para informar Sua Senhoria que
o casal havia chegado. Beau enfiou as mãos nos bolsos e ficou passeando pela saleta de
entrada enquanto esperavam. Carissa olhou o próprio reflexo de corpo inteiro no espelho
e se virou para ele.
— Estou bem?
—Tu sempre estás linda – disse ele. – Mas deverias ter posto aquele chapéu que eu te
dei.
Ela sorriu.
Franklin voltou com uma expressão de alívio.
— Sua Senhoria vai lhes receber agora.
— Hurra! – exclamou Beau em voz baixa.
Carissa o olhou enquanto subiam a escadaria curva, precedidos pelo majestoso
mordomo de Lady Lockwood.
Quando chegaram à sala de estar, Carissa ficou um pouco para trás, deixando que ele
entrasse primeiro. Beau tirou o chapéu com um gesto galante enquanto entrava
despreocupadamente no salão da mãe.
— Bom dia, Bárbara!
A bela mulher loura sentada junto à lareira não lhe devolveu o sorriso.
— Ora, ora, se não é o meu filho traidor.
— É um prazer te ver também – disse ele alegremente. – Eu trouxe alguém para te
conhecer.
— É claro. – Quando a eriçada condessa a olhou, Carissa procurou na mente cada lição
que Tia Jo havia lhe ensinado sobre como se posicionar por si mesma antes que o
fizessem os altivos da alta sociedade.
Embora seus joelhos parecessem de borracha, de alguma forma continuou com o rosto
sereno, lembrando a si mesma que tinha todo o direito de ter se casado com Beauchamp.
Não havia sido ela quem havia procurado aquela situação, afinal de contas. Fora ele quem
havia insistido.
— Mãe, – Beau lhe apresentou em voz baixa – esta é minha esposa, Carissa.
Carissa fez a reverência mais respeitosa que havia para a nova sogra.
— Minha senhora. – Depois dessa demonstração de respeito, levantou o olhar
cautelosamente.
A condessa se levantou lentamente da cadeira. Com o coração disparado, Carissa
sentia como se estivesse vendo uma espécie de dragão pré-histórico prestes a devorá-la.
Nesse momento, era fácil prever a interrupção. Essa grande dama aterrorizante
provavelmente teria perturbado o dia do seu casamento. Por outro lado, viu que Beau,
com certeza, tinha o mesmo aspecto da mãe. Bárbara era tão loura e bela quanto ele.
Lady Lockwood olhou para os dois arqueando as sobrancelhas altivamente.
— Quer dizer então, que os dois vieram até aqui me pedir desculpas? Tu me
humilhastes diante de toda a sociedade – acusou o filho. – E tu, sejas lá quem for, deixou-
o fazer isso – acrescentou com um olhar gelado para a nova nora.
Tomada de surpresa, Carissa olhou para Beau.
— Mãe... – ele a repreendeu com um sutil toque de advertência na voz. – Você sabe
exatamente por que teve que ser assim. E estás demonstrando exatamente isso agora, o
que confirma as minhas expectativas.
Ela bufou.
— A cada dia que passa ficas pior do que o teu pai. Nenhuma consideração por
ninguém mais do que a ti mesmo! Espero que saibas o que te espera, querida – disse ela a
Carissa. – Os homens Walker são infamemente egoístas.
— Por favor, não abusa do nome do meu pai no meu ouvido, mãe. O fato é que eu não
ia deixar que os dois estragassem o dia do nosso casamento.
— Não foi nada demais, Lady Lockwood – Carissa tratou de apaziguá-la. – Queríamos
lhe dizer sem ofender. O Senhor Beauchamp só estava tentando ser amável comigo, já que
sou órfã. Ele pensou que seria solidário se os pais dele não estivessem presentes, igual a
mim.
A Senhora Lockwood a mediu da cabeça aos pés.
— Você é sobrinha do Conde Denbury?
— Sim, minha senhora. Meu pai era irmão mais novo do conde, o Honorável Benjamin
Portland.
Ela arqueou as sobrancelhas e olhou para o outro lado com ar desdenhoso.
— Quer dizer então que tu és o limite do meu filho, não é?
— Vamos, Carissa, já ficamos aqui tempo demais.
— Está tudo bem – ela respondeu. Ele a advertira com antecedência para estar
preparada para uma confrontação. – Tenho certeza de que sua senhoria só quer se
certificar de que sou boa o suficiente para o filho dela.
A Senhora Lockwood parecia surpresa por essa demonstração de valentia.
— Nossa união foi inesperada, minha senhora. Aconteceu muito rápido, é verdade,
mas não foi tão repentino quanto parece, porque Beau e eu já éramos amigos bem antes
de nos envolvermos. Em todo caso, minha tia Josephine, a Condessa d’Arras, vai oferecer
uma recepção para nós quando chegar do continente. Ficaríamos muito honrados se a
senhora quisesse comparecer.
A Senhora Lockwood a olhou por um longo instante.
— A Condessa d’Arras? A irmã de Denbury, não? Anteriormente Senhora Josephine
Portland?
— Sim, mas isso faz tempo, foi antes de se casar. Conhece-a, senhora?
— Éramos amigas quando terminamos a escola.
— Verdade? Foi ela quem me acolheu!
— Ela?
Carissa assentiucom entusiasmo.
— Tia Jo não tinha filhos. O marido dela, um emigrante francês, já estava bastante
velho quando se casaram. Quando meus pais morreram, ela me acolheu e me criou como
filha, depois que meus avós ficaram velhos demais para me manter com eles – corrigiu-se.
— Como foi que seus pais morreram? – Perguntou Beau em voz baixa. – Creio que
nunca ouvi sobre isso.
— Eles foram à Irlanda em 1.800 para comemorar a unificação com alguns amigos da
aristocracia irlandesa, mas o barco no qual viajavam afundou na viagem de volta.
Beau passou o braço em volta dela.
— Lamento muito.
— Está tudo bem. – Ela sorriu tristemente.
— Então, primeiro ficastes com teus avós?
Ela assentiu.
— Fiquei com eles por vários anos. Eles já estavam com sessenta anos. Mas alguns
anos depois, transformei-me numa carga pesada demais para eles. Suponho que eu era
um tanto barulhenta e agitada.
Beau sorriu para ela.
— Ficou decidido que eu ia morar com minha tia Jo – continuou ela. – Fiquei com a
condessa até um ano e meio atrás, quando vim para Londres morar com meu tio, Lorde
Denbury e a família dele. Eles têm duas filhas da minha idade, e tia Jo queria viajar assim
que a guerra finalmente terminasse – disse vagamente. – Ou seja, minha senhora, ela não
estava presente no nosso casamento, mas vai chegar a qualquer momento, e quando
chegar, teremos uma grande recepção, e todo mundo terá que comparecer. Espero que a
senhora considere comparecer também.
— É claro que ela vai – disse Beau com um olhar mordaz para a mãe.
Sua Senhoria não disse nada por algum tempo.
— Quero saber a data para ver se estarei livre. Teu pai vai à recepção? – Perguntou ela
ao filho.
— Isso eu não posso te garantir, pois tu sabes que ele odeia vir à cidade – disse Beau,
encolhendo os ombros.
Pouco depois, eles se despediram.
Carissa desabou na intimidade da carruagem.
—Meu Deus, fico feliz por ter acabado.
— Não foi tão ruim assim, para um primeiro encontro. E isso vai acontecer todo ano,
acho. Agora temos apenas um obstáculo. – ele sorriu tristemente para ela. – O encontro
com o meu pai. Esse não será nem de longe tão duro quanto este. Ele gostaria mais de ti
se fosses um animal, é claro, mas sobre tudo, vai ficar muito satisfeito porque finalmente
eu consegui uma esposa.
— Estás me dizendo que ele vai me ver como uma égua de cria?
— Sim, mas não leve isso para o lado pessoal. No fundo, todas as mulheres são éguas
para ele.
— Sendo assim, não me estranha as objeções da tua mãe.
— É verdade. São necessários dois lados para se fazer uma guerra. – Ele a olhou por um
instante. – Foi uma história reveladora saber da tua vida. – Ele meneou a cabeça. – Eu não
fazia ideia que havias passado por tanta coisa assim. Passar de mão em mão, de casa em
casa... Deve ter sido difícil.
— Bom, não que tivesse sido fácil, tampouco. Pelo menos meus pais se amavam. Deve
ter sido difícil para ti, ter uma casa que serviu como campo de batalha.
— Não há nada melhor que me leve à conclusão de que apenas os tolos acreditam no
amor – admitiu.
—Tu não acreditas mesmo nisso, não é?
Ele a olhou fixamente, como que esperando algo.
Alguma explicação ele teria que lhe dar.
— Beau! – chamou ela, cada vez mais nervosa.
— Bom, não sou perito nessas coisas, – respondeu ele – mas me parece que o amor
anda de mãos dadas com a confiança. Não achas?
—Sim...
— Achas que poderias chegar a confiar em mim, Carissa?
Ela assentiu, mas sentiu que a boca havia secado.
— Ótimo – sussurrou. Em seguida, levantou sua mão e lhe deu um beijo nos nós dos
dedos através da luva, com um brilho nostálgico nos olhos.
Ela afastou o olhar, mas seu coração galopava no peito. À medida que a carruagem se
punha em movimento, ela foi presa de um temor íntimo.
A dúvida lhe sussurrava: Ele sabe.
Capítulo
13
M ais tarde, nesse mesmo dia, chegaram à formosa quinta Hampshire, onde Beau

havia sido criado, a qual um dia lhe pertenceria.


Grossas árvores velhas se alinhavam pelo caminho e, além delas, prados verdes e
ondulantes nos quais os cavalos do conde pastavam. Uma tranquilidade modorrenta
pairava sobre o lugar enquanto se dirigiam a uma elegante e antiga casa senhorial de
tijolos vermelhos e hera crescendo pelas paredes.
Carissa olhou para Beau com o rabo do olho e viu que o rosto dele havia suavizado
olhando o lugar, da tensão de Londres e todas as misteriosas responsabilidades que tinha.
À medida que o observava cumprimentar o pai quando o Conde de Lockwood saiu ao
encontro deles, o vínculo entre os dois homens ficou evidente imediatamente. Se o filho
tivesse sido obrigado a tomar partido entre pai e mãe quando criança, não era difícil
adivinhar que ele havia tomado o partido do pai.
Beau apresentou a esposa ao estoico Lorde. O Conde de Lockwood estudou, ou
melhor, avaliou Carissa como se fosse uma égua em algum leilão de Tatersal, com astutos
e céticos olhos sombreados pela viseira da boina. Era um homem bem fornido, beirando
os sessenta anos.
Se Beau havia herdado a boa aparência dourada da mãe, estava claro que a mente
aguda e a espinha de aço vinham do pai.
— Fico feliz por ambos – concluiu bruscamente.
Um homem de poucas palavras, que interrompeu a alegria deles com um gesto
conciso.
—Parabéns.
Quando Lorde Lockwood se virou, Beau lhe deu uma discreta piscada que lhe dizia que
ela havia conseguido a aprovação do velho. Então tiveram que apertar o passo para
alcançarem Lorde Lockwood, que disparou na frente para lhes mostrar os arredores da
quinta; Beau ficou mais do que surpreso pela demonstração de tolerância do velho conde
para com uma mulher.
Carissa se sentiu aliviada, por sua parte, porque o novo sogro não via razão alguma
para lhes jogar na cara o fato de não ter sido convidado para o casamento.
Mal perguntou sobre o dia em questão, nada além dos fatos básicos. Ao que parecia, as
razões do filho foram entendidas sem muita necessidade de discussão.
Ele nada teve a dizer quando Beau lhe informou sobre a visita que fizeram a Lacy
Lockwood. Mas a história da fria recepção a Carissa parecia deixar o homem ainda mais
decidido a colocar a nova nora debaixo da asa. Como que para compensar a rudeza da
esposa, ele se animou consideravelmente à medida que os levava para conhecer a quinta,
explicando a Carisa o que era cada prédio da granja, apontando os cavalos mais caros
entre os rebanhos.
Quando passaram por um carvalho gigante, ele parou para contar uma divertida
história sobre a infância do filho e explicou, com aquela voz retumbante, como Beau havia
subido uns trinta metros de altura pelos galhos e, depois, não conseguia encontrar uma
maneira de descer.
— Ninguém conseguia encontrá-lo. Ele não quis pedir ajuda..., é claro. Obstinado e
orgulhoso, embora tivesse apenas uns oito anos na época. Finalmente, um dos criados o
viu. Todos nós estávamos em pânico. A mãe dele corria para lá e para cá gritando para
que eu o baixasse de lá, mas o safado não queria nem ouvir falar que alguém o ajudasse.
Queria encontrar o caminho por conta própria.
Rindo, ela olhou para o marido.
— Bem ele isso.
Beau sorriu e baixou a cabeça, parecendo ligeiramente envergonhado depois da
história.
— Bom, pensei que já que eu mesmo havia me metido naquele aperto, era eu mesmo
quem tinha que sair dele.
— E tu saistes! – Seu pai lhe deu uma palmada nas costas e continuou andando.
— E aprendi uma importante lição. Nunca confies em ninguém mais além de ti mesmo.
As palavras de Beau calaram fundo em Carissa, que se juntou depois aos dois homens
que agora estavam admirando o rebanho de ovelhas de raça pura de uma ou outra
variedade.
Quantas vezes ela havia pensado da mesma forma. Mas agora, desde que Beau entrara
na sua vida, conhecia a solidão por trás dessas palavras. Realmente era uma pena que os
pais dele não tivessem encontrado uma forma de ficarem juntos... Não, não vou me meter
nisso, jurou, embora a bisbilhoteira nela quisessesaber dos detalhes sobre o que havia
acontecido entre eles, e se a ruptura podia ser reparada.
Mas não, advertiu a si mesma. É óbvio que não.
Beau a estrangularia.
E como novo membro daquele clã, ela não estava em condições de alavancar nem
interferir naquilo. Alijou da mente a tentação de ajudar sua nova família e apenas sorriu,
olhando os carneiros saltitando pelo capim. Havia uma quietude pacífica na quinta que
logo a fez se sentir preguiçosa, principalmente quando se aproximou da beirada do
tanque de peixes do conde, alimentado por um balbuciante riacho.
Ela suspirou e se apoiou em uma árvore, olhando o fluxo da corrente, como ele
costumava olhar para as ondas do mar morrerem na praia, quando vivia em Brighton com
tia Jo.
Ezra Green e as ameaças contra seu marido, o restante dos agentes da Ordem..., todos
os problemas pareciam a milhares de quilômetros agora. Antes que percebesse, chegou a
hora do jantar.
Voltaram então à senhorial casa.
— Obrigada por me mostrar tudo – disse ela, sorrindo para o conde.
Ele assentiu, então ela fez uma reverência para os dois cavalheiros e deixou-os
usufruindo de algum tempo como pai e filho enquanto ia se arrumar para o jantar.
Quando ela se foi, Beau olhou para o pai, esperando para ouvir o veredito do velho
quanto à escolha da noiva.
Na verdade, preparou-se para algum tipo de observação cáustica, reflexo da
desconfiança generalizada do pai sobre a raça feminina. Mas, para sua surpresa, tal crítica
não chegou. O velho conde inclinou levemente a cabeça para o filho.
— Ela parece ser uma boa moça. Muito bom. Uma boa escolha. Os Denbury sempre
tiveram uma impecável linhagem sanguínea. Ela deve produzir bons filhos à linhagem dos
Lockwood.
— Filhos?! Meu Deus, pai, ainda não completei quarenta e oito horas de casado. Deixa-
me primeiro ver como é ser marido antes de aprender a ser pai.
O conde riu.
— Fiquei um tanto surpreso devido à pressa de tudo, devo te dizer. Parece-me um
momento estranho para se casar, com tudo o que está acontecendo.
— Sim, bom..., eu tive que me casarcom ela – Admitiu Beau, e o pai arqueou a
sobrancelha.
— Ela já está grávida?
— Não! Nada disso... Ela ficou sabendo sobre a Ordem. No entanto, nada aconteceu
antes. Eu já estava de olho nela fazia meses antes que ela metesse o nariz nos meus
assuntos.
— Metesse o nariz? – perguntou o velho rapidamente. – Tem certeza de que podes
confiar nela?
A pergunta lhe doeu, apesar de saber que seu pai só estava se referindo ao sentido
operacional. Ele assentiu.
— Tenho certeza sim.
— Hmmm... – murmurou Lockwood, estudando-o com olho que sabe tudo. – E então,
o que mais há além disso?
— Tive notícias de Nick e de Trevor. Eles estão vivos. – O conde o olhou fixamente.
— Graças a Deus!
— Eles tiveram um imprevisto no continente. Trevor levou um tiro. Não o vi ainda, mas
Nick disse que ele vai ficar bem. E isso é tudo o que sei por enquanto.
E tanto quanto se atrevia a compartilhar com o pai no momento.
— Bom, fico feliz por ouvir isso. Se houver algo que eu possa fazer para ajudar, é só me
dizeres.
— Obrigado.
Sabia que tudo aquilo havia afetado o velho conde, os companheiros do filho sempre
iam para a quinta durante as férias desde que eram crianças. Especialmente Nick, que
nunca tivera um lar para chamar de seu e para o qual voltar. O conde se sentou em uma
cadeira e o observou por algum tempo.
—Tu pareces feliz com ela.
Ele sorriu com tristeza.
— Bobagem..., só fiz isso por ti. Faz anos que vinhas enchendo meus ouvidos para que
eu me casasse.
— Bah! – queixou-se o conde, e Beau desatou a rir.
Continuaram conversando agradavelmente por algum tempo, depois, pai e filho
tomaram um cálice de Porto.
Depois do jantar, Carissa se retirou da sala para ficar a sós. Esperando diante da lareira,
olhou para as chamas e ficou bebericando uma xícara de chá até que os cavalheiros
chegaram.
A pedido do marido, sentou-se ao piano e, embora o instrumento estivesse desafinado,
fez todo o possível para alegrar o ambiente com algumas peças. Lorde Lockwood ficou
olhando, perplexo, como que tentando imaginar o quão diferente poderia ter sido sua
vida se tivesse tido uma filha.
Por fim, chegou a hora de se retirarem. Ela agradeceu ao anfitrião pela boa comida e
pelo tour mais cedo, ao chegarem, então deu um beijo na face do velho conde.
— Boa noite, Lorde Lockwood.
— Ora, vamos, minha menina, tu tens todo o direito de me chamares de pai –
murmurou ele, assustando-a com essa inesperada deferência.
Beau também parecia muito surpreso ao ouvi-lo, mas Carissa aceitou a gentil oferta e
apertou carinhosamente a mão dele.
— Está bem, vou fazer isso, então. Boa noite, pai.
Para ela, era estranho dizer essa palavra. Não havia tido chance de chamar ninguém
assim em dezesseis anos. Emocionou-se de verdade, e quando o brusco velho Lorde se
inclinou diante dela, por sua vez, ela se animou ao pensar que um laço já havia se
formado.
Então, Beau lhe ofereceu o braço e a acompanhou até a escadaria. O conde ficou
olhando o casal sair, com as mãos apoiadas nos quadris.
— Eu quero um neto! – Ordenou ele.
Carissa ficou muito vermelha, mas Beau começou a rir.
—Podes acreditar, vou dar o melhor de mim!
Logo estavam no quarto particular de Beau. Ela continuava sorrindo enquanto ele a
ajudava a se despir para se deitar, beijando-lhe a nuca como um galã mundano, enquanto
desabotoava cada botão de pérola do seu vestido na parte das costas.
—Agora eu vejo de onde vem esse teu encanto – comentou ela.
—Tu achas meu pai encantador? – exclamou ele.
— Completamente.
— É a primeira vez que alguém o acusa disso... É melhor que ele não lhe ouça.
— Bom..., mas é verdade...
— É uma pena que minha mãe não compartilhe da tua opinião.
— Bom, pelo que vi, ele me parece excelente.
— Parece que ele gostou de ti também. Quanto a mim, nada poderia me agradar mais.
Esse homem tem sido a rocha da minha vida, verdade seja dita.
— Qualquer um pode ver isso, vendo os dois juntos.
O vestido de cetim se amontoou no chão, então ela saiu e se virou para ele, olhou-o
por um instante pensando no assunto, depois se aproximou na ponta dos pés e lhe deu
um beijo. Ele o devolveu.
— O que foi isso?
— Preciso de um motivo? – perguntou ela com um sorriso coquete.
— Não..., é claro que não.
Quando foi pendurar o vestido, podia sentir o ardente olhar dele acompanhando-a.
Logo se virou para ele e o ajudou a tirar o casaco.
— Lamento por ter te deixado sozinha depois do jantar – murmurou ele. – Meu pai é
muito tradicional. O cálice de Porto à noite é de praxe.
— Ainda consigo sentir o gosto em ti – sussurrou ela, roubando outro beijo daqueles
lábios tentadores demais.
Ela começou a desabotoar o colete dele, sentindo o desejo crescer por dentro.
— Meu pai e eu vamos cavalgar amanhã cedo, caso queiras saber onde vou estar.
— Não muito cedo, espero. Devo confessar que tenho planos para te manter acordado
até tarde esta noite.
Ela sustentou o olhar dele com olhos sedutores, brincando enquanto retrocedia até a
cama.
Ele a olhava, fascinado. Subindo na cama, ela tirou as cobertas provocadoramente.
Quando deu palmadinhas no colchão, Beau se aproximou e se sentou na borda da cama
ao lado dela. Estava sorrindo levemente, como de costume, mas os olhos claros pareciam
melancólicos. Ela colocou a mão na face dele, preocupada.
— O que há, meu bem? – Ele cobriu-lhe a mão, segurando-a contra a face, tentando
ver-lhe a alma nos seus olhos.
— Tem algo que eu... – começou ele, mas parou.
Carissa congelou e ficou olhando para ele com os olhos arregalados. Todo seu corpo
ficou tenso e sentiu que o sangue fugiu do seu rosto. Oh, Deus, é agora!
— Sim? – Obrigou-se ela a dizer, rezando para estar errada, para que se fosse coisa
apenas da própria consciência culpada.
Ele a olhou com nostalgia por um longo tempo. Talvez ele tivesse visto o medo
estampado no rosto dela, pois sua expressão suavizou. Ele colocou a mão na face dela,
olhando-a nos olhos.
— Não importa – sussurrou ele com um sorriso terno. – Não é nada.
— Te-tens certeza?
— Sim. É a tua beleza que me rouba o racionício. Esquece o que eu ia dizer. Beija-me. –
Disse ele, soltando a respiração.
Ela o fez, tremendo, tanto por ter estado tão perto de perdê-lo quanto pelo desejo que
sentia por ele. Ela escorregou os braços em torno dele, odiando a si mesma por tê-lo
enganado, mas prometeu que se não pudesse ser honesta com ele, pelo menos poderia
lhe dar isso. Estava desesperada para demonstrar que, apesar de carecer de honestidade,
a devoção que tinha por ele era sincera.
Ele passou a mão pelo longo cabelo dela com dedos quentes e seguros. Ouviu-a
respirar entrecortadamente quando seus sedosos lábios abriram os dela, aprofundando o
beijo. O coração de Carissa batia descompassado pela sensação de risco, enquanto se
aproximava mais dele. Mas o perigo não era suficiente para mantê-la afastada. Ela
segurou as lapelas do colete, desabotoou os punhos da camisa e o atraiu mais para si,
sem conseguir se conter. A língua dele esfregava com perícia na sua, a mão apertando-lhe
a nuca com paixão.
Em um instante, o intenso desejo que cegava os envolveu como chamas de brilhantes
cores.
Nenhuma palavra era necessária para saber o que ambos ansiavam.
As mãos dela tremiam pela pressa em terminar de despi-lo. Enquanto ele lhe acariciava
a coxa, elapuxou a camisa branca, soltou-a do cós das calças escuras e enfiou as mãos por
baixo da mesma. Gemeu ao sentir a beleza daquele abdômen esculpido, passando
ansiosamente a mão pelo peito de Beau, subindo e descendo, deleitando-se com a
sensação de calor, da pele aveludada sobre músculos duro como ferro.
Mas nem nos seus sonhos mais selvagens ia acreditar que um homem como ele
alguma vez pudesse lhe pertencer. Mas agora pertencia. Esse verdadeiro Adônis, adorado
pela metade das mulheres da alta sociedade, era seu para amar.
A verdade brilhou naqueles ardentes olhos azuis. Era esculpido, cinzelado em todos os
sentidos, e o ângulo do rosto inesquecível enquanto a olhava, com o cabelo despenteado,
os olhos azuis atormentados pelo desejo enquanto a pressionava de costas contra a cama.
Ela fechou os olhos enquanto ele se movimentava sobre ela, com carícias suaves,
reclamando possessivamente cada centímetro dela.
Carissa aferrou-se a ele, cujo ofego lupino enchia seus sentidos, enquanto o calor
úmido daquela boca adorava a carne tenra debaixo da sua orelha.
— Oh, Deus, eu tedesejo, Beauchamp! – Disse ela.
Ele enfiou os dedos por dentro do cabelo dela antes de tomar ar, depois de ter
saboreado seu pescoço. Um sorriso meio malvado curvou um canto daquela boca
encantadora quando ela pegou-lhe o membro e sentiu que latejava na sua mão.
Ele a olhava com os olhos embaçados, visivelmente satisfeito, enquanto ela se
apressava para desabotoar a braguilha da calça. O tremor das mãos dela atrapalhava, mas
ele esperou pacientemente, sentindo o coração acelerado pela antecipação. Quando o
liberou completamente das calças, ela começou a acariciar-lhe o membro rígido com as
mãos. Beau soltou um grunhido gutural de prazer e fechou os olhos.
—Tu sabes exatamente como me tocar.
Ele saboreou as atenções dela mais um pouco, passando uma hábil mão pela sua coxa
e levantando a barra da sua combinação. Então ele lhe devolveu o favor, dando-lhe prazer.
Rapidamente ela ficou sem fôlego, febril, dolorida de desejo, ondulante a cada toque
enquanto lhe acariciava a face. Ele encheu sua boca com a língua, beijando-a com o
mesmo desespero; com um movimento controlado, posicionou-se sobre ela. Os olhos de
Beau brilhavam de puro desejo, então colocou o membro na sua úmida entrada.
Ela lhe acariciou o cabelo dourado e mordeu o lábio com impaciente necessidade,
fechando os olhos, ansiando pelo ato. Poderia ter chorado de alívio quando ele a
penetrou. Com um gemido suave, ela o envolveu nos braços e passou as pernas em volta
dele.
— Oh sim..., por favor...
— É disto que tu precisas? – zombou ele em voz baixa, pressionando nela mais fundo.
—Tu sabes que sim.
Ela passou os dedos pelas costas macias e fortes de Beau e gemeu com prazer
abrasador quando começou a se movimentar dentro dela. Deus, ela parecia cera quente
nas mãos dele.
— Assim – sussurrou ele. – Entrega-te a mim, quero tudo de ti. Adoro sentir que
derretes toda debaixo de mim, nestes momentos.
Ele agarrou-lhe os cabelos e puxou sua cabeça para trás, beijando-lhe o pescoço,
bombeando mais forte, mais rápido, mais insistente. Ela tinha certeza de que havia
morrido e ido para algum céu lascivo.
Ela soltou os braços sobre o travesseiro, no alto da cabeça, e simplesmente permitiu
que ele a encantasse. E então, com um sorriso sonhador, acolheu-o.
Beau entrelaçou os dedos com os dela e a levou ao clímax, unindo-se a ela na explosão
de uma ruptura de feliz abandono. O mundo além do leito matrimonial havia
desaparecido, mas enquanto ele a segurava, no ofegante silêncio do depois, sentiu-se
mais próxima a ele do que nunca, apesar dos segredos existentes entre eles.
De fato, não havia como voltar atrás. Olhou nos olhos do maravilhoso marido e soltou
uma leve risadinha esgotada, meio que um ronronar de puro prazer.
Ambos estavam suados e satisfeitos; ele lhe deu um beijo na face, sentindo o coração
bater forte quando ela o abraçou, mas, lá no fundo, deu-se conta de que, ao ter
começado a trilhar o caminho do engano, teria que ter cuidado para não se desviar dele
sem comprometer o futuro.
Teria que se certificar de manter a mesma história, porque não havia maneira alguma
de contar a verdade, jurou, pois nunca poderia suportar a ideia de perdê-lo.
Beijou-o no queijo quadrado e se iluminou quando ele acariciou seu cabelo, olhando-a
nos olhos.
— Creio que estou me apaixonando por ti, esposa – sussurrou ele.
— E eu de ti, marido – suspirou ela.
Outra pequena mentira, porque a verdade era que ela estava perdidamente
apaixonada pelo safado fazia tempo já.
Deus, eu nunca tive uma chance que nem esta antes, alguém que realmente pudesse
me amar. Por favor, jamais permita que ele fique sabendo da verdade,a qual pode levá-lo
para longe de mim.

Capítulo
14
A o voltar para Londres ficaram sabendo que aquele precipitado casamento havia

se transformado no prato favorito da cidade.


Felizmente, a mundana tia Jo estava de volta e preparada para os mexeriqueiros. A
glamurosa Condessa havia chegado enquanto eles estavam fora da cidade. Com aquela
peculiar magia, que fazia com um piscar de olhos, preparou uma recepção para eles,
apesar de ter ficado fora da Inglaterra durante um ano.
Por algum milagre extra, Carissa ainda obtivera êxito ao persuadir o sogro para que
fosse até a cidade para a festa, e agora a grande noite havia chegado.
A elegante casa de Ti Jo, perto de Hyde Park, brilhava inteira à luz das velas. Os lustres
projetavam luz sobre os convidados cheios de joias que dançavam, e outros que
continuavam chegando em ondas.
Carissa tinha certeza de que haviam ido mais para ver a antes ausente Condessa d’Arras
do que para celebrar a união dos novos Lorde e Lady Beauchamp.
Mas, decidida a que a vissem como um crédito ao marido, apresentou-se como a
futura Condessa de Lockwood com cada grama de beleza e refinamento que ela e a
inteligente criada francesa da tia pudessem evocar na sua aparência.
Beau, é claro, não precisava de nenhum esforço para ser magnífico, mas a intrincada
arrumação de Carissa havia levado mais de uma hora. Vestia um delicioso vestido cor de
damasco que lhe realçava a tez. Um colar de ouro com topázio brilhava em volta do
pescoço.
Uma tonelada de juízes da moda, que na realidade nunca haviam reparado nela antes,
olharam-na com olhares altivos e assentiram em sinal de aprovação.
Enquanto isso, a música da orquestra de câmara ressoava pela casa junto com o tilintar
de copos e da porcelana fina da grande variedade de pratos que foi servida. Por cima de
todos os sons, ouvia-se as conversas zumbindo por todos os cômodos.
Pela primeira vez na vida, Carissa não sentia necessidade de espionar para saber o que
as más línguas tinham para dizer. Tia Jo havia insistido firmemente que todas as piores
línguas deviam ser convidadas e tratadas com deferência especial.
Do contrário não se saberia quais viradas desagradáveis tomaria a história do seu
casamento quando o compartilhassem com a alta sociedade.
Enquanto mantinha um sereno sorriso na cara e lutava para não se inquietar debaixo
da inspeção de várias patrocinadoras de Almacks, sua glamorosa tia era uma força a se
levar em conta.
Sabendo que Carissa preferia desesperadamente fazer parte do rol de observadores a
ser objeto de estudo como o centro das atenções, Tia Jo distraía os convidados,
entretendo-os com divertidas anedotas sobre a vida em Paris.
Com seu cabelo louro vibrante, chamejantes olhos azuis e uma cútis muito bem
cuidada, a Condessa os encantava com sua beleza e um monólogo cadenciado sobre as
viagens que fizera pelo continente.
Em outra parte da festa, Beau também viu a necessidade de por um ponto final em
qualquer conversa fiada sobre o motivo do seu casamento às pressas.
Enfeitiçou a multidão de convidados com a força do seu encanto, irradiando o próprio
resplendor dourado particular, como um verdadeiro deus sol, tranquilamente apoiado à
porta da sala, de onde podia falar com todos ao mesmo tempo.
É claro que algumas damas fulminavam Carissa com o olhar, mas Tia Jo havia dito que
essas precisavam ser convidadas. Então elas veriam com os próprios olhos que o ex
companheiro de jogos, o ex libertino, estava apaixonado e legalmente unido a outra
mulher.
Os biquinhos daquelas damas aumentaram quando ficaram sabendo de todos os
pródigos presentes que o romântico noivo havia derramado sobre sua dama, escolhida
por ele, no pequeno casamento privado.
Essas desfrutáveis tinham que enfiar na cabeça, de qualquer jeito, que qualquer futuro
flerte com seu marido não passava de um sonho, pensou Carissa.
Na verdade, não lhe agradava ver aquelas senhoras que haviam compartilhado a cama
com ele, ali, nessa noite, mas, como não conseguiria evitar se encontrar com elas em
sociedade no futuro, supôs que podia ser que também lhes oferecesse primeiro a
bandeira branca, como Tia Jo a aconselhara sabiamente.
Cumprimentou-as com dignidade, na fila de recepção, oferecendo a mão e aceitando
as felicitações, enquanto Beau se colocava ao seu lado.
Do outro lado do salão, por sua vez, Lorde e Lady Lockwood tratavam-se friamente,
enquanto tentavam entabular conversa.
— Isso bem me lembra o Congresso de Viena – sussurrou Beau no ouvido dela, vendo
as tensas negociações sobre a qualidade do tempo.
O verdadeiro progresso se alcançava quando as duas partes concordavam que haviam
visto a mesma coisa, ou seja, céu claro na última semana.
Beau e Carissa trocaram um olhar; por sua vez, os pais dele observavam os recém-
casados e se olhavam com nostalgia.
Tia Jo e Tio Denbury também haviam feito as pazes, agora que a arruinada sobrinha,
por algum tipo de milagre, havia se casado com segurança. De fato, ela havia conseguido
um feito brilhante.
Por fim, com a festa de vento em popa e tudo funcionando sem problema algum,
Carissa foi falar em particular com a anfitriã da noite.
— Foi muito gentil da tua parte, querida tia. Parece que todos estão se divertindo –
comentou, olhando toda a sala.
— Mas é claro que sim, querida! Eu te disse, simplesmente deixa tudo comigo.
Pôs o braço em volta dela e soltou uma leve gargalhada.
— Eu te agradeço por tudo, tia.
— Ora, meu bem, foi um prazer. Eu só queria estar aqui para o teu casamento. –
Carissa sorriu pesarosamente. – Quanto ao teu marido, é a coisa mais adorável que já vi!
Posso ver por que algumas dessas senhoras parecem tão tristes... A diversão delas
acabou. Vais ter que vigiá-lo – acrescentou com alegre cinismo. – Vem comigo, querida –
murmurou a tia. – Receio que tem algo que preciso te contar.
Franziu o cenho e acompanhou a tia até o terraço.
— O que é? Algum problema? – perguntou Carissa, inquieta.
Quando os convidados se afastaram do local, Tia Jo se virou para ela, que estava de pé
junto ao parapeito. Olhou em torno, depois respondeu em voz baixa.
— Vi Roger Benton em Paris. Não falei com ele, mas parecia mais licencioso do que
nunca. Ao que parece, encontrou inspiração para a poesia nos locais onde se fuma ópio.
— Oh! —murmurou Carissa, surpresa pelo assunto inesperado.
— Lamento te contar isto deste jeito, mas estou preocupada.
— Por quê? — sussurrou Carissa.
— Pelo que ouvi, ele está sem dinheiro. – Tia Jo olhou-a nos olhos gravemente. – Se
chegar aos ouvidos dele a notícia de que te casastes com um futuro conde, creio que ele
não hesitaria em voltar para conseguir outro pagamento.
Carissa prendeu o fôlego, seu coração batia descompassado. Ela levou a mão aos
lábios, sentindo o estômago repentinamente revolto.
—Tu não contastes nada para Beauchamp, não é?
—Não – sussurrou ela.
— Ótimo. Não vale a pena colocar em perigo a felicidade que encontrastes com ele.
Obviamente ele te adora.
— Será que o Senhor Benton voltaria mesmo para extorquir dinheiro de novo?
— Bom, ele já fez isso uma vez, e com o ópio trabalhando no juízo dele, tornando-o
inclusive mais desesperado, o que é que ele tem a perder?
— Mas o tio disse a ele para que nunca mais voltasse à Inglaterra! – Sussurrou Carissa.
— Eu sei. Mas esse sempre foi o perigo de manter esse segredo, querida. – Tia Jo
sacudiu a cabeça, preocupada. – Coloca-nos em constante perigo de chantagem. Mas tu
não estás sozinha nisso. Finalmente conseguistes uma verdadeira oportunidade de ser
feliz neste mundo, e depois de tudo o que passamos, minha doce menina... – colocou a
mão enluvada na face de Carissa – não vou permitir que ele ou qualquer outra pessoa
estrague isso!
De repente, ela se jogou nos braços da tia.
— Oh, meu Deus! E agora, o que vou fazer?! – Ele respirava entrecortadamente,
aterrorizada.
— Ora, querida, vamos, acalma-te. – Tia Jo a abraçou maternalmente por um instante,
depois segurou seus ombros e olhou-a com firmeza. – É muito simples. Se o Senhor
Benton tentar entrar em contato contigo de novo, quero que me procures imediatamente.
Eu vou te ajudar.
— Ajudar como? – perguntou ansiosamente.
Tia Jo encolheu os ombros.
— Simplesmente vou fazer mais um pagamento para ele outra vez.
— Talvez fosse melhor eu contar tudo para o meu marido.
— E se arriscar que ele te odeie? Não se pode confiar no ego masculino, querida. Achas
que só porque ele teve tantas amantes no passado, será condescendente contigo quanto
a isso? É claro que não. Os homens são completamente hipócritas, meu bem. Eles se
mantêm em um nível, mas para as mulheres, são outras regras. É mais fácil dançar
conforme a música e se poupar da dor de cabeça. Há uma boa chance de que ele nunca vá
te perdoar. Se quer meu conselho, uma mulher inteligente sabe quando deve manter a
boca fechada.
— Mas e-ele é diferente. Ele não é assim.
—Tu dissestes a mesma coisa sobre Roger Benton uma vez, lembra-te?
Carissa baixou os olhos, abalada pela notícia, mas depois de pensar um pouco,
entendeu que a tia tinha razão. Não tinha sentido arriscar a relação entre eles depois de já
ter conseguido acabar com o engano. Se Roger Benton voltasse procurando mais dinheiro,
ela pegaria uma das pistolas do marido e daria um tiro nele, afirmando que um
desconhecido havia tentado invadir a casa.
Para ter certeza de que seria uma forma de se livrar daquela nuvem negra que se
abatia sobre ela para ameaçá-la e continuar rondando-a pelo resto da vida.
Bom, reconheceu ela depois de um instante, talvez isso fosse mais uma fantasia do que
uma vingança, mas ainda assim, decidiu lidar com o problema por si mesma, com a ajuda
de Tia Jo. Não havia necessidade de sobrecarregar Beau com isso quando ele já tinha
tantas outras coisas importantes para se preocupar.
—Tu vais ficar bem? – murmurou a tia.
Carissa respirou fundo e assentiu, endireitando os ombros.
— Que remédio...
Tia Jo lhe dirigiu um olhar de encorajamento, enganchou a mão no braço dela e
voltaram para a festa.
— Ahá! Aí estás! Estava procurando minha esposa. – Beau se aproximou com grandes
passadas. Carissa esboçou um sorriso relativamente inocente.
— Estava tendo uma conversinha particular com minha tia favorita.
Elas trocaram um olhar.
— Que beleza! – disse ele efusivamente. Então parou. – Vós estáis..., devo me afastar e
vos deixar a sós?
— Oh, não, está tudo bem. Já terminamos – garantiu-lhe Carissa, enquanto a tia ria
entre dentes.
— O que é que tu precisas, Lorde Beauchamp?
— Creio que os convidados querem que comecemos o baile agora. Será que minha
esposa é corajosa?
Ele inclinou a cabeça para ela com um olhar alegre e lhe ofereceu a mão enluvada de
branco. Carissa a pegou e se deixou levar até a sala que havia sido preparada para o baile.
Caminhando ao lado dele através da multidão que os observava, sentia-se como se
estivesse flutuando. Como é que pôde uma mocinha comum como ela conseguir agarrar
alguém da envergadura dele?
Não conseguia parar de olhá-lo, miseravelmente apaixonada. Talvez a culpa estivesse
refinando suas emoções, pois acabou se sentindo como um pião, mais fascinada ainda
com cada sorriso, com o piscar daqueles olhos azuis e o resplendor da luz das velas no
cabelo de ouro.
Seu príncipe.
Por favor, não deixe que eu o perca!
Talvez Tia Jo tivesse razão. Não valia a pena arriscar o que haviam conseguido. Ela o
adorava. Sim. Faria o que tivesse que fazer.
A lua de mel havia terminado.
Beau não podia escapar desse fato, e quando chegou o dia seguinte, estava diante da
Comissão Especial mais uma vez. Mas, saber que sua pequena esposa o esperava em casa
lhe deu uma paciência recém-descoberta enquanto estava ali sentado, respondendo às
perguntas dos membros da Comissão.
A intensidade dos sentimentos por Carissa havia explodido de forma inexorável nos
últimos dias. Como consequência, ouvindo os burocratas crivando-o de perguntas diretas,
estava começando a se questionar se havia ou não agido mal arrastando-a para aquela
vida.
Não tinha muita opção sobre o momento adequado para se casar, mas talvez devesse
ter esperado até que aquele desagradável assunto estivesse resolvido. Temia que havia
sido um tanto arrogante com o futuro dela.
O que aconteceria se Ezra Green tivesse êxito na caça às bruxas? Será que conseguiria,
de alguma forma, pintar a Ordem como um antro de vilões? Não esperava que o pequeno
homem-lagarto, como Carissa o havia descrito tão bem, conseguisse tal feito, mas lhe
ocorreu agora, se bem que tardiamente, que se tudo aquilo acabasse indo para o inferno,
ele a arrastaria consigo. Esse pensamento gelou seu sangue.
Um motivo a mais para ter êxito na sua missão e encontrar uma maneira de superar o
terrível Senhor Green.
Durante a primeira hora, Beau abordou as preocupações dos tediosos políticos sobre
várias missões anteriores. Durante a segunda hora, falou sobre como a Ordem estruturava
as próprias finanças. Depois de um descanso, sentaram-se para a terceira hora de
interrogatório, e foi então que as coisas começaram a ficar incômodas.
Com a crescente pressão por ter se evadido do assunto durante semanas, viu que já
não podia se esquivar das perguntas de Green sobre onde Max e sua equipe haviam ido.
Beau se sentou tranquilamente enquanto os membros da Comissão praticamente
gritavam com ele. Se ele ficasse ali mais um pouco, poderiam até tirá-lo e linchá-lo em
praça pública.
— Você tem a obrigação de relatar a esta Comissão para onde eles foram!
— É uma missão delicada. Não vejo por que vocês precisam saber disso – disse ele.
— Nós não estamos lhe pedindo, Lorde Beauchamp! Se o senhor continuar por esse
caminho, haverá consequências!
— Por exemplo?
Green esfregou os pés no chão.
— O senhor não está em posição de nos fazer perguntas, Lorde Beauchamp! Deve
responder ao que lhe for perguntado. Agora, diga-nos, para onde foram e por quê!
— Mas eu não sei! – replicou Beau.
— Está mentindo, senhor! – Green trovejou, cuja voz ressou na austera câmara de
pedra.
— Nós sabemos que o senhor está escamoteando informações!
Beau se levantou também, endireitando o corpo.
— Está me chamando de mentiroso?!
— Mas esse é o seu ofício, não é verdade? Sua especialidade. Diz que não sabe para
onde foi a equipe de Lorde Rotherstone. Deus, sequer pode nos dizer para onde foram
seus próprios homens! Quão bom é o senhor? E para começar, por que estamos falando
com o senhor? Será que os Anciãos designaram deliberadamente um incompetente como
nosso contato? Porque o senhor, até agora, não fez nada mais a não ser nos fazer perder
tempo! Talvez lhe agrade passar uma temporada na Torre até que se lembre exatamente a
quem o senhor serve!
Beau se inclinou à frente, apoiando os dedos esticados sobre a mesa.
—Não-faça-isso. Não-me-ameace!
— Então coopere, ora! Como me disse que o faria.
Ele semicerrou os olhos, sopesando a probabilidade de que eles, na verdade,
jogassem-no na Torre. Era raro nos dias atuais, mas fariam um inferno de uma declaração
contra ele. Não que a ameaça o surpreendesse realmente. Era onde a Inglaterra
tradicionalmente havia posto os traidores, depois de tudo, e esse era o ponto que os
membros da Comissão estavam tentando realçar.
Talvez eles pensassem que a Ordem havia ficado poderosa demais ao longo dos séculos
e que o poder corrompia. Essa era a inevitável conclusão à qual o carola investigador
principal já havia chegado. Agora Green estava se agarrando a qualquer fato que
remotamente pudesse demonstrar tal teoria.
Beau viu que o momento de ceder havia chegado, mesmo que fosse só um pouco. Não
havia como informar à Inquisição sobre a possibilidade de Drake ter se tornado um
traidor, e muito menos o inquietante fato de que Nick havia sido contratado como
mercenário.
Para ganhar tempo, inclinou-se para seu advogado, providenciado pela Ordem.
Conversaram em vozbaixa por algum tempo. Beau assentiu de má vontade, depois
endireitou o corpo de novo.
O olhar rancoroso de Green se cravou nele com expectativa. Beau levantou o queixo.
— Tudo o que posso lhe dizer por enquanto, Senhor Green, é que a equipe de Lorde
Rotherstone foi enviada à Alemanha.
— Lorde Beauchamp, o senhor está realmente tratando de acabar com a paciência
desta Câmara. – Green soltou um suspiro. – Para qual dos principados alemães eles
foram? O senhor deve ser mais específico.
— Senhor, meus companheiros estão em uma missão muito delicada. Tudo será
revelado às autoridades competentes assim que esse assunto esteja resolvido. É assim
que a Ordem sempre trabalhou.
— Se o senhor ainda não notou, as coisas mudaram, milorde. Agora, tenho certeza de
que suas intenções são as melhores – disse ele com uma careta de desprezo. – No
entanto, temos que saber exatamente onde eles estão.
Lamento, Max.
Beau reprimiu um suspiro.
—Bavária.
— E por quê?
Beau se limitou a olhá-lo.
— Eles foram procurar o homem que matou Virgil Banks? – insistiu Green.
— Não, Senhor Green, os agentes só perseguem o assassino de Virgil porque ele é o
herdeiro designado ao poder pelos Prometeos. A Ordem não tem mandado para
perseguições particulares, para vinganças.
— Mas Virgil era o comandante dos senhores – destacou ele. – Treinou muitos dos
senhores desde que eram crianças. Pode ser que seus homens estejam querendo sangue.
— De fato, todos nós quisemos isso. A perda de Virgil foi um golpe terrível que todos
nós ainda sentimos até a medula. Mas cair na delinquência para vingá-lo iria contra tudo o
que ele nos ensinou.
— Muito bem – Green disse finalmente, arrastando a mão pelo ralo cabelo enquanto
se esforçava para aguentar a obstinação de Beau.
— E por que a Bavária?
Beau tamborilou o tampo da mesa com os dedos por um tempo, considerando o que
podia dizer com segurança sem comprometer a Ordem nem ninguém.
Por fim, respondeu lenta e deliberadamente:
— Recebemos uma informação da Inteligência faz um mês sobre um encontro dos
últimos líderes restantes dos Prometeos, que aconteceria em algum lugar dos Alpes.
— Mas supunha-se que eles já haviam sido destruídos! – exclamou outro membro do
comitê.
— Isso foi mentira, então? – disse Green bruscamente.
— Remanescentes; só os astutos sobreviveram – disse Beau friamente. Ele os olhou
por um instante. – Parece que os senhores não entendem no quão perniciosa essa
conspiração teria se transformado antes que a desbaratássemos pouco antes da batalha
de Waterloo. Os Prometeos estavam entrincheirados nas mais altas esferas do poder em
quase todas as cortes da Europa. Esse culto à morte, por falta de palavra melhor, só fez
crescer nos últimos séculos esses poderosos, e não foi pela publicidade de quem eram
seus membros.
— Quer dizer então, que a Ordem enviou três agentes da nobreza para acabar com eles
– disse, arrastando as palavras.
— Como é, senhor? – perguntou Beau, que não gostou nada daquele tom.
— Isso me parece uma imprudência. Eles não são homens que ocupam cargos valiosos
demais para serem desperdiçados? Qualquer soldado da infantaria poderia ter feito esse
trabalho tão bem quanto eles.
— O cargo deles não tem nada a ver com esse caso – encolheu os ombros. – Eles foram
porque são os melhores.
— E porque era pessoal – Green o incitou.
Beau fechou a boca e lutou por um instante para não morder o anzol.
Finalmente, disse:
— Se uma ameaça continua, é isso mesmo que eles fazem. Exatamente como a Ordem
sempre fez..., enquanto os senhores dormiam placidamente nas suas camas.
Os membros do comitê trocaram olhares irritados. Green o olhou.
— Assim que souber de algo, quero que nos comunique. Estamos entendidos? Quero
saber o que descobriu e que me mantenha a par dos seus progressos.
E eu quero um unicórnio mágico, pensou Beau, mas se limitou a sorrir.
— Será o primeiro a saber.
Capítulo
15
E nquanto isso, Carissa estava sentada na sua esplêndida carruagem, indo para

uma livraria particular em Russel Square, a qual era conhecida por ser um refúgio de
radicais.
Se a Comissão Especial estava investigando seu marido, ela decidiu que era um bom
momento para rinvestigar seus membros também.
O que Beau havia dito sobre Ezra Green e o antigo mentor deste, o tal professor que
havia caído em desgraça, parecia completamente suspeito.
Felizmente para Beau, ele havia se casado com uma consumada bisbilhoteira.
Para ter certeza, essa investigação a levava tão longe das águas pouco profundasdos
círculos da moda quanto ela estivera, no mundo estranho e um tanto desordenado dos
intelectuais e artistas de Londres.
Como se já não tivesse tido o bastante de poetas, pensou secamente.
Efeetivamente, a extravagante e pequena livraria de pedra perto do Museu Britânico
devia parecer um lugar estranho para se encontrar uma Viscondessa e sua criada em um
ensolarado dia de primavera. No entanto, ela havia planejado para estar ali, porque havia
lido no jornal que o professor Culvert daria uma conferência messe local, naquela mesma
tarde, para divulgar seu último livro.
Quando estavam se aproximando da livraria ela disse para Jamison, o cocheiro, que
não parasse ainda, que estacionasse um pouco mais abaixo.
Se parassem bem em frente à livraria, a ostentosa carruagem, presente de casamento
de Beau, ficaria amplamente visível pela janela da frente, e ela não queria chamar a
atenção de todos os presentes metidos a santinhos, bancando os puritanos.
Ela conhecia o tipo.
É claro, eles se espojavam no pecado e na corrupção, mas, em termos financeiros,
transformavam-se estranhamento nos mais santos da paróquia.
Eram os diletantes que confiscavam os bens materiais alheios e, no entanto,
estranhamente, sempre esperavam que os outros pagassem pela vida boêmia que
levavam – protestando contra os mesmos patronos aristocráticos que guardaram esses
mesmos bens a sete chaves.
Carissa meneou a cabeça. Roger Benton, de novo.
Ele bem podia seguir o mesmo tom de A Verdade e a Beleza,podia justificar todo tipo
de mentira e feiura – sedução, chantagem, etc – e, no entanto, ele continuou escrevendo
cegamente aqueles nauseabundos poemas de amor. E ainda se perguntava por que
ninguém queria publicá-los!
Ela estremeceu de ira reprimida. Na verdade, aquele canalha não sabia nada de amor.
Beau tinha muito mais poesia em uma risada do que Roger Benton em todos aqueles
sujos caderninhos. Apertando os dentes ao pensar na própria ruína, aceitou a mão do
condutor e desceu da caixa de joias que era sua carruagem.
Na companhia da criada, Margaret, que se arrastava, caminhou a curta distância até a
livraria. Com o coração disparado, fez uma pausa para olhar rapidamente para cima
esperando, quem sabe, um sinal de que essa não havia sido uma má ideia.
Só estava simplesmente sendo ela mesma, uma dama da informação – e esposa fiel.
Ela endireitou os ombros e foi ver todas aquelas estranhas pessoas sobre as quais ela e
Beau já haviam comentado: os cidadãos comuns, os amantes livres, os revolucionários de
mesa. Ela podia ter ficado um pouco nervosa por ir àquele lugar e estar entre aquelas
raridades, mas, no fim das contas, era apenas uma livraria.
A conferência já havia começado – ou melhor, o protesto. Ela entrou em silêncio
enquanto um velho de cabelos brancos e nariz vermelho de bêbado, vestindo um
enrugado casaco de flanela, estava barrando os que haviam distribuídos panfletos sobre
as Leis do Milho.
Ela captou a cena com um cauteloso olhar enquanto se dirigia ao interior da livraria.
Uma pequena multidão estava reunida nas fileiras de cadeiras na parte dos fundos, mas
alguns clientes estavam procurando livros para comprar e mal prestavam atenção à voz
que vinha de lá.
Margaret olhou para a livraria. A pobre criada, bem como o cocheiro, Jamison, não
tinham ideia do que estavam realmente fazendo ali.
Carissa não tinha certeza se sua criada sabia ler e escrever, mas lhe deu permissão para
dar uma olhada, caso quisesse comprar livros ou revistas.
Um empregado se aproximou, olhando-a com ceticistmo.
— Posso vos ajudar, senhora? – perguntou em voz baixa.
— Oh, sim! – Ela esboçou um insípido sorriso social. – O senhor teria romances
sobrenaturais?
Ele a olhou de alto a baixo, passando um olhar zombeteiro sobre o vestido na última
moda, como se dissesse: Eu devia saber.
— Na prateleira daquela parede, senhora. O último exemplar da Senhora Radcliffe
acabou de chegar.
Carrissa agradeceu com uma leve inclinação de cabeça e se dirigiu às estantes que
continham uma seção de sobrenaturaisespantosos, que valeu o desprezo de tais
vendedores de livros pelo mundo todo, apesar de serem esses que sustentavam as vendas
da livraria.
É claro que sequer as fortes vendas dos romances sobrenaturais não poderiam ser
comparadas à popularidade das coleções de ensaios religiosos pelos principais pastores
da atualidade.
Mas supunha-se que o professor Culvert e seus seguidores zombavam desses, também.
Como ela sumiu em meio às estantes, essa posição lhe deu uma visão melhor da
conferência em curso.
O professor Culvert nada fazia para inspirar o patriotismo nos corações ingleses e
parecia quase elogiar os americanos por matarem três mil soldados britânicos em 1.812,
em um território da fronteira chamado New Orleans.
Fingiu que examinava o último e arrepiante conto da Senhora Radcliffe enquanto ouvia
Culvert relatar, quase que com alegria, como a Inglaterra quase havia perdido a batalha
nessa guerra. Ela mal conseguia acreditar no que estava ouvindo.
Será que Culvert odiava o próprio país?! E como é – maravilhou-se ela – que ninguém
naquela audiência parecia se preocupar com o modo pelo qual aquela negligente preleção
depreciava o sacrifício dos soldados mortos?!
Quanto mais ouvia, mais crescia nela a angústia por pensar que um dos antigos
discípulos do chamado profeta havia segurado nas mãos o destino dos próprios
guerreiros.
Mas certamente ninguém estava levando a sério aquele delirante velho, pensou. Esse
deve ser o motivo pelo qual o Ministério do Interior sempre o soltou todas as vezes nais
quais ele havia sido detido.
O chamado profeta não era o vilão sinistro que havia esperado, mas alguém digno de
piedade, com os olhos esgazeados e transtornados, fazendo um monólogo contra o
mundo.
Pobre tolo, estava tão louco quanto o Rei – a quem ele, sem dúvida, odiava também.
Por outro lado, as pessoas que acreditam nele, pensou, talvez fossem as mais perigosas.
Contrariada, passou os olhos discretamente pela plateia.
Sim! – gritavam os enojados ouvintes, com óculos sujos e dedos manchados de tinta,
levantando os punhos fechados.
Havia ali meia dúzia de gatos pingados, trágicos artistas que parecia que tinham
acordado no chão de algum pub.
Acabou que a única mulher, depois de uma segunda olhada, era homem.
Os olhos de Carissa se arregalaram. Por que isso? Ela havia ouvido falar dessa gente,
mas nunca havia visto nenhum deles. Que ela soubesse, claro! Então se corrigiu
rapidamente e desviou o olhar.
Além de comuns demais, os ouvintes de Culvert pareciam ser artesãos, ou um rico
comerciante aqui e ali, a julgar pelas roupas sombrias.
Havia um sacerdote católico, que ela reconheceu pelo colarinho branco, esperando
para ouvir a posição de Culvert sobre a importante questão do voto católico. Ela ouvira tio
Denbury discutindo às vezes com os colegas. Viu também alguns dissidentes – quakers,
concluiu – pelo evidente estilo de roupa, mas não estavam sentados, apenas ouviam com
ceticismo, em pé, na última fileira.
Eles pareceram concordar quando o professor Culvert falou sobre o preceito de que
homem algum havia nascido melhor do que seus companheiros.
Pareceu-lhes justo. Mas, quando ele deixou escapar um comentário ridicularizando
Deus, eles menearam a cabeça, terrivelmente ofendidos, e saíram da livraria.
O sacerdote apenas franziu o cenho, mas talvez tivesse decidido perdoar setenta vezes
sete. Concluindo que já havia visto o suficiente, Carissa foi pagar o livro de Radcliffe, mas o
empregado havia corrido até a mesa do professor para pô-lo a par das consequências da
conferência.
O famoso Culvert Blake estava sentado agora diante de uma mesa, esperando para
assinar as cópias do seu livro para aqueles que quisessem comprá-lo.
Esperando que o vendedor voltasse, Carissa perambulava por ali perto.
Sentiu-se tentada a ir falar com o velho e comprar o livro dele, para entender melhor o
chão no qual uma flor nociva como Ezra Green pudesse ter crescido. Mas os radicais
rodearam seu herói e em seguida começaram a formular perguntas que fizeram com que
o velho professor expusesse uma centena de novos assuntos.
O homem gosta de falar, observou ela em voz baixa. Estava de pé, um tanto afastada,
esperando a vez para comprar aqueletolo romance sobrenatural.
Ela pegou uma ou duas revistas de moda só para espicaçar o pouco altaneiro
empregado, mas nem assim ele lhe deu atenção.
Com efeito, isso era extraordinário, pois como é que ela, uma jovem de berço, uma
Viscondessa, parecia ser invisível nessa parte da cidade. As pessoas naquela livraria
pareciam tê-la julgado no ato como uma senhorita de cabeça oca, só por causa da roupa
que estava usando. Iluminadas almas! A impaciência, então, tomou conta dela. Estava
prestes a deixar de lado o romance da Senhora Radcliffe e ir embora quando, finalmente,
algo interessante aconteceu.
Um homem muito alto e magro, com grande nariz e comovedores olhos de cachorro
que levou uma sova, aproximou-se impacientemente e estacou diante da mesa onde
estava Culvert.
— Senhor! – o homem cumprimentou o professor com ar de intimidade.
O professor parou de falar por um segundo. A essa altura, Carissa não teria acreditado
que fosse possível. Ele pestanejou para o homem em estado de choque e rapidamente
baixou a voz, olhando em volta.
— Charles! Mas o que é que tu estás fazendo aqui?!
— Lamento se perdi vossa conferência, senhor. Tivemos clientes que simplesmente não
iam embora, mas finalmente minha mãe me disse que eu podia vir.
— Espera um instante. – Culvert virou-se para o homem ao lado e despediu-o com um
gesto, pedindo um pouco de privacidade.
Todas as refinadas habilidades de Carissa como bisbilhoteira se puseram em alerta
total. O profeta se virou para o recém-chegado. O homem alto e sensível estava
aparentemente alheio à misteriosa ira do velho professor devido à presença dele.
— Parabéns pelo vosso novo livro, senhor!
— Vai embora daqui! – Culvert ordenou em voz baixa.
— Oh, mas está tudo bem! Eu só vim vos contar que minha última cena está quase
terminada. Espero que o senhor vá até Southwark para vê-la!
— Charles, foi um tremendo erro da tua parte ter vindo aqui. Tu deves ir embora
imediatamente. Usa a porta dos fundos. Aqueles malditos soldados..., eles sempre
mandam alguém para me espionar, e o mesmo deve chegar a qualquer momento.
— E daí? – Charles sorriu para ele com cumplicidade e baixou a voz. – Não tenho nada
a esconder. Não é mesmo?
No entanto, despediu-se do seu ídolo e retirou-se com uma respeitosa reverência.
Hmmm... Carissa ficou olhando para o homem, assombrada, no entanto, continuou
fazendo o máximo possível para fingir que estava cuidando dos próprios assuntos.
Pergunto-me se devo segui-lo... Mas então deu de ombros.
Ela havia ido ali por causa de Culvert.
Margaret a olhou fixamente quando saíram, um pouco mais tarde.
— Está tudo bem? – Carissa lhe perguntou.
— Eles estão loucos! Loucos! – exclamou a criada. – O que foi tudo aquilo, senhora?
— Não tenho a menor ideia. Devíamos ter ido à Hatchard. O atendimento lá é muito
melhor. E os frequentadores mais bem selecionados também.
Beau não estava em casa quando Carissa regressou, e era melhor assim, pois não sabia
o que dizer sobre a espionagem que havia feito mais cedo. Talvez fosse melhor não
sobrecarregá-lo com isso, também. Principalmente agora, pobrezinho; ele havia passado o
dia inteiro diante do Comitê, e provavelmente iria precisar de um pouco de ânimo quando
chegasse a casa.
Provavelmente não atingiria seu objetivo se lhe contasse onde havia ido. De fato, era
muito provável que tivesse o efeito contrário. Uma mulher casada e inteligente aprendia a
escolher as próprias batalhas sabiamente, depois de tudo, e essa não valia a pena.
Por que se arriscar a uma briga por confessar algo que não havia lhe fornecido
nenhuma informação útil e desnecessariamente incômoda?
Esquece-te disso.
A decisão estava tomada. Contar tudo, e ainda com aquela pequena e persistente culpa
por causa do pequeno segredo criado, era uma bobagem, disse para si mesma.
Por que deveria se culpar, quando o que estava tentando fazer era só ajudar? Certo,
não havia conseguido nada. E daí? Deu de ombros.
Deixa para lá.
Em todo caso, o sol de primavera estava tão atraente que quando chegou a casa
colocou o chapéu de palha de aba larga e saiu para espairecer um pouco no jardim.
Colocou uma cadeira na sombra e se divertiu folheando alegremente uma revista
feminina de variedades que havia acabado de comprar.
Com a luz do sol salpicando-lhe a saia e a suave brisa soprando no seu rosto, não
demorou muito a fechar os olhos e ficar dormitando, maravilhando-se de como estava à
deriva de forma tão satisfeita, e de como havia se acomodado tão bem à recente nova
vida.
Não sabia quanto tempo havia ficado descansando quando teve a sensação de que
alguém a observava. Assim que a consciência voltou a formar um pensamento claro, ela
assumiu que era o marido.
Ela havia dito aos criados para que não a incomodassem, mas que dissessem a Beau
onde estava assim que ele chegasse a casa.
Estava esperando que se unisse a ela, então, um sorriso sonhador curvou seus lábios,
como um dedo se arrastando pelo seu rosto. Então foi abrindo os olhos lentamente e
olhou para cima.
— O senhor!
— Acalme-se, Lady Beauchamp. Não vou causar-vosnenhum mal.
Ela se encolheu, o coração batendo com força e disparado. Diante dela, com toda a
calma, estava o estranho de cabelos pretos que havia visto naquela noite no Teatro
Covent Garden.
— Perdoe-me se tenho minhas dúvidas – obrigou-se a dizer, endireitando-se na
cadeira. – O senhor atirou em mim na última vez na qual nos encontramos!
— Eu não estava apontando para a senhora, como aposto que sabe muito bem, minha
senhora. No entanto, estou sinceramente arrependido pelo sofrimento pelo qual a
senhora passou.
O melhor amigo de Beau, Nick, fez-lhe uma pequena e irônica reverência de contrição.
— O que o senhor está fazendo aqui? – perguntou ela, recuando no assento para se
sentar mais atrás. – O que o senhor quer? Meu marido não está em casa.
— Minha querida Viscondessa, não deve dizeruma coisa dessas para um homem que
invade vossa propriedade. Tende isso em conta no futuro. Mas é claro que, no meu caso,
eu já sei disso. É com a senhora que eu vim falar.
Ela o olhou com receio.
— Para quê?
— Bom, principalmente para vos dar os parabéns pelo vosso casamento. Mais de uma
moça tentou e fracassou no que a senhora conseguiu. A senhora o ama?
— Como se atreve!? – exclamou ela, corando violentamente.
Tão moreno quanto Beau era claro, Nick lhe deu um sorriso que brilhava como a lua no
verão.
— Mas é claro que deve amá-lo. Todo mundo ama Beau. A pergunta é: ele vos ama?
— Como se atreve a fazer perguntas tão impertinentes?
— É apenas preocupação fraternal, só isso. A senhora deve informar ao nosso rapaz o
quanto estou decepcionado por não ter sido convidado para o casamento. Sempre pensei
que estaria ao lado dele no altar como seu melhor homem.
— Ele teria convidado, mas parece que o senhor estava se escondendo da lei – ela
caprichou no tom de reprovação.
O olhar dela desviou para a perna de Nick, pois ela se lembrou de que ele também
havia sido ferido naquela noite, no beco atrás do teatro. Ele notou o olhar de Carissa e
deu uma palmadinha na coxa.
— Não vos preocupais. Já tive ferimentos piores. Admito, o ferimento ardeu bastante. –
Ele apontou para baixo, mas a pontaria dele é ótima.
— E o senhor quase fez voar a minha cabeça!
— Ora, vamos, aquilo foi um acidente! E vós sabeis muito bem disso – informou ele,
embora uma ponta de culpa tivesse perpassado por trás daqueles olhos negros como o
carvão. – Está bem, eu sinto muito! Repito, sinto muito. Quantas vezes quereis ouvir isso?!
Ah, Senhor! Mulheres!
Carissa o olhou fixamente, completamente desconcertada com aquele homem.
Apesar de nervosa, sem dúvida, sentada ali com um homem que sabia que era um
assassino treinado, e mercenário ainda por cima, ela tentou manter o controle e pensar o
que seria melhor para ajudar Beau.
Ela sabia que o marido queria encontrar Nick.
Talvez ela pudesse retê-lo um pouco. Entretê-lo com alguma conversa e ganhar tempo
até que o marido voltasse para casa. Ele deveria estar de volta logo, do interrogatório.
Engoliu em seco e, junto, uma dose de coragem.
— O senhor sabe, Beau pensa que o senhor o traiu.
Nick soltou um suspiro.
— Sinto muito de novo, mas não posso me dar ao luxo de me preocupar com o que
pensa Beauchamp. Não é a vida dele, é a minha.
— Mas ele é seu melhor amigo, não é mesmo? – Nick olhou para o outro lado. – O que
foi que ele lhe fez para que o senhor lhe virasse as costas?
Ele revirou os olhos.
— Não tive escolha.
— Ele não renunciou ao senhor, sabia?
— É claro que não. É Beau. Ele não se dá por vencido por nada. Jamais.
— Ainda dá tempo de resolver isso, sabe…, o que está errado. Eu sei que ele não pensa
que o senhor é de todo mau – Lorde Forrester, certo? – Ela se aventurou, dirigindo-se a
ele pelo título. Ele assentiu com a cabeça, confirmando o nome.
— Olhai, Beau não fez nada de errado, como eu já vos disse. Sou eu o vilão aqui, todos
nós sabemos disso.
— Por que o senhor o traiu?
— Parai de fazer perguntas! Eu não traí ninguém! – replicou ele, com os olhos escuros
ardendo. – Sinto muito se estão vendo tudo dessa maneira, mas a Ordem não pertence a
mim!
Ela baixou o olhar.
— Por que não fica para jantar? Então poderá nos contar o que aconteceu e como
podemos ajudar. Eu, por exemplo, estou muito curiosa para saber como é que um Barão
acaba se transformando em mercenário.
Ele arqueou a sobrancelha.
— Ele vos disse isso?
Ela encolheu os ombros.
— Bom, sou esposa dele.
— E é por isso que estou aqui. – Ele a olhou com estranhesa. – Realmente não
entendeis do que se trata este momento, não é?
— Como é que é?
Ele rodou os olhos de novo.
— Deus, como vós sois ingênua! Nunca pensei que um libertino que nem ele fosse ficar
caidinho por uma mocinha tão delicada, mas não importa. Vim aqui porque quero que
entregue uma mensagem da minha parte ao nosso amigo em comum.
— Diga-lhe o senhor mesmo, ele vai chegar a qualquer momento.
— Poderia a senhora ficar quieta e me deixar terminar uma frase pelo menos?
— Cuidado, senhor, não vai me fazer calar como se seu fosse um cão de caça!
— Bom, então parai de uivar como um.
— Ninguém aqui está uivando. Se quer escutar uivos, acredite, posso fazer isso, e todos
os criados virão correndo. É isso que o senhor prefere?
— Lady Beauchamp – ele se corrigiu com profunda gentileza. – Por favor, podeis dizer
ao seu marido que vim aqui para visitar a senhora? Apenas diga que a senhora e eu
tivemos uma conversinha amistosa. E que ele supere isso.
Ela franziu o cenho.
— É essa a mensagem? – Ele assentiu, olhando-a nos olhos. – Bom, não é uma
mensagem muito interessante, não acha?
— Não vos preocupai – murmurou ele com frieza. – Ele vai entender. – Lorde Forrester
se levantou e se dirigiu ao portão do jardim.
Levantando-se da cadeira, Carissa procurou outro modo de retê-lo.
— Quer dizer então que o senhor vai saindo assim, sem mais nem menos...
— Está bastante óbvio, vós não achais? – e se foi, sem olhar para trás.
— O senhor é bem-vindo se quiser ficar! Não precisa ir embora! Espere, o portão está
trancado à chave!
— Não preciso da chave. Mas foi uma boa tentativa para me segurar aqui, Lady
Beauchamp – comentou ele, piscando por cima do ombro. – Apenas lhe entregue a
mensagem.
Quando ele desapareceu de vista atrás de um alto arbusto coberto de terra, ela
arrepanhou a saia e correu atrás dele. Maldição, volte aqui, homem incomodativo!
Ela podia ver por que eles eram amigos. Tinham muito em comum. A arrogância, a
personalidade... Sim, pensou, ambos eram igualmente exasperantes.
— Lorde Forrester! Nick! – gritou ela, justo quando ele deu uma corridinha para pular e
se segurar na beirada do muro de tijolos.
Ela praguejou baixinho enquanto ele saltava por cima do muro e pousaca do outro
lado. Logo o perdeu de vista, mas continuou ouvindo os passos dele do outro lado do
muro, afastando-se.
Perplexa com aquela estranha visita, ela colocou as mãos na cintura.
Muito bem! Quer dizer então que isso era tudo. Tinha certeza de que a reação de Beau
ia ser interessante, mesmo que a mensagem simples de Nick não o fosse.
No entanto, aquele breve visita a deixou inquieta. Foi muito atrevimento da parte dele
vir aqui, pensou. Por outro lado, estava aprendendo rapidamente que agentes da Ordem,
e até mesmo ex agentes, ao que parecia, não conheciam o significado da palavra medo.
Quando Beau finalmente chegou, contou-lhe imediatamente o que havia acontecido,
mas não estava preparada para a reação que ele teve. A qual foi, em uma palavra, raiva,
pura e simples.
— Ele veio aqui?! – trovejou ele. – Ele te causou algum dano? Juro por Deus, se ele
colocou um só dedo em cima de ti...!
— Não, eu estou bem! – Ela se encolheu ligeiramente, porque nunca havia visto o
tolerante marido agir daquela forma antes.
— Ele te causou algum tipo de dano, Carissa?
— Não! Ele só me surpreendeu um pouco, no início. E foi bastante amável. – Ela
meneou a cabeça. – Mas..., foi a coisa mais estranha! Ele se desculpou pelo tiroteio,
depois nos parabenizou pelo casamento. Mas o principal é que ele queria que eu te
entregasse uma mensagem.
— Que mensagem? – grunhiu Beau.
— Não é muita coisa – disse ela encolhendo os ombros. – Ele só queria que eu te
dissesse que ele esteve aqui.
— E de fato ele esteve – disse Beau em tom gélido. Praguejou baixinho e se afastou,
fervendo de raiva. – Mas que filho da puta!
Ela franziu o cenho, desconcertada.
— Estou perdendo alguma coisa…? – Ele a olhou de soslaio. – Conta-me! – Insistiu.
Foi a vez de ele franzir o cenho.
— Ele estava te ameaçando, Carissa.
— O quê?! Não! Certamente tu estás errado...
— Não, não há erro algum. Não deixou óbvio o significado porque não quis te assustar.
Fico satisfeito de ver que pelo menos teve a decência de não assustar uma mulher. Não –
disse ele. – A mensagem era para mim.
— Não entendo, o que significa essa mensagem?
Ele a olhou gravemente. Ela podia ver que ele não queria lhe dizer.
— Por favor! Se isso diz respeito a mim de alguma forma…
— Foi uma advertência. Se queres mesmo saber, ele estava demonstrando que pode
chegar até ti quando bem entender.
Os olhos dela se arregalaram, enquanto Beau continuou exaltado, quase tremendo de
tanta raiva.
Ela se sentiu desfalecer.
— Oh, querida!
Bem, quando o marido colocou a coisa toda dessa maneira... Engoliu em seco. Aquele
era, depois de tudo, o homem que havia disparado contra ela.
— Tu achas mesmo que ele vai tentar me…, matar?
— É difícil dizer. O Nick que eu conheço nunca faria mal a uma mulher. Espero em Deus
que ele esteja mentindo. Mas, nos dias de hoje, quem diabos pode saber? – Sacudiu a
cabeça com fúria inquietante. – Decerto ele está metido em um maldito monte de
problemas, porque certamente não está agindo como ele mesmo.
— Mas po-por que ele iria querer me causar dano? – exclamou, tremendo e ainda
abalada pela notícia. – O que foi que eu fiz para...?
— Meu bem, a única coisa que tufizestes, foi te casares comigo. Esse foi teu único erro
– murmurou ele. – Só que isso não tem nada a ver contigo. Trata-se de atingir a mim.
Porque não fiz o que ele me pediu e não chamei meu pessoal. De fato, coloquei ainda
mais pressão sobre ele através de observadores e informantes desde aquela nossa última
conversa. Devo ter sacudido um pouco a jaula dele. Mas, mesmo assim! Aproximar-se da
minha esposa?! Vou tirar sangue da cabeça dele por isso!
Beau parecia a ponto de quebrar a cabeça de qualquer que se aproximasse demais
dele naquele instante. O homem estava literalmente grunhindo para si mesmo.
— Tu estás me assustando… - murmurou ela, intimidada por tamanha ira.
Ele lhe deu um olhar turvo, depois fechou os olhos e esfregou a testa, esforçando-se
visivelmente para se acalmar. Com as mãos nos quadris, ele inspirou profunda e
lentamente e soltou o ar devagar.
— Desculpa-me. – Quando abriu os olhos de novo, já tinha dado um jeito de suavizar a
expressão e olhou-a com os olhos cheios de tristeza enquanto meneava a cabeça.
—Lamento muito não estar aqui para te proteger. Aqueles políticos sanguessugas me
mantiveram uma hora a mais do que eu pensava demorar! Mas tu precisas saber de uma
coisa: aconteça o que acontecer, eu vou te manter a salvo. Eu te dou a minha palavra
solenemente sobre isso.
— Eu sei que tu vais fazer isso, marido. – Ela assentiu com a cabeça, aproximando-se
com cautela. – E, realmente, não aconteceu nada desde então e até agora. Eu te garanto
que estou bem.
Ele a atraiu para os seus braços e a abraçou apertado por um instante. Ela podia sentir
aquele grande corpo ainda ferozmente eriçado com raiva protetora, enquanto a protegia
naquele abraço.
— Normalmente, eu te enviaria agora para a fazenda onde estão as outras damas que
estão sendo vigiadas vinte e quatro horas. Mas Nick é um agente da Ordem. Ele conhece a
localização de todas as nossas casas de segurança – beijou-a na testa enquanto pensava
sobre o assunto. – Não – murmurou finalmente. – Creio que agora o lugar mais seguro
para ti é ao meu lado. E se ele se aproximar de ti outra vez, vou fazer a cabeça dele voar
pelos ares!
— Não deveríamos procurar algumas respostas, primeiro? Temos que averiguar o que
está acontecendo com ele.
— Mas é claro! Tu tens razão. Informação! Vickers! – gritou de repente.
O mordomo chegou apressado.
— Sim, milorde?
— Prepara nossas coisas. Vamos para a França.
— À França?! – gritou Carissa, recuando e saindo dos braços dele. – Do que estás
falando?!
— Vamos chegar ao fundo disto. Tenho uns dois dias antes de voltar a me apresentar
diante do Comitê. Deve ser o tempo justo para chegar em Paris e voltar, mas vamos ter
que agir rápido. Tu tens razão. Precisamos de informações. Não tenho ideia do que está
acontecendo com Nick, mas conheço alguém que sabe. Preciso falar com Madame
Angelique.
— E quem é essa? – questionou ela.
— A harpía intrigante que o corrompe, aposto. Fala para a tua criada preparar uma
maleta para ti também. Agora corre. Não há tempo a perder. – Ele apontou com a cabeça
para a escadaria, o olhar pétreo. – Vamos navegar contra a corrente.
Capítulo
16

H oras mais tarde, estavam cruzando o canal em uma elegante embarcação de

propriedade da Ordem. Um excelente vento forte os impulsionava à frente, até o


continente.
Acima deles, o céu negro estava cheio de estrelas e a lua prateava as ondas. Carissa
subiu até a coberta e encontrou Beau de pé junto à amurada, nariz ao vento, de perfil
para ela, como ele fazia diante dos mares ondulantes, um lugar fresco, mas os traços
cinzelados estavam intensamente endurecidos. A forte brisa tirou seus cabelos do rosto e
jogou-os para trás, e os mesmos ficaram ondulando ao vento.
A claridade da lua brilhava sobre suas botas pretas e as diversas armas distribuídas
pelo corpo esculpido. Ele parecia formidável e mortal, e, no entanto, ainda um cavalheiro,
em cada centrímetro daquele corpo.
Olhando-o, ela sabia que ele podia lidar com qualquer coisa que os inimigos lançassem
contra ele. E mal podia acreditar que ele era seu.
Sentindo a presença dela – talvez seu desejo por ele se irradiasse para submergi-lo, ele
se afastou da amurada e, quando a viu, estendeu a mão para que ela fosse até ele. Carissa
ficou imóvel. Ela se sentia um pouco nervosa por chegar tão perto da beirada, mas não
conseguiu resistir.
Aventurou-se através do resvaladiço vai e vem da coberta e juntou-se a ele junto à
amurada. Ele a abraçou e a colocou diante dele, para que tivesse uma melhor vista das
ondas e das cristas de espuma. Mantendo o braço em volta da cintura dela, deixou que
seu grande e quente corpo bloqueasse um pouco o vento.
Enquanto a abraçava, podia sentir a incansável energia zumbindo através dele com
tudo o que estava acontecendo. Seus pensamentos eram um pouco mais primitivos.
Apoiou a cabeça contra ele, perguntando-se se era errado querê-lo tanto todas as
vezes que se tocavam.
— Lindo, não é? – murmurou ele no ouvido da esposa. Ela soltou um som baixo de
concordância; o redemoinho contínuo das ondas a hipnotizava. – Tu estás bem, depois
daquele desagradável episódio de hoje? – sussurrou-lhe ao ouvido. – Fiquei preocupado
contigo.
— Fica tranquilo, estou bem – insistiu ela, acariciando-lhe o braço para que ele
soubesse que a mulher de um agente da Ordem não seria tão fácil de intimidar. –E quanto
a ti – ela meneou a cabeça. – Isso tudo deve ser muito duro para ti. Ter um amigo que se
volta contra ti dessa maneira...
Ele ficou em silêncio, cismando. Em seguida, encolheu os ombros.
— Pelo menos é melhor do que pensar que estão mortos. Esse era o meu maior medo
antes que Nick finalmente aparecesse naquela noite, no beco atrás do teatro. Mas posso
te dizer uma coisa. Eu não esperava algo assim, com certeza.
— Pobre homem – disse ela, recostando-se contra ele. – Tu tens tido coisas demais
sobre os ombros. E tem uma coisa que te magoa muito, também. Um amigo, com cuja
ajuda pensastes que podia contar, mas ele só fez piorar as coisas para o teu lado.
— Sim, bom... sussurrou ele tristemente. – Mas eu tenho um novo amigo agora. – E
beijou-lhe a face.
Ela sorriu, sem parar de olhar adiante, para a apaixonada e poética massa de água,
embora muito consciente do corpo dele contra o seu.
— Hmmm... Tu estás cheirando tão gostoso... – disse ele, colando o rosto ao dela
enquanto o vento soprava os cabelos de ambos. Ficaram em silêncio enquanto pensavam
na própria situação um pouco mais. – Creio que é principalente Trevor quem me
preocupa. Lorde Trevor Montgomery – explicou. – O terceiro homem da nossa equipe. É
assim que a Ordem dispõe os agentes, em equipes, entendes. Equipes de três pessoas
que, geralmente, agem de forma independente, mas às vezes se unem a uma equipe
maior para as grandes missões.
— Oh.
— Nick está mantendo Trevor como refém para tentar impedir o habitual castigo por
ter desertado da Ordem.
— E qual é o castigo? – perguntou ela.
— Uma bala. – Ela se virou para ele e empalideceu.
—Vão matá-lo?! – Então ela prendeu a respiração. – Mas eles não vão fazer com que tu
faças isso, não é? Ele é teu amigo! – Ele negou com a cabeça.
— Depois de hoje, meu bem, com ele indo atrás de ti daquela maneira, não creio que
haja amizade alguma mais.
— Não te dês por vencido, Beau. – Seu coração sofria por ele. Ela se aproximou e o
abraçou. – Não descartes nada ainda, especialmente, não por minha causa. Eu sequer
estava tão assustada assim! Pode ser que haja uma boa explicação para tudo isso.
— Sendo assim, por que ele não me falou nada antes, então?
— Talvez ele esteja tentando te manter fora disso. – Ele considerou tal hipótese.
— Quando me ofereci para ajudá-lo, ele respondeu que luta sozinho as próprias
batalhas.
— Estás vendo? Eu gostaria, sinceramente, que tu não tivesses que passar por tudo
isso. Mas tenta não tomar decisões precipitadas e definitivas sobre ele até ficarmos a par
dos fatos. Às vezes, quando a gente faz coisas erradas, sempre tem uma boa razão por
trás. Talvez, independente dessa coisa toda com Nick, as coisas não sejam tão ruins
quanto parecem.
Ele apoiou o queixo contra a cabeça de Carissa.
—Tu és uma pessoa muito doce, sabias? Estou feliz por ter me casado contigo.
— Eu também! – Ela sorriu, e Beau a beijou no alto da cabeça. – Também estou feliz
por ter deixado que eu viesse contigo– disse ela. – Nunca estive na França, sabes.
— Bom, tu sabes que não ficaremos lá por muito tempo. Vou te levar de novo em outra
ocasião mais adequada para passar umas férias, quando tudo isto terminar.
— Eu gostaria muito de ir!
Ela o olhou, e nesse instante ouviram um dos tripulantes gritar as horas, onze, e alguns
deles fizeram alguns ajustes nas velas. A viagem noturna era arriscada, mas o capitão
conhecia muito bem a rota; Beau havia escolhido o manto da escuridão para a chegada
deles.
A guerra havia terminado, mas, depois de vinte anos de banhos de sangue, os
camponeses franceses nem sempre eram muito acolhedores com ingleses que viajavam
sozinhos, contou Beau. Chegar antes de o sol sair significaria menos olhos para ver e
informar quem quer que fosse sobre seus movimentos.
— Mas então, para onde vamos, de qualquer forma?
—Tu não vais a parte alguma. Vais ficar na carruagem.
— Oh! Tenho mesmo que ficar?
— Sim. Assim é a espionagem, milady.
— Mas por quê? – protestou ela.
— Por três motivos.
Ele apertou os braços em torno da cintura dela, apoiando o queixo contra o seu cabelo.
O vento açoitava a ambos.
— É muito perigoso. Está cheio de gente mal-encarada e não é o tipo de lugar ao qual
um homem quer que a mãe dos seus futuros filhos se exponha.
Tal resposta a deixou ainda mais intrigada, mas era sensível o suficiente para aceitar as
firmes ordens dele nesse sentido.
— Bom, e quem é essa mulher que mencionastes, então? Tu podes me dizer isso, não
é?
— Hmmm... Madame Angelique. Durante muito tempo ela foi um contato da Ordem. –
Carissa o olhou com surpresa.
— Quer dizer que ela é espiã, também?
— Angelique é muitas coisas. Mas principalmente, é uma sobrevivente. Quando a
revolução francesa estourou, ela era a mocinha bonita das mulheres mundanas. A amante
de dezesseis anos de alqum duque que foi para a guilhotina. Mas, de alguma forma ela
sobreviveu ao terror vermelho. Deve ter encantado os homens certos quando os ventos
mudaram de direção. Agora ela é proprietária de um grande cassino nos arredores de
Paris, parte bordel, parte casa de jogo clandestino. Ficou rica e bastante poderosa, em um
tipo de submundo.
— O que significa isso?
— Ela pode conseguir qualquer coisa que alguém quiser comprar.
— É mesmo?!
— Ela cuida de tudo, desde os segredos sobre armas até..., hã..., diversos tipos de
prazer à venda. É uma espécie de banqueiro, também, para empréstimos que precisam
ficar fora dos registros. Harpía intrigante – grunhiu ele. – Apostaria qualquer coisa que foi
ela quem ajudou Nick a tramar essa ideia de alugar as habilidades dele como mercenário.
Ele já fez acordos particulares com ela no passado.
— Que tipo de acordo?
— Não sei se tu vais querer saber. Bom, não é o tipo de coisa que um homem fala com
sua esposa, ora!
— Certo..., então! – Ela se virou para ele com um malicioso sorriso. – Se acontece que
essa esposa é uma dama da informação, então o marido seria cruel por esconder isso
dela.
—Tu és demais! – murmurou ele.
— Vamos lá, conta-me – ordenou ela com olhar malicioso.
— Está bem. – Ele pigarreou, meio reticente. – Até onde eu sei, Angelique andou se
enrabichando por Nick uma época. Ela..., ela gosta dos agentes da Ordem.
— Sério?
— Então ela permitiu que ele pagasse as dívidas de jogo que havia acumulado no
cassino de uma forma bastante simples.
Carissa arqueou as sobrancelhas.
—Tu não estás querendo dizer que...?
— Deduzistes certo. Foi isso mesmo – respondeu ele secamente.
— Quer dizer então que agora a ex prostituta pode se dar ao luxo de bancar o cliente
rico?
— Exatamente isso.
— Meu Deus! – Ela pensou um instante. – Pobre Nick.
— Ah, não creio que ele se importe com isso tanto assim – respondeu Beau.
— Entendo. Isso quer dizer que essa Angelique é muito bonita, não?
— Não tão bonita quantotu – ele respirou fundo, roçando os lábios quentes ao longo
da lateral do pescoço da esposa. – Falando nisso, ainda temos algum tempo de sobra pela
frante. Vem comigo para a cabine.
Cativada por aquele sussurro, ela o olhou timidamente com o canto dos olhos. Ele
pegou sua mão e a levou para longe da amurada com um convite sensual nos olhos. Ela o
seguiu com muita avidez.
Quando saiu do barco, Carissa estava maravilhosamente esgotada pelo ardor do
marido. Esse homem, franco e simples, era um verdadeiro puro-sangue, pensou, e quase
insaciável nisso.
Nessas condições, era impossível ter a mínima preocupação acerca de qualquer coisa à
qual estavam enfrentando. Ela estava completamente saciada, olhando para o dínamo
com o qual havia se casado, enquanto os marinheiros remavam para a terra, onde um
punhado de homens armados da casa de segurança da Ordem, na cidade portuária de
Calais, esperavam por eles com uma carruagem.
Imediatamente depois, estavam viajando outra vez, rumo ao estabelecimento da
misteriosa Madame Angelique. As estradas da França não eram tão boas quanto as da
Inglaterra devido aos danos causados pela guerra. Mas, apesar da viagem por estradas
cheias de buracos, ela dormia feito um bebê dentro da carruagem, apoiando-se no
homem que a satisfizera tão profundamente no barco.
Com os cavalos a trote a noite toda, Beau a amparou, perdido nos próprios
pensamentos. Carissa não sabia quanto tempo havia se passado quando ele acariciou sua
cabeça para acordá-la e lhe disse que haviam chegado. Ela ainda estava aturdida pelo
sono ao se sentar para olhar pela janelinha.
Várias tochas ardiam à entrada de um antigo castelo com torres, rodeado de cercas de
ferro forjado e um parque densamente arborizado. O imponente inferninho do bordel e
da jogatina tinham um palpável ar de decadência e decomposição.
— Oh, Deus! Esse é o tipo de lugar ao qual tuas missões te levam amiúde?! –
perguntou ela em um murmúrio duvidoso, olhando para o edifício.
— Às vezes. – Respondeu Beau, dando uma última conferida nas armas. Pistolas
debaixo do casaco. Punhal na bota. – Tu ficarias surpresa com as informações que se pode
conseguir em um lugar como esse.
— E doenças também, atrever-me-ia a dizer.
— Fica fora de vista, e não te exponhas. Não vou demorar. Se houver algum problema,
faz exatamente o que os meus homens te disserem.
Ela concordou com a cabeça.
— Vou fazer isso. Mas tem cuidado, meu bem.
— Não te preocupes.
Ele se despediu com uma descontraída piscada de olho, referência íntima ao que
haviam compartilhado, ato contínuo se dirigiu ao castelo.
Capítulo
17

Q uando Beau entrou no cassino, o lugar estava tão barulhento, enfumaçado e

profano quanto ele se lembrava.


Notou com surpresa como recuou intimamente. Não fazia tanto tempo assim que ele
sequer havia notado o ambiente, apenas reagiu à dissipação que viu por todos os lados.
As mesas estavam apinhadas de gente bem vestida jogando a vida fora em outra rodada
de dados. O crupiê do black-jack embaralhava as cartas e a roda da roleta girava. As
damas da noite tentavam tanto os ganhadores quanto os perdedores com a própria
mercadoria.
Um suntuoso banquete estava sendo oferecido no salão de refeições, onde havia uma
fonte de champanhe. Ele começou a perambular por ali, procurando a proprietária do
cassino, passando por uma sala pouco iluminada onde havia um cenário montado para
representações teatrais de mau gosto.
As putas, tanto mulheres quanto homens, estavam em atividades exóticas que
envolviam amarras de couro e gotejamento de cera quente.
Bem, Madame Angelique não havia sobrevivido ao terror vermelho por ser delicada,
pensou, mas ela era uma dama da informação de tal nível com o qual Carissa jamais
poderia ter sonhado. A Ordem havia usado a astuta francesa, mulher de negócios, em
serviços de inteligência.
As notícias que grassavam pelo cassino vinham de todos os cantos da Europa. É claro,
só um tolo confiaria demais nela, pois mesmo que os informes dela geralmente
demonstrassem que era de confiança, ela era perfeitamente sincera sobre o fato de que o
único princípio que tinha na vida era o frio egoísmo.
Ele a viu, estava do outro lado da sala de jogos cheia de fumaça, na parte dos fundos:
joias brilhando na penumbra, cabelos com as pontas levantadas, lábios pintados de
escarlate. Usava um vestido preto justo com decote profundo na frente e nas costas,
mostrando um corpo que era difícil acreditar que tinha pouco mais de quarenta anos. Mas
Angelique havia sobrevivido ao fim do mundo devido ao poder de sedução que tinha, e
ele bem sabia disso, então, compreensivelmente, havia trabalhado duro para conservar o
que havia conseguido.
Levando o copo de champanhe aos lábios enquanto mantinha sua corte de clientes, ela
o viu chegando, com o rabo dos olhos.
Beau viu que ela estacou e empalideceu muito de leve quando o viu, e no mesmo
instante temeu que a situação com Nick pudesse ser pior do que havia pensado. A não ser
a guilhotina, nada abalava Angelique. Ela disfarçou a momentânea palidez enquanto ele
se inclinava sobre a mão que lhe era oferecida.
Anéis de pedras preciosas que lhe enfeitavam os dedos piscaram para ele, cujas mãos
estavam com luvas pretas de cetim até os cotovelos.
— Meu querido Sebastian – ela lhe deu as boas-vindas.
—Ma belle enchanteresse². É sempre um prazer vos rever – respondeu ele, beijando-a
obedientemente nas faces.
— Então, o que vos trouxe ao meu humilde estabelecimento?
— A preocupação com um amigo – respondeu Beau em voz baixa. – Temos que
conversar.
Os olhos dela, cautelosos, estreitaram-se. Então deu aos subordinados uma ordem
cortante, depois se virou para ele.
— Está bem – murmurou ela. – Siga-me.
E se levantou da cadeira. Beau a seguiu até um canto íntimo decorado com cortinas de
veludo vermelho que fedia a fumaça de cigarro. Com um gesto, Madame encarou uma
moça quase nua que trouxera um brandy para ambos.
—Merci, petite³. – Beau pegou um copo e o entregou à anfitriã. – A votre santé4. – Em
seguida, tomou um gole para mostrar auto-confiança. – Excelente – disse ele.
Ela sorriu friamente.
— Só o melhor para os meus amigos particulares.
—Espero que saibas por que estou aqui.
— Não me atreveria a supor.
Ele sorriu.
— O que foi que fizestes com Nick?
Ela baixou os olhos, tamborilando os dedos sobre a mesa por um instante.
— Não é prudente se intrometer nos assuntos de um amigo, mon cheri. Alguém pode
sair machucado.

² Do francês: Minha linda feiticeira.


³ Obrigado, pequena.
4 À sua saúde.
— Quer dizer então fostes tu quem o meteu nisso.
Os escuros olhos de Madame Angelique pestanejaram, mas ela devia ter se dado conta
de que não tinha sentido tentar enganá-lo. Ela deu de ombros.
— Não tenho nenhuma escassez de inimigos, e nosso Nicholas é muito talentoso..., de
muitas maneiras.
Abela traidora esboçou um sorriso de cumplicidade. Beau a olhou fixamente.
— Se é que ele estava em dívida contigo outra vez. Já não bastava que ele trabalhasse
na tua cama, como antes?
Ela desatou a rir alegremente, mas havia uma nota dura naquela risada.
—Tu bem sabes que tenho uma fraqueza pelo teu rapaz. Eu admito isso. E ele é um
amante feroz, podes ter certeza. Mesmo quando não põe o coração no ato – acrescentou
cinicamente. – Inclusive ele não se importa de ser amarrado, o que, lembro-me bem, tu
não deixavas que eu fizesse...
Beau sorriu, incômodo. Outro motivo pelo qual havia dito a Carissa que esperasse por
ele na carruagem. Ele devia lhe dar uma coisa, no entanto. Aquela rameira conhecia seu
ofício.
— No entanto, – continuou – sempre coloquei os negócios à frente do prazer. Receio
que Cher Nicholas me deve uma grande quantia em dinheiro. Assim sendo, pensei que
devíamos tentar algo novo.
— Foi então que decidistes entrar para o comércio mercenário?
— Não era essa a minha intenção. Mas, faz uns seis meses recebi algumas ameaças de
morte muito incômodas. – Ela encolheu os ombros. – Deixei então que Nicholas lidasse
com meus inimigos por mim, e foi tão eficiente nisso que me dei conta de que isso
poderia ser uma nova empreitada lucrativa para ambos. Tu sabes que lidei com armas e
munições durante anos – disse ela, levando o copo aos lábios. Tomou um gole e disse: –
No passado, sempre ofereci o produto, mas o serviço, nunca. Foi então que me dei conta
do quão oportunista sou. Começando com Nick, eu poderia montar uma equipe estável
de rapazes maus que estivessem dispostos a trabalhar pelo ouro. Eu tenho os contatos.
Tenho o trabalho, então, era só administrar os rapazes do mesmo jeito que faço com
minhas meninas. Ele faria o resto e todo mundo ficaria feliz.
Beau a olhou, tomando um gole de brandy.
—Tu és uma mulher infernal, Angelique. – Ela fez um gesto tímido, a guisa de
agradecimento. – E então, tem sido tão rentável quanto tu esperavas?
— Ei, novas empresas sempre se desenvolvem devagar no início. Há que se ter
paciência. Felizmente, o mundo lá fora é perigoso. Muita gente precisa da nossa ajuda.
Mas tenho que ser seletiva com meus homens. Nick é sólido como uma rocha, é claro.
Mas ainda tenho que encontrar mais alguns iguais a ele.
— Não espere tanto.
Ela encolheu os ombros.
— Se tiverem o talento inato, o instinto assassino, ele pode treiná-los. No entanto, ele
não tem muito tempo para tanto. É apenas um homem, mas já viu o ritmo constante no
qual estamos desde que começamos faz alguns meses.
Beau negou com a cabeça.
—Tu sabes que isso é inaceitável para a Ordem.
— Nick abandonou a Ordem, Beauchamp.
— Não é tão simples assim – sussurrou ele. – Ele está sob tuas ordens. Entende a
posição na qual tu me colocastes, e a ele também? Ele está na Inglaterra para matar
alguém. Não posso permitir que isso aconteça. Preciso saber sobre o teu atual contato.
—Tu precisas é te ocupares dos teus próprios assuntos, isso sim, querido. Isto aqui não
é da tua conta. Eu já te disse mais do que devia. Quanto ao teu homem da Ordem... Sou
incapaz de fazer alguma coisa que não seja usufruir de ti.
— Ouve – Beau se aproximou mais. – Virgil foi assassinado...
— Sim, fiquei sabendo. E sinto muito por isso. Sei o quando ele significava para todos
vós.
Ele fez uma pausa, esperando que um grupo de pessoas passasse.
— O que tu não sabes é que a morte dele atraiu a atenção indesejada do governo
britânico sobre a Ordem – informou ele em voz baixa. – Agora estamos sob investigaçãodo
Ministério do Interior. – Ele fez uma pauza, mas conseguindo acreditar nessa realidade,
enquanto falava. – Estão tentando nos pintar como perigosos, sem lei, dados a motins,
sediciosos. Exatamento como Nick está agindo.
Ela o olhou com surpresa. Era a primeira vez que Beau havia visto nela um olhar
surpreso assim.
— Mas que absurdo!
— Eu sei. Mas é a verdade. Eu disse a Nick o que estava acontecendo, então ele me
enfrentou em Londres para me dizer que ficasse fora do caminho dele – explicou. –
Quando lhe falei sobre a investigação, ele simplesmente deu de ombros. Com a
deslealdade pessoal da parte dele para comigo e com essa investigação em andamento,
escute o que estou te dizendo, ele não pode entrar no nosso país, levar a cabo essa
missão e ter a esperança de escapar sem chamar a atenção do governo. Ele vai ser preso,
e quando ficarem sabendo que tem um agente da Ordem por trás do golpe, é a desculpa
que eles precisam para que enforquem todos nós. Ele precisa ser detido. Chama-o de
volta.
Ela o observou por um instante.
— Essa investigação – murmurou ela. – Eles estão por trás disso?
Os Prometeos. Sequer a poderosa Madame Angelique se atrevia a dizer esse sinistro
nome no próprio estabelecimento.
— Não que eu saiba – respondeu ele em tom mais baixo, olhando em torno. – Há algo
sobre um grande encontro deles na Alemanha por esses dias. Não ouvi mais nada sobre
eles nas últimas semanas.
— Nem eu.
Ela cumprimentou com a cabeça alguns visitantes recém-chegados, mas não os
chamou para se juntarem a eles.
— Espero que agora tu entendas por que deves cancelar o golpe.
Ela o olhou, inquieta.
— Eu faria isso se pudesse, Beauchamp. Mas não posso.
— Não brinca comigo, é claro que podes! Tu tens que cancelar. Se for questão de
dinheiro...
— Não se trata disso. É que não tenho como detê-lo – murmurou ela. – Não sei onde
ele está. Foi ele que quis assim. Ele conhece o negócio melhor do que eu, então aceitei. –
Cruzou os braços sobre o peito, na defensiva. – Por razões de segurança ele disse que
cortaríamos todo contato até que o trabalho estivesse feito. E só vai voltar quando
terminar o serviço para pegar a outra metade do pagamento. Até então... – ela meneou a
cabeça. – Não tenho nem como chegar até ele.
Beau praguejou baixinho, sem saber se devia acreditar nela ou não.
— Então,diz-me quem é o alvo. – Talvez possa chegar a ele pelo outro lado e proteger a
vítima, se não puder impedir a ação do assassino.
— Isso não nos foi revelado – respondeu ela. – O cliente me disse que enviaria meu
homem a Londres, onde ele receberia instruções. E foi o que eu fiz.
— Estás me dizendo que concordastes com um serviço desses às cegas?!
— E o que é que isso importava a ele? Tu sabes tão bem quanto eu que não é raro que
informações só sejam compartilhadas quando necessário – respondeu ela, eriçada. –
Além do mais, era dinheiro demaispara que Nick ou eu pudéssemos recusar. – Ele
levantou uma sobrancelha. – Oito mil. Metade adiantado, a outra metade quando o
serviço estiver terminado.
Ele digeriu a informação.
— Mas isso é muito dinheiro!
Merda! Isso era muito pior do que ele esperava. Beau tomou outro gole de brandy. Sua
boca estava seca pela antecipação de uma verdadeira fatalidade.
— Bom, se tu não sabes quem é o alvo, o que podes me dizer sobre o cliente?
Ela lhe deu um meio sorriso malvado e replicou:
— O que é que tu podes fazer por mim?
Ele soltou um suspiro.
— E o que é que tu queres?
— Tenho um tempinho livre esta noite. Já se passou um bom tempo...
— Não dá, cherie – disse ele, sobressaltado.
— Estás me rejeitando? –exclamou ela.
— Eu me casei.
— Não!
— Sim.
— Não, tu não podes ter te casado! – gritou ela, assombrada.
— Mas eu me casei sim – respondeu, assentindo com a cabeça. – E esse foi o erro de
Nick, entendes. Ameaçou a minha esposa para tentar impedir que eu fosse atrás dele.
Fazendo isso, ele foi longe demais. E é por isso que estou aqui.
— Ameaçou tua esposa! – repetiu ela. – Ótimo! O primeiro mercenário que contratei
sem dúvida tem um forte compromisso com a missão que lhe foi confiada. Isso me alegra
demais!
— Que bom que tuconsegues zombar disso – disse ele com frieza.
Ela negou com a cabeça, olhando para ele.
— Não consigo acreditar que te casastes! – Em seguida, caiu na risada. – Então, quem é
ela? – perguntou, e foi então que um dos capangas dela se aproximou e murmurou algo
no ouvido da patroa. Angelique se virou para Beau com um olhar de assombro. – Tu a
trouxestes aqui?! Ele disse que tu deixastes uma mulher na carruagem. Bom, não sejaz
grosseiro, traze-a cá para dentro!
— Angelique, deixe-a fora disto...
— Eu disse que é para trazê-la para cá – grunhiu ela. – Tenho que ver que tipo de
mulher é preciso ser para fisgar um agente da Ordem como marido, de qualquer modo.
— Ela não vai vir até aqui. É uma dama!
— Ah, é? E eu sou o quê?!
—Tu bem sabes o que quero dizer. Ela é inocente.
—Verdade? – Os olhos dela brilharam com amargura ao ouvir essa palavra, mesmo
assim, sorriu. – Então, agora sim devo conhecê-la. Nunca vi uma dessas! – Ela se virou
para o capanga. – Traz Lady Beauchamp e faze-a entrar pela porta lateral – acrescentou. –
Evita ir além do teatro. Ela é inocente, no fim das contas – ela zombou de Beau.
— Está certo – murmurou Beau, dando-se conta de que não chegaria a lugar algum se
ofendesse aquela temível mulher. Ainda precisava de respostas, e, além do mais, pensou,
Carissa poderia ajudá-lo a lidar com a situação. – Coloquei homens para protegê-la. Diga-
lhes que fui eu que autorizei – deu instruções ao homem de Angelique.
Quando o homem saiu andando pesadamente para trazer Carissa, Beau olhou para
Angelique com olhos implorantes.
— Não quero que fales sobre coisas que não seriam apropriadas para ela. Por favor. Sei
que a vida é injusta, mas deixa que alguém se refugie disso de uma forma como tu nunca
pudestes.
— Quer dizer que tu não queres que eu conte para ela como ensopamos minha cama
de suor esta noite? – Ele olhou para o outro lado. – Ah, bom – disse Angelique finalmente,
em tom filosófico. – Acho que não me diverti contigo. Não até daqui a alguns anos, até
ficares entediado, de qualquer forma. Então tu vais voltar aqui. Não prescisas prender a
respiração. Bom, pelo menos ainda tenho Nick. E como vai Warrington? Diga-lhe que
venha me ver. É raro encontrar um homem que realmente me ponha no meu lugar –
acrescentou com um sorriso malicioso.
— Receio que ele tenha se casado, também.
Um rosário de imprecações indignadas, em francês, saíram dos lábios dela ao ouvir
essa impactante notícia. No instante no qual Carissa entrou escoltada e olhou em torno
com olhos arregalados, Angelique ainda estava tomada de completo ressentimento
francês. Beau se levantou, acenando para a esposa. Muito confusa, ela o olhou e parou
um segundo para olhar Madame Angelique, depois se aproximou cautelosamente.
— Lady Beauchamp, junte-se a nós. Parabéns pelo casamento. Estou muito feliz por
vocês dois. – disse Angelique em tom tão frio e ácido quanto um sorbet após o jantar.
Quando Carissa se sentou ao lado dela, cumprimentou Angelique em francês fluente,
dizendo-lhe o quanto estava contente por finalmente conhecer uma respeitada colega do
marido. Essa resposta suave desconcertou Beau e pareceu apaziguar a irritada anfritriã.
Oh, Deus! A pequena dama da sociedade devia ter captado a altivez daquela mulher com
apenas uma olhada. Intrigada pela resposta, Angelique achou por bem lhe perguntar:
— Quer dizer então que a senhora se casou com Beauchamp. Como conseguiu tal
façanha?
— Sinceramente, não sei. Ele apenas tropeçou em mim – disse ela, encolhendo os
ombros. – É muito mais impressionante o que a senhora construiu aqui sem homem
algum para lhe ajudar!
Incroyable5!
Quando Angelique viu que Lady Beauchamp não era nenhuma aristocrática senhora
insípida, no fim das contas, e que não se deixava intimidar, muito pelo contrário, fez um
cortês movimento para se colocar à altura dela, então perdeu o interesse pelo joguinho.
Ela deu uma piscada de aprovação para Beau muito a contragosto e finalmente deu a
informação pela qual ele havia permitido que a esposa fosse arrastada para aquele antro
decadente de excessos.
— Bom, se já terminamos com os rapapés, senhoras, por favor, vamos continuar com o
assunto. Quem era o cliente?
— Posso falar livremente diante de Lady Beauchamp? – perguntou Angelique, perplexa
e divertida.
Beau fez um gesto para que ela fosse em frente. Carissa ficou muito quieta, esperando.
Sem dúvida, todos os seus sentidos de espionagem estavam em alerta máximo.
— Ele veio aqui representando quem?
— Não sei, mas foi um dos seus compatriotas. Disse que o nome era Alan Mason, mas
só um tolo não usaria um codinome ao contratar um assassino.
— Como ele era? Qualquer coisa da qual tu consigas se lembrar.
— Hmmm... – ela franziu o cenho, pensativa. – Parecia mais um bicho raro. Alto,
magro, na casa dos trinta. Moreno, com bigode. Mal vestido, mesmo para um inglês. –
Beau franziu o cenho. – Eu o confundi com um comerciante, ou advogado, algo assim. Não
era bem nascido, a julgar pelo jeito de falar, embora suponha que ele poderia ter
disfarçado o sotaque. Uma coisa é certa, ele estava nervoso demais, creio que nunca havia
feito nada parecido antes. – Beau considerou isso. Foi então que me dei conta de que ele
parecia um peixe fora d’água, que não estava no seu elemento. Estava tão nervoso que lhe
tremiam as mãos..., até que eu lhe servi um brandy e lhe ofereci uma das minhas
meninas. – Deu uma olhada desafiadora para Carissa.
Ela não se alterou.
— E ele, aceitou? – perguntou Carissa.
5. Incrível, em francês.
Beau se encheu de orgulho pela sua pequena dama da informação.
— Ele aceitou o brandy, mas estava com pressa demais para a moça.
— Mas ele disse alguma coisa? Sobre com quem estava trabalhando...? – Ele a
pressionou.
— Eu perguntei. Mas ele não me disse nada.
— Há algo mais que tu possas te lembrar? – Carissa tomou a palavra.
Angelique deu de ombros.
— Não sei... Ele não gostou de mim.
— E por quê? – Beau perguntou.
Ela ficou pensativa, depois falou.
— Depois de concluirmos o negócio, o alívio dele por isso foi grande e, talvez pela
bebida que lhe dei, ele ficou audaz.
— Como assim?
— Ele começou a me fazer perguntas impertinentes. Reflexões pessoais. Sobre o
passado. A guerra – Angelique olhou para Beau com cautela.
— Ele queria que eu falasse sobre a época do terror. O que se viveu através dele.
Parecia que ele não conseguia se controlar. Normalmente eu não teria tolerado perguntas
tão mal educadas e indiscretas, mas, por oito mil libras... – acrescentou ironicamente.
— Que tipo de coisas ele queria saber? – persistiu Beau. – Nomes? Datas?
— Não! E essa foi a parte mais estranha. Ele me perguntou sobre detalhes de como foi
estar lá. Queria saber como era o som da guilhotina caindo. De como a multidão ficava em
silêncio, esperando, até se ouvir o som da lâmina batendo e o barulho da cabeça caindo
no cesto. E depois, o rugido da multidão. – Ela ficou olhando o vazio por um instante.
Depois se livrou dessa lembrança distante com um estremecimento. – Era isso que ele
queria ouvir. Então eu lhe contei, tudo o que consegui aguentar. – Beau a olhou. – Quando
o Senhor Mason viu que era penoso demais para mim, parou com as perguntas e até se
desculpou. Estranho. Disse que não pretendia me causar dano algum, que era artista..., no
tempo livre, suponho. Disse que estava trabalhando em uma peça cujo tema era a
Revolução. Estranhoo para um um pintor inglês, não? Ou era escultor? – Ela franziu o
cenho. – Agora que pensei nisso, percebo que não perguntei a ele que tipo de artista era.
Estava irritada demais. – Ela sacudiu a cabeça de novo, perplexa. – Ele era um homem
muito estranho.
— E tu não fazes ideia de quem pôde tê-lo enviado até ti?
— Bah! Se a pessoa paga em ouro, o que me importa isso? – Ela ficou em silêncio. –
Mas vou te dizer uma coisa – acrescentou depois de um instante, e olhou para o casal com
astúcia. – Creio que alguém o enviou à toca do leão e não se importou muito se ele seria
devorado ou não.
— Como assim?
— Ninguém escolhe um novato como intermediário para contratar um assassino, a
menos que tenha decidido que é um homem descartável. Quem o enviou provavelmente
vai matá-lo depois que o trabalho estiver concluído. Eu faria isso – disse ela. – Agora, se
me dão licença, tenho que atender meus convidados.
Beau e Carissa trocaram um olhar de cumplicidade, em seguida, tornaram a sair para a
noite.
— Lamento muito – murmurou ele tristemente, caminhando de volta para a
carruagem, com a mão na parte baixa das costas da esposa.
Ele olhou em volta e por cima do ombro, certificando-se de que não estavam sendo
seguidos.
— Ela queria te conhecer.
— Está tudo bem – respondeu Carissa.
Ela olhou para baixo, para seus pés sobre o cascalho desigual do caminho. O tempo
todo lutou para manter a boca fechada. Precisou quase que de mais disciplina da qual
possuía para se abster de pedir sem rodeios ao marido para que lhe dissesse quantas
vezes havia se deitado com aquela formidável mulher. Ele não parecia muito orgulhoso
pelo fato, mas era evidente que sim. Uma dama da informação sabia reconhecer os
pequenos sinais de culpa. Carissa se negou a fazer tal pergunta, no entanto, tendo em
conta que não tinha moral para falar qualquer coisa quando se tratava de virtude.
Mais do que nunca, a consciência estava roendo para que ele lhe contasse tudo.
Depois da selvagem agitação que acabara de presenciar no interior do castelo, não
conseguia acreditar que Beau se surpreendesse com o que ela tinha para lhe dizer. Mas
agora, certamente não era o momento adequado. Ele já tinha muitas outras coisas com
as quais se preocupar, raciocinou.
Além do mais, depois de ter mantido aquele engano depois da noite de núpcias, ela
estava começando a pensar que ele poderia encarar isso como se fosse pior do que o
crime em si.
Como ela ainda podia puxar tal assunto? Oh, a propósito, querido, sei que pensastes
que te casastes com uma virgem pouco agradável, mas, na verdade, tive um amante
antes de me casar contigo.
Essa ideia a fez tremer. Melhor resolver aquilo o quanto antes, mas apenas no caso de
Roger Benton ficar sabendo sobre o casamento dela, como Tia Jo havia lhe avisado. Uma
coisa, porém, era certa.
Madame Angelique não teria problema algum de se atravessar descaradamente no seu
caminho se isso acontecesse. Carissa, por outro lado, supunha-se que era uma jovem
senhora criada com tranquilidade.
Enquanto caminhavam até a carruagem, deu-se conta de que estava com bastante
ciúme sim, daquela mulher, e embora parecesse mentira, aquela mulher também estava
visivelmente com ciúmes de Carissa.
Não era pelo fato de ela ter se deitado com Beau o que principalmente a incomodava.
Muitas mulheres haviam se deitado com ele, isso ela havia sido obrigada a aceitar. Mas
isso foi antes. Foi com ela que ele havia se casado.
Estava com ciúme pela forma com a qual ele havia falado com Angelique. Ele a havia
tratado com o respeito devido a um igual, como se ela fosse um homem. O contraste não
poderia ter sido mais marcante do que quando ele ajudou sua pequena esposa a entrar
na carruagem, atento a todos os movimentos dela, com o maior protecionismo. Senhor,
será que ele achava que ela era assim tão desvalida? E será que ela era?
Se ela tivesse apenas uma pequena dose da audácia daquela francesa... Quando
pensava como havia se transformado em uma moça tímida e reservada desde que caíra
em desgraça, assustada demais, com medo de ser criticada, reprovada, ficou irritada
consigo mesma.
A vergonha a havia transformado em uma pessoa enganadora. Uma coisa se podia
dizer a favor da descarada Angelique, ela não parecia absolutamente envergonhada de ser
quem era. De alguma estranha maneira, ela a inspirou. Como é que seria ser capaz de
alardear tudo para o mundo sem preocupação alguma? Como seria não estar amarrada a
um segredo? Isso para poder exigir o respeito de um homem nos seus próprios termos.
De fato, o que aconteceria se Beau a tratasse assim, também, em vez de sempre
protegê-la como se ela fosse uma criança ou uma delicada boneca de porcelana? Sabia, é
claro, que ele queria nada mais que o melhor para ela. Era um cavalheiro, era a forma com
a qual havia sido criado, e ela o amava por isso, mas..., mesmo assim...
Inexplicavelmente irritada, esforçou-se para acabar com aquela desagradável pontada
de ciúmes.
— É melhor irmos rápido para casa – comentou, alijando da mente tais pensamentos
enquanto ele abria a portinhola da carruagem para ela, galante como sempre. – Parece
que temos que caçar um artista.
— Não, não, querida – ele a repreendeu com um doce sorriso. – Tu não vais caçar
ninguém. Tu vais é ficar fora disso.
— Ao diabo que vou! – Ela fez uma pausa, com um pé no degrau. – Tu precisas da
minha ajuda. É exatamente nesse tipo de investigação que sou boa.
—Não – respondeu Beau. – Estou falando sério, Carissa. Não é seguro. Fica fora disso.
Ela o olhou por um segundo, meio surpresa com aquela resposta condescendente.
No entanto, ela enfrentou uma breve e silenciosa batalha interna devido ao seu
temperamento. Depois, sacudiu a cabeça, entrou na carruagem e se sentou.
Ele deu instruções aos homens e entrou também.
Fechou a porta olhando para ela.
— Não vais ficar de cara amarrada, não é? – Ela lhe lançou um olhar rebelde, cruzando
os braços.
— Eu posso muito bem fazer isso.
— Talvez possas mesmo, mas não vais fazer. – Ele bateu no teto da carruagem dando
sinal para o cocheiro, que colocou o veículo em movimento.
— Por que é que tu me tratas como se eu fosse criança? – perguntou ela dali a pouco,
enquanto a carruagem já ia longe, rangendo e balançando pela estrada cheia de buracos.
– Qualquer um pensaria que tu ficarias agradecido pela ajuda.
— Eu mesmo posso fazer isso.
—Tu estás parecendo aquele menino de oito anos de quem teu pai me falou, preso no
alto da árvore, negando-se a permitir que alguém o ajudasse! Bom, lamento muito, mas
os riscos são altos demais para mim, para mimar teu orgulho teimoso!
— Que orgulho?! Estou tentando te proteger!
— Exatamente! Talvez eu queira uma chance para te devolver o favor.
Ele ironizou.
—Tu vais me proteger?
—E daí? – ela gritou, irritada.
—Issoé absurdo.
— Como é que é? Por que não posso ter um papel em tudo isso?! Nick me ameaçou! É
evidente que tenho interesse pessoal na coisa toda!
— Não posso permitir que tu interfiras.
— Por que tu não consegues confiar em mim? – Ele se limitou a olhá-la. Ela
empalideceu. – Sou uma mulher inteligente! Posso fazer coisas! Tenho habilidades!
— E nenhum treinamento. Carissa, tu não ésagente da Ordem. Olha, aprecio teus
sentimentos, de verdade. Mas posso fazer isso eu mesmo. Mulheres não tomam parte
nisso.
— Justamente com quem estávamos falando agora há pouco?
— Ela não conta!
— Mas eu...?
—Tu és uma dama. Além do mais, vê o que aconteceu na última vez na qual te
metestes! – lembrou ele. – Nós dois acabamos levando um tiro. Agora, por favor. Já chega!
— Já chega?! – Ela sacudiu a cabeça, ofendida. – Madame Angelique nunca te deixaria
te safares com essa.
— Só que Madame Angelique não é minha esposa. Tu és, e vais fazer o que eu disser.
Com isso, Sua Senhoria encerrou o assunto, virando a cabeça de lado para olhar pela
janelinha oposta.
Carissa bufou, cruzando os braços sobre o peito enquanto se reclinava nos
almofadõres. Mas, embora ela não dissesse em voz alta o que pensava, estava ocupada
tramando um plano.
Por Deus, ela o faria engolir aquelas palavras, provando a si mesma que era seu igual.
Mostrar-lhe-ia do que era capaz, e então ele a trataria com o mesmo respeito que havia
mostrado por Madame Angelique.
Sentada ali, decidiu que daria um jeito de averiguar quem era esse artista, o tal homem
descartável que havia sido enviado por alguma facção anônima para contratar Nick. Era
melhor pedir perdão do que pedir permissão. Mas que criatura obstinada era Beau, nem
mesmo um agente da Ordem podia estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Ele
precisava de ajuda, admitisse isso ou não. Só que ele já tinha o suficiente com o que se
preocupar, então ela simplesmente aliviaria a carga para ele e lhe traria respostas.
Talvez então seu arrogante espião visse que uma dama da informação poderia colocar
suas habilidades no mesmo nível, e para bom uso. As coisas estavam bem mais
espinhosas no barco, na viagem de volta pelo Canal. Mas era bom voltarem para casa.
Quando chegaram, na manhã seguinte, o preocupado mordomo entregou a Beau uma
correspondência que parecia oficial. A notícia contida na carta fez com que o estômago de
Carissa caísse no chão, feito picadinho.
O Comitê queria ver Beau.
Agora.
Capítulo
18

— S enhor Beauchamp, que bom que o senhor resolveu se juntar a nós.

Beau estava seriamente cansado do sarcasmo de Ezra Green, mas mordeu a língua.
Pelo menos eles não haviam ficado sabendo que ele havia saído do país nas últimas
quarenta e oito horas.
— Senhores, do que se trata agora? – perguntou no tom mais gentil que conseguiu ao
se sentar na fria pedra da Câmara Parlamentar. Green o olhou do alto do assento no
centro da longa mesa diante de Beau.
— Ontem à noite recebemos a notícia sobre a maior e mais impactante violência que
teve lugar faz algumas semanas, na Alemanha. Baviera, para sermos exatos, vários
quilômetros ao norte de Munique, justamentenas proximidades onde o senhor disse que
seus colegas foram.
Beau estava muito quieto.
— O que aconteceu? – perguntou ele.
— Assassinato em massa, é o que parece. Mais de setenta corpos foram encontrados
queimados, cujas cinzas estavam dentro de uma grande caverna nos Alpes. – Green não
conseguia controlar o prazer que estava sentindo, e encolheu os ombros. – Teve uma
espécie de uma tremenda explosão que as pessoas da redondeza declararam ter ouvido a
quilômetros dali. Alguns aldeões, inclusive, viram uma enorme bola de fogo. Pensaram
que talvez um escapamento de gás tivesse pegado fogo dentro de uma das antigas minas
nas montanhas – disse ele. – Quando os moradores foram investigar, encontraram
dezenas de corpos carbonizados no interior da caverna.
— Mas que tragédia – disse Beau cautelosamente.
— Hmmm... Sim, é verdade. As autoridades de Munique foram chamadas para
investigar. Eles ainda não têm certeza de quantas pessoas morreram nessa ocasião. Para
alguns, não restava muitos deles para encontrar.
Beau ficou sentado ali, tamborilando ociosamente o tampo da mesa com os dedos.
— E onde é que eu entro nisso tudo?
— Ora, não seja reticente! – disse Green com desdém. – Nós dois sabemos que vossos
companheiros agentes estão por trás disso!
— Nós?! Talvez os aldeãos tenham razão... Deve ter sido um acidente. Escapamento de
gás de uma antiga mina... A não ser que o senhor tenha alguma prova de que isso esteja
ligado aos meus agentes... Eles foram vistos pelos vivos que foram encontrados entre os
mortos?
— Muito bem, o senhor que fazer esse joguinho... Quem eram os mortos, pergunto eu.
E respondo: apenas alguns do jogadores mais poderosos da Europa. Amigos pessoais de
várias cabeças coroadas, desde Roma até a Rússia!
—Prometeos – murmurou Beau.
— Então o senhor sabe! Apesar de os corpos estarem tão queimados a ponto de
ficarem irreconhecíveis, as autoridades conseguiram adivinhar a identidade deles pelos
objetos pessoais que deixaram na casa de um nobre, próximo dali. Castelo Waldfort, soa
familiar para o senhor?
Beau apertou a mandíbula. Com efeito, soava sim. Era o nome do lugar ao qual Drake
havia ido com James Falkirk.
— As autoridades de Munique interrogaram os criados do castelo. Um deles admitiu
finalmente que houve uma agitada aglomeração de estranhos lá. Falou sobre uma batida
policial, na qual o Conde Glasse, legítimo proprietário do castelo, foi assassinado. Com a
morte do Conde, tudo foi transferido para um inglês. Creio que o senhor sabe o nome
dele: Drake Perry, Conde de Westwood. – Beau disfarçou a surpresa rapidamente. – Vosso
colega nem se deu ao trabalho de dar um nome falso.
— E por que haveria de fazê-lo? Os Prometeos já sabiam da identidade dele quando o
capturaram. Eles o torturaram até destruírem a mente dele, Senhor Green.
— Bom, é possível que lhe interesse saber que, pouco depois que Lorde Westwood
tomou o comando do Castelo Waldfort, outro inglês se apresentou lá, e coincide com a
descrição do seu amigo, Lorde Rotherstone.
O coração de Beau estava disparado. Então, voltaram ao assunto anterior.
Setenta corpos?!
— Os corpos estavam naquela caverna? – perguntou, preparando-se para o pior. –
Sabe-se se estão vivos?
— Não faço ideia, o senhor omite o caso inteiro! – exclamou Green. – Não percebeis?
As autoridades alemãs rastrearam tudo até a Inglaterra! Temos dezenas de ricos e
poderosos que viraram cinza dentro de uma caverna, e se descobrirem que agentes
britânicos estão por trás disso, vossos amigos podem ter desencadeado um grande e
sangrento incidente internacional!
— E quanto à palavra de uma criada? – ele disparou. – Para começar, o que os
senhores deviam se perguntar é o que todos aqueles sangradores estavam fazendo
naquela caverna. Essa é a verdadeira pergunta! Mas o senhor não quer ouvir a resposta,
não é mesmo? – Ele lutou para controlar a ira. – Sabíamos fazia muito tempo que os
Prometeos tinham um dos seus templos subterrâneos nos Alpes, mas nunca conseguimos
encontrar a localização do mesmo. Ao que parece, até agora.
— Portanto, o senhor admite que a Ordem estava por trás disso?
— Eu não saberia dizer, mas certamente que assim o espero.
Intimamente, o assombro de Beau cresceu, enquanto saboreava a notícia da façanha
dos colegas. Setenta mortos! Líderes sobreviventes do culto Prometeo haviam se reunido
no castelo Waldfort – pelo menos essa havia sido a teoria da Ordem. Se a notícia fosse
verdadeira, significava que a centenária guerra nas sombras, da Ordem contra os
Prometeos, estava realmente terminada, finalmente! Deus, como ele queria ter estado lá!
Emvez disso, ficou com a miserável tarefa de limpar a desordem que a vitória deles
havia causado. Mas, pelo menos era uma vitória! Ele perguntou novamente:
— Nossos homens sobreviveram?
Green lhe lançou um olhar fulminante.
— Desconhecemos, mas é pouco provável, especialmente Lorde Westwood.
Ofuncionário disse que levou os outros até a caverna naquela noite. Assim ele poderia
acabar com eles, é o que parece. E sem perguntas. Não há provas adequadas. Sem o
devido processo para qualquer um desses do alto comando – homens colocados nos
diversos países, alguns dos quais são supostamente amigos da Inglaterra. Se isso for
verdade, mais uma vez, nossos inomináveis, sem rosto, invisíveis agentes da Ordem se
encarregaram de agir como juiz, jurado e verdugo.
— Mas aqueles bastardos eram Prometeos!
—Prometeos..., sei – disse Green com um sorriso.
Beau o olhou, assombrado.
— Ainda não acredita que a ameaça seja real, mesmo depois de todas as provas que
viu?!
Mas o frio sorriso de Ezra Green lhe informou que o homem já havia formado um
conceito com o único propósito de definir quem era o verdadeiro inimigo. Então olhou
para Beau com um ódio tal que já nem se incomodava em disfarçar.
— Vai ser um inferno pagar por isto, deveis entender, Lorde Beauchamp. Sequer o
Regente pode mais proteger vossa preciosa Ordem. Não depois disto.
— Apenas lhes diga que foi um acidente devido a um escapamento de gás.
— Ah, os senhores, cavalheiros, são tão bons para cobrir os próprios rastros... Mas
desta vez, o senhor foi longe demais. Não pode se eximir da culpa devido à distância. Este
caso é uma vergonha para o nosso governo. Lamento informar-vos, Lorde Beauchamp,
sequer os Pares do reino têm liberdade de cometer assassinatos em massa no
estrangeiro.
Beau se pôs de pé e fechou as mãos sobre a mesa em sinal de frustração.
— O senhor não se importa com a verdade, não é, Senhor Green? Esta investigação é
uma farsa, e me atrevo a perguntar quais são vossos verdadeiros motivos para esta caça
às bruxas!
— Mas o que significa isso?! – gritou Green.
— Isso significa que as cabeças coroadas que o senhor diz que vão ficar tão ofendidas
com essas mortes, são as mesmas às quais a Ordem salvou! O Regente, o Czar, o
Imperador de Hadsburg, todos eles deviam agradecer a nós!
— E por que, pode-se saber?
— Por garantir suas terras contra uma ameaça que sequer reconhecem até que tudo
exploda debaixo do nariz deles! Exatamente como o senhor está fazendo! Por que é isso,
não é mesmo, Senhor Green? Por que é que o senhor varre essa ameaça para debaixo do
tapete?! Será que é porque... – Beau engoliu as palavras, obrigando-se a se calar para não
se colocar em posição verdadeiramente temerária.
— Oh, não, por favor, não pare, continue... – Green o incentivou, apoiando o queixo na
mão e esperando atentamente que Beau terminasse. A pergunta não formulada ficou
suspensa no ar como uma nuvem de fumaça negra no recinto da Câmara. Seria possível
que Green pudesse ser um deles...? Mas até mesmo Beau sabia que isso era absurdo. Se
Ezra Green fosse um Prometeo, a Ordem teria sabido disso há muito tempo. Não, Green
os odiava por razões completamente diferentes.
—Não é nada, —murmurou Beau.
— Ótimo. Agora, continuando, estou terminando com as acusações, milorde. Quando
souber algo sobre vossos companheiros, qualquer coisa, vireis até aqui comunicar isso
diretamente a mim.
— Por quê? – perguntou Beau. – O que é que o senhor vai fazer? – Os olhos de Green
brilharam.
— Terei que prender todos no preciso instante no qual colocarem o pé em solo inglês.
— E por quê?
— Pelos setenta assassinatos. Não quero fazer isso, é claro, levar nossos heróis sob
custódia – disse ele. – Porém, receio que seja essa a única maneira pela qual
conseguiremos aplacar a ira de todos esses governos estrangeiros. Pelo menos vossos
companheiros vão receber o tipo de julgamento que não deram às vítimas deles.
— Vítimas?! – exclamou irado, mas logo se conteve, procurando ter paciência. – Quer
dizer que é isso o que planeja para eles. Um julgamento da Câmara dos Lordes?
— A justiça assim o exige.
— É o vosso orgulho que o exige, Senhor Green..., não vou me sentar! – gritou, quando
outro membro do comitê tentou lhe dizer que se sentasse. – Humilhação pública?! Então
o senhor não conhece esses homens! Preferem morrer antes de serem desonrados!
— Oh, imagino que ambas as coisas vão acontecer, Lorde Beauchamp. A boa corda
inglesa é forte o suficiente para pendurar tanto nobres quanto plebeus. A única pergunta
é: o senhor vai se juntar a eles na forca?
— Os da sua laia não preferem a guilhotina? – disparou Beau, mas Green se limitou a
sorrir.
— Confie em mim, vamos chegar ao fundo de tudo isto, Lorde Beauchamp. Enquanto
isso, não faça nenhuma bobagem, por favor. Para minha satisfação, até agora o senhor
colaborou, mas se tentar advertir seus irmãos sobre os nossos planos, eu lhe prometo que
vai compartilhar da mesma sorte que eles.
Feita a ameaça, Green ignorou o comitê e saiu da câmara.
Seu bastardo desgraçado!
Beau estava tremendo de tanta raiva. Irritado, tirou a gravata, pois se sentia
estrangulado. Se pelo menos Virgil estivesse vivo para lhe dizer o que devia fazer...
Sem dúvida, a maior vitória da Ordem não podia pagar tal preço. Eles sempre
estiveram dispostos a dar a própria vida pelo país; mas serem julgados como os viões
naquela etapa final era uma traição do país ao qual eles haviam dado tudo para defender.
Quando saiu à rua, ainda como que em um sonho, Beau jurou que não deixaria que
isso acontecesse. Drake e os demais haviam acabado de derrotar os últimos Prometeos;
agora cabia a ele salvá-los.
Mas como? Pense! Parecia que as paredes estavam se fechando em torno dele. O que
faria Virgil?
De chapéu na mão, apoiou as costas na parede do prédio e olhou para o céu azul acima
das torres de Westminster, tentando convencer a si mesmo que não estava aterrorizado
nem completamente angustiado.
Aos poucos o pulso começou a voltar à normalidade. Esforçou-se para clarear a mente.
Obviamente tinha que mandar uma mensagem para Max, para adverti-lo que não
voltasse ainda à Inglaterra com a equipe, caso algum deles ainda estivesse vivo.
Infelizmente, devido à investigação, Green já conhecia a maior parte dos canais de
comunicação que os agentes da Ordem usavam.
Mas, quanto mais pensava no assunto, supôs que não seria um problema tão grande
assim enviar uma carta para Madame Angelique. Ela podia colocar alguns batedores ao
longo da costa francesa para ver se encontravam Max e seus homens e lhes entregar a
mensagem.
Claro que já poderia ser tarde demais. Se o incêndio naquela caverna nos Alpes havia
acontecido algumas semanas atrás, então eles poderiam desembarcar na costa a qualquer
momento, e dali, não era uma viagem tão longa de volta à Inglaterra. Ele poderia colocar
seus homens para vigiar os agentes que voltassem ás costas britânicas, bem como nos
vários cais de Londres.
Mas Green, sem dúvida, também teria feito isso. Seria simplesmente uma corrida para
advertir seus irmãos guerreiros para que ficassem longe dali até que tudo aquilo se
resolvesse, a não ser que Green os prendesse antes.
Com a cabeça ainda fervilhando, seu estado de ânimo se abateu. Beau estava ansiando
pela companhia de Carissa quando chegou a casa.
Estava condenadamente cansado, quase não havia dormido na noite anterior devido às
condições da viagem. Aquelas horríveis estradas e o sacolejo do mar havia tornado difícil
conciliar o sono, e ao chegar a casa, em vez de descansar, teve que ir correndo se sentar
diante do comitê para se submeter àquele extenuante interrogatório.
Agora tinha em mente a esposa dormindo na cama lá em cima, pondo em dia o
descanso, também. Mal podia esperar para tirar a roupa e se juntar a ela. Não havia nada
melhor do que sentir seu calor, aquele corpo macio junto ao dele..., e se acontecesse algo
mais além de dormir, ficaria feliz com isso também. Só a visão do terno sorriso dela já o
alegrava.
O toque suave e estável de Carissa lhe proporcionaria comodidade sem palavras depois
de todo aquele agravo.
Inferno, era tão errado assim que um homem tivesse ocasional necessidade do afeto e
do apoio da esposa?
Abriu a porta, entrou e fechou-a silenciosamente, esperando que a senhora da casa
estivesse dormindo ainda.
—Lady Beauchamp está lá em cima? —murmurou para o mordomo, assim que pisou
no vestíbulo da entrada.
— Não, milorde. Milady saiu – respondeu Vickers.
— Saiu?! – repetiu ele, muito surpreso. – O que quer dizer com saiu? – Não era essa a
resposta que ele queria ouvir.
Não havia lhe dito especificamente que ficasse a salvo dentro de casa, devido à ameaça
de Nick?
— Aonde ela foi?
Antes que o mordomo pudesse responder, o tilintar das badaladas do relógio musical
disparou. Beau apertou os dentes. A delicada melodia parecia um rangido sobre ele.
— A senhora deixou um itinerário, caso o senhor quisesse se juntar a ela, milorde.
— Itinerário...? – murmurou ele, meio aborrecido, arrebatando o papel da mão de
Vickers.
À medida que seu olhar percorria a nota, não conseguia acreditar no que lia. Era uma
lista de galerias de arte que, ao que parecia, ela havia ido visitar. Um desafio claro e nítido
às ordens estabelecidas por ele.
Mas que inferno, ela deve ter ido bisbilhotar para obter informações sobre aquele
maldito artista!
Por que ela...? Aquela pequena encrenqueira intrometida! Ele se indignou. Como é que
ela se atrevia a ignorar seu senhor e a simples solicitação do seu marido de forma tão
descarada?! Com os últimos avanços do comitê, a última coisa que precisava no momento
era que sua pequena esposa bisbilhoteira andasse por aí metendo o bedelho de novo no
que não lhe dizia respeito, causando problemas, fazendo perguntas suspeitas pela cidade!
A Ordem já tinha problemas suficientes, e eles não precisavam daquela senhora da
informação complicando as coisas ainda mais.
Inferno, tudo isso era culpa dele, que deveria ter colocado rédea curta nela muito
antes disso. Com a fúria crescendo, seus pensamentos voltaram imediatamente ao
engano da noite de núpcias. Ele havia lhe dado duas semanas para contar tudo, havia sido
mais do que gentil com ela nesse meio tempo, e ela ainda não havia confessado nada.
Percebeu que havia cometido um erro. Devia tê-la confrontado no ato, na manhã
seguinte, pois agora ela estava pensando claramente que havia conseguido o que queria
com aquele joguinho. Bem, ele havia permitido isso, e agora estava pagando caro. Decerto
ela o via como um tolo.
Se ela podia desobedecer de forma tão descarada as instruções específicas que lhe
dera, então era óbvio que a gentileza e a paciência que tivera com ela haviam sido
interpretadas como fraqueza. Beau olhou para o primeiro local da lista e, com um
grunhido baixo, foi até a porta. Já estava na hora de trazer sua boa esposa de volta para
casa.
Capítulo
19
C arissa estava cansada, também, mas não se deu ao luxo de dormir. Se Beau

tinha que sofrer, ela sofreria junto com ele. Jurou que ele não passaria por tudo aquilo
sozinho.
Mesmo assim, a fadiga, ou todas aquelas intrigas de espiões, na certa estavam
deixando-a meio paranoica, pensou enquanto caminhava através da galeria de arte,
porque poderia jurar que estava sendo seguida. Sem dúvida alguma era simplesmente sua
mente cansada, ou então, coisas da imaginação, que prega peças nas pessoas.
Depois de tudo, Beau tinha razão, ela não era uma agente treinada, na verdade, não
passava de uma neófita, nervosa com a procura que havia empreendido. No entanto,
estava decidida a ajudar o marido. Podia ser apenas uma bisbilhoteira, mas sabia como
reunir informações sobre alguém, que tipo de perguntas a fazer e como conseguir
respostas sem ser óbvia demais.
Na realidade, ela estava usando suas artimanhas femininas em cima do curador da
terceira galeria de arte que havia visitado até o momento, enquanto que Beau estava
retido, sendo assado a fogo lento e repreendido mais uma vez pelo Comitê.
Pobre querido.
Não via razão alguma pela qual não devesse começar, já que não havia tempo a perder
se fossem investigar quem havia contratado Nick, e oxalá o impedissem de atirar em
quem quer que fosse o alvo pelo qual ele havia vindo até Londres, para matar.
Ela sabia, é claro, que Beau poderia fazer um escarcéu quando lhe contasse o que havia
feito durante o dia.Mas, no final, tinha certeza de que iria lhe agradecer seus esforços,
embora, para ser sincera, a investigação não tivesse dado muito resultado ainda.
Mas não importa.
Ela não voltaria para casa de mãos vazias. Tinha que encontrar algo sobre o artista que
Madame Angelique havia descrito. Era a maneira perfeita de mostrar ao marido que tinha
valia, pois ela estava decidida a fazer com que o seu oh-muito-capaz marido a levasse tão
a sério quanto havia feito com Madame Angelique. Com efeito, ela havia tomado a
decisão de que não queria apenas o afeto do marido, mas também o respeito. Por
estranho que parecesse, sua consciência não estava nada satisfeita com isso.
Como é que podes querer exigir respeito quando, na verdade, não conquistastes dito
respeito?
Sequer lhe dissestes a verdade! Mas farei isso, ela insistiu. Eu vou contar tudo para ele,
assim que estiver segura de que ele não vai destruir nosso casamento. Não lhe dizer a
verdade é o que pode destruir teu casamento, sua covarde inteligente, repreendeu a si
mesma.
Mas não posso correr esse risco. Não consigo suportar sequer a ideia de perdê-lo!
Em seguida sacudiu a cabeça, tratando de sacudir também as dúvidas.
Devo ser tão louca quanto a metade desses artistas, disse ela baixinho, falando sozinha.
A sensação mais incômoda de todas era a desconfiança de que não era o respeito de
Beau que ela procurava de verdade, mas o próprio.
Pode ser que haja um pouco disso sim,admitiu ela.
Sem dúvida, o fato de que ela havia acreditado nas mentiras de Roger Bentone, devido
a isso caído em desgraça, havia se jogado nos braços de um homem que nunca a amou,
pois ela estivera tão desesperada para amar que voluntariamente enganou a si mesma
sobre a sinceridade dele; é claro que, no fundo, sabia que ele era um tremendo sem-
vergonha, mas ela havia ignorado deliberadamente a própria intuição pela premente
necessidade de acreditar. O fato de ter enganado estupidamente a si mesma lhe custou
grande parte da autoestima. Pior que ela nunca havia se perdoado por isso.
E se isso lhe custasse Beau também, ela nunca contaria nada. Não, isso não valia a
pena todo aquele risco, pensou com um estremecimento. Depois de ter ficado órfã,
passara de casa em casa, de mão em mão, seduzida e traída, e agora, finalmente, havia
encontrado o amor. Se tivesse que mentir para continuar com ele, então, que assim fosse!
Talvez fosse melhor mesmo que ele nunca ficasse sabendo.
— Então, como posso vos ajudar hoje, Lady Beauchamp? – perguntou o curador, todo
solícito depois que ela lhe entregou o cartão de visita.
Ela ainda ria por dentro ao ver como um título mudava tanto as coisas, quando,
realmente, depois de tudo, ela continuava sendo a mesma por dentro. Era um grande
contraste com o empregado daquela livraria em Russell Square, pois este pequeno
comerciante de arte havia largado tudo para atender Sua Senhoria.
— Estou interessada em ver obras de artistas ingleses que pintaram quadros tendo
como tema a Revolução Francesa – disse ela.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Um tema curioso, se me permite observar.
— Oh sim, eu sei! – respondeu ela alegremente, representando o papel da dama
cabecinha de vento mais uma vez, pois sempre dava uma olhada na coluna da sociedade
no Post e se lembrava que ele sempre vendia arte para a aristocracia. As pinturas sempre
eram requisitadas para quintas e palacetes. E serviam como presente de casamento para
os recém-casados da nobreza, também.
— O senhor deve ter lido uma nota no jornal sobre a grande festa organizada pela
minha tia, a Condessa d’Arras, para mim e meu marido.
— Ouvi algo a respeito – admitiu ele com um sorriso. – Minhas humildes felicitações a
ambos, para a senhora e Lorde Beauchamp, milady.
— Oh, obrigada! Quanta gentileza da vossa parte! Em todo caso, quero agradecer à
minha tia, presenteando-a com uma pintura. Ela foi casada com um Conde francês, sabe.
Ela ainda tem uma propriedade lá e sei que muitas obras de arte francesas vieram para a
Inglaterra durante a guerra.
— É verdade, milady. Muitos nobres franceses tiveram que vender suas coleções para
terem dinheiro vivo para financiar a fuga da França para sobreviver. Muito triste isso. Arte
e joias foram os objetos de valor mais fáceis de serem transportados para um lugar
seguro, enquanto grande parte das propriedades foram confiscadas pela Revolução.
Ela meneou a cabeça.
— É difícil imaginar que os revolucionários simplesmente se apossaram daquelas
propriedades cujos donos estavam ausentes, onde famílias viviam há gerações e
entregado depois ao estado, e todas as outras coisas aos próprios partidários – disse ela.
— Jacobinos – cuspiu o homenzinho, enquanto os pensamentos dela remontaram ao
discurso do professor Culvert, falando de tais assuntos.
Até mesmo uma senhorita da sociedade sabia que o Ministério do Interior estava
aterrorizado com os subterrâneos dos simpatizantes jacobinos na Inglaterra. Sabia-se que
esses grupos existiam.
O governo estava sempre tentando erradicá-los antes que conseguissem iniciar um
movimento para implantar a danosa Rovolução com a indefectível guilhotina em solo
inglês.
— Bom, graças a Deus por Wellington – murmurou ela.
— É verdade – respondeu ele, concordando. – Então, poderia me fornecer, Lady
Beauchamp, mais informações sobre o tipo de pintura que a senhora está procurando?
Temos um bom número de retratos militares e algumas cenas de batalha. – Disse ele,
apontando para a parede onde estavam pendurados alguns deles.
— O senhor teria algo um pouco mais contemporâneo? Cenas das ruas de Paris na
década de 1790, talvez?
Ele ficou pensando um pouco, considerando o pedido.
— Pode ser que eu tenha algo lá atrás. Permita-me ir buscá-los para a senhora. Posso
vos oferecer uma cadeira enquanto espera, milady?
E fez um gesto para um conjunto de elegantes assentos na parte dianteira da loja,
perto de uma grande janela ensolarada. Ela sorriu.
— Isso me parece bastante agradável. Obrigada. – Ele fez uma reverência.
— Não vou demorar.
Ele se retirou para os fundos da loja e Carissa se acomodou em uma cadeira
Chippendale forrada em azul pastel com listras de cetim. Margaret continuava de pé,
então Carissa apontou para a panificadora do outro lado da rua.
Mesmo de onde estava, o delicioso cheiro de pão lhe deu água na boca.
—Tu poderias ir até o outro lado da rua e comprar alguns pãezinhos para nós,
Margaret? A manhã foi bastante agitada e estou faminta. Compra algo para ti também –
acrescentou ela, entregando-lhe algumas moedas que tirou da bolsinha presa ao pulso.
A criada sorriu e fez uma reverência, depois se apressou para cumprir sua missão. A
campainha em cima da porta da loja soou quando ela saiu. Carissa apoiou o cotovelo no
braço da cadeira, apoiou o queixo na mão e fechou os olhos; a esperança de comer algo a
ajudaria a ficar acordada. Com o sol de primavera que entrava profusamente pela janela,
bem que ela poderia dormitar, contente como um gato.
Quando a campainha soou de novo pouco depois, ela estava cansada demais para
olhar o cliente que havia chegado. Ouviu a porta sendo fechada e, ato contínuo, alguns
passos quando a pessoa entrou na loja.
— Pelo que vejo agora é patrocinadora das artes, Lady Beauchamp – disse uma voz. –
Como é aristocrática! Estou impressionado.
Ao ouvir essa voz, ela prendeu a respiração e pestanejou, arregalando os olhos e
ajeitando-se na cadeira com as costas retas. Olhando para o homem de cachos escuros,
despenteados e extravagantes, a roupa mais amarrotada ainda, ela estremeceu de pavor.
Certamente ela estava dormindo e isso era apenas um pesadelo. Roger Benton estava
diante dela, olhando-a com um sorriso socarrão.
— Se está querendo render homenagens às musas, milady, posso pensar em uma
maneira melhor de fazê-lo do que desperdiçar o dinheiro do seu marido em pinturas
caras.
A boca de Carissa secou, vendo-o se aproximar e apoiar as mãos no respaldo da
cadeira diante dela. Ele passeou o olhar por ela inteira.
— O casamento lhe fez muito bem. Tu estás espetacular, Carissa.
— Ora, cala-te – disse ela entre dentes, com o coração disparado. – Fica longe de mim!
—O quê, vais dizer que não tem tempo para um velho amigo, agora que és
Viscondessa?!
Ela estava perplexa, quase que surpresa demais para falar. Como é que ele se atrevia a
se aproximar dela dessa maneira?! Bem que Tia Jo havia lhe advertido de que ele poderia
tentar algo assim, só que ela não esperava que fosse tão rápido.
—Eu sempre soube que um dia te encontraria de novo – disse ele, levantando as abas
da casaca cor de ameixa escura e se sentando diante dela com a desenvoltura de um
dandy.
Ele adotou uma pose elegante, cruzando as pernas e apoiando o queixo nos nós dos
dedos. Ele lhe deu outro sorriso forçado, mas ela só conseguia reparar na mudança da
aparência dele. A dissipação havia enviado a boa aparência dele para o espaço. Ele havia
emagrecido demais, ela notou. A pele estava macilenta, tinha círculos escuros debaixo dos
olhos e os grossos lábios, os quais tanto a encantaram, estavam agora irritados e
inchados, como se tivesse passado várias semanas gripado. Mas foi naquele olhar vítreo
que ela notoua maior mudança. Os olhos dele brilhavam com desespero. O que é que
esse homem havia feito a si mesmo? – ela se perguntou, sobressaltada ao sentir uma leve
ponta de pena em meio ao ódio e repulsa.
—Tu estavas me seguindo?
— Apenas com a esperança de finalmente ter uma oportunidade de te desejar muitas
felicidades pelo teu casamento. Sabes, estive me lembrando dos momentos que
passamos juntos...
— Para já com isso, seu abutre – interrompeu ela em tom baixo. – Tu sabes muito bem
que não quero ver a tua cara!
— Oh, mas isso é muito triste mesmo. Bom, receio que vai te custar algo para que eu
me vá.
Com o coração disparado, ela olhou para os lados, certificando-se de que nem
Margaret nem o comerciante de arte estavam à vista. Depois se virou para olhá-lo.
— Lamento muito – disse ele cortesmente. – Nunca pensei que chegaria a tanto. Mas a
trejetória de um poeta não é fácil.
— Só que tu não és poeta – sussurrou ela.
— Eu sou sim. Até escrevi um poema para ti, minha querida. Uma quintilha. Queres
ouvi-la? Era uma vez, uma senhora em Brighton, uma ruiva a quem quase nada conseguia
assustar, antes que a desaprovação da tia fizesse com que o tio, cuja fortuna era
grande,fosse o titã que a escondesse5.
Ela zombou e se esforçou para ter paciência, então meneou a cabeça.
5. A poesia perde o sentido original ao ser traduzida.(Nota da tradutora).
— Você sabe o que o meu marido vai fazer contigo se ficar sabendo disto?
— A pergunta certa é: o que é que tuirias fazer? – Retrucou ele.
Ela o olhou friamente.
— Quanto é que tu queres?
— Duas mil libras – respondeu em tom neutro. – Creio que é justo, não?
Ela estremeceu.
— Mas isso é mais do que da última vez.
— As apostas subiram.
A pena que havia sentido se dissipou. Não, ela se deu conta, ele é um ser repugnante!
Como é que podia ter pensado diferente antes?!
— Mas isso é muito dinheiro. Preciso de algum tempo. Tenho apenas quinhentas libras
na minha conta pessoal.
— Bom, fico com essas quinhentas por enquanto, e vou te dar dois dias para me
trazeres o restante.
— Muito generoso da tua parte – murmurou ela friamente. – Tu sabes que eu queria,
com todo o meu coração, nunca ter posto os olhos em ti. Não sabes?
— Não precisas ser tão pouco gentil, querida. Agora que estou te vendo, – disse ele,
fazendo uma careta – tu devias me agradecer porque tudo que te peço é dinheiro.
Serzinho repugnante!
O que foi que eu vi nele um dia? Ela mal conseguia acreditar que estava se deixando
chantagear, mas, à essa altura, ela teria pagado a soma pedida só para que ele fosse
embora. Supunha que, pelo menos, devia agradecer pelo fato de que ele não havia se
apresentado na casa dela. Suas mãos tremiam de medo quando pegou o livrinho de
cheques na bolsa. Baixou a cabeça e usou a pena que estava sobre uma mesa ali perto
para preencher o cheque que esvaziaria sua conta.
Ela o entregou para ele, que sorriu e soprou o papel para secar a tinta.
— Pronto... Vistes? Foi tão difícil assim? Bom, foi um prazer fazer negócio com a
senhora de novo, milady. Podes levar o restante para mim no Hotel The Clarendon, depois
de amanhã. De acordo?
— Vai para o inferno! – disse ela, e ele forçou um sorriso tenso.
— Quanto ardor! Quase havia me esquecido de como tu te queimastes por causa da
veemência, ma chère. Vou entender isso como um sim. – Dobrou o cheque e o colocou
discretamente no bolso interno da casaca. – Até então. – Pôs-se de pé e esboçou uma
reverência.
—Lady Beauchamp.
Quando se virou para sair, a campainha da porta da loja soou de novo. Carissa deu
graças a Deus que Margaret não estivesse ali para presenciar a cena, mas, quando olhou
para a porta, ficou paralisada de horror.
Não era a criada.
Seu marido entrou na loja, com aqueles penetrantes olhos azuis analisando a cena com
olhar arrebatador. Pelo visto, Roger não havia se dado conta de quem era o recém-
chegado enquanto se dirigia à porta, parecendo ansioso para trocar o cheque no banco e
pegar o dinheiro para gastá-lo no primeiro antro mais próximo para fumar ópio.
Mas, quando Roger se aproximou, Beau fechou a porta e a trancou com chave.
Ele parou, surpreso, ao se dar conta do perigo quando viu Beau baixar a persiana.
Beau se apoiou contra a porta e cruzou os braços sobre o peito. Ela congelou na
cadeira, olhando incredulamente para o quadro do seu pesadelo: o homem que a havia
seduzido cara a cara com o homem que amava. O marido para quem havia mentido.
De repente, Roger começara a lhe parecer mais desarrumado do que nunca, mas
tratou de tirar isso da cabeça. Roger tinha a esperança de que estivesse errado sobre a
grande suspeita quanto à identidade do homem louro diante dele.
—Hã..., estás bloqueando a porta, companheiro – disse ele em tom amistoso.
Beau o olhou com olhar sombrio carregado de morte iminente.
— Carissa – murmurou ele com voz aterradoramente calma. – Quem é este?
Capítulo
20

B eau já estivera na primeira galeria de arte da lista de Carissa. Como não a

encontrou em nenhuma das duas, ele foi até a terceira da lista. Continuava querendo, a
cada metro que percorria, estrangular aquela mocinha por xeretar em assuntos os quais
ele havia dito especificamente que deixasse por conta dele.
Em todo caso, estava vindo pela rua onde ficava o próximo endereço quando viu a
criada da esposa sair da galeria de arte e ir até a panificadora que ficava em frente.
Viu a carruagem que havia dado para Carissa como presente de casamento e disse ao
cocheiro que estacionasse atrás da mesma. Então desceu e olhou pela grande janela da
galeria de arte enquanto ia se aproximando, e viu sua mulher falando com um homem.
Por uma fração de segundo, a reação instintiva que teve foi o pensamento arrepiante
da infidelidade da própria mãe com seu pai. Mas, aproximando-separa ver melhor o
homem em questão, o medo foi embora.
Não, ele se deu conta, algo mais estava acontecendo ali.
Olhou de novo para Carissa e, na próxima batida do coração, seus instintos muito
afiados de espião se fixaram nos sutis sinais que lhe diziam que ela estava se sentindo
ameaçada. A postura tensa. A palidez do rosto. Então, a raiva que havia sentido por ela ter
ignorado suas ordens sumiu imediatamente quando seus instintos protetores se puseram
em alerta máximo.
Ele já estava prestes a entrar para resgatá-la quando viu que ela escreveu algo em um
papel e o entregou ao homem. Ele estacou, um tanto desconcertado. Será que ela estava
passando informações para alguém? Será que era algum dos inimigos dele? Foi então que
resolveu intervir.
Na verdade, estava esperando uma resposta, mas parecia que Carissa não conseguia
falar. Dirigiu então a próxima pergunta ao estranho, para aquele magro e um tanto
arruinado dândi.
— Tendes algum assunto com minha esposa? – perguntou ele calmamente.
— Nã-não.
— O que foi que ela vos deu?
— Nada!
Sem disposição paradiscutir, Beau disparou a mão direita e agarrou o dândi pelo lenço
que o outro tinha em volta do pescoço. Então, levantou o braço um pouco para forçar o
assustado sujeito até que ele ficasse nas pontas dos pés para evitar ser estrangulado.
Pelo rabo do olho, viu Carissa olhando-o com a mão sobre a boca aberta, enquanto o
desconhecido lutara para se soltar daquelas garras que lhe apertavam a traqueia. Beau,
por sua vez, enfiou a mão no bolso interno da casaca e, calmamente, recuperou o pedaço
de papel que havia visto o sujeito colocar ali. Soltou o jovem, que cambaleou à frente,
arquejando e procurando respirar golfadas de ar, segurando o pescoço.
—O senhor é louco!
— Sinto muito – disse Beau suavemente.
Desdobrou o papel. Não sabia o que o esperava, mas, sem dúvida alguma, não era o
que estava vendo. Um cheque da conta pessoal da esposa no valor de quinhentas libras.
Ele ficou olhando para o cheque, controlando a fúria e tentando dar sentido à coisa toda.
Mas que diabos...?!
Nas discussões financeiras que havia tido com o tio dela quanto à elaboração dos
detalhes do acordo matrimonial antes do casamento, Beau ficara sabendo que, como
órfã, Carissa havia herdado um fundo fiduciário muito generoso do próprio pai. O
fideicomisso outorgava a ela uma renda anual de 500 libras para ela fazer o que bem
quisesse, além do próprio acordo de dote que lhe proporcionava certa quantia em
dinheiro todo mês.
Mas, por que diabos ela havia acabado de abrir mão de um ano inteiro de renda em
favor desse estranho?!
Beau olhou para ambos.
— Alguém pode me explicar o que significa isto?
Ela tampouco respondeu, mas o olhar terrível que trocaram, de fato, algo quanto à
forma com a qual ambos reagiram entre si lhe avisou de que os dois já haviam sido um dia
mais do que amigos. E então, a verdade brilhou. A falta de virgindade de Carissa na noite
de núpcias... A maneira atenta com a qual ela cuidava de toneladas de fofocas... Agora
entendia que não era nenhum interesse lascivo, mas porque estava vigiando os próprios
segredos.
Ele somou dois mais dois e estremeceu por dentro. Quer dizer então que era esse o
sujeito de quem ela não quis me falar.
O desconhecido então tentou mentir. Primeiro, pigarreou. Depois, disse:
— Suponho que o senhor seja Lorde Beauchamp. Sou artista, senhor. Sua Senhoria
acabou de me encomendar um quadro. Supunha-se que iria ser uma surpresa para o
senhor.
— Sério? E agora eu vim e estraguei a surpresa..., não, acho que não – murmurou, e
quando o dono da galeria veio da parte dos fundos da loja, ele gritou bruscamente para o
homenzinho: – Deixe-nos a sós!
Assustado, o homenzinho parou no meio de uma passada, olhou em torno e para os
outros dois, em seguida, sem uma palavra, voltou para onde tinha acabado de sair.
Mesmo que Beau tivesse a sensação de que já sabia qual seria a resposta, perguntou
assim mesmo.
— Para que é o dinheiro?
Quando deu um passo à frente, o desconhecido pulou para trás, mantendo-se à
distância de um braço.
— Sejamos racionais quanto a isto, Beauchamp! Violência não resolve nada! Além do
mais... – olhou para Carissa. – E o senhor pode se dar a esse luxo. O que estou vendendo
vale pelo menos o dobro do preço que pedi.
— E o que exatamente está vendendo, senhor...?
— Benton – respondeu ele cautelosamente. – Roger Benton.
— E está vendendo...?
— Proteção, – respondeu, armando-se visivelmente de coragem – para a reputação da
vossa senhora.
Endurecido que estava pelo lado sombrio da vida, Beau ficou meio surpreso pelo fato
de que o canalha havia acabado de admitir a extorsão. O que será que havia de tão ruim
assim que Benton tinha a respeito dela? Beau olhou para Carissa, ansiando que ela
dissesse algo. Qualquer coisa.
Mas ela ficou olhando-o com angústia emocionada transbordando pelos olhos. A dor
no olhar da esposa renovou a fúria crescente nele. Não sabia o que poderia ter
acontecido entre aqueles dois, mas era óbvio que esse homem havia lhe causado dano, e
isso era tudo o que lhe importava.
Tudo nele queria atirar Benton pela janela. Mas ele tinha em mente uma ideia melhor...
— Entendo. – Ele endireitou o corpo com olhar muito calmo.
— Quanto, então?
— Três mil.
—Tu tinhas dito dois! – exclamou ela.
Ele olhou por cima do ombro com um olhar zombeteiro.
— Os bolsos dele são mais fundos do que os teus.
— Oh, Deus! – Ela finalmente desabou, ocultando o rosto entre as mãos e se virando.
— Não, é justo – disse Beau rigidamente, como uma cópia do tio dela, Lorde Denbury.
Interpretando seu papel com um tenso assentimento, ele estava, é claro, planejando já
a vingança.
— Este assunto é muito sério, e todos nós sabemos o quanto é fácil começarem os
rumores. Uma vez iniciados, são impossíveis de serem erradicados. Não vale a pena.
Milady, a senhora poderá me explicar vossa parte nisto mais tarde. Senhor Benton, é claro
que eu pagaria qualquer preço para proteger a honra da minha família.
— Muito razoável, Beauchamp.
— Eu sou um homem razoável – disse ele com os dentes apertados – e não desconheço
os caminhos do mundo. Mas meu talão de cheques está na minha casa. Se me
acompanhar no meu coche, vamos lá agora mesmo e eu vos faço um cheque com o valor
integral. Então o senhor poderá seguir vosso caminho...
— Um momento. Agora, depois de tudo, dificilmente entrarei no vosso coche,
Beauchamp. Não sou tolo. E não tenho interesse algum em ver o interior da vossa casa,
embora esteja seguro de que é esplêndida – disse ele com um sorriso zombeteiro,
parecendo muito satisfeito com a própria inteligência. – Vamos nos encontrar em um local
público.
— Como quiser – Beau lhe dirigiu um olhar frio. – Nem todos são tão honrados quanto
o senhor, Benton. Eu só estava tentando manter este assunto longe dos olhos alheios.
Mas, já que o senhor prefere assim, então podemos nos encontrar em..., digamos, na
Osteria da Gaivota Cinza, no cais perto de Billingsgate. Conhece o lugar?
Benton assentiu com cautela.
— Eu vos encontrarei lá.
— Ótimo. Então, quando tivermos concluído nosso negócio, nunca mais vai vos
aproximar da minha mulher de novo, e vai manter a boca fechada sobre este assunto..., se
é que dá valor à vossa vida.
—Bastante justo.
Beau deu um passo para o lado de onde estivera bloqueando a porta e a abriu para
Benton, que avançou para sair, parecendo um tanto aliviado por conseguir escapar
limpamente. Olhou para Carissa, depois parou junto de Beau, com a mão na maçaneta.
— Na Osteria A Gaivota Cinza, dentro de uma hora.
Beau assentiu com a cabeça e Roger Benton saiu. Ele o seguiu com o olhar, levantando
a cortina da janela da porta e olhando-o com os olhos semicerrados quando o canalha fez
sinal para um coche de aluguel, que parou para ele.
Benton subiu e, enquanto o coche contratado rodava pela rua, a criada de Carissa
retornou. Ele abriu a porta para ela, que entrou com uma alegre lufada de vento.
— Oh, então Sua Senhoria nos encontrou! Está com fome, senhor? – Levantou o
embrulho de madalenas que havia comprado na padaria.
— Não, Margaret. Sua senhora estava de saída para voltar para casa. Chegando lá, diga
ao Senhor Vickers que prepare a carruagem de viagem, entendido? Sua senhora vai
viajar..., e a senhora vai com ela. Vão sair imediatamente, esta tarde ainda.
— Beau! —Gritou Carissa.
Ele a ignorou, e ela estremeceu.
— Vai ser uma longa viagem pelo país, portanto, embale todas as roupas que achar que
ela vai precisar para um mês. Pode ir para a carruagem agora e espere lá. Sua Senhoria vai
daqui a pouco. – Disse ele para Margaret.
— Sim, senhor – murmurou a criada, hesitando, com um olhar sombrio para sua ama.
Mas quando ele fez um suave movimento em direção à porta, Margaret fez uma
reverência e correu para dizer a Jamison que sairiam dali a pouco.
Beau ouvia Clarissa chorando de mansinho, então, virou-se lentamente e deu de cara
com aquele olhar choroso.
— Lamento muito – sussurrou ela, com a vergonha e a dor estampadas nos olhos.
Ele ficou rígido, ameaçado pelas lágrimas. Aquele não era o lugar nem o momento para
discutir o assunto e ele não estava disposto a abrir mão da ira que estava sentindo. No
entanto, cavalheiro até o último fio de cabelo, ofereceu a mão à esposa.
— Venha, eu te acompanho até a tua carruagem.
Ela ficou parada onde estava, lutando para manter a compostura, então tirou um
lencinho da bolsinha amarrada ao pulso.
— Está me mandando embora?
—Tu não me deixas opção – respondeu ele.
— E t-tu va-vais lá para ma-matá-lo?
— Deveria?
Ela sacudiu a cabeça, encolhendo os ombros.
— Só me surpreendi pelo fato de tu não desafiá-lo para um duelo.
— Não tem sentido duelar com um homem que não tem um pingo de honra. Isso
aniquila o propósito todo em si. – Ele fez uma pausa, baixando a cabeça. – Não quero
fazer suposições equivocadas, já que tu não facilitastes nenhuma informação para mim,
para que eu siga em frente, mas me parece que esse homem não tem poder para te
chantagear, a menos que a tua participação com ele em algum momento foi voluntária...,
é isso?
— Sim – admitiu ela em um sussurro sufocado, baixando a cabeça. – Foi o maior erro
da minha vida, mas ele..., ele não me forçou a nada.
Beau assentiu com a cabeça, sentindo-se estranhamente amortecido, como se
estivesse observando a cena que ali se desenrolava fora do próprio corpo. Talvez seu
coração continuasse abalado, agora que enfrentava a realidade do tal engano, mas nada
disso lhe parecia real.
— Sabes que se eu tivesse tomado outra atitude aquele sujeito estaria morto aqui, no
chão, neste preciso instante, não sabes? – Secando as lágrimas com o lencinho, ela
conseguiu assentir. – Isso ainda pode ser arranjado, se tu achas que ele merece –
acrescentou ele. – A escolha é tua. Apenas dei minha palavra, e vou me encarregar de
tudo. De fato, isso me daria um prazer enorme.
— Não. Mas não pelo bem dele, mas pelo teu próprio bem. Não vale a pena o risco que
tu correrias, com o comitê respirando na tua nuca.
Ele não conseguiu evitar uma reação cínica, murmurando:
— Estou comovido pela tua preocupação.
— Por favor! Não era minha intenção te magoar...
— Para com isso! – Ele a olhou em sinal de advertência, lutando contra uma maré de
angústia. – Agora não. – E a olhou de novo. – Venha. Vou te levar para casa.
Ela fechou os olhos, procurando se acalmar. Pegando a bolsinha, foi com ele até a
porta, de cabeça baixa. Mas de repente, parou, olhando-o nos olhos.
—Tu vais mesmo pagar esse homem, igual fez Tio Denbury?
— Claro que não – respirou ele. – Vou dar o troco a ele.
O que Roger Benton não sabia era que a Osteria da Gaivota Cinza era a guarida de um
bando de reputação infame, que trabalhava nos molhes como caça-recrutas, estivessem
estes dispostos ou não.
Portanto, em vez de ir até lá entregar mais de três mil libras para comprar o silêncio do
chantagista, era o chantagista que iria ser entregue ao grupo de caça-recrutas.
Quando Beau se sentou na taverna do marinheiro diante de Roger Benton uma hora
mais tarde, deu uma olhada para o grupo de morenos lobos do mar que bebiam em um
canto. Ele lhes fez um discreto sinal com o dedo, depois desatou a rir quando eles
rodearam o dândi chantagista.
Era uma verdadeira lástima que Carissa não estivesse ali para ver como o grupo de
caça-recrutas arrastou Roger Benton para longe, esperneando, choramingando e
ginchando, para apresentá-lo ao serviço de Sua Majestade e vestirem um uniforme no
mais novo recruta da Marinha Real.
Agora ele pode ter a chance de fazer algo de bom por si mesmo, pensou Beau,
divertido, enquanto tomava uma bebida. Ia precisar disso antes de voltar para casa, pois o
próximo passo era a parte mais difícil daquilo tudo.
Lidar com Carissa.
Não havia sentido protelar o assunto. Esmagado pelo peso da cólera e da frustração,
ele bebeu um merecido gole de uísque, ignorando também a dor. Em seguida, colocou o
copo sobre o tampo da mesa, organizou os pensamentos e voltou para casa.
Ao chegar, os criados já haviam empacotado tudo nas malas. Margaret estava dizendo
aos lacaios que ainda tinham que carregar tudo para dentro da carruagem de viagem.
— Onde está Lady Beauchamp? — perguntou ele ao mordomo.
— No salão, milorde.
Beau subiu a escadaria lentamente e a encontrou sentada sozinha diante do relágio
musical automático, esperando o mesmo soar. Os ombros estavam caídos. E os finos
braços estavam envoltos na cintura, como se estivesse tentando evitar um calafrio.Ele
empurrou a porta, depois a fechou com um leve clique. Ela nem o olhou.
Quando parou ao seu lado, ela o olhou. Ele reparou nos olhos vermelhos, inchados, e
no rosto pálido. A imagem dela, daquele jeito, quase arrancou seu coração. Teve o ímpeto
de pegá-la nos braços e lhe dizer que nada daquilo importava; queria aliviar a dor que
aquele bastardo havia feito a ela.
Mas ela o usara, e um homem precisa estabelecer um limite em algum ponto, ou ele
deixaria de ser homem. Desconfiando das próprias emoções, sem saber muito bem o que
fazer, sentou-se ao lado dela e ficou olhando para o relógio também.
— Benton nunca mais será problema – disse ele, passando por cima dos detalhes. –
Caso tu queiras saber dele.
— Obrigada – sussurrou ela com voz trêmula. Fez uma pausa, com a cabeça muito
baixa. – Tu sabias o tempo todo, não é?
— Que tu não eras virgem? Mas é claro que sim –murmurou ele com cautela. – Desde
a noite de núpcias.
— E por que não me dissestes nada?
Ele se virou para ela.
— E por que tu não me falastes?
Ela hesitou.
— Tive medo.
— De mim? É sério isso?! – ele perguntou em voz baixa, cheia de indignação. – Por
quê? O que foi que eu te fiz para que me visses como uma ameaça?
— Não, não foi isso o que eu quis dizer... Eu não queria te perder!
— Entendo. – Essa resposta era uma verdadeira prova para um homem cínico. – Quer
dizer que tu me enganastes por amor? É essa a tua defesa?
— Beau, por favor. Eu não sabia como irias reagir se eu te contasse antes. Tu terias
retirado o pedido de casamento, e depois ainda tinha o fato de que nós dois nos
colocamos naquela situação escandalosa. E então, mais tarde, depois da nossa noite de
núpcias, parecia que tu não tinhas te dado conta, e eu não sabia como trazer o assunto à
baila! Eu só queria que as coisas ficassem como estavam. E então ele..., apareceu. E mais
uma vez, queria dinheiro. Aquele horroroso..., parasita!
— Bom. – Ele cruzou os braços sobre o peito. – Eu diria que o teu gosto para homens
melhorou muito desde então. – Olhou-a de soslaio. – Pelo menos agora eu entendo por
que tu vivias obcecada pelos mexericos.
— Se te interessa saber, eu vou me envergonhar de mim mesma pelo resto da vida!
Não consigo acreditar que fui tão egoísta assim. Sequer pensei no impacto que causaria
na tua reputação, mesmo depois de casados.
— Oh, sou bastante difícil de envergonhar – disse ele arrastando as palavras em voz
baixa, embora não pudesse dizer por que diabos estava tornando as coisas tão fáceis para
ela, que merecia sofrer, ou pelo menos se humilhar, mas só um pouco.
Ela o olhou com aqueles olhos grandes e expressivos, cheios de dor e pesar.
— Eu só estive..., com ele..., uma vez. Faz quase dois anos, uma indiscrição juvenil.
Nunca tive a intenção de que isso acontecesse, mas..., apenas aconteceu.
— Por favor, não preciso saber disso.
Ela soltou uma dolorosa zombaria com lágrimas nos olhos.
— Afinal, devo te contar ou não? De qualquer modo, tu vais ficar zangado comigo,
tanto faz se eu te contar ou se continuar em silêncio...
— Ouve... Não é o fato de teres te deitado com ele que me dói. Pelo amor de Deus, eu
mesmo não sou santo – murmurou, muito surpreso ao ouvir a si mesmo admitir que nada
podia lhe causar dano. Ele a olhou, meio perdido. – É evidente que tu não sentias que
podias confiar em mim. Durante todo esse tempo tu pensastes que havias conseguido o
que querias. Tu realmente deves achar que eu sou um rematado tolo.
— Não!
— Não sou tolo, Carissa. Eu estava tratando de ser gentil contigo. Desde aquela noite,
fui tão paciente quanto pude ser. Esperando que tu me procurasses e que confiasses em
mim. Eu te dei várias oportunidades para me contar, então tu podias ver que eu ia
entender. Queria que tu soubesses que estava a salvo comigo. Pensei que, certamente, se
eu te desse algum tempo, tu acabarias por se abrir comigo e verias que podes confiar em
mim. Mas tu nunca fizestes isso. – Ela começou a chorar de mansinho de novo, com a mão
nos lábios. – O que tu achas que eu faria..., abandonar-te?! – perguntou ele com voz
cansada, oferecendo-lhe um lenço. – Depois de todas as mulheres com as quais estive?
Não sou tão hipócrita assim..., mas tenho que admitir que fiquei um tanto decepcionado.
Como é que tupudestes te enganar tanto assim ao meu respeito?
— Sinto muito.
— Pelo que, por mentires para mim, ou por que fostes apanhada na mentira?
— Eu não devia ter te mentido.
— É verdade, não devias mesmo – ele concordou, lutando para se manter firme diante
daquelas lágrimas.
Seus olhos cor de esmeraldas registraram a atitude suplicante da esposa, enquanto os
lábios rosados que havia beijado tantas vezes tremiam de remorso.
— Milorde, podes me perdoar?
Ele olhou bem para ela.
— Que tipo de ogro não o faria?! – exclamou ele. – Por favor, para com isso! Odeio te
ver chorar. Não vou te causar dano algum, Carissa. Não é questão de perdoar ou não. Não
percebes? Para ser honesto, não sei o que fazer contigo neste instante. Tu não consegues
ser verdadeira comigo. Não fazes nada do que eu te digo. Se não confias em mim, como é
que posso confiar em ti? E se não há confiança entre nós, como acha que podemos amar
um ao outro?
— Mas eu te amo! Eu te amo, Beau!
A forma como as palavras foram arrancadas dela pela primeira vez, com tanta paixão,
doeu nele, e as lágrimas naquele rostinho tão querido quase que o afligiu. Ele a olhou em
silêncio, tomado pela surpresa devido àquela feroz declaração. Antigas amantes já haviam
lhe dito isso antes, mas nunca de forma que ele pudesse acreditar..., até agora.
Até Carissa.
Aproximou-se mais, atraído por ela, mais desesperado do que nunca havia se atrevido
a admitir, pelo amor que ela lhe oferecia, fosse verdadeiro ou falso; incapaz de dizer uma
palavra sequer, tomou-a nos braços, com o coração disparado. Ela tremia nos braços do
marido, que abaixou a cabeça e reclamou sua terna boca em uma feroz tormenta de
necessidade.
Atraindo-a contra seu corpo, aprofundou o beijo e ela passou os braços languidamente
pela sua nuca, e a única coisa que ele sabia era que mulher alguma o havia feito se sentir
assim.
Queria estrangulá-la e ao mesmo tempo queria levá-la para longe, para escondê-la em
algum lugar seguro, em um estojo de veludo, onde ninguém pudesse lhe causar dano
algum. Ele ansiava se perder nela, pelo esquecimento do seu corpo rendido, a ternura
daquele coração; e, concomitantemente, com a mesma força, como um cavalo chucro que
nunca havia sido domado, queria fugir dela..., mas não conseguiu...
Ela havia se imiscuído dentro da sua alma, e ele temia por isso, sabendo que ela podia
destruí-lo se algum dia o abandonasse, já que era isso que as mulheres faziam. Não se
devia confiar nelas. Hoje ele tivera uma prova disso. Seu pai já havia lhe dito quando ele
ainda era criança, e, em algum lugar bem no fundo de si, ainda acreditava nele.
Mas, que diabos estou fazendo?!
De repente, aquilo tudo era mais do que ele podia suportar. O frio, solitário, todas as
partes sobreviventes de si mesmo que nunca havia compartilhado com nenhuma amante,
a parte que havia lhe permitido usufruir de uma noite na cama de quem quer que fosse
sem o menor risco para o seu coração..., de repente, clamando como o inferno para que
saísse dali, que mantivesse aquela mulher à distância de um braço, pelo menos. Antes que
ela o destruísse. Interrompeu o beijo e a afastou, ofegante e confuso em meio à repentina
percepção irônica de que, ao que parecia, ele não confiava em ninguém mais, só nela.
Com o coração disparado, só sabia que se não conseguisse recuperar o controle da
situação estaria condenado.
—Tu precisas ir para o campo – grunhiu, negando-se a nunca mais permitir que ela,
pateticamente, levasse-o pelo nariz.
Pelo menos ela não sabia como ele estava se sentindo. Ela se aferrou ao marido, as
lágrimas brilhando nos olhos iguais doces esmeraldas.
— Por favor, não me mandes para longe, Beau – ela suplicou, em uma rasgada mostra
denecessidade sexual. – Não me afastes de ti, meu querido marido. Agora não.
— Não. – A voz saiu áspera e estranha até para ele mesmo. – Já está na hora de fazeres
o que te digo e me mostres que podes ser uma boa esposa. – Engoliu saliva, afastando
suavemente as mãos dela do rosto dele. – Tu vais para o campo e ficarás esperando junto
com as outras senhoras até que seja seguro voltar. Então, vou mandar alguém te buscar.
Tu ficarás bastante confortável lá, e segura.
— Mas e quanto a Nick? Tu dissestes que ele sabe sobre esse lugar...
— Vou enviar instruções especiais ao sargento Parker, informando-o sobre a situação.
Tu ficarás bem. – Sentiu-se mais normal quando olhou para o outro lado e se concentrou
de novo no que precisava ser feito. – Além do mais, não pretendo dar tempo para que
Nick fique sabendo sobre a tua localização. Vou caçá-lo assim que tusaíres de Londres.
Tenho que resolver isso com ele o mais rápido possível – grunhiu, evitando os olhos dela.
Mas viu, pelo rabo do olho, que parecia que ela havia entendido o recado. Estava
colocando os pés no chão.
— Então, promete-me que vais te cuidar.
— É claro que sim.
De repente, ela pulou, soltando um grito sufocado, sobressaltada, quando o relógio
soou. Ambos estavam tão silenciosos que a metálica melodia parecia um estrondo no
silêncio da sala.
Beau colocou as mãos na cintura, sentindo dor ao se lembrar do dia no qual se casou e
de todas as esperanças que havia sentido. Mas disse para si mesmo que não era o fim do
mundo. Todo casamento tem seus altos e baixos. No entanto, por algum motivo, não
conseguiu olhá-la nos olhos enquanto soava a melodia. Cada nota tinha um tom
levemente angustiante para ele no momento.
— Vem. Está na hora de ires – disse ele quando a melodia finalmente acabou. Antes
que eu mude de ideia.
— Devo mesmo? – sussurrou ela.
— Tu não me deixas opção! – disse ele com veemência demais, negando-se a se
deixar levar. – Mas que inferno, tenho coisas demais com as quais me procupar sem a tua
intromissão, e tu tornando tudo mais difícil! Sinto muito, mas fostes tu mesma quem
provocou tudo isso.

Ela baixou a cabeça.

— Está bem, então eu vou.

Maldição, mas é claro que vais!

Com a mandíbula apertada, acompanhou a esposa pelo salão com um leve toque na
parte baixa das costas dela. Ele a ajudou a descer a escadaria até o vestíbulo de entrada,
onde lhe entregou a bolsinha de pulso e ajeitou levemente a peliça sobre os ombros da
esposa para mantê-la quente.
Em seguida, levou-a para fora, onde o cocheiro esperava e beijou levemente os nós dos
seus dedos antes de ajudá-la a subir. Ela caminhava com a graça e a dignidade estoica de
uma verdadeira dama.
No momento ela se parecia muito pouco com a sua Carissa, mas, pelo que sabia, talvez
agora, livre de todos aqueles segredos e podendo ser verdadeira com ele, pudesse vir a
ser uma pessoa completamente diferente.
Só o tempo diria. Esperava que a verdadeira Carissa não fosse diferente demais. Ele
gostava muitíssimo daquele jeito adorável e enlouquecedor que ela tinha, das mentiras e
de tudo o mais. Talvez fosse esse o problema. Quiçá, no fundo, os dois fossem parecidos
demais.
Quando se acomodou no interior da grande e confortável carruagem de viagem, ela o
olhou através da porta aberta, quase como que esperando que ele mudasse de opinião.
Mas Beau se fez de desentendido.
— Escreve-me para me informar assim que chegarem lá em segurança.
Ela assentiu.
— Sinto muito – sussurrou ela mais uma vez.
Ele devolveu o olhar, rasgado de pesar e pela necessidade de mantê-la fora de perigo.
— Eu sei, doçura. – Mais uma vez, quase que ele sucumbiu à emoção, mas
rapidamente se controlou, para manter a mente nos fatos. – Diz-me – disse ele, mudando
de assunto – antes de ir, conseguistes averiguar algo útil sobre os artistas da Revolução
Francesa, nas galerias?
— Não. – Ela sacudiu a cabeça com amargura. – Toda a minha intromissão foi em vão.
Tudo foi um tremendo desperdício.
Ele franziu o cenho, notando a nota de frieza da ira dirigida a elamesma e o desgosto
no tom baixo da resposta.
—Tu só estavas entando me ajudar – disse ele, consolando-a.
Ela sacudiu a cabeça e olhou para o outro lado, os lábios em uma tensa linha reta.
— Adeus. Fecha a porta, por favor. Cocheiro!
Beau fechou a porta da carruagem e disse adeus a Margaret, que havia ficado sentada
bancando a surda-muda durante a conversa, como só o melhor dos criados conseguia.
— Tudo certo, Jamison! Mantem-nas a salvo!
— Sim, meu senhor! – respondeu o cocheiro, em seguida, cantarolou uma ordem para
os cavalos e estalou as rédeas.
Beau ficou na calçada olhando a carruagem se afastar. Cruzou os braços enquanto uma
inquietante pergunta flutuava como um fantasma sombrio perpassando sua mente.
Será que parte do motivo de ter guardado silêncio sobre o fato de conhecer o segredo
de Carissa fosse porque essa era uma forma de manter uma distância segura entre eles?
Será que ele não havia sido um nobre cruel ao lhe negar a confrontação durante todo
aquele tempo? Talvez ele estivesse apenas se poupando do risco de se entregar realmente
a ela.
Sussurrou uma maldição dirigida a si mesmo enquanto olhava a carruagem sumir de
vista ao virar a esquina. Mas que inferno! Ele era um belo de um hipócrita, isso sim.
Hipocrisia era o que mais odiava, depois dos Prometeos.
Podia ser também que... Meu Deus, talvez ele fosse até um tanto covarde, pensou com
humildade.
Os perigos que corria nas batalhas nunca o fizeram hesitar, mas nenhuma mulher antes
de Carissa jamais havia tido esse tipo de poder sobre ele.
Sabendo do perigo no qual isso o colocava, fez com que ele realmente ficasse nervoso,
inquieto.
Qualquer coisa era melhor do que insistir no assunto. Empurrou todas as perguntas
emaranhadas para longe, voltou a entrar na casa e para a empreitada em questão.
Caminhando altaneiro, voltou para o reino da vida, onde ele era o amo e senhor.
Escreveu rapidamente uma mensagem cifrada, usando um código secreto, para a
equipe da Ordem em Calais, responsável pela casa de segurança, os mesmos homens que
haviam recolhido ele e Carissa na costa, quando haviam ido ver Madame Angelique.
Dificuldades na Inglaterra. Diga a Rotherstone e equipe que permaneçam na França
até segunda ordem minha.
Curto e objetivo. Só esperava que não fosse tarde demais.
Depois, voltou a ir até os molhes, não muito longe de onde havia entregado Roger
Benton para o grupo de caça-recrutas, para entregar a mensagem.
Caminhando pelo molhe, encontrou-se com o velho pescador cujos serviços já havia
usado antes para levar mensagens através do Canal; pagou ao sujo marinheiro uma
pequena fortuna e o advertiu mais uma vez com as habituais e graves ameaças para que
nunca dissesse palavra alguma sobre o assunto. Então, satisfeito, voltou à cidade, com os
olhos semicerrados enquanto se preparava para a próxima tarefa, consideravelmente mais
difícil.
Procurar Nick.
Capítulo
21
C arissa estava se sentindo miserável, mas o reencontro com as amigas era um

consolo. Daphne e as outras mulheres se surpreenderam quando ela chegou sem avisar
na idílica casa de campo escondida em um local ermo da campina de Hampshire, a duas
horas de coche de Londres.
Os jardins esculpidos e o parque criavam um ambiente tranquilo, mas a presença dos
guardas armados era uma clara recordação do perigo.
As outras mulheres fizeram a parte delas, dando-lhe as boas-vindas com abraços e
lágrimas, em seguida, com gritinhos de assombro quando ela lhes contou que havia se
casado com Lorde Beauchamp.
— Por que não me escrevestes nem me mandastes um recadinho para que eu
soubesse imediatamente? – Gritou Daphne, abraçando-a e felicitando-a.
— Eu queria te contar pessoalmente.
— Oh, eu sabia!... Eu te disse que ele estava louco por ti! – Soltou Daphne, mas Kate
analisou Carissa, ladeando a cabeça.
—Tu não pareces assim, terrivelmente entusiasmada, a respeito – observou a jovem
duquesa de cabelo escuro, cruzando os braços sobre o peito.
— Estamos brigados – admitiu Carissa, e era a única coisa que podia fazer para não
desatar a chorar estupidamente de novo.
Não conseguia acreditar que aquele homem havia feito dela uma carpideira. Mas
Daphne a consolou com carinho.
— Pobrezinha. Não, não, querida. Vem e conta-nos tudo o que aquele malandro fez
contigo.
— Prefiro não falar sobre isso – disse ela com um soluço digno.
Seria muita humilhação admitir que finalmente havia dito ao marido que o amava e ele
não havia respondido nada. Não que pudesse culpá-lo depois do que ela havia feito com
ele. Era uma bela de uma mentirosa, além de desavergonhada e furtiva, e não merecia o
marido. Talvez ele não pensasse assim, mas ela pensava.
— Bom, nós estamos aqui para te ouvir sempre que precisares falar. – Consolou-a
Daphne. – Agora, tu acabastes de chegar e de te instalares, e nós faremos o melhor que
pudermos para te animar. É maravilhoso tu teres vindo, justamente quando estávamos
ficando loucas de tédio! Senti muita falta da tua engenhosidade. Vamos nos divertir juntas
e tirar o melhor partido de tudo isto. Afinal de contas, somos esposas da Ordem, e
sabemos e entendemos qual é o nosso dever! Não é mesmo?
As outras assentiram com a cabeça, apesar de considerarem que Carissa estava
bastante estranha. Ela supôs que não parecia em nada à habitual lutadora que era.
Daphne colocou um braço em volta dela.
— Então, vamos lá. Há duas belas alcovas para tu escolheres...
A loura marquesa a acompanhou até a bela casa de campo e as demais as seguiram. Lá
dentro, Carissa parou para sorrir para o pequeno e adorável filho de dois anos de Mara,
Thomas, do casamento anterior. Aos trinta anos, Mara, Lady Falconridge, era vários anos
mais velha do que o resto delas e havia enviuvado antes do recente casamento com
Jordan, Lorde Falconridge.
Carissa não conhecia Mara tanto quanto conhecia as outras. Com efeito, havia sido
cética com relação a ela, não só porque as más línguas haviam espalhado aos quatro
cantos que ela era amante do Regente, mas porque sabia que Mara havia partido o
maravilhoso coração de Jordan quando os dois tinham apenas vinte anos. Mas,
recentemente haviam se acertado..., e muito mais...
Thomas chorou pedindo que a mãe o pegasse no colo. Mara o levantou para
aconchegá-lo, depois o colocou na cadeira.
— Beauchamp ficou sabendo de algo sobre os nossos maridos? – Murmurou Kate.
Carissa negou com a cabeça.
— Não que eu saiba, sinto muito.
Kate suspirou.
— Sinto muita falta do meu bruto.
Carissa sorriu ao ouvir o apelido que os outros homens haviam dado ao marido de
Kate, Rohan, o Duque de Warrington, fazia anos. Todos os homens eram amigos e se
conheciam desde a infância.
— É difícil estar separados.
Daphne concordou, tomando para si o papel de líder, como o marido, Lorde
Rotherstone, fazia com os homens.
— Mas eles estão fazendo o que precisa ser feito – declarou com um sorriso. – Além do
mais, tenho certeza de que eles sentem mais a nossa falta do que nós a deles.
Carissa não disse nada, sabendo que o marido não sentia saudades dela em absoluto.
Deverto estava mais do que satisfeito por ela ter partido. Então as mulheres lhe
mostraram o interior da casa. As pacientes disposições para suportar qualquer sacrifício
no que se requeria delas angustiou-a completamente.
Não era de estranhar que Beau estivesse exasperado com ela se a estava comparando
às esposas-modelo como Daphne.
Tu não pode lhes dizer a verdade, vais fazer o que eu te digo...
Agora que estava de volta entre as amigas, o vínculo de segredos compartilhados entre
elas enquanto esposas da Ordem era mais importante na sua mente, e, finalmente, deu-
se conta de que havia arriscado a segurança de todos por ter feito todas aquelas
perguntas nas galerias de arte que havia ido investigar.
Deus amado, poderia ter posto todos eles em perigo! Se ela tivesse falado demais, se
as perguntas chegassem até o artista que havia contratado Nick, e depois aos vilãos,
fossem lá quem fossem, poderiam rastrear Beau, os outros homens, as mulheres, até
mesmo o pequeno Thomas.
O perigo ao qual ela havia exposto os amigos a deixava enjoada, principalmente pela
forma como havia mentido para Beau. Como havia sido estúpida! Arrogante! Cega!
Havia pensado que o risco era apenas para ela mesma e havia se preparado para
enfrentar esse perigo com suficiente coragem. Mas se ela tivesse parado um pouquinho
para pensar nos outros e apenas por uma vez não pensasse em si mesma como solitária,
sem vínculos reais com ninguém, como havia feito desde que ficara órfã, então teria dado
ouvidos ao marido e não teria ido bisbilhotar nesse dia.
Não importava que ela estava apenas tentando ajudar. Ela havia arriscado sem querer a
segurança de todos com quem se importava. O que diabos havia pensado que estava
fazendo, intrometendo-se daquela maneira?! Ela não era espiã! Não tinha treinamento
algum.
Quem era ela para levar a peito uma investigação?
Apenas alguns milhares de tolos mexericos, fingindo que sabia o que estava fazendo.
Enfiou o rosto entre as mãos depois que as demais a haviam deixado a sós no quarto que
lhe fora designado.
Os criados haviam levado sua bagagem e as outras haviam lhe dado um pouco de
privacidade para se por à vontade antes do jantar. Outra pisada na bola. Ela havia
ultrapasasado os limites como se fosse uma pequena sabichona ao perder a virgindade
com um canalha e depois mentir para o seu maravilhoso marido a respeito do fato.
Meneou a cabeça, desgostosa consigo mesma e totalmente deprimida.
Jurou que, dali em diante, deixaria a espionagem para os espiões. Não queria mais
nada com toda aquela intriga, sequer havia falado sobre o assunto com as amigas, o que
era bom, considerando que Beau havia lhe ordenado que não tocasse no assunto com
elas.
Pelo menos, a recompensa por se desfazer de Roger Benton era não mais precisar
monitorar aquelas enxurradas de mexericos como dantes.
Com efeito, pensou, já estava na hora de começar a se ocupar dos próprios assuntos.
Quanto a Beau, não podia culpá-lo se a odiava naquele momento, embora aquele beijo
torturado havia sido qualquer coisa, menos ódio.
Sabia que havia ferido o marido, e ela sentiu dor dos pés à cabeça por causa disso.
O que será que ele iria fazer agora? – ela se perguntou. Afaster-se-ia dela para sempre?
Castigá-la-ia, saindo para procurar outra mulher que satisfizesse suas necessidades mais
viris, enquanto ela ia embora? Essa simples ideia lhe provocou dor no estômago, mas isso
não a surpreenderia. Ele não havia dito Eu te amo, depois de tudo. Fechou os olhos
àqueles horríveis sentimentos.
Realmente, ela não sabia qual era a própria posição com relação a ele no momento. Só
sabia que, àquela altura, a única coisa que podia fazer era controlar as próprias ações,
então decidiu que havia chegado o momento de mudar. A única forma pela qual podia se
redimir era mostrando-lhe que podia obedecer como uma boa esposa o faria; podia dizer
a verdade, e aceitaria a autoridade que lhe correspondia como seu marido.
Deus sabia que tinham que começar por alguma parte. Aceitaria a condenação de ter
sido exilada no campo sem se queixar. Colocando a mão sobre o coração, levantou a
cabeça e fez um voto silencioso de ser uma boa e obediente esposa da Ordem..., assim
como Daphne. Exatamente daquele momento em diante.
Nessa noite, Beau atravessou o burburinho da multidão de homens reunidos para
verem as lutas de boxe. Cerveja inglesa e a ruína azul fluindo; o ar estava carregado da
fumaça de incontáveis charutos; risos ásperos se ouviram em um grupo no qual um
homem havia acabado de contar para os companheiros uma anedota muito suja.
E acima de tudo aquilo, as apostas voavam, pois para isso haviam ido ali.
Era um lugar tão provável quanto qualquer outro para encontrar o amigo mercenário.
Ele havia verificado com seus vários contatos, a quem havia dito que mantivessem os
olhos e os ouvidos abertos para qualquer notícia de Nick.
Mas os olheiros não tinham nada para informar. Aquele bastardo estava, obviamente,
tomando todo o cuidado. Mas, já que eram amigos havia anos, Beau decidiu verificar em
todas as casas de jogo clandestinas que sabia serem as favoritas de Nick.
Madame Angelique havia dito que Nick já havia recebido parte do pagamento pelo
serviço. Conhecendo-o, não demoraria muito para que ele estivesse de volta às mesas de
jogo. Beau sabia, por experiência própria, que Nick sempre procurava a distração
embriagadora dos jogos de azar quando estava sob pressão, tal como agora.
Quando ficou sabendoque em um daqueles antros, Covent Garden, Tom Cribb iria lutar
nessa noite, sabia que era lá que teria que procurá-lo. Nick gostava de apostar,
especialmente em lutas de boxe, e o campeão inglês era seu boxeador favorito. A luta
principal da noite seria com Cribb. Beau sabia que Nick tinha que estar ali.
Olhou um por um os rostos dos presentes, mas nem rastro dele.
Enquanto isso, no ringue, a luta intermediária começaria dentro de poucos minutos. Os
atléticos pugilistas estavam recebendo as últimas instruções dos respectivos treinadores.
Beau continuou caçando, maldizendo-se intimamente por não ter contado para Virgil
há muito tempo sobre os problemas de Nick com o jogo.
Cada vez que ele ia falar com o velho escocês a respeito, Nick o procurara em particular
e havia prometido que ia mudar.
Em três ocasiões diferentes, Beau havia se deixado convencer por Nick que Beau era
como um irmão para ele, e também porque queria acreditar nele.
Certamente que ele não havia querido que novos agentes ainda verdes substituíssem
seu melhor amigo na equipe. Nick era um excelente agente, sem medo, letal. Isso para
não falar que era contra a natureza de Beau ser desleal.
Havia ficado cego pela lealdade e, talvez, perdoado uma falha. E agora, olha aonde isso
os havia levado. Ai, ele estava pagando o preço por isso agora, embora não tão alto
quanto o preço que Trevor estava pagando.
Espera, companheiro, disse ele mentalmente ao outro amigo, refém de Nick. Eu vou te
tirar dessa enrascada, esteja tu onde estiveres.
Ele percorreu o tortuoso caminho entre as mesas dos anotadores de apostas e se
apoiou em uma coluna, de onde podia ver os homens que iam e vinham fazer as apostas.
A multidão estava emocionada, e a conversa forte e barulhenta enchia o recinto. Em
todos os lugares os homens debatiam sobre os diferentes pontos fortes e fracos dos
pugilistas a ponto de começar a discutir e a expressar opiniões sobre a última luta.
De repente, Beau viu Nick no meio da multidão. No mesmo instante foi até ele. Estava
com as Manton carregadas dentro do coldre debaixo do casaco, caso o amigo precisasse
ser persuadido.
Ele não queria forçar Nick enfiando-lhe uma pistola nas costelas. De uma forma ou de
outra, ele ia por um ponto final nisso, e depois ainda tinha aquela questão para resolver
com Carissa.
Beau queria muito cobrar do amigo o fato de ter assustado sua mulher. Até Nick sabia
que havia ido longe demais. Mas os sentidos altamente treinados deviam ter alertado
Nick quanto à aproximação do inimigo. Beau estava apenas a dez metros dele quando o
mercenário de cabelos pretos olhou por cima do ombro e o viu se aproximando.
Então saiu correndo. No mesmo instante Beau sai correndo atrás dele, abrindo
caminho entre a multidão enquanto os lutadores estavam sendo apresentados no ringue.
Os fanáticos do boxe começaram a ovacionar o favorito, enquanto Nick fazia o possível
para se perder em meio à multidão.
Beau o viu justamente antes de Nick desaparecer pela porta, então, arremeteu atrás
dele.
— Maldição! Volta aqui! – rugiu, enquanto explodia para a escura e fria noite úmida.
Nick se esgueirou e dobrou a esquina. Beau não se deixou intimidar, correndo atrás
dele e deixando para trás as lamparinas do portal do edifício. As estreitas ruas do entorno
estavam tomadas pelo coches dos espectadores estacionados por ali.
Beau estava caçando sua presa através do labirinto de veículos, de arma em punho.
Quando se agachou para olhar por baixo das intermináveis filas de coches, viu pernas
correndo e as perseguiu.
— Não me obrigues a atirar em ti de novo, seu estúpido filho da puta! – gritou ele na
escuridão. – Para de correr como covarde e fala comigo! Eu sei o que está acontecendo,
porque falei com Angelique! – gritou.
— Tua esposa é muito bonita – zombou Nick em meio às sombras, em algum lugar
próximo.
Beau se levantou e olhou em torno com o peito agitado. Ele o ouvia, mas não
conseguia vê-lo. De repente, a porta de um dos coches se abriu, mas Nick não estava lá
dentro.
— Aproxima-te dela de novo e vou me esquecer de que já fomos amigos!
— Relaxa, Beauchamp, eu só queria te mostrar uma coisa.
— O quê, que perdestes todo senso de honra? – Beau se arrastou até um beco logo à
frente. – Quem é que eles querem que tu mates? – insistiu, tratando de continuar falando
para conseguir localizá-lo.
— Ainda não sei quem é. Provavelmente eu fique sabendo em breve. – Nick parou. –
Não que isso seja da tua conta.
— Mas isso é loucura total, homem. Tu sequer conheces quem te contratou. Isso não
está cheirando nada bem e tu sabes disso. – Dobrou a esquina, arma em punho, mas Nick
não estava ali. – Onde estás? – gritou, perdendo a paciência. – Sai e mostra a fuça que
nem homem!
Mas não obteve resposta. Continuou procurando, mas Nick havia escapulido. Beau
praguejou baixinho, passando a mão pelo cabelo enquanto se virava, frustrado,
explorando em todas as direções pela última vez. Nick não estava em parte alguma.
Então parou, respirou fundo, fechou os olhos para clarear a mente e apertou as
pálpebras, usando o dedo polegar e o médio. E agora? Pense. Com o coração ainda
disparado e a fúria lhe percorrendo as veias, demorou pouco para elaborar a próxima
estratégia. Depois foi até o próprio coche com largas passadas. Se Nick seria difícil, tinha
outros caminhos para seguir.
Havia somente um armeiro em Londres em quem os agentes da Ordem realmente
confiavam para fabricar as armas das quais suas vidas dependiam com tanta frequência.
Hans Schweiber era armeiro de Hesse, cuja família estava no ramo de armas havia
gerações.
Foi um dos principais contatos que Beau havia alertado primeiro para que ficasse
atento quanto a Nick, mas ele não havia ouvido nada de novo, então decidiu que nessa
noite poderia valer a pena parar e conversar um pouco com o velho.
Quando Beau entrou na loja de armas meia hora mais tarde, Schweiber olhou para ele
por cima dos pequenos óculos retangulares. O resto da loja estava às escuras e o curtido
armeiro estava sozinho, trabalhando à luz de velas em uma das sua elegantes criações
bem balanceadas.
—Herr Schweiber – cumprimentou Beau.
— Lorde Beauchamp. Achei mesmo que vos veria em breve – comentou o velho
serenamente, fazendo uma pausa para trocar de ferramenta.
— E por quê? – perguntou Beau.
Beau fechou a porta e se aproximou. Achou a loja de Schweiber estranhamente
reconfortante, os cheiros familiares de pólvora e óleo e o couro das sacolinhas de pólvora
à venda. Troféus de caça e lembranças militares enfeitavam as paredes, presentes de
honra dos fanáticos da aristocracia pela caça e dos oficiais militares que veneravam o
armeiro pela habilidade que tinha na fabricação de armas que haviam salvado suas vidas.
Schweiber olhou por cima dos óculos de novo.
— É o senhor quem vai me dizer.
Beau apoiou um cotovelo no balcão, admirando o trabalho do armeiro.
—Tu sabes do problema que estou enfrentando com Forrester, não sabes? – Ele
encontrou o olhar do armeiro. – Ele esteve aqui?
Schweiber o olhou com receio.
— Sim – admitiu, depois de um instante de hesitação.
— Quando? E por quê não me comunicastes isso?
— Foi anteontem, e eu estava justamente pensando nisso.
— Como assim, pensando nisso?
O armeiro encolheu os ombros.
— Ele disse que o senhor é que era o problema.
— Eu? – exclamou Beau.
— Sim. Ele me disse que o senhor é um traidor.
Beau o olhou com assombro, depois desatou em uma irritada risada cínica.
— Oh, então foi isso que ele disse para ti. – Meneou a cabeça. – Schweiber, tu não
acreditastes nele, não é?
— Eu não sabia muito bem em quem acreditar – disse o armeiro com aquele astuto
olhar alemão.
— E tu não estavas nem um pouco ansioso para tomar partido – replicou Beau com
total naturalidade.
Schweiber encolheu os ombros.
— Por acaso ele não tentou te ameaçar para que ficasses de boca fechada?
— Não, não. Eu sou útil demais para ser ameaçado, até mesmo pelos meus clientes
mais perigosos – disse ele com uma risadinha.
— Bom, posso te garantir que estou seguindo todo o protocolo habitual. Foi Nick quem
abandonou a ordem. Tenho que encontra-lo antes que ele cometa alguma imprudência. O
quê ele queria de ti?
— Um rifle de longo alcance. – Schweiber soltou o trapo e olhou para Beau com
aceitação cautelosa.
—Rifle de longo alcance – repetiu ele, assentindo com a cabeça. – Disse algo sobre o
tipo de mira tinha que ter? Pediu alguma especificação incomum na arma? – Schweiber
negou com a cabeça. – Ele te deu algum endereço para enviar a cobrança, ou para onde
enviar a arma quando estiver pronta?
— Não foi preciso nada disso. Ele comprou a melhor arma que eu tinha àdisposição. Na
verdade ele me pagou adiantado por ela. Pela primeira vez, até onde posso me lembrar.
— Como uma novela – disse Beau secamente.
— Sim – disse o velho, e fez uma pausa. – O que me fez pensar.
— No quê? – pressionou Beau.
Schweiber o olhou, atento.
— Ele parecia agitado. Estava agindo de forma tão estranha que mandei meu aprendiz
segui-lo, a uma distância segura, claro. Bons aprendizes são difíceis de se encontrar. Eu
disse ao rapaz que não se deixasse ver.
Beau estava totalmente imóvel, ouvindo.
— E para onde ele foi?
— Para East End Englands. A rua não tinha placa, mas Michael pode vos mostrar o lugar
quando voltar. Ele saiu para fazer uma entrega.
— Maravilha. Bom trabalho, Schweiber. Graças a Deus que alguém neste cidade tem
mais cabeça do que eu. Quando teu aprendiz deve voltar?
— Não até amanhã. A entrega foi em Leicestershire.
— Manda o rapaz falar comigo assim que ele chegar aqui. O tempo é crucial.
— Sim – disse Schweiber serenamente.
— Obrigado, Hans. – Beau se dirigiu à porta, mas parou antes de sair. – Esse rapaz tem
certeza de que Nick não percebeu que estava sendo seguido?
O velho armeiro assentiu com sagacidade.
— Michael se orgulha de ser sigiloso. Ele quer ser agente da Ordem.
Beau arqueou uma sobrancelha sardonicamente.
— Dissuade-o de tal ideia.
Schweiber sorriu e pegou de novo o trapo que usava para limpar as armas. Beau fez um
leve gesto com a cabeça, a guisa de despedida, depois voltou a se embrenhar na
escuridão.
Capítulo
22
N essa noite, Carissa estava sentada na sala de estar com as outras mulheres.

Thomas estava encantando a todas, rolando uma bola de um lado para o outro e com
cada uma delas por vez, fazendo ouvidos moucos às reiteradas chamadas da mãe dizendo
que já estava na hora de o pequeno senhorzinho ir para a cama.
— Ele é o nosso entretenimento. – Explicou Daphne, jogando a bola de volta para o
menino.
As mulheres haviam tido um bom jantar nessa noite, seguido de um passeio pelos
jardins ao entardecer e um pouco de criquet no gramado.
Porém, a parte mais interessante depois da chegada de Carissa à quinta da Ordem,
além de ver as amigas, foi o passeio que fizeram para mostrar-lhe a propriedade,
acompanhado pela exposição de todos os procedimentos de segurança do Sargento
Parker, fiel cavalheiro da Ordem que havia sido designado como chefe de segurança da
quinta, juntamente com mais de uma dúzia de homens sob seu comando.
O soldado rude e curtido pelo sol era muito mais duro, suspeitou ela, que sua fornida e
compacta estrutura sugeria à primeira vista. Parker lhe mostrou as três diferentes rotas de
escape do quarto dela, dependendo de qual a direção na qual a ameaça pudesse chegar.
Mostrou algumas fechaduras na porta do quarto e lhe entregou uma pistola carregada
para que ela a guardasse na gaveta do criado-mudo ao lado da cama, depois lhe mostrou
a escada de corda escondida dentro do armário caso precisasse escapar pela janela do
terceiro andar.
Ato contínuo, mostrou-lhe uma mochila com suprimentos básicos que haviam
preparado para ela, caso precisasse fugir e se eles fossem atacados por qualquer motivo.
Ela estava fascinada. A mochila continha um pouco de dinheiro, um cantil com água,
uma pequena quantidade de alimentos secos, um par de sapatos resistentes, balas extras
para a pistola e uma bússola.
— É claro que a senhora compreende, milady, que tudo isto é para ser usado em
último caso. Os Prometeos nunca descobriram este lugar, mas temos que estar sempre
preparados.
— É claro, entendi perfeitamente – havia respondido fracamente, mesmo sem ter
certeza de quem eram aqueles tais de Prometeos.
— Bom. Agora a senhora já sabe o que fazer caso aconteça o pior, caso sejamos
atacados aqui e consigam passar pelos nossos homens. Não precisa se preocupar, é claro.
Não tenho motivo algum para pensar que estejamos correndo o mínimo perigo que seja
por enquanto, mas esses são os nossos procedimentos, por isso estou lhe mostrando tudo
isso agora porque a Ordem acredita que devemos estar preparados para qualquer
eventualidade. – Ela assentiu, inquieta. – Agora, caso aconteça algo e se a senhora ouvir
eu ou um dos meus homens lhe fazer o sinal para fugir, pegue a mochila, use a escada e
desça. Deixe tudo para trás. A senhora vai precisar se misturar às pessoas dos arredores.
Joias e roupas caras farão com seja fácil identificar qual mulher é a aristocrata.
— Isso faz parecer como se quisessem mesmo me caçar, e às outras mulheres, não?
— Ai, senhora. Como esposa de um dos nossos agentes a senhora seria um refém
muito valioso.
Oh, meu Deus! – pensou ela.
— Sua Senhoria chegou a mencionar o que a senhora deve fazer caso seja apanhada? –
Perguntou Parker.
—Não – respondeu ela com os olhos estatelados.
— Certo. Preste atenção então. Virilha. Garganta. Olhos. Golpes certeiros. Esses são os
vossos objetivos caso não consiga chegar até vossa arma. Só para que saiba o que fazer.
— Ah! – murmurou ela com assombro.
— Continuando, então – ele retomou a explicação. – Se ouvir o sinal, de mim ou dos
meus homens, fuja. Não espere para ouvir duas vezes. Fuja para o bosque e trate de se
juntar às outras mulheres, mas não espere nas cercanias. É importante continuar
avançando. Se ficar separada das demais, deve seguir o riacho. A senhora viu o riacho no
jardim?
— Sim, eu o vi.
— Há uma trilha ao lado dele. Siga riacho abaixo por mais ou menos três quilômetros
até chegar à pousada nos arredores do vilarejo, onde tem coches de aluguel. Se preferir,
pode alugar um cavalo com sela feminina e continuar viagem. É melhor que se afaste do
lugar de uma vez. Mas, se a senhora não se sentir confortável para cavalgar uma longa
distância, pode usar o ouro da mochila para comprar passagem na diligência que vai para
Londres. De qualquer forma, deve chegar a Dante House o mais rápido possível. Estará a
salvolá. Não fale com ninguém pelo caminho se puder evitar. Entendeu tudo que vos
expliquei, milady?
— Sim. Muito obrigada, sargento. Atrever-me-ia a dizer que nossos maridos
escolheram o homem adequado para este trabalho.
Ele baixou o olhar com um sorriso modesto.
— Eles fazem a parte deles, senhora. Eu faço a minha.
— Bom, eu vos agradeço por tratar tão abertamente esse assunto conosco e não tentar
simplesmente nos proteger da realidade.
Ele sorriu com tristeza.
— Eu sei que algumas dessas coisas são difíceis de se ouvir e aterrador demais para
imaginar. Mas, em todos os meus anos de serviço, senhora, se me permite dizer, os
homens da Ordem não se casam com mulheres fracas.
Ela ainda estava refletindo sobre aquela lição de segurança pessoal quando Mara
conseguiu finalmente capturar o filho, colocou-o no colo e começou a lhe fazer cócegas.
—Tu tens que ir para a cama, senhor! – Thomas riu alegremente.
— Não! Eu vou ficar aqui!
— O que é que estás olhando? – Perguntou Carissa para Kate, apontando para a revista
que a jovem duquesa estava folheando distraidamente.
—La Belle Assemblée. Na verdade, é uma revista bastante tola, mas tem alguns trechos
sobre todas as atrações da temporada disponíveis em Londres no momento.
Honestamente, vivo lá a metade do ano e não fazia ideia de que havia tanta coisa para se
fazer! Mas agora eu realmente agradeço pela revista, depois de ficar presa aqui durante
semanas. Todos esses entretenimentos, concertos e diversões bem debaixo do meu nariz
e eu nunca fui vê-los.
— Como o quê, por exemplo? – quis saber Daphne.
— Os jardins de Kew, por exemplo. Abre para o público todos os domingos, mas eu
nunca fui lá. E tem Vauxall, também.
—Tu nunca estivestes em Vauxall?! – Espantou-se Daphne.
— Não! Cresci em Dartmoor, lembra-te?
—Tuestivestes isolada demais! – brincou Mara.
— O que há de errado com Dartmoor? – protestou Daphne. – É bastante pitoresco!
— Sim, bom, bem que poderia ter sido a face oculta da lua. Não há nada para se fazer
lá, a não ser ler ou ver cavalos selvagens.
— Temos que te levar até Vauxall quando tudo isto terminar – declarou Mara. – Tu vais
adorar, Kate. Música, fogos de artifício, tudo.
— Não te esqueças da mulher do trapézio – lembrou Daphne.
— Oh, isso parece tão excêntrico! – Kate bateu na página com o dedo. – Um museu de
cera! A parte de gala da história! Já estivestes lá?
— Em Southwark, não é? – perguntou Mara.
— Isso! Do outro lado do rio. Já estivestes lá?
— Oh, sim – respondeu ela ironicamente. – Infelizmente, cometi o erro de pensar que
seria um entretenimento adequado para o meu filho. E tenho certeza de que será, mas
quando ele tiver quinze anos.
Kate arqueou a sobrancelha, espiando sobre a parte de cima da revista.
— Algo obsceno?
— Não, foi absolutamente violento! – exclamou. – Provavelmente tu, com teus
romances sobrenaturais, ias adorar.
Kate endireitou o corpo.
—Verdade?
— Garantido para provocar um calafrio pela coluna vertebral. Sobre a porta tem um
letreiro que promete muito. – Respondeu Mara.
Daphne olhou-a, zombeteira.
— E tu levastes uma criança de dois anos lá?!
— Mas se foi ideia de Jordan! Honestamente, não sabíamos no que estávamos nos
metendo. Ninguém pensa que são figuras históricas. Pensei que seria educativo. – Ela
fingiu um estremecimento. – Bom, realmente foiuma aula de história, concordo. Mas
tratava-se das cenas mais horríveis da história da humanidade retratados nas telas. O
Coliseu Romano... Inquisição Espanhola... Revolução Francesa...
A cabeça de Carissa disparou.
— Provavelmente os rapazes ficaram encantados – riu Daphne entre dentes.
— E este pequeno gritando nos meus ouvidos – respondeu Mara.
—Tudissestes Revolução Francesa? – Carissa arriscou, o coração de repente batendo
com um incômodo pressentimento.
— Oh, sim – Mara virou os olhos. – A guilhotina. Maria Antonieta..., e um cesto com
cabeças, tudo muito realista. – Kate desatou a rir.
— Maravilha!
— Creio que o artista que pintou aquelas telas deve ser completamente insano– Mara
arrastou as palavras.
— E não o são todos? – perguntou Daphne.
— Bom, esse, sem dúvida alguma, sente um mórbido prazer nas cenas de morte e
destruição.
— Por acaso tu sabes o nome desse artista? – Insistiu Carissa.
Mara deu de ombros.
— Não faço ideia. Por quê?
— Nada. Perguntei por perguntar... – respondeu ela cautelosamente.
— Gostarias de ver o anúncio? – Kate lhe ofereceu a revista.
Carissa se levantou e pegou a revista, estudando cuidadosamente o pequeno anúncio
quadrado do Sessão de Gala da História do Museu de Cera em Southwark. Charles
Vincent, proprietário.
Charles... Sothwark... Uma lembrança foi tomando forma no fundo da sua mente, mas
não aparecia claramente. Kate inclinou a cabeça para o lado.
— Tudo bem contigo? Parece até que vistes um fantasma.
— Ora, vamos – brincou Daphne. – Não sejas tola. Tenho certeza de que as cenas de
fatalidade não são tão realistas assim! – Carissa esboçou um sorriso triste.
— Isso parece horrível, no entanto. Mas tu tens razão. Provavelmente nossos maridos
ficariam encantados com isso.
Apesar de a conversa ter desviado para outro assunto, a mente dela insistiu.
De repente, a lembrança reapareceu, mais clara agora. Sim! Aquela livraria em Russel
Square, com todos aqueles radicais, artista e intelectuais, onde havia ido para ouvir o
professor Culvert falar. E aquela conversa enigmática que havia flagrado depois da
conferência surgiu de novo na sua mente.
— Charles, tu não deverias estar aqui!
— Ora, e por que não? Não tenho nada a esconder, não é?
Ela se lembrou do estranho sorriso que Charles havia dado ao professor.
—O senhor precisa ir comigo até a minha casa, em Southwark, para ver meus últimos
quadros...
Ela disfarçou a surpresa diante das amigas jogando distraidamente a bola para Thomas.
Tinha alguma coisa ali. Podia sentir nos próprios ossos. Os nomes dos poucos pintores que
havia coletado nas galerias de belas artes pareciam improváveis candidatos para o que ela
procurara. Os marchants não teriam sido de muita ajuda se tivessem tentado.
Será que ela estivera procurando no lugar completamente errado? Mas, um museu de
cera...?
E esse Charles Vincent, dono do Sessão de Gala da História, será que poderia ter algum
tipo de ligação com o tal Alan Manson, de Madame Angelique?
E se fossem o mesmo homem?!
Mara havia confirmado que vira uma cena da Revolução Francesa no museu de cera, e
Madame Angelique havia informado que era a área de interesse do artista. O sangue de
Carissa virou água gelada nas veias quando uma inquietante imagem começou a emergir
lentamente.
Porque, se Charles Vincent era Alan Manson, o artista, cujas perguntas indiscretas
poderiam deixar nervosa até mesmo Madame Angelique, então erapossível traçar uma
linha lógica desde o artista da Revolução Francesa até o professor Culvert... e deste, até o
seu antigo protegido da vez, Ezra Green.
Oh, não...
Será que o próprio chefe do comitê, encarregado da investigação da Ordem, era o
mesmo que havia contratado Nick? Mas, por quê? Ela se esqueceu até de respirar,
olhando para o chão.
Então aquilo tudo poderia ser encenação, uma cortina de fumaça.
Sua boca secou. Estava gelada, tremendo. Se isso fosse verdade, poderia significar que
os motivos de Ezra Green haviam sido não o de investigar, mas destruir a Ordem desde o
início.
Meu bom Deus! Beau... Preciso adverti-lo!
Já era bastante ruim que ele enfrentasse tudo aquilo sozinho. Agora ela via que, assim
que Nick fizesse o trabalho para o qual havia sido contratado, todos os maridos das
amigas, inclusive o seu, estariam condenados. E se era Green quem havia contratado Nick,
então ele se encarregaria de fazer com que o assassinato acontecesse, pois estava na
posição perfeita para tanto. Ezra Green e seus cupinchas podiam apresentar esse
assassinato como prova irrefutável de que a Ordem era corrupta e poderosa demais.
Tudo o precisavam fazer era flagrar Nick no ato, e, se eram eles que davam as
instruções, a parte do onde e do quando apertar o gatilho seria fácil. Contudo, uma
pergunta ainda mais aterradora se formou na mente dela.
Quem era o alvo do assassinato, para o qual Nick havia sido contratado?
Pelo que havia escutado naquele dia, na conferência do professor Culvert, os radicais
odiavam quase que todo mundo. Parecia que havia alguns vilões escolhidos por eles em
mente: o Primeiro-Ministro, a família real...
O que faço agora, meu Deus?!
Ela sentia nos ossos que estava certa. Tinha que ver aquele lugar, saber mais sobre o tal
artista.
Não! Esquece isso! Se desobedeceresasordens de Beau, ele nunca vai te perdoar. E tu
sabes muito bem que a tua vinda para cá é um teste. Esta é a tua segunda chance, caso
contrário, é bem possível que não tenha outra.
Está certo. Mas, e se tu simplesmente adverti-lo por carta? – perguntou-se ela. Mas
isso significaria admitir que já estivera bisbilhotando antes na livraria, e ela nunca havia
dito nada ao marido sobre isso, porque sabia que ele ficaria furioso.
Ele ficaria surpreso ao saber que ela havia se atrevido a ir investigar o antigo mentor do
político que estava lhe dando tantas dores de cabeça. Depois da grande briga que
acabaram de ter, se confessasse agora que estivera fazendo investigações por conta
própria, provavelmente ele a jogasse aos lobos. De qualquer modo, mesmo que se
atrevesse a explicar a Beau por carta o que havia feito naquele dia, o que havia
ouvido,embora tivesse pensado que carecia de sentido no momento, o que aconteceria se
dita carta fosse interceptada pelos sequazes de Green?
Ela sabia que o comitê mantinha Beau sob vigilância. Se ela lhe escrevesse uma carta
confirmando as suspeitas que ele tinha sobre quem eram os verdadeiros vilões, e esses
mesmos vilões confiscassem a mesma, isso poderia representar um grave perigo para
todos eles. Não, ela não se atrevia a colocar nada sobre esse assunto por escrito. Se fosse
dar continuidade a isso, teria que fazê-lo pessoalmente. Era a forma mais segura para as
amigas, os respectivos maridos e o próprio marido dela.
Preste atenção! Não é permitido sair daqui! – insistiu seu bom senso. Beau vai te
matar se tu deixares a proteção da casa. Além do mais, como é que vais conseguir passar
por todos os guardas lá de fora?
Ah, mas o sargento Parker havia feito todo o possível para lhe mostrar exatamente
como escapar em caso de emergência. Obviamente, nunca havia ocorrido ao
incondicional soldado que ela poderia ser tola o suficiente para tentar por conta própria.
Tu não deves ir.
Daphne nunca faria nada assim, destacou severamente para si mesma, sentindo o
pulso acelerado.
É, Kate... – respondeu seu lado mais teimoso. E as ordens de um homem certamente
não deteriam Madame Angelique. Ela mordeu o lábio, angustiada pela indecisão. Sentia
que seria condenada se o fizesse, e condenada se não o fizesse.
E se estiveres enganada...? E isso era provável sim. Poderia arriscar tudo por nada. Se
tu te esgueirares para longe daqui, e ele ficar sabendo que tu o desobedecestes outra vez,
provavelmente Beau nunca vai te perdoar.
Ela quis com toda gana que tal teoria nunca tivesse lhe ocorrido. Não queria ir. Era
aterrorizante. Não queria botar a perder seu casamento.
Mas, e se eu estiver certa? E se estiverem preparando tudo para apresentarem Beau e
o resto dos nossos homens como criminosos, e Nick está sendo usado apenas como bode
expiatório e exemplo?
Essa seria uma desculpa para que os inimigos destruíssem a Ordem. Carissa ficou sem
fôlego ao ver o anúncio. A íntima decisão lhe provocou nó no estômago, principalmente
agora que havia se dado conta do perigo que qualquer erro da sua parte poderia trazer
para seus amigos, isso para não falar da destruição do próprio casamento. Mas o sargento
Parker havia dito isso de forma excelente.
Os homens da Ordem não se casam com fracotas.
Viu que não tinha escolha. Não sabia o que era pior, se acabasse tendo razão ou estar
errada. Mas, seja lá como for, tinha que saber. A pergunta era grave demais para deixá-la
sem resposta. Se alguma vez tivesse um momento no qual uma dama da informação teria
que salvar a lavoura, essa ocasião havia chegado. E seria nessa mesma noite.
É melhor que tu estejas certa sobre isso.
Se chegasse a ter êxito, talvez, então, Beau a perdoasse.
— Hora de ir para a cama, Tommy – disse Mara ao filho. – Quero dizer agora, tu.
Vamos, dá boa-noite para as tuas tias.
Thomas foi correndo de Kate para Daphne, repartindo abraços. No entanto, ele havia
conhecido Carissa apenas naquele dia, por isso ela ainda não havia ganhado um. Mas ele
deve ter decidido que gostava dela, porque se aproximou e lhe ofereceu um bloco do
alfabeto.
— Oh, bom, obrigada – respondeu ela, sorrindo. Ela deu uma batidinha com o dedo no
nariz dele. – Que tenhasuma boa-noite, Thomas – disse, e Mara o levantou e o levou para
a babá.
— Creio que vou me retirar, também – disse Carissa. – Foi um dia muito longo.
Ela disse boa noite às amigas, em seguida pegou uma vela e foi calmamente para o
quarto, já planejando a fuga.
Nessa noite, de volta à Londres, Beau vagou sem descanso de um aposento ao outro. A
casa estava vazia demais sem Carissa. A ausência dela havia deixado um enorme buraco
que ele não havia esperado. Sentindo falta dela com cada terminação nervosa, não sabia
bem o que fazer com isso.
Fez todo o possível para não pensar nela, mas não havia nada mais que o distraísse,
esperando que o aprendiz do armeiro voltasse daquela entrega que fora fazer no campo.
Mais que enlouquecedor, na verdade. Pensou em lhe escrever uma carta para passar o
tempo..., mas, o que podia lhe dizer?
Ainda estava aborrecido desde a briga que tivera com ela. O relógio musical bateu uma
hora. Beau se apoiou contra a porta na escuridão e ficou olhando para o relógio,
questionando-se se havia sido duro demais com a esposa. Sabia que ela só estava
tentando ajudar.
Quando as badaladas terminaram, apoiou as costas contra o marco da porta, olhando
o vazio. A casa parecia grande e vazia demais, e a ideia de ir para o quarto só fez com que
seu peito doesse vagamente. Aproximou-se lentamente do escritório, serviu-se de
conhaque e se sentou perto da lareira para bebê-lo. Justamente quando estava
começando a acalmar a mente perturbada, ouviu uma batida urgente à porta principal.
Ouviu o lacaio da noite ir atender. A porta rangeu.
— Sim? Posso ajudar?
— Mensagem para Lorde Beauchamp! – disse o mensageiro.
Beau se levantou da cadeira enquanto o lacaio pagava o mensageiro.
Quando foi até o hall de entrada, o criado estava bloqueando a porta.
Deixando a cerimônia de lado, Beau foi até ele e pegou a mensagem em vez de esperar
que o criado a levasse. Ergueu a mensagem até a luz da vela e seu rosto endureceu ao
reconhecer a letra. Ele desdobrou o papel e leu a carta de Rotherstone com o pulso
acelerado.
Estamos com Drake. Ele não é traidor, é o maldito tolo mais valente que já conheci.
Espere até ouvir o que ele aprontou na Alemanha. Já desembarcamos na costa e amanhã
estaremos em Londres.
— Algo errado, senhor?
Maldição, já estavam na Inglaterra! A advertência que havia enviado, obviamente,
havia chegado tarde demais.
—Não, nada. Meu abrigo.
Ele foi buscar as armas enquanto o criado foi buscar o abrigo.
— Ouve-me com muito cuidado – ordenou, vestindo o casaco. – Tenho que sair por
algum tempo. Não permita que ninguém entre aqui enquanto eu estiver fora,
especialmente o senhor Green ou qualquer outra pessoa do governo.
Os olhos do criado se arregalaram.
— Sim, senhor. Precisa de ajuda, senhor?
— Não, mas obrigado. – Beau parou no umbral. – Não sei precisar quando vou voltar,
mas estou esperando uma pessoa que virá aqui amanhã, da parte do Senhor Schweiber, o
nome dele é Michael, é aprendiz de armeiro. Deixa-o entrar. De fato, se eu ainda não tiver
voltado quando ele vier, manda-o até o rio. Não sei exatamente onde estarei, mas em
algum lugar perto dos molhes de Londres. Diga-lhe que eu falei para ele ir até lá se
encontrar comigo. É imperativo que eu fale com ele. Mas não diz a ninguém, preste
atenção, a ninguém, aonde eu fui.
— Sim, meu senhor, perfeitamente.
Ato contínuo ele se foi, e a única preocupação que tinha era chegar até Max e os outros
antes dos soldados de Green. Tinha que impedi-los de pisar em terra firme, advertí-los
pelo menos para que fossem para a Escócia. A sede da Abadia da Ordem na Escócia seria
o lugar mais seguro para eles, pelo menos até que todas aquelas bobagens com o comitê
estivessem resolvidas.
Se pusessem um só pé em solo inglês, Ezra Green cumpriria o que havia prometido.
Estariam indo direto para uma armadilha.
Capítulo
23
N a manhã seguinte, Carissa estava diante do estranho estabelecimento em

Southwark, olhando o cartaz, em dúvida.


MOSTRA DE GALA – MUSEU DE CERA
Mal conseguia acreditar que havia chegado até ali. Parecia uma completa loucura à sã
luz da manhã. Por que o proprietário de um museu de cera queria contratar um assassino,
afinal de contas?
No entanto, ali estava ela. Tarde demais para voltar atrás. Só esperava que o sargento
Parker e seus homens não se metessem em problemas por não terem evitado que ela
fugisse. Na verdade, não era culpa deles. Ela havia agido muito furtivamente, pois
conhecia os detalhes, da noite anterior.
Havia sido difícil ficar de boca fechada. Tinha a sensação de que Kate provavelmente
teria ficado encantada por ajudá-la, mas, mesmo assim, não havia dito nada às demais
sobre aonde ia. Não queria que as amigas levassem a culpa pela decisão que havia
tomado, caso houvesse consequências. Tampouco acreditava, francamente, que seria
capaz de resistir às três, caso se unissem para se oporem ao seu plano.
Assim sendo, resignada a ir sozinha, havia procurado dar mais um tempo, indo para a
cama logo depois do pequeno Thomas alegando dor de cabeça. Havia dito a Margaret que
a deixasse dormir até tarde na manhã seguinte, assim ela poderia se recuperar de toda
aquela tensa discussão que tivera com Beau no dia anterior.
Esperava que as demais não ficassem zangadas com ela quando descobrissem que as
enganara. Doía-lhe ter que fazer isso, mas não tinha escolha. Aliás, estava fazendo isso
justamente pelo bem das amigas e pelo respectivos maridos delas.
Quando a casa ficou em silêncio, Carissa se levantou da cama e pôs mãos à obra,
fazendo exatamente como o sargento Parker havia lhe ensinado... – e lá se foi a
Viscondessa, disfarçada, sem joias. Usando um vestido simples, com botas robustas, uma
peliça simples e o chapéu mais comum que tinha, caminhou pelo bosque escuro até a
pousada, onde comprou uma passagem na parte do fundo da diligência até a cidade,
onde chegou às cinco horas.
Eram apenas nove horas da manhã. Viu que tinha tempo de sobra para olhar as figuras
de cera, então voltar a entrar de novo na casa de campo da mesma maneira pela qual
havia saído, a tempo de pegar a refeição do meio-dia.
Já havia planejado qual desculpa daria: havia saído para um passeio e saiu da
propriedade acidentalmente. Ela havia levado um livro para corroborar a desculpa que
daria, que havia se sentado para ler e simplesmente caíra no sono.
O sargento Parker poderia achar estranha aquela história, mas a tarefa dele era manter
os intrusos fora da propriedade. A segurança que havia elaborado não previa bloquear a
saída de quem ali estava.
Em todo caso, a hora da verdade havia chegado. Ela se preparou, abriu a porta e
entrou. Quando os olhos haviam se acostumado à penumbra da suja sala de recepção,
lembrou-se de que muitas vezes suas primas quiseram ir até lá, mas a senhorita Trent, a
preceptora, havia dito que o lugar era vulgar. Sem dúvida, a senhorita Trent estava certa.
A luz do sol matutino que entrava pela suja janela dianteira mal projetava um retângulo
com pouco brilho no chão.
Não podia se deixar afetar por aquele ambiente pesado. Uma velha senhora lhe deu as
boas-vindas ao entrar com uma vassoura na mão.
— Já está aberto? Sei que ainda é cedo...
— Oh, sim, tudo bem, querida. Nunca recuso um cliente – acrescentou com um sorriso
desdentado.
— Obrigada. – Carissa devolveu o sorriso e se aproximou do balcão para comprar o
ingresso.
— Direto por essa porta. Aproveite a visita!
— Obrigada.
Carissa pegou o ingresso da mão da velha, passou pela porta e entrou em um labirinto
de corredores parcamente iluminados, nos quais estavam expostas as históricas figuras de
cera.
Lugar fantasmagórico,pensou ela. Era clara a intenção de provocar no visitante um
formigamento de temor ao sobrenatural. Viu a cena que Mara havia mencionado..., o
Coliseu, com os muitos e sarnentos leões se aproximando dos mártires cristãos. Os
animais pareciam reais, pois foram empalhados depois de serem abatidos pelo rifle de
algum caçador, mas as figuras humanas eram de cera.
A cena da Inquisição lhe provocou uma careta de dor. A Mostra de Gala da História não
havia economizado no sangue falso. Algumas figuras, inclusive, movimentavam-se graças
a vários truques de cordas de marionete e mecanismos de relojoaria. Ela meneou a
cabeça.
Realmente, aquilo era a maravilha do macabro. A bruxa acusada na cena da Inquisição
era tão real que Carissa ficou meio que esperando ver a figura respirar.
Continuou em silêncio, e era a única visitante, já que o lugar havia acabado de abrir
para os visitantes do dia. Não havia muito mais para ser visto. Ana Bolena e o verdugo. Na
cena seguinte, o Rei Carlos I também estava se preparando para colocar a cabeça real no
cepo, para que caísse depois no cesto, rodeado por Cromwell e de cabeças redondas que
não sorriam. Em outro quadro vívido viu os terríveis guerreiros moicanos das terras norte-
americanas que negociavam com os soldados britânicos, trocando peles por armas. As
árvores docenário pareciam tão sólidas quanto qualquer outra daquele bosque que ela
havia atravessado apressadamente na noite anterior.
Cada figura de cera havia sido pintada com todo cuidado, feitas em tamanho natural,
estranhamente disfarçadas. Quase que se podia ouvir o canto dos pássaros nas árvores e
o murmúrio do riacho artificial que serpenteava mais além.
Sinceramente, isso requeria a verdadeira arte, refletiu. Talvez o talento por trás
daquelas cenas fosse alguém que construía cenários para teatro.
Por fim chegou à cena a qual havia sido o principal objetivo da sua visita ali, nesse
dia..., a cena da multidão de Paris, aquela que Mara havia lhe falado, com a guilhotina.
Inspirou lentamente, olhando a tela reluzante. Seu olhar percorreu o elaborado quadro.
Senhor, aquilo sim é que eram realmente chefes realistas.
Ela se aproximou para olhar a tela mais de perto. Meu Deus! O sangrento espetáculo
era destinado a surpreender e provocar o espectador, fazendo com que olhasse para o
outro lado, passando por cima dos detalhes. Mas quando Carissa se obrigou a olhar mais
de perto, santo céu, reconheceu alguns dos rostos das pessoas da sociedade. Os
aristocratas. A Realeza.
Poderia jurar que um deles era a própria Rainha Charlotte..., e a grande cabeça do
Regente que jazia junto ao corpo dele, no cesto. Que horror! Mas que sujeito mais
descarado!
Era difícil dizer com certeza se tinha razão ou não. Mas estava com uma sensação
nauseante de que havia entrado na fantasia distorcida de alguém. De repente, uma porta
invisível pintada no fundo se abriu e um homem muito magro e desajeitado, todo vestido
de preto, começou a sair por ela.
— Oh! Eu lhe rogo que me desculpe, senhora... – murmurou ele, começando a se
retirar. – Não sabia que havia alguém aqui, agora...
— Oh não, está tudo bem! – Ela sorriu, disfarçando o brilho de reconhecimento na
mente. Ele tinha um rosto comum, mas era ele mesmo, o homem que ela havia visto
aquele dia na livraria. Tinha certeza de que era a segunda vez que o via.
— Não quero atrapalhar. Estava prestes a consertar algo, fazer um pequeno ajuste,
sabe... Mas vou fazer isso mais tarde. Estou sempre inquieto com essas coisas – admitiu
ele com uma risadinha de autocrítica. – Não vou incomodar-vos, senhorita. Tende um
bom dia. – Ele começou a se retirar pela mesma abertura na parede pela qual havia
entrado.
— Oh... Digo, é o senhor o artista por trás de todas essas magníficas cenas? –
perguntou ela rapidamente, com o coração palpitante.
Ela se surpreendeu pela própria audácia, mas essa era uma oportunidade de ouro para
tentar descobrir o que pudesse. Então, orou a Deus, pedindo-Lhe que o artista não a
reconhecesse. Não se lembrava se ele a havia visto naquele dia. Ele parou.
— Sim, sou eu. Por quê a pergunta?
— Para vos apresentar meus respeitos, senhor. Vosso trabalho é simplesmente
maravilhoso! – ela o obsequiou com um sorriso nervoso.
— Por quê... A senhora é muito gentil, obrigado. – Ele hesitou, ruborizando como um
colegial. – A senhora gostou mesmo?
— São incríveis! – exclamou ela. – Nunca vi nada igual!
Ele a olhou, muito surpreso pelo elogio.
— Muito obrigado. Fa-fazemos todo o possível para oferecer aos visitantes uma
experiência única.
— Oh, é muito mais do que isso. É educativo, também – disse ela, olhando as figuras
zangadas da máfia. – Isso realmente recria o espetáculo dos acontecimentos históricos. O
impacto é bem maior vendo tudo isto ao vivo e em cores do que simplesmente ler sobre
esses mesmos fatos em um insosso livro de história. Tudo é real demais! – Ela meneou a
cabeça, na esperança que com elogios conseguisse arrancar algumas respostas dele.
—Realmente, faz a pessoa sentir como se estivesse realmente lá.
Ele balbuciou incoerentemente, como se nunca tivesse recebido elogio de uma mulher
em toda a vida. Carissa estava assombrada com esse tímido de voz suave e afável, o típico
menininho da mamãe feito homem que poderia ser a força por trás daquelas cenas
violentas e selvagens.
Mas se fosse ele, então bem que poderia ser também o tal homem descartável que
haviam enviado como contato com Madame Angelique. Ela precisava que ele continuasse
falando, então esboçou seu melhor sorriso.
— O senhor se importa se eu lhe fizer algumas perguntas sobre o processo de criação
que usou para tudo isto? Sou a líder de um clube de leitura feminino, sabe. Organizo
eventos, e estava investigando o museu como um possível local de visitação para nossos
membros.
— Será que as mulheres do vosso clube não vão achar isto terrível demais?
— Oh, não – garantiu ela, e riu nervosamente. – Leio romances sobrenaturais para elas.
— Ah..., sobrenaturais. Eu ficaria mais do que feliz de responder qualquer pergunta da
vossa parte, bem como as que as damas possam ter – disse ele, como se fosse a pessoa
mais agradável da margem sul do Tâmisa. Não parecia o tipo de pessoa que algum dia
contrataria um assassino.
— Não recebemos muitos visitantes do mundo da moda – acrescentou ele com um
olhar especulativo que lhe deu um susto de morte.
Charles já devia ter se dado conta de que ela pertencia à alta sociedade, o que atraiu
sua atenção para o risco que estava correndo a própria segurança. A percepção da sua
posição já era demais para que ele soubesse sobre ela. Principalmente porque ele não
gostava do nível social ao qual ela pertencia.
Ainda assim, ela se aferrou ao autocontrole dos nervos, sabendo que muito
provavelmente essa fosse a única chance que teria para tentar obter mais informações
detalhadas que pudesse relatar a Beau. Ela procurou outra pergunta útil.
— Então, como é que o senhor escolhe as cenas que pinta? – perguntou, esboçando
um sorriso encantador.
Ele encolheu os ombros.
— Pela importância histórica e pelo drama inerente aos fatos e, claro, qualquer coisa
que sirva de entretenimento para os visitantes. Sobrevivemos da venda de ingressos, a
senhora sabe.
— Entendo. E como diabos faz para que as figuras que pinta pareçam tão reais?
Parecem quase vivas.
— Ah, esse é o meu segredo! Nada, só estou brincando... – garantiu ele com um sorriso
incômodo. – Estudei cirurgia na Universidade de Medicina Real – admitiu. – Mas a
medicina não era para mim. Tenho natureza de artista. Mas fiquei tempo suficiente para
estudar anatomia.
— Entendo. Então o senhor usou vosso talento para um melhor uso. – Ela sorriu
alegremente, mas sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha dorsal porque sabia que os
estudos de anatomia na Universidade de Medicina Real eram realizados em cadáveres de
verdade.
Se Charles, o menino mimado, não havia tido muitos escrúpulos para cortar gente
morta, contratar um assassino devia ser pouco para ele.
Ocorreu-lhe que, na verdade, se ele desconfiasse do verdadeiro motivo pelo qual ela
estava lhe fazendo todas aquelas perguntas, ela mesma poderia acabar como cadáver.
Virilha. Garganta. Olhos. Além do mais, estava com a pistola na bolsinha amarrada ao
pulso.
Graças a Deus pelo Sargento Parker! Estava satisfeita por ter um pouco de noção sobre
algum tipo de defesa pessoal, mas isso não mudava o fato de que ela estava sozinha em
um lugar escuro com um homem que uma vez havia dissecado cadáveres. Um homem
que contratava assassinos e havia se juntado aos revolucionários e radicais. Um homem
que, provavelmente, pensava que cabeças aristocráticas pertenciam a um cesto.
Eu quero o meu marido...!
Beau a estrangularia se soubesse do perigo no qual ela mesma havia se colocado. Hora
de ir embora. Sem parar de sorrir, ela começou a retroceder aos poucos.
— Ótimo! Esta visita foi fascinante. Minhas amigas ficarão encantadas.
— Posso vos ajudar a fazer os arranjos para a visita do sevossou grupo, senhorita...?
Ela passou pelo quadro que retratava a multidão.
— Oh, sim, isso seria de grande ajuda. O senhor tem cartão de visita, para que eu saiba
com quem estou falando?
— Estão com minha mãe na recepção. Diga-lhe que confira o livro. Espero que volte em
breve.
— Tenha certeza de que voltarei. Repito, vosso trabalho é excepcional. Eu realmente
adorei tudo.
Continuou caminhando para trás, passando pelos índios. O Rei Carlos parecia olhá-la
com um olhar silencioso de sinistra advertência quando ela passou pelo quadro. Deus,
agora sim, o lugar a deixou verdadeiramente assustada.
— Não quero vos tirar do vosso trabalho.
— Ah, está tudo bem. Meus amigos podem esperar. Eles não vão a lugar algum –
brincou ele, rindo, mas ela teve a sensação de que ele falava a verdade.
Por mais estranho que pudesse parecer, aquelas pessoas de cera bem que podiam ser
os únicos amigos que ele tinha. Um homem descartável. Alguém a quem pessoas
enviariam direto à toca do leão sem se importar com o que pudesse acontecer. Isso havia
ficado bastante claro no dia no qual o professor Culvert quis sacudí-lo e se desfazer dele
tão rápido quanto fosse possível.
Oh, querida. Talvez tu tenhas elogiado Charles demais, porque ele estava totalmente
atento e serviçal, caminhando com ela até a sala de recepção e se certificando de que a
velha mulher a atendesse.
— Mãe! Esta mulher quer trazer o grupo dela. Pode ajudá-la a fazer os arranjos?
— Oh, mas é claro que sim, querida. Tenho certeza de que ficaremos encantados por
tê-las aqui. Quantas são?
— Hmmm..., dez.
— E qual a data que gostariam de vir? – Perguntou a mãe do compridão, com aquele
sorriso sem dentes. Antes que Carissa pudesse responder, o filho interveio:
— Se a senhora sabe a data, posso me colocar à disposição para responder qualquer
pergunta que vossas amigas possam ter sobre os meus quadros. Podíamos fechar o
museu por duas horas para o resto dos visitantes a fim de melhor acomodar o vosso
grupo.
— Mas que gentileza! – disse Carissa, fazendo uma careta devido à culpa por alimentar
falsas esperanças naqueles dois. Sentia-se estranhamente mal por causa dos dois. – Tenho
certeza disso, mas não gostaria de causar nenhum problema, ou negar aos outros o prazer
de visitar o vosso museu.
— Não, em absoluto.
— Tem alguma data em mente, senhorita?
— Sabe... – respondeu ela. – Terei que discutir o assunto com o meu grupo primeiro.
Quero que todas estejam disponíveis, para que nenhuma delas perca a visita. Se tiver a
gentileza de me dar vosso cartão, sem dúvida vou entrar em contato para programar data
e hora.
— Excelente! Aqui está o cartão, senhorita.
Quando a mulher o entregou, Carissa deu uma rápida olhada no cartão e leu:
CHARLES VINCENT – MOSTRA DE GALA DA HISTÓRIA.
Então olhou para eles, do outro lado do balcão, com um sorriso.
— Muito obrigada pelo vosso tempo. Vão ouvir falar de mim em breve. – Quando meu
marido voltar aqui para lhe prender! – Tenham um bom dia!
— A senhora se esqueceu de nos dizer o vosso nome! – exclamou Charles Vincent,
enquanto ela ia rapidamente para a porta.
— Williams – disse ela com ar ausente, dizendo o primeiro nome que lhe veio à cabeça.
– Sou a Senhora Williams.
Devia ter uma centena de Senhoras Williams em um raio de cinco quilômetros dali. Ela
não podia dizer que era lady Beauchamp. Com a mão na maçaneta, despediu-se deles
com um aceno de cabeça, em seguida, fechou a porta e saiu correndo acelerado até a
beirada da calçada, parando um coche de aluguel.
Tinha que contar ao marido o que havia averiguado. Beau ia ter um ataque apoplético,
mas a informação era suficientemente grave para justificar a briga que teriam. E ela
precisava avisá-lo, ele saberia o que fazer.
— Mais rápido! – gritou para o cocheiro. Então, irritada, disse-lhe através da janela que
lhe pagaria um extra se fizesse os cavalos galoparem para chegar mais rápido.
Finalmente ela chegou a casa. Saltou e deu um punhado de moedas de ouro ao
conheiro, e suas mãos tremiam devido ao terror das descobertas que fizera. Instantes
depois, entrou pela porta da própria casa.
Vickers, o mordomo, quase que teve um ataque.
— Milady! O que está...
— Onde está meu marido? Rápido! Procura-o já!
— Sua Senhoria não está em casa – respondeu o nervoso homem.
— Onde ele está? Tenho que falar com ele agora!
— Milady, que diabos está fazendo de volta a Londres?
Ela não lhe fez caso.
— Beauchamp? – gritou ela ao pé da escadaria. – Onde estás?
—Milady, com o devido respeito, tenho certeza de que a senhora devia estar no
campo. Há um grave assunto em andamento...
— De fato há, e creio que descobri quem está por trás de tudo isso. Eu tenho que vê-
lo!
— Milady, preciso vos recomendar encarecidamente que espere aqui até que Sua
Senhoria volte.
— Não há tempo! – gritou ela, sacudindo a mão e a cabeça. – Só me diz aonde ele foi,
Vickers. Aconteceu alguma coisa? Algum problema?
Vickers juntou as mãos atrás das costas e cravou nela um olhar decidido.
Carissa perdeu as estribeiras.
— Se tu não me disseres onde está o meu marido, eu farei com que ele te despeça!
Ele levantou o queixo, fez uma careta e olhou-a por cima da ponta do nariz.
—Milady, estou na família de Sua Senhoria faz mais de vinte e cinco anos. Não passei
de menino de recados ao posto que ocupo atualmente sem seguir à risca as instruções do
meu amo. A senhora podia fazer o mesmo..., com todo o respeito. – acrescentou, com ar
arrogante.
— Pois bem..., nunca! – Carissa enfiou a mão na bolsinha, sacou a pistola e apontou-a
para ele. – Comece a falar.
— Por Deus, Senhora! – retrucou ele com tom sufocado.
— Eu te garanto que não quero atirar em ti, Vickers. Chefes da criadagem do seu
calibre são muito difíceis de se encontrar. Mas tu precisas me dizer para onde foi Lorde
Beauchamp! Descobri a informação mais alarmante que diz respeito ao meu marido e
às..., hã..., atividades misteriosas dele – disse obliquamente, embora tivesse certeza de
que o fiel mordomo devesse saber que seu amo era espião. – Vamos, responde-me! –
insistiu, justo quando alguém bateu à porta.
Ambos se entreolharam. Carissa semicerrou os olhos.
— Nada de truques, hã... Vai, podes atender – murmurou ela, sacudindo a pistola na
direção da porta e se sentindo como uma perfeita bandida.
Vickers era um mordomo fabuloso. Com aquela gravidade que lhe era habitual, foi até
a porta principal e olhou pela janela lateral. Quem o olhasse jamais imaginaria que havia
uma arma apontada para ele ao abrir a porta, embora, para ser justo, provavelmente ele
tivesse absoluta certeza de que ela não tinha nem a vontade nem a capacidade de atirar
nele.
— Posso ajudar? – perguntou ao visitante.
— Senhor, o meu instrutor, Hans Schweiber, o armeiro, mandou-me aqui. Disse que
Lorde Beauchamp precisa falar comigo.
— Sim. Entre, por favor – e não se importe com essa louca sacudindo uma pistola,
pareceu acrescentar seu olhar zombeteiro ao abrir totalmente a porta.
O desajeitado rapaz cheio de espinhas, de mais ou menos dezenove anos, entrou, com
o chapéu na mão.
— Oh! – exclamou ao ver a Viscondessa armada, parada no vestíbulo da entrada.
— Lamento muito por isto, mas não pude evitar – disse ela.
— Eu..., posso voltar mais tarde... – começou a dizer o rapaz.
— Não – Vickers o interrompeu. – Lorde Beauchamp está esperando por ti, meu jovem.
Teu nome é Michael, não é?
— Sim, senhor.
— Ele ainda não voltou, mas quer que tu vás ao encontro dele. Por favor, não demora.
Tu tens uma informação importante para Sua Senhoria, não é?
— Eu também tenho! – Gritou Carissa indignada. – É permitido a um estranho ver meu
marido, mas a mim não?!
Michael olhou-a, perplexo, depois voltou a olhar para o mordomo.
— Onde é que devo encontrá-lo, senhor?
— Isso, diz! – incitou Carissa.
— Vou dizer para este rapaz, milady. Para a senhora não..., com todo o repeito. Peço-
vos desculpas humildemente e espero que compreenda.
— A única coisa que compreendo é que tu és um belo de um sem-vergonha, isso sim –
murmurou ela.
Mas tratou de se aproximar para ver se conseguia ouvir o que o mordomo dizia
enquanto se inclinava para o rapaz e lhe sussurrava algo ao ouvido. O aprendiz de armeiro
assentiu com a cabeça e, ato contínuo, virou-se para a porta.
— Está certo, senhor. Tende um bom dia, milady.
— Espera! – gritou ela, correndo atrás dele. – Eu vou contigo!
— Milady! – começou Vickers, mas ela se virou e apontou a pistola para ele de novo.
— Quanto a ti, não te metas nisto! E não te preocupes, vou comunicar ao teu amo que
tu tentastes me deter.
Dito isso, saiu correndo de novo atrás de Michael, que estava subindo no pesado carro
de entrega.
— Aonde vamos? – perguntou ela, subindo com um salto e sentando-se no assento do
condutor ao lado dele.
— Nós?! – Ele franziu o cenho e a olhou como se ela estivesse louca.
— Podes me dizer tranquilamente. Sou a esposa dele, sou Lady Beauchamp!
— Hã..., vamos até os molhes de Londres, milady.
— Os molhes! Mas é claro! – sussurrou ela para si mesma. Max e os outros maridos da
Ordem já deviam ter chegado!
Mas essa era uma excelente notícia! Beau teria procurado ajuda. Conquanto que Nick
não tentasse atirar em ninguém na próxima hora...
— Certo, vamos lá então!
— Estou indo – murmurou ele.
Ela colocou a pistola de volta na bolsinha enquanto partiam pesadamente.
— Não podes ir mais rápido? – exclamou ela.
Só que essa era uma pergunta muito tola para qualquer rapaz de dezenome anos. O
aprendiz olhou-a com receio e com um alegre brilho nos olhos.
— Posso sim, senhora. Eu só estava tentando ser gentil.
Oh, Senhor, homens e seus cavalheirismos!
— Não! Podes ir mais rápido.
— Certo. Então..., segure-se!
E ela se segurou, porque ele usou o chicote e os poderosos cavalos se sacudiram contra
o arnês.
— Assim está bem melhor! – exclamou ela com entusiasmo, sem se importar se
alguém se virasse para olhar.
Ela se aferrou ao assento e o carro de entregas se foi, sacolejando pela rua de pedras.
Foram diretamente para os molhes.

Capítulo
24
O vento se levantou enquanto Carissa e o aprendizde Schweiber se aproximavam

da amplidão aberta do rio. Os molhes de Londres fervilhavam de atividade. O Tâmisa se


eriçava com inumeráveis mastros de embarcações. Barcos de pesca balançavam sobre as
ondas e marinheiros transportavam pessoas indo e vindo da margem sul do rio.
Infelizmente, a rua estava entupida com tanto tráfego por todo o mercado de peixes,
então o carro de entregas do armeiro avançava a passo de tartaruga.
— Vamos lá, gente, abram caminho – murmurou Carissa baixinho. – Nosso mordomo
te disse por quê meu marido veio cá para os molhes? – perguntou, enquanto avançavam
lentamente em meio à multidão.
— Não, senhora, só disse aonde eu tinha que ir.
— O tráfego está pesado demais! Pelo amor de Deus, estão fazendo alguma promoção
no mercado de peixes hoje?!
— Creio que bloquearam a rua mais adiante.
Ele estava certo. Inclinando-se à frente, Carissa viu alguns soldados conduzindo carros
para longe de um setor dos molhes.
Oh, não, ela pensou.
— O que será que está acontecendo lá...? – disse Michael.
Então sentiu o coração sacudir no peito quando viu Ezra Green cruzando o espaço vazio
deixado pelos soldados que haviam saído do local. Ele estava indo direto para a água.
Quando o carro de entregas se aproximou do cordão de isolamento, onde seriam
obrigados a desviar, teve uma melhor visão do que estava acontecendo, sentada no alto
assento do veículo.
Havia uma espécie de fila até lá embaixo, à margem do rio.
Ezra Grenn gritou chamando os demais soldados que havia trazido, apontando para...
Para o marido dela.
Foi então que viu Beau de pé no molhe perto de um barco amarrado, a casaca e o
cabelo louro se agitando ao vento.Ele se virou para os soldados que se aproximavam,
rugindo para eles, gritandopara se afastarem. Ela prendeu a respiração, horrorizada ao ver
uma dúzia de soldados do Rei apontando armas contra ele.
Beau, por sua vez, estava tentando proteger um pequeno grupo de pessoas que,
aparentemente, havia acabado de chegar no barco.
Ela viu Lorde Rotherstone, Duque Warrington, Lorde Falconridge e mais um casal que
não conhecia.
— Pare o carro!
— Mas senhora, eles me mandaram continuar em movimento.
— Não me importa! Olha lá! – apontou.
— O que significa isto? – Gritou Lorde Roteherstone ao ver os soldados se
aproximando.
No entanto, o Duque de Warrington era um homem mais de ação do que de palavras,
então empurrou dois dos homens do Rei para a água, um com o cotovelo, o outro com um
pontapé certeiro.
— Apressai-vos!
Carissa ficou com o coração na garganta vendo a cena no estreito molhe de madeira,
que estava se tornando um caos mal controlado.
Os soldados foram até Warrington primeiro. Beau gritou para que os amigos
cooperassem. Ela não conhecia a jovem que havia desembarcado com os homens, nem
por que ela estava usando calças masculinas, mas quando os soldados tentaram botar a
mão no homem de cabelos pretos ao lado dela (Seria ele o famoso Drake? – perguntou-se
Carissa), a moça puxou um arco e uma flecha das costas e mirou os guardas que se
aproximavam.
— Não toquem nele!
— Emily, não! – gritou Jordan. – Eles vão te matar! – Ato contínuo, virou-se e gritou
para os soldados, levantando a mão – Não atirem!
A feroz devoção da moça pelo seu homem inspirou Carissa, sacudindo-a do próprio
marasmo emocionado. Antes mesmo que pudesse arquitetar algum tipo de plano, saltou
do carro de entregas do armeiro e foi até os molhes.
— Milady, volte! – Gritou Michael.
Ela não lhe deu ouvidos. Abrindo caminho entre a multidão, percebeu que não era a
única que havia parado para ver a tumultuada cena que se desenrolava logo adiante.
Muitos espectadores também haviam parado para olhar, boquiabertos.
Infelizmente, ela era mais baixa do que a maioria, suados e curiosos peões e
trabalhadores do molhe que se reuniram ali para bisbilhotar.
— Com licença! Preciso passar, por favor! Deixai-me passar!
Teve que se empurrar até a parte da frente da resistente multidão, então teve que se
esgueirar para fugir dos soldados que mantinham a turba sob controle.
Mas quando viu Ezra Green se juntar aos soldados no molhe logo depois de ter
conseguido cercar os agentes da Ordem com segurança, deu-se conta de que ele
provavelmente temia que disparassem neles quando tentassem escapar.
Além do mais, conhecendo os maridos das amigas, certamente que eles se recusariam
a fugir, mesmo que tivessem chance. Eles não eram do tipo que fugiam.
— Por Deus, explicai-vos, senhor! – gritou Beau com fúria para Green, que avançava
entre a multidão de soldados.
—Explicai-vos o senhor, Lorde Beauchamp! Supunha-se que me informaria assim que
tivesse notícias deles, mas tive que averiguar através de um dos meus homens, aqui.
Pensou mesmo que todos os senhores conseguiriam escapar?
— Não fugimos de nenhuma luta – informou Lorde Rotherstone. – Para que tudo isso?
O senhor Green puxou um pergaminho e o desenrolou diante dos agentes.
— Suas Graças, Meus senhores, senhorita – disse ele com uma careta de desprezo para
a bela jovem. – Estão todos presos em nome do Rei.
— Mas isto é uma rematada loucura! – Explodiu Beau.
— Sob quais acusações? – exigiu Warrington.
Green se regozijou enquanto os soldados mantinham os agentes à distância.
— Terei o máximo prazer em responder isso para o senhor, Excelência. – Olhou para
todos eles, deleitando-se com o momento. – Todos os senhores têm setenta acusações de
assassinato!
Carissa quase desmaiou ao ouvir isso. Setenta acusações!
— Estamos sabendo do acontecido na Baviera – acrescentou Green. – Deviam saber
que haveria muito a ser pago. Ou será que todos pensaram que escapariam ilesos, como
sempre?
O homem de cabelos pretos deu um passo à frente.
— Prenda a mim. Deixe-os irem. Foi tudo culpa minha...
—Drake, não! – exclamou a moça.
Ele não lhe fez caso.
— Querem que eu confesse? Está bem. Fui eu que fiz tudo aquilo, agi sozinho. Eles até
que tentaram me deter...
— Ele está mentindo! Fui eu! Eu que fiz aquilo. É a verdade. Fui eu quem matou todos
aqueles asquerosos traidores, e não lamento nadinha por isso! – Gritou Emily
furiosamente, com uma nota de pânico na voz. – Eles estavam naquela caverna. Fui eu
quem disparou a flecha flamejante. Fui quem fez o gás explodir.
— Mas ela obedeceu às minhas ordens! – Insistiu Drake.
Então Beau disse a todos para que se calassem, mas foi em vão.
— Isso tudo é bobagem, foi tudo ideia minha – informou Warrington aos homens de
Green, assumindo o papel de líder, como costumava fazer.
Carissa viu o olhar sombrio que Rotherstone e Falconridge trocaram; algum tipo de
comunicação silenciosa estava acontecendo entre eles.
— Todos nós somos responsáveis – declarou Jordan.
— Ele tem razão. Prendei todos nós – declarou Max. – Ou ficai fora do nosso caminho.
—E por que eu faria isso? Essa decisão é tão fácil... – respondeu Ezra Green. – Homens!
— Não, liberte-os! Fui eu! – A moça, Emily, adiantou-se e lhes ofereceu os pulsos.
Green se limitou a olhá-la, divertido com aquela declaração de culpa.
Com um sorriso, fez sinal com a cabeça para as tropas. Quando um soldado se
aproximou e algemou a moça, Drake ficou meio louco. Lançou-se sobre o soldado, que
empunhava o fuzilpronto para intervir, e lhe deu um belo soco na cara.
— Prendei todos, agora! – Trovejou Green, quando Drake mandou o homem voando
para o Tâmisa.
O pandemônio estourou em torno da pobre Emily. Carissa observava-a com uma ponta
de simpatia. Ela poderia ter dito à moça que o abnegado oferecimento de si mesma teria
sido em vão. Mesmo que fosse verdade o que ela afirmara, agora Carissa entendia que
toda aquela farsa tinha apenas um e grande objetivo: a destruição total da Ordem.
Green estava muito perto de conseguir o que queria quando os agentes decidiram
parar de lutar e se deixaram prender. Pelo visto a ideia consistia em que, se um deles seria
preso, todos iriam juntos.
— Está cometendo um grande erro – Lorde Rotherstone informou Green, quando ele
também foi algemado na presença de centenas de londrinenes que olhavam a bizarra
cena. Carissa ficou aliviada porque Daphne não estava ali para ver aquilo, nem as outras
duas mulheres, cujos respectivos maridos foram presos também. Drake foi o último a ser
subjugado.
—O senhor vai pagar caro por isto – cuspiu ele para Green.
— Isso é uma ameaça, Lorde Westwood?
—Drake, por favor, —murmurou Emily.
Ele ficou em silêncio e ela o olhou com desespero quando colocaram as algemas nele.
Ele não havia sido prisioneiro dos Prometeosdurante meses? Carissa se lembrou. Não
era de estranhar que os olhos dele parecessem selvagens diante da perspectiva de ser
posto de novo em uma cela.
— Vai ficar tudo bem – Emily lhe garantiu, como se estivesse acalmando um animal
selvagem.
O único que ficou em liberdade foi Beau.
— Eu vou tirar-vos dessa – prometeu ele aos amigos.
— Não, o senhor não vai fazer nada disso, Lorde Beauchamp. Se for sábio, continuareis
cooperando.
— Por Deus, Beauchamp, o que mais tu lhes dissestes? – Jordan exclamou.
— Eu não... – Beau começou a responder, frustrado, mas ficou quieto, pois os outros
estavam começando a serem levados. – Apenas..., confia em mim.
— Nós confiamos – murmurou Max, fazendo um gesto significativo.
— Levem-nos para a Torre! – Ordenou Green.
— Para a Torre?! – questionou Warrington indignado.
— É isso mesmo, Sua Graça. É o lugar reservado aos traidores.
— Maldição, eu sirvo este país desde que tinha dezessete anos!
— Chega, Rohan. Não vale a pena – Max cortou o amigo. – Beauchamp vai conseguir
resolver tudo isto.
Beau se aproximou dos amigos, enquanto os soldados os escoltavam até o coche de
prisioneiros que aguardava. Ele ainda não havia visto Carissa.
— Não vos preocupais – disse para os amigos. – Vou direto procurar o Regente. Eu vos
prometo, isto não vai ficar sem solução.
— O Regente? – Green o olhou inquisitivamente. – E quem o senhor acha que assinou
a ordem de prisão?! O Ministério do Interior não tem autoridade para manter tais
guerreiros nobres sob custódia, milorde.
Carissa ficou olhando para Green, horrorizada. O Regente estava sabendode tudo
isso?! Mas a palavra final era do Príncipe. E essa era sua última esperança.
— Beau, leva Mara para falar com ele! São bons amigos. Ela vai saber o que realmente
está acontecendo. – Disse Jordan em tom sombrio antes que o enfiassem no coche de
prisioneiros junto com os outros.
Beau deteve Green, queestava se afastando, agarrou-o então pelas lapelas e o
imprensou contra o coche onde estavam os prisioneiros. Carissa viu aí a sua deixa.
Correu então até ele para conter a fúria do marido antes que considerassem
conveniente prendê-lo, também.
Claro que isso parecia pouco provável; tinha a sensação de que Green, de alguma
forma, precisava de Beau em liberdade. Talvez assim o que havia afirmado parecesse mais
crível se pudesse responsabilizar Beau dos presumidos delitos dos outros agentes.
— O Regente jamais concordaria com esta arbitrariedade – Beau grunhiu na cara de
Green, enquanto o imobilizava contra o veículo.
Green se limitou a erguer o papel e mostrar a assinatura com o selo real.
Beau o olhou com os olhos semicerrados.
— Então o senhor o manipulou de alguma maneira.
— Eu, senhor?! É claro que não! Embora eu realmente tenha ouvido dizer que é
bastante fácil manipular alguém que está sem fundos. – Ele retrucou.
— E que diabos acha que significa isso? – Green fez uma careta.
— Por que não pergunta ao vosso amigo, Lorde Forrester?
Beau ficou totalmente imóvel.
— O senhor...?
— O quê? – perguntou Green inocentemente.
Carisa se aproximou mais, com o coração batendo forte. Beau estava de costas para
ela, mas ela só conseguia ver a furiosa troca de palavras.
— O que é que o senhor sabe sobre Nick? – exigiu Beau.
— É melhor que o senhor tire as mãos de cima de mim antes que eu atire no senhor.
Eu sei que todos os senhores são assassinos treinados, mas não se esqueça de que agora
o senhor responde a mim, Lorde Beauchamp. A menos que queira que algo lamentável
aconteça com os seus amigos enquanto estão no cárcere...
Beau estava fervendo.
— Diga-me, Green. Quando foi que se uniu aos Prometeos?
Green desatou a rir.
— Não preciso desses contos de fada para saber que a Ordem há muito deixou de ser
útil, milorde..., bem como a maioria das Instituições do mesmo tipo.
— Está falando do quê?
— Espere alguns anos e vai entender. Por enquanto, preste muita atenção no que vou
lhe dizer. Há uma nova Inglaterra, surgindo, e aqueles de nós que vamos lhes proporcionar
isso, vamos fazer dos vossosrefinados amigos um exemplo, para que todo mundo saiba
que, a partir de agora, até mesmo os nobres devem responder perante a lei. Saiba que
nem a riqueza, nem vossa posição ou vossas armas, sequer a Coroa, à qual o senhor
serviu tão tolamente vossa vida inteira podem vos salvar das mudanças que se avizinham.
– Olhou para Beau e seus companheiros com desprezo. – É só esperar para ver. Agora,
tirai-as-mãos-de-cima-de-mim.
Beau parecia tão surpreso com aquelas palavras que o soltou. Green olhou-o com
suficiência, endireitou a casaca e se foi, subindo em um coche. Quando ia se afastando,
Green a viu, e Carissa se viu olhando nos olhos de um traidor. Ela recuou quando Grenn
tirou o chapéu para ela em um fingido ato de cortesia.
—Lady Beauchamp, — disse ele, enquanto o coche se afastava.
Ao ouvir o nome da esposa, Beau se virou e a viu ali, de pé, e escancarou a boca.
Imóvel, olhava-a como se ela tivesse lhe dado uma punhalada no coração.
— Mas o que é que tu estás fazendo aqui?! – Em seguida, sacudiu a cabeça e olhou-a
friamente. – Não importa. Não me interessa nem quero saber. Não tenho tempo para isso.
— Beau, espera! – gritou, enquanto ele passava diante dela.
— Vai para casa! – resmungou secamente, afastando-se dela.
Carissa sentiu o coração se encolher, mas tinha que lhe contar o que havia descoberto.
Ela correu atrás dele e viu o aprendiz de armeiro se aproximar do marido forçando
passagem entre a multidão.
— Milorde!
Carissa também estava empurrando as pessoas para o lado, olhando para os dois que
conferenciavam mais adiante.
Quando dois gigantes estivadores se afastaram, surgiu um espaço diante dela, que viu
Beau ir até a própria carruagem com Michael correndo ao seu lado.
— Marido! Preciso falar contigo! – gritou, correndo atrás dele.
Mas ele sequer a escutou. Subiu na carruagem, parando apenas para lhe lançar um frio
olhar de reprovação por cima do ombro, uma recordação muda de que a ida dela para o
campo havia sido um teste..., e que havia fracassado. Michael também subiu na
carruagem.
Então Beau soltou o freio e se foi, sem sequer lhe dar a chance de falar. Mas que
homem mais obstinado! Sabia que ele estava zangado por mil coisas – compreensível – e
sem dúvida, o fato de ela ter chegado naquele preciso momento era o pior que podia ter
feito para acrescentar mais carga sobre ele. Mas, que inferno, havia chegado o momento
de lhe mostrar quem ela era de verdade.
Ela apertou a mandíbula com determinação, apressou-se a voltar para o abandonado
carro de entrega do armeiro e conduzí-lo ela mesma.
O aprendiz provavelmente pretendia voltar mais tarde para buscá-lo, mas ela lhe
pouparia o incômodo, porque ia segui-los até o inferno se preciso fosse!
— Fora do meu caminho! – gritou diante da peixaria e para os estivadores que
pululavam pela rua.
Ela pouco estava se importando se não parecesse no momento. Que fizessem os
mexericos que quisessem, ela não estava nem minimamente preocupada com isso no
momento!
Chicoteou o lombo dos cavalos, decidida a falar com o marido fugitivo de uma vez por
todas.
No momento, Beau se sentia puxado em inúmeras direções ao mesmo tempo, e ir atrás
de Nick era a última coisa que queria fazer. Mas, dentre todos os assuntos urgentes que
explodiram em cima dele nesse dia, esse parecia ser o mais grave de todos.
Se o aprendiz de Schweiber lhe mostrasse o esconderijo de Nick, então ainda tinha
uma chance de impedir a catástrofe final. Tinha que ser alguém muito graúdo para valer
oito mil libras, e Beau tinha certeza absoluta que se fracassasse e Nick matasse o alvo, ele
e seus companheiros iriam direto para a forca.
Cada segundo contava agora, mas Deus sabia que preferia no momento estar com a
esposa para lhe dizer com detalhes o que pensava daquela atitude desafiante dela, da
incapacidade de respeitar ordens do marido. Talvez agora ela visse que aquilo tudo não
era uma brincadeira.
Ao mesmo tempo, queria estar na Torre para garantir que fossem respeitados os
direitos legais dos seus amigos e que ninguém os trataria com excessiva crueldade. Queria
escrever para os Anciãos, na Escócia, pedindo-lhes que mandassem os melhores
advogados que pudessem encontrar.
Acima de tudo, queria ir até Carlton House e arrancar Prinny de lá, onde
provavelmente ele estava enchenco a cara, como sempre.
Como é que seu benfeitor Real podia tê-los traído daquela forma?!
Alguém devia ter manipulado o Regente. Beau não sabia se Green fazia parte dos
Prometeos ou não, mas mesmo que não fosse, o resultado seria o mesmo.
Aquela pequena quadrilha de burocratas havia causado mais dano à Ordem do que os
Prometeos haviam conseguido infligir a eles em um século.
Quando o aprendiz de armeiroo levou até East End, Beau tentou ignorar a fúria que
sentia e se concentrar na missão que tinha pela frente. Mas ainda estava furioso pela
forma com a qual Green havia colocado seus irmãos guerreiros na parte traseira daquele
veículo. Maldição! Qualquer um deles teria dado a própria vida pela causa, mas ninguém
havia sugerido que o trabalho deles seria recompensado com a vergonha pública. Como é
que agora eles estavam passando por isso? Será que o mundo havia ficado louco?
— Aqui, senhor, a rua é esta. Eu o segui até aqui. O prédio fica logo ao virar a esquina.
Beau assentiu, fazendo os cavalos pararem. A julgar pelo aspecto tacanho do lugar,
esperava que sua carruagem não fosse roubada até voltarem.
— Vamos a pé, daqui.
Saltaram da carruagem e Beau murmurou uma ordem para os cavalos, dizendo-lhes
que ficassem ali. Fez um sinal com a cabeça para o rapaz e se dirigiram à esquina. O rapaz
assomou a cabeça primeiro na esquina do prédio de tijolos, depois olhou para Beau.
— É o prédio à direita, senhor. Indo para os fundos, é a segunda porta, no térreo.
Beau se lembrou de que Nick havia lhe dito que estava mantendo Trevor em uma
espécie de porão.
— Bom trabalho, Michael. Fica aqui.
— Se precisar de mim, senhor, não me importaria em ajudar. Tenho muito boa
pontaria. – E sorriu tristemente.
— Tenho certeza de que tu és mesmo, mas meu amigo está em vias de destruir a si
mesmo e já demonstrou que não se importa se prejudicar alguém pelo caminho. Eu me
encarrego disto. Mas tu podes me ajudar sim, fica vigiando..., e de olho na minha
carruagem, certo?
— Sim, senhor.
Beau então se esgueirou, dobrando a esquina e caminhando até o prédio. Ao chegar
mais perto, sacou a pistola. Sentiu o pulso acelerado quando se aproximou da segunda
porta. A cada passo que dava seus sentidos iam ficando mais afiados, observando todos
os detalhes do prédio.
Certamente Nick havia preparado uma saída de emergência. Teria que procurá-la assim
que entrasse, do contrário aquele filho da puta poderia escapar mais uma vez.
Com a arma em riste, apoiou as costas contra a parede ao lado da porta e apurou o
ouvido. Tudo silencioso. Tentou a maçaneta. Trancada, é claro.
Talvez Nick não estivesse em casa, pensou. Mas Trevor tinha que estar em algum lugar.
Empenhado em tirar um do cativeiro e em salvar o outro, Beau contou mentalmente até
três, em seguida jogou o corpo contra a porta com toda a força.
A porta se soltou dos gonzos e voou longe, então Beau entrou, apontando a pistola
para todos os lados. Nenhum contra-ataque surgiu daquela pocilga escura e suja. Mas ele
precisava se certificar se o lugar estava vazio ou não.
Beau esquadrinhou o primeiro aposento em um segundo, procurando não só aquele
maldito traidor mercenário, mas qualquer sinal de algum alçapão que desse acesso ao
porão, o qual Nick havia se jactado que mantinha Trevor preso.
Ele tinha que estar em algum lugar. O apartamento era pequeno, tinha apenas dois
aposentos. O aposento principal estava praticamente nu de móveis, exceto algumas
prateleiras com panelas e frigideiras, uma mesa com quatro cadeiras de madeira, tudo
muito velho e mal cuidado. Sobre a mesa viu um jornal ao lado de um toco de vela
derretido, uma garrafa vazia de gim, migalhas e um prato não muito limpo com restos de
comida.
Beau olhou o segundo cômodo e viu um catre embolorado, mas não havia ninguém
sobre o mesmo. Havia um velho armário contra uma parede cheia de marcas, mas
encontrou apenas um casaco e algumas peças de roupa íntima que pareciam finas demais
para aquele ambiente. No bolso do casado Beau encontrou o baralho da sorte de Nick e
seus lábios se retorceram com sarcasmo.
Pelo menos ele estava no lugar certo, mas Nick não estava em casa. Voltou e colocou
no lugar a porta que havia derrubado, caso Nick voltasse. Andando por ali, esquadrinhou
de novo em todas as direções, um tanto confuso.
— Trevor – chamou. – Trev, estás aqui? Sou eu, Beau!
Foi então que ouviu sons baixos de pancadas. Uma pancada surda seguida de mais
duas batidas. Vinha de algum lugar debaixo do chão, junto com uma voz muito abafada.
— Maldição, aqui embaixo! Beauchamp! Tira-me daqui!
Beau correu até o outro cômodo, seguindo o som. Seu olhar pousou no tapete
manchado e na andrajosa cadeira ao lado de uma mesinha baixa, diante da lareira.
—Trevor!– gritou, olhando para o sujo tapete ovalado debaixo da mesinha e da cadeira
que pareciam dispostas de forma desigual, o que poderia não significar nada, mas ele se
aproximou, puxou a ponta do sujo tapete e praguejou.
—Trevor!
Sentiu o coração batendo forte enquanto afastava a mesa e a cadeira, expondo por
completo o alçapão. Infelizmente, estava trancado com chave. As pancadas vinham da
parte de baixo das tábuas.
— Dá um jeito de me tirares daqui! – Exigiu uma voz furiosa, abafada.
— Calma, já estou aqui!
O pulso de Beau bateu com feroz alegria ao ouvir a voz do seu longamente ausente
companheiro de equipe.
— Afasta-te! Vou ter que estourar o ferrolho!
Deu algum tempo para que Trevor se afastasse antes de atirar à queima-roupa no
ferrolho. Colocou a pistola no coldre, mas antes que a fumaça se dissipasse ele já havia
jogado longe as metades quebradas da fechadura. Ao mesmo tempo, pegou na alça e
puxou o alçapão para cima, enchendo o espaço abaixo com a luz do dia.
Trevor correu para subir a escada de madeira bruta como um leão no cativeiro que,
finalmente, conseguia escapar da jaula. Saltou da escuridão para a liberdade e olhou em
torno com olhar selvagem e o queixo áspero pela barba.
— Está tudo bem agora.
—Tu demorastes demais! – Cuspiu ele. – Onde ele está? Vou matá-lo!
— Calma... Meu Deus, quanto tempo ficastes aí dentro?
— Tempo demais – grunhiu o outro.
Quando Trevor saiu do cativeiro, Beau deu uma rápida olhada no buraco e viu que, na
verdade, ali era bem mais confortável do que os cômodos úmidos da parte de cima.
Assim, pelo menos, Nick havia se certificado de que o amigo ficaria confortável. No
entanto, ainda era uma prisão.
Beau correu atrás dele até o outro aposento.
— O que estás fazendo? Trevor, acalma-te!
— É fácil para ti dizer isso! Não fostestu que ficastes em um buraco nos últimos meses.
– Vasculhou a área da cozinha procurando qualquer objeto afiado. – E por que diabos
demorastes tanto?! – Trevor praticamente grunhiu por cima do ombro.
— É uma longa história. Coloquei todos os agentes na ativa em campo para procurar os
dois. – Disse Beau, e Trevor grunhiu em resposta. – E como tu estás? – perguntou Beau.
— Como eu estou?! – repetiu ele, com os olhos cinza ardendo, o espesso cabelo
castanho abaixo dos ombros. – Como-eu-estou?! Bom, deixa-me te dizer, Beauchamp. De
volta à Espanha, tivemos uma massiva refrega com trinta mercenários Prometeos. Nós os
matamos, claro, e acidentalmente uma igreja explodiu no processo. Depois atiraram em
mim. Fiquei inválido umas quantas semanas, então me dei conta de que meu melhor
amigo havia perdido a cabeça quando tentou me convencer que eu devia me tornar um
maldito mercenário. Oh, mas isso é só o começo da diversão. Porque foi então, quando
me neguei, que ele se aproveitou do meu fraco estado de saúde para me enfiar em uma
espécie de prisão provisória. Caralho, Beau, eu falava comigo mesmo no escuro!
Conversas infindáveis e, às vezes, os móveis até me respondiam! E claro, meu querido e
velho amigo Nick ainda vinha falar comigo através da porta, já que o maldito bastardo não
tinha mais ninguém com quem conversar. É claro, também que, na maior parte do tempo,
minha única resposta para ele era Vá à merda, seu bosta, serpente traiçoeira! A propósito,
ele disse que tu te casastes.
— Sim.
Trevor pigarreou.
— Que bom que tivestes tempo para encontrar uma namorada e cortejá-la, ocupado
como devia estar, à minha procura.
— Foi um noivado muito curto – disse Beau, com uma careta de dor.
—Tu te dás conta de que meu casamento provavelmente esteja arruinado?
Provavelmente Laura já me deu por morto. Não cheguei a aproveitar nem seis meses de
casado. E quanto aos Anciãos, eles sabem sobre Nick?
— Ainda não.
— Provavelmente porque pensam que eu desertei, assim como ele o fez. Nem me
peças para correr, tampouco. Aquele bastardo chutou meu joelho em uma das nossas
recentes brigas quando tentei sair. Provavelmente vou mancar por um mês, ainda. E como
se fosse pouco, estou parecendo... – Fez um gesto mostrando o cabelo e a barba
crescidos. - ...com o louco ermitão que vive no canto mais afastado do bosque de alguém!
Isso responde à tua pergunta de como estou?
—Absolutamente – respondeu Beau. – Entendo que tu estejas zangado, mas estou feliz
por te ver com vida.
— Ele não ia me matar! – zombou Trevor. – Ele só abusou da minha amizade, da minha
tolerância e confiança, por isso vou fazer com que aquele sem-vergonha me pague!
—Tu terás oportunidade para tanto, eu te prometo.
Ainda aturdido com o que Nick havia feito com Trevor, Beau viu o amigo pegar um
inocente utensílio de cozinha que facilmente poderia causar algum estrago nas mãos de
um capacitado agente da Ordem.
Mas Trevor deixou de lado o espeto de assar churrasco e estendeu a mão para Beau.
— Dá-me tua pistola.
Beau olhou-o fixamente. Estava com duas Manton nos respectivos coldres presos à
cintura. Mas hesitou.
— Precisamos dele vivo, Trev.
— Eu já sei disso! Quando eu disse que o mataria, não falei literalmente, pelo amor de
Deus, homem!
— Tens certeza?
— Mas é claro que sim!
— Porque seria compreensível, sabe...
Trevor respiroufundo e soprou o ar, começando lentamente a voltar a ser o
humanamente civilizado de quem Beau se lembrava.
— Está bem – disse ele finalmente.
— Estou bem agora. Eu só precisava desabafar para tirar um pouco do peso do meu
peito.
Beau sorriu, em seguida lhe entregou a arma.
— Só não faça nada estúpido, hã...
Trevor assentiu com a cabeça procurando ainda mais dentro de si o antigo eu, uma vez
que estava com um meio de defesa de forma segura na mão. Enfiou a pistola no cós das
calças, muito empoeiradas.
— É muito bom te ver de novo.
— O mesmo digo eu, companheiro. – E apertou o ombro de Trevor fraternalmente.
No entanto, Beau não sabia como iria contar ao amigo que Rotherstone e sua equipe
haviam acabado de ser enviados à Torre de Londres. Mas acabou ficando quieto, cada
coisa a seu tempo.
— Então, tu sabes aonde ele foi?
— Aonde, não, mas sei o que ele estava fazendo. Todos os dias vai conferir o ponto de
entrega para ver se lhe deixaram o nome da pessoa a quem querem que ele mate.
— E ele vai voltar logo?
— A qualquer momento. – Trevor o olhou.
— Bom – murmurou, voltando a carregar a pistola com a qual havia atirado no ferrolho
do alçapão. – Então nós estaremos esperando-o.
Conduzir um coche de entrega era mais difícil do que parecia, percebeu Carissa. Seus
braços e ombros doíam de tanto manobrar aquele pesado veículo com quatro cavalos
fogosos e muito fortes, e mais um chicote. Porém havia visto o rumo que havia tomado a
carruagem de Beau.
Demorou um pouco procurando onde a carruagem dele estava estacionada.
Perdeu-se duas vezes e teve que dar a volta em um beco estreito, o que implicou
descer do veículo e conduzir os cavalos pela brida. Pôs-se a caminho de novo assim que
retomou o rumo certo e finalmente, viu a brilhante carruagem com quatro cavalos negros
atrelados, estacionada em uma rua. O aprendiz de armeiro saiu correndo na direção dela
com uma expressão de alarme.
— Onde está meu marido? – perguntou ela, mas Michael levou rapidamente o
indicador aos lábios pedindo-lhe silêncio.
— Milady, este lugar não é seguro para a senhora.
— Bom, estou aqui agora, e não vou embora até falar com meu marido!
— Sua Senhoria está lá dentro, mas, para vossa própria segurança, poderia fazer o
favor de ficar fora da vista de alguém?
— Estamos perto do esconderijo de Nick? – perguntou ela, hesitante.
— Virando a esquina. Estamos esperando que ele chegue.
— Suponho que tu tens razão. É melhor que eu me esconda, pois ele vai me
reconhecer se me vir e dar-se-á conta de que Beau está lá dentro.
Micahel assentiu em silêncio.
— Não podemos deixar que ele veja o nome do meu mestre no coche de entrega. A
senhora vai ter que esperar dentro da carruagem de Lorde Beauchamp enquanto eu levo
este veículo até a rua ao lado. A senhora vai estar por conta própria, então é melhor que
fique escondida, caso ele venha.
— Está certo.
Lembrando-se da velada ameaça de morte que Nick havia feito, desceu do assento do
condutor e o rapaz a segurou com uma das mãos amavelmente para que ela não caísse,
em seguida fez um gesto para a carruagem de Beau.
Assim que ela entrou na carruagem, Michael correu até o veículo de entrega e se
afastou para escondê-lo. O sincronismo de tempo foi impecável, pois assim que ele
dobrou a esquina, Nick apareceu, a cavalo, e passou pelo cruzamento.
Carissa se agachou com um ofego enquanto Nick passava por ela. Quando o som dos
cascos do cavalo foi sumindo, ela assomou apenas os olhos na beirada da janela da
carruagem. Ele estava fora de vista. Mas ela tinha que saber o que é que estava
acontecendo. Desceu da carruagem se esgueirando e colou as costas à parede da esquina,
olhando furtivamente em volta.
Seus olhos estavam arregalados enquanto olhava o agente corrupto desmontar, levar o
cavalo até a estrebaria e reaparecer pouco depois, indo até uma porta na parte dos
fundos do prédio.
Ela se agachou junto à parede com o coração disparado quando Nick olhou em torno,
por cima do ombro. Um homem permanentemente em guarda... Mas, ao pegar na
maçaneta da porta, pressentiu de repente que havia algo errado, e congelou. Na próxima
batida do coração de Carissa, Nick se afastou daporta, e ela sabia que ele estava prestes a
se afastar de novo.
— Beau! – gritou o mais forte que pôde. – Ele está bem atrás da porta!
Nick se virou para ver de onde havia partido o grito, mas a maldita porta atrás dele se
abriu e Beau saiu voando diretamente sobre ele.
Em uma fração de segundo, viu Nick hesitar, cuja mão ficou tateando para tirar a
pistola do coldre, preso à lateral do corpo. Antes que conseguisse decidir se agia ou não
contra o amigo de infância, Beau se lançou sobre ele, jogando-o no chão. Golpe certeiro!
Começaram a lutar; dois assassinos treinados. Um deles, alto, musculoso, um homem
que, quem o olhasse juraria que era pirata devido ao longo cabelo castanho escuro e à
barba desalinhada, saiu correndo do prédio logo atrás de Beau. Apesar de ligeiramente
desfavorecido porque mancava de uma perna, entrou na briga também.
Aquele deve ser Lorde Trevor Montgomery! O outro companheiro desaparecido de
Beau.
Feliz por Beau ter conseguido libertá-lo, ela correu até onde os três lutavam, deixando
a proteção da esquina, mas dali não conseguia ver claramente o que estava acontecendo.
Os dois homens estavam em cima de Nick, dando-lhe socos e conseguindo controlá-lo.
Trevor levou para trás o punho direito fechado enquanto segurava a casaca de Nick
com a mão esquerda. Estava perfeitamente alinhado para um golpe demolidor na cara do
outro, mas algo dentro dele deve tê-lo impedido, porque não completou o movimento.
— Merda! – foi tudo o que disse. Soltando a lapela da casaca de Nick, virou-se e
afastou-se com alguns passos meio cambaleantes e o peito agitado.
Trevor fez uma careta sombria e se esforçou para controlar a ira, enquanto Beau
arrastava Nick pelos pés.
— Quem é o alvo? – perguntou, segurando o braço de Nick, sob ameaça implícita da
pistola. Nick se limitou a olhá-lo. – Ajuda-me com isto – pediu Beau a Trevor.
— Eu já destruí a mensagem – disse Nick cansadamente.
— Não, tu não a destruistes – cortou Beau. – Não, porque tu sabes muito bem que essa
é a única prova que pode te eximir se algo chegar a dar errado.
—Tu escondestes a mensagem no relógio, como sempre? – perguntou Trevor.
— Rapazes, vós sois realmente estupendos – murmurou Nick.
Mas Trevor puxou o relógio de Nick do colete, pela corrente, e destravou a tampa de
metal.
— Ora, ora, ora..., mas o que é que temos aqui? – zombou ele, tirando de dentro do
relógio um pedaço de papel e mostrando-o. – Tu estás ficando previsível na velhice,
homem.
— Só porque tu queres... – respondeu Nick secamente.
— O que diz o bilhete? – perguntou Beau.
Trevor empalideceu ao ler o que estava no pedaço de papel, em seguida,
completamente abalado, levantou o olhar para Nick.
— Mas que grande filho da puta éstu! Vais mesmo fazer isso?!
Nick continuou calado.
— Quem é o alvo? – repetiu Beau para Trevor, que o olhou.
— O Primeiro-Ministro.
— Meu Deus!! Tu não pretendes mesmo levar isso a cabo, não é?
— Eu ainda não sei! – Nick explodiu de repente, com fúria. – Só peguei esse maldito
papel faz poucos minutos. Tu achas mesmo que eu estava esperando por isso?!
— Em primeiro lugar, tu não devias nem ter aceitado esse trabalho! – Rugiu Beau na
cara de Nick. – Tu sequer sabes quem te contratou.
— Mas eu sei! – disse Carissa inquietamente, a alguns metros de distância.
Foi aí que os três homens viram que ela estava ali.
Beau já estava furioso com Nick e, ao ouvir a voz da esposa, virou-se e olhou-a com
olhostão semicerrados que pareciam apenas duas linhas no seu rosto.
— Eu encontrei o artista – informou ela. – O tal homem descartável que Madame
Angelique descreveu. Se tu conseguires fazer com que esse homem fale, terás a prova de
quem contratou Nick.
—Tu o encontrastes mesmo?! – exigiu Beau.
— Sim, eu o encontrei! – disse ela. – E se tu me escutasses pelo menos uma única
vez..., se me dessesapenas uma chance... Eu posso te levar até ele.
Capítulo
25
— M as quem é essa mulher?! – perguntou Trevor sem rodeios, muito espantado.

— A esposa de Beauchamp. Olá, Carissa.


— Nick – respondeu ela com olhar irônico.
— A esposa de...! – exclamou Trevor, assombrado.
— Como é que tu te atreves a ignorar minhas ordens mais uma vez?! – exigiu Beau.
— Mas eu não queria fazer isso, acredite! Principalmente depois do que aconteceu
entre nós. Mas eu tive uma visão repentina, e tinha que corroborá-la..., pelo teu próprio
bem. Pelo bem de todos nós! – insistiu ela, negando-se a recuar. – E foi muito bem eu ter
feito isso, porque acabou que eu tinha razão. – Beau olhou-a com certa frieza.
— Continua, estou ouviudo – disse ele.
— Esse tal homem descartável é o Senhor Charles Vincent, proprietário do Museu de
Cera em Southwark, onde ele dá vazão às sangrentas e sinistras fantasias que tem, cujas
obras estão lá, em exibição, para que todo mundo as veja. Sei também que é um fato que
está vinculado ao chamado Profeta, o professor Culvert, mentor de Ezra Green.
— Eu sei quem ele é – replicou Beau.
— Vi com meus próprios olhos Culvert e esse artista juntos em uma livraria na Russell
Square. Culvert estava dando uma conferência e eu fui lá para ouvi-lo, depois que tu me
falastes sobre ele. Eu queria saber mais, então...
—Tufostes lá?! Para ouvir aquele homem?! – exclamou ele, levantando as mãos.
— Eu queria te contar! – exclamou ela com as faces coradas. – Mas então Nick fez
aquela ameaça velada a mim e a coisa toda mudou de rumo. Então deixei o assunto para
depois. De qualquer forma, não pensei que havia descoberto algo útil! Não quero que
fiques zangado comigo. Olha, eu sinto muito – disse ela com impaciência. – Mas vamos
nos ater ao problema em questão. Se foi Calvert quem mandou o artista para contratar
Nick para matar o Primeiro-Ministro, quem diz que Ezra Green não está metido nisso
desde o início? Tu jáhavias me dito que ele estava sedento do sangue da Ordem. O que
aconteceu nos molhes prova que tu tinhas razão. – Ela olhou para os três. – Todos vós
estão sendo manipulados. Nick não passa de um instrumentocom o qual pretendem te
destruir, Beau.
Apertando a mandíbula, Beau reconheceu o fato com um movimento da cabeça e
disse:
— Bom, de volta ao assunto dos molhes... Green se limitou a dizer algumas coisas
enigmáticas para mim, sobre uma nova Inglaterra que estava para surgir, etc. Juntando
com o que tu acabastes de nos contar, as palavras dele começam a fazer sentido.
— Mas então, o que é que estamos esperando? Se tu conseguires controlar Charles
Vincent e persuadi-lo a te revelar os nomes daqueles que o enviaram à França, então tu
poderás dar o troco àquele odioso homem-lagarto. Então, queres ficar aqui brigando
comigo ou chegar ao fundo de tudo isto? – gritou ela.
Beau e seus amigos trocaram um olhar sardônico.
— Caramba! Tu sabes escolher bem, hein, homem? – disse Trevor arrastando as
palavras.
Carissa franziu o cenho para ele, mas Beau a olhou com receio.
—Tu dissestes que ele está em Southwark, é isso? Onde?
— Vamos, vou te levar até ele. Não há tempo a perder.
Ela girou nos calcanhares e começou a andar apressadamente até a carruagem. Apesar
da aparência externa segura, seus joelhos tremiam depois de ter feito aquele relatório
diante do seu ultrajado marido. Tinham maiores preocupações às quais enfrentar no
momento, mas não era tão ingênua a ponto de pensar que aqueleassunto entre eles havia
acabado.
Ao chegarem em Sothwark, Carissa estava extremamente ansiosa, olhando pela janela
da carruagem enquanto Beau e Trevor cruzavam a rua até o Museu de Cera. Disse a si
mesma para não se preocupar, pois Charles Vincent não era páreo para dois experientes
agentes da Ordem.
No entanto, no preciso instante no qual eles cruzaram a porta e sumiram lá dentro,
cada minuto lhe pareceu uma eternidade.
— Eles vão ficar bem, Senhora Beauchamp – murmurou Nick, sentado diante dela e
com os pulsos amarrados com as mesmas cordas com as quais ele mesmo havia usado em
Trevor.
Michael, o aprendiz de armeiro, também estava dentro da carruagem; sentado diante
do prisioneiro, mantinha Nick sob a mira de uma pistola. Nick olhou zombeteira e
sombriamente para o rapaz, e parecia que estava sopesando todas as possibilidades com
as quais podia surpreendê-lo..., afinal, ele era um jovem inexperiente...
Carissa sabia muito bem que Nick era uma força a se levar em conta.
No entanto, ele estava sentindo o peso total do arrependimento desde que Beau havia
lhes contado como os companheiros de ambos haviam sido presos nos molhes e jogados
naquela famigerada e temida Torre de Londres.
— Para de me olhar assim, tão fixamente... – A voz de Nick, em tom baixo, retumbou
nela.
Ela inclinou a cabeça.
— Desculpa-me, é que não consigo evitar te perguntar... Tu terias realmente atirado
em Lorde Liverpool, o Primeiro-Ministro?
— Não sei – murmurou ele, olhando desgostosamente pela janela.
— Mas tu querias fazer isso? – Insistiu ela.
Ele deixou escapar uma súbita e amarga zombaria.
— E que importância tem o que eu disser? Mesmo que eu tivesse me negado a tanto,
quem é que iria acreditar em mim agora?
—Tu sabes muito bem quem acreditaria em ti – respondeu ela em voz baixa. –
Beauchamp.
— Depois de eu ter ameaçado a mulher dele?!
—Tu não me assustastes – respondeu ela.
Enquanto a olhava, um triste meio sorriso curvou os lábios de Nick lentamente.
— Conheço Beau faz muito tempo mesmo, milady. E se quiser saber, creio que tu és
exatamente o que ele precisa.
Ela lhe deu um sorriso nostálgico, apesar da forma como estava se sentindo, e baixou a
cabeça.
— Espero que tu tenhas razão – disse ela.
No momento, temia que Beau estivesse se estapeando por se envolver sempre com
uma intrometida dama da informação.
— Maldição – praguejou Trevor baixinho enquanto rondavam em meio à escuridão, no
macabro labirinto do Museu de Cera. – É isso o que ele faz nas horas vagas?
— Pelo menos ele tem talento, isso tu tens que admitir.
Charles Vincent havia empregado todos os truques visuais conhecidos da arte e da
ciência para melhorar as sinistras cenas às quais dava vida. Utilizou espelhos e efeitos
visuais para as pinturas como um verdadeiro mago; as técnicas de iluminação e os
dispositivos mecânicos de relojoaria usados no teatro davam movimento a algumas
figuras e faziam com que parecessem que estavam vivas.
Beau observava cada nova e espantosa cena pelas quais passava com a arma em riste,
mas escondida no bolso do abrigo, para evitar alarmar os demais visitantes do museu,
cuja presença complicava as coisas. Ainda assim, teve que admitir que se sentia muito
bem fazendo o tipo de coisa para as quais havia sido treinado, em vez de todas aquelas
intermináveis sessões de interrogatórios hostis.
— Tua senhora estava certa. Parece que aqui tem coisa... – comentou Trevor
ironicamente ao passar pela cena da decapitação do Rei Carlos, representada em cera.
— Não consigo acreditar que ela veio aqui por conta própria! – Grunhiu Beau, mas
Trevor riu baixinho, ambos olhando para todos os lados, vasculhando além do limite das
sombras à procura do alto e desajeitado artista que Carissa havia descrito.
— Então... – disse Trevor, divertido. – Uma ruiva, hã? – olhou-o de soslaio com um
brilho alegre nos olhos. Beau não lhe fez caso, e bufou. – Nunca pensei que veria esse dia.
— Que dia? – Replicou Beau.
— Ora, vamos... Tu estás loucamente apaixonado por ela! – E bufou.
— No momento, eu gostaria é de retorcer aquele pescocinho. Ela é completamente
impossível.
— Hmmm... Com quem será que ela se parece...?
— Ora, cala-te!
Trevor riu baixinho e ambos continuaram avançando, agora com as respectivas armas
nãos mãos.
— Então, Beauchamp..., tu encontrastes a forma do teu sapato. Bom, quando penso
nisso, lembro-me de como tu e Nick usavam isso para zombarem de mim porque eu
estava apaixonadíssimo por Laura... – Meneou a cabeça.
— Por falar nisso, como ela está? – perguntou Beau, enquanto os dois se
movimentavam através do labirinto de corredores à escassa luz ambiente.
— Não faço ideia. Provavelmente ela pensa que estou morto. Então, como queres fazer
isto?
Trevor apontou com a cabeça para o corredor à frente. Beau encolheu os ombros.
— Creio que devemos seguir os procedimentos. Se pegarmos pesado demais, isso só
vai demonstrar que é verdade tudo o que Green andou dizendo sobre a Ordem.
— Bom. Menos mal que estamos longe de Nick, então. Falando na Inquisição... –
Trevor apontou com a cabeça para um nicho onde estava representada uma cena da
tortura espanhola.
— Encantador. Vamos procurar logo esse bastardo doentio e colocar um ponto final na
diversão dele.
Trevor assentiu. Separaram-se e continuaram procurando. Quando Beau passou pela
cena de Ana Bolena ajoelhada para o golpe final do homem do machado, isso lhe
provocou um nó apertado no estômago, fazendo com que se lembrasse dos irmãos presos
na Torre.
A visão dos macabros quadros da masmorra renovarama fria raiva dentro dele. Que
diabos ia dizer para as respectivas mulheres deles sobre tudo aquilo, de qualquer forma?
Isso o fez se lembrar. Jordan havia lhe dito que recorresse a Mara, pois ela tinha
vínculos com o Regente. Prinny era amigo pessoal do mesmo, que era padrinho do
pequeno Thomas, filho de Mara.
Beau tomou nota mentalmente como lembrete para fazer isso depois. Mas não podia
pensar nas respectivas esposas dos irmãos agentes no momento e a consequente histeria
feminina com a qual teria que lidar. Já tinha problemas demais com sua intrometida
esposa no momento. Por outro lado, Carissa havia lhe trazido vantagens, admitiu,
incomodado pelo próprio orgulho que crescia em relação a ela. Mas não tão rápido.
Vamos ver se vale a pena mesmo. A visita às figuras de cera ainda podia vir a ser uma
perigosa perda de tempo.
Foi então que Beau chegou à cena da Revolução Francesa e parou, desconcertado.
Com um calafrio na coluna, esquadrinhou o sombrio espetáculo.
A selvagem turba parisiense havia sido representada com primor até o último detalhe,
graças, em parte, o que era mais provável, ao relato em primeira mão de Madame
Angelique. Então ele viu o cesto contendo as cabeças que Carissa havia lhe recomendado
que observasse cuidadosamente.
Beau levantou uma sobrancelha, detectando uma possível semelhança de Prinny com
uma das cabeças de cera decapitadas. Em circunstâncias normais, o fel do artisto o teria
deixado furioso. Neste caso, no entanto, era uma visão mais do que bem-vinda: era uma
evidência.
Uma prova tangível da malícia do artista contra a Coroa e, certamente, uma forte
sugestão de violentas tentativas revolucionárias.
Olhou em torno e, vendo que não vinha ninguém, saltou rapidamente por cima do
parapeito para ver melhor. Levantou a cabeça de Prinny do cesto pegando-a pela mata de
cabeço eriçado de cor marrom avermelhado. Com um estranho senso de humor negro,
levantou-o e olhou para a cabeça de cera, cara a cara, depois riu baixinho, secamente.
Trevor tem que ver isto.
Beau deixou a cena da multidão levando a cabeça com ele. Teria sido bem mais
hilariante se ele levasse a cabeça do Regente para um passeio, mas a maldita coisa
poderia ser necessária como evidência.
Sempre à procura do criador daquelas coisas tenebrosas, foi andando pelo corredor às
escuras, com a pistola na mão direita e a cabeça debaixo do braço esquerdo.
Mas, de repente se deu conta que havia uma cortina preta à direita e escutou sons de
alguém trabalhando que vinham de trás da mesma, então deu um passo atrás, intrigado.
Fazendo caso omisso do cartaz que dizia PROIBIDO A ENTRADA, ele afastou a cortina
alguns centímetros e viu a cena de figuras de cera mais recente ainda em construção.
O olhar dele pousou no artista que trabalhava duro, claramente absorto no que fazia. O
sujeito coincidia com a descrição que Carissa havia lhe dado, mas mesmo sem isso,
poderia tê-lo reconhecido pelo tema no qual o homem trabalhava: outro rei recebendo o
que merecia. Nessa cena, os barões ingleses estavam obrigando o Rei João a assinar a
Carta Magna.
Inspirado com uma interessante forma de chamar a atenção do homem e chamá-lo à
responsabilidade, Beau rolou a cabeça de cera até o criador da própria. Charles Vincent
olhou o que parecia ser a cabeça de Prinny chegando até ele. Beau atravessou a cortina,
deu um passo na direção do proprietário e olhou-o sombriamente.
Vincent empalideceu e se afastou da cabeça de cera.
— O que significa isto?! – perguntou, atropelando as palavras e meio que gaguejando.
— Sabe que eu estava me perguntando a mesma coisa... – respondeu Beau.
—O senhor é agente da Ordem! – bufou o homem.
Beau sorriu. Charles Vincent saiu correndo e atravessou a cortina, perseguido por
Beau.
— Trev! – Gritou Beau no corredor.
Trevor estava justamente chegando na outra esquina e apareceu a tempo de impedi-lo.
Vincent se virou, viu Beau correndo até eles e Trevor bloqueando o caminho, então,
desviou e foi para os lados do Coliseu.
— Atrás dele! – advertiu Beau, brandindo uma ferramente de escultor com uma
pequena e desagradável faca afiada na ponta.
Beau saltou por cima do parapeito do cenário do Coliseu e o cercou, como um leão
cercando a presa.
Vincent se esquivou de novo, correndo até uma porta nos fundos que havia sido
pintada de forma que ficasse invisível.
— Dá a volta pelo outro lado! – Gritou Beau para Trevor, enquanto continuava a
perseguir o homem.
Beau sabia que estava em perigosa desvantagem. Ali era território de Vincent, que
conhecia todos os cantos, enquanto os lugares ilusórios e passagens em preto por trás das
paredes eram novas para Beau.
Ainda assim, Beau o perseguiu pelo labirinto escondido que dava acesso ao artista à
oficina dele, até que, de repente, de alguma forma ambos se encontraram de novo perto
da guilhotina.
Visitantes que por ali passavam começaram a gritar com o súbito tumulto. Figuras de
cera começaram a voar: revolucionários manejando a forca na libertação da coroa...,
gendarmes..., um verdugo encapuzado...
Encurralado, Vincent o atacou com a faca de entalhar cera, mas Beau o pegou
agilmente pelo pulso e o jogou no chão.
— Colaborai, ou eu quebro o vosso braço! – Gritou ele.
— Não, por favor!
Localizando-os pelos gritos dos visitantes, Trevor correu até eles para ajudar Beau,
fazendo caso omisso da lesão no joelho, muito embora praguejasse contra o fato quando
se ajoelhou ao lado do homem.
— Não se mexa! – ordenou, colocando a pistola na cara do homem.
— Eu já o peguei – disse Beau com os dentes apertados e o coração disparado.
— Quem é o senhor? O que quer de mim? – Gritou o artista, apavorado.
Beau se agachou lentamente.
— Oh, mas eu creio que o senhor já sabe...
Quando Beau e Trevor escoltaram Charles Vincent para fora do Museu de Cera, este já
havia confessado tudo, confirmando os piores temores de ambos. O professor Culvert
havia voltado a montar o antigo círculo de devotos jovens, agora homens poderosos
distribuídos aqui e ali no governo, incluindo Ezra Green.
Vincent não sabia quantos homens faziam parte da conspiração, mas supunha que
eram menos de vinte. O grupo havia contratado o assassinopara matar o Primeiro-
Ministro e, inclusive agora mesmo, estavam prontos e preparados para atacar.
Aproveitariam a oportunidade da crise que sabiam, de antemão, que estouraria assim que
o líder Tory caísse.
Ficou claro para Beau que o estranho artista da cera havia sido escolhido
especificamente para ir até a França negonicar o contrato. Ele era prescindível porque,
para começar, não possuía o mesmo tipo de poder que os outros tinham a oferecer.
Mais importante ainda, com os sutis temas da violenta revolução em exibição na
Mostra de Gala da História, o excêntrico artista parecia instável, inclusive sem imaginação
e inteligência suficientes para ter concebido toda aquela trama sozinho. Decerto ele havia
sido usado desde o começo como involuntário bode expiatório.
Infelizmente para os conspiradores, os mesmos não haviam contado com a
possibilidade de que alguém chegasse até eles rastreando o homem, e muito menos que
conseguissem que ele confessasse. Mas quando Beau conseguiu convencê-lo de que seus
co-conspiradores pretendiam fazer com que a responsabilidade total daquilo tudo caísse
sobre ele, finalmente cedeu.
O artista da cera admitiu, entre lágrimas, que Culvert e Green lhe propuseram
secretamente matar dois coelhos com uma cajadada só: matar o odiado Lorde Liverpool
e, de lambuja, destruir a Ordem.
Mas aqueles que viam a si mesmo como possuidores de intelecto superior aos demais
tinham, pela experiência de Beau, a fatal tendência a ultrapassar os limites, devido à
arrogância e ao ódio que sentiam o tempo todo. E agora, mais uma vez, tinham ido longe
demais.
Destruir a Ordem?! Nunca! – jurou Beau. Cavalheirismo e honra não seriam
exterminados com tanta facilidade assim!
Exceto, talvez, quanto a Nick.
Ao retornarem à carruagem, pediu para os outros que saíssem da mesma para que ele
pudesse falar em particular com seu errante irmão agente.
— Ouça. – Ele olhou fixamente no fundo dos escuros olhos de Nick. – Pegamos o
homem, mas, covarde como ele é, receio que vá se negar a oficializar o que confessou. Só
há uma forma de que isto funcione. Precisamos da tua ajuda.
— Vai direto ao ponto.
— Chegou a hora de tu escolheres de que lado estás, Nick. Eis minha oferta. Não vou
dizer nada para ninguém sobre tudo isto. Os Anciãos podem querer falar contigo em
particular, mais tarde, se eles considerarem conveniente. Tenho certeza de que, de uma
maneira ou de outra, tu vai sacabar no cárcere. Mas..., se quiseres recuperar o que te
resta de honra, vou te dar a chance da tua vida. Vem comigo e vamos declarar que tu
estavas trabalhando disfarçado em uma missão o tempo todo..., tão fiel como sempre, um
perfeito agente da Ordem..., enviado para descobrir a conspiração.
Nick o olhou, incrédulo.
—Tu vais fazer com que eu saia como herói nessa história?! Mesmo depois do que fiz?!
— E tu achas mesmo que me importa quem vai levar o crédito ou não? – retrucou
Beau. – Neste preciso instante, estou preocupado com nossos irmãos presos na Torre.
Temos que nos unir agora para enfrentar isso, se vamos mesmo passar por essa tentativa
de nos destruir. Do contrário, – ele encolheu os ombros – aqueles bastardos filhos da puta
vão nos devorar no desjejum.
Nick o olhou hesitante.
— Quer dizer então que tuqueres expor essa conspiração contando mais mentiras?
Espero que tu possas ver a ironia da coisa toda...
— A doutrina da Ordem diz que os mentirosos não merecem a verdade – respondeu
ele. – Além do mais, tu só estarias representando um papel, não estarias eximido de
qualquer responsabilidade. Mas me ajuda agora, e eu vou te ajudar a mitigar qualquer
castigo que os Anciãos possam te infligir. Estou disposto a te dar outra chance de
compensar o que fizestes, porque, francamente, eu preciso mesmo da tua ajuda. Se resta
um pingo de honra em ti, apoia-me nesta empreitada.
— É claro – murmurou, olhando-o aturdido. – Mas é claro que vou te ajudar.
Beau estava meio surpreso consigo mesmo, mas não conseguia ver nenhuma outra
forma de pelo menos tentar resolver aquela encrenca toda. A melhor estratégia que tinha
para salvar os demais e colocar Green contra a parede era afirmar que os poucos meses
nos quais Nick havia se passado por mercenário haviam sido um estratagema.
Aliás, estratagema esse no qual os inimigos haviam caído que nem patinhos. Os
Anciãos poderiam esclarecer a sombria verdade mais tarde ao lidar com o Senhor
Forrester, mas era melhor que isso fosse tratado internamente pela Ordem.
— Não consigo acreditar que estás me dando outra chance – disse ele em voz baixa,
com o olhar abatido.
— Nem eu. Mas tu salvastes a minha vida muitas vezes. Não me interpreta mal, tu és
um tremendo filho da puta, mas continua sendo meu irmão.
Diante daquela simples declaração de Beau, Nick não mais conseguiu disfarçar o
remorso por trás da fanfarronice. Levantou o olhar lentamente para Beau.
— Eu não teria feito, tu sabes... Lorde Liverpool, quero dizer. Espero que possas
acreditar nisso.
— Eu sei – disse Beau com sinceridade.
— Vou fazer o que for preciso – Nick se forçou a dizer. – É só me dizeres o que tu
queres quer eu fale.
Beau cortou as cordas em torno dos pulsos de Nick e o colocou a par dos detalhes do
plano. Com a força das informações que tinha agora nas mãos, Beau decidiu apelar
diretamente ao Regente.
O clima dentro da carruagem estava tenso enquanto se apressavam até Carlton House.
Ao chegarem à esquina da Pall Mall, próxima à residência do Príncipe, Beau liberou o
aprendiz de armeiro.
— Não há motivo para te arrastar além deste ponto. Tu trabalhastesmuito bem, e vou
interceder ao teu favor ao falar com os Anciãos. Isso se a Ordem sobreviver, não é...
— Muito obrigado, senhor, e boa sorte.
Michael saltou da carruagem e saiu andando, mas quando Beau olhou Carissa, ela
meneou a cabeça vigorosamente para ele em sinal de advertência.
— Nada disso! Nem penses em me mandar embora, também.
Ele sorriu, apesar de si mesmo.
— Eu não ia fazer isso.
Instantes depois, estavam se dirigindo às portas de Carlton House.
Os guardas lhes franquearam a entrada quando apresentaram as credenciais da Ordem
e olharam-nos com íntima admiração. No entanto, dado a prisão dos irmãos agentes,
foram despojados das respectivas armas e cinco guardas do palácio escoltaram Beau, Nick
e Trevor até lá dentro, junto com o prisioneiro e Carissa.
— Temos que falar com Sua Alteza Real imediatamente. Este homem tem uma
informação crítica para o Príncipe. – Beau apontou com a cabeça para o homem da cera,
que se encolheu ao olhar para os soldados.
— Vou falar com o secretário dele, mas não sei se os senhores vão conseguir uma
audiência hoje – disse o tenente. – Sua Alteza Real está com alguns visitantes importantes,
incluindo um que não gosta de cavalheiros como os senhores, pelo que pude ouvir.
Beau fez um gesto discreto de agradecimento ao homem pela advertência, mas
praguejou mentalmente. Ao que parecia, Ezra Green os havia precedido. Aquele bastardo
dado a intrigas devia ter previsto que o próximo movimento de Beau seria uma tentativa
de apelar ao Regente pessoalmente.
Pouco importava. Estava preparado para ele. A única pergunta era: como é que Green
iria reagir quando enfrentasse as acusações de Charles Vincent? Iria se delatar? E será que
o que pretendia fazer iria funcionar? Só havia uma maneira de saber.
Caminhando pelos corredores do opulento palácio do Regente, escoltados pelos
soldados uniformizados, Beau e Trevor mantinham Nick entre eles, apesar de ele não mais
estar amarrado; Nick, por sua vez, continuava segurando Charles Vincent.
O artista da cera estava com os pulsos amarrados às costas. Trevor mantinha estreita
vigilância sobre ele e Beau, enquanto caminhava ao lado de Carissa.
Ao passarem pela colunata interna, aproximando-se do grande e brilhante Salão do
Trono, onde Prinny uma vez havia sido encurralado pelas próprias responsabilidades reais,
começaram a ouvir Ezra Green choramingar.
— Senhor, o resultado das minhas investigações são alarmantes demais! Algo precisa
ser feito! A Ordem provocou um incidente cujas proporções e consequências ainda não
pudemos avaliar! Quem sabe quais trunfos mais eles podem ter na manga?
— Sim, mas a ponto de colocá-los na Torre?! Isso me parece extremo demais.
— Sua Alteza, são setenta mortos! Setenta! E todas as vítimas dessa tragédia eram ou
representantes de um tribunal estrangeiro ou membros de famílias europeias de
destaque! O que eles fizeram é uma mancha negra para toda a Inglaterra. Por outro lado,
eles próprios admitem o fato! Todos os agentes são culpados, eles mesmos disseram isso!
Se não forem punidos, as nações de todas essas vítimas vão exigir explicação. Se não
fizermos desses assassinos a sangue frio um exemplo e os submetermos à força da lei
imediatamente, a Coroa será vista como conivente, que apoia o comportamento deles. O
senhor mesmo, majestade, poderia ser culpado pessoalmente por isso tudo! Quem é que
pode dizer aonde tudo isso pode nos levar? Aumento dos impostos alfandegários, retirada
de embaixadores, talvez até mesma à guerra!
— Sim, mas eu joguei cartas com esses homens – disse Prinny com ar aborrecido. –
Eles não são como o senhor os descreve, assassinos a sangue frio, senhor Green.
— Tenho certeza de que eles não mostram essa faceta diante do senhor, Alteza. E se
me permite o atrevimento, senhor, ninguém pode se dar ao luxo de se deixar cegar por
sentimentos pessoais quanto ao assunto. Por outro lado, se Sua Alteza me permite
ressaltar, se ficar provado que esses homens são criminosos mesmo, todas as respectivas
propriedades deles voltam para a Coroa – terminou, com uma humilde reverência.
Beau estava soltando fogo pelas ventas em silêncio, mas viu que Carissa, ao seu lado,
teve um sobressalto e o rosto dela ficou branco. Ele segurou o cotovelo da esposa, mas
tinha uma ideia clara do que ela provavelmente estava pensando. Se Max, Rohan, Jordan
e todos os demais fossem para a forca, os respectivos lares e demais posses deles seriam
confiscados pelo soberano e, consequentemente, Daphne, Kate e Mara ficariam viúvas e
sem dinheiro.
Mas ele não ia permitir que nada disse acontecesse. O momento de acabar com tudo
aquilo estava nas mãos dele. Então, Beau afastou-se da esposa e se aproximou do
secretário do Príncipe; após alguns segundos, o secretário se aproximou discretamente de
Prinny. O nome do Visconde de Beauchamp não era desconhecido para ele, porque foram
admitidos imediatamente. Beau se virou para o grupo que estava do lado de fora das
portas duplas abertas.
— Carissa, fica fora de encrencas aqui. Trevor, traz o Senhor Vincent quando eu te
chamar. Vamos ver como Green vai reagir quando estiver frente a frente com a nossa
testemunha.
—Boa serte —murmurou Carissa.
Ele ficou olhando para ela com silenciosa adoração e lhe piscou um olho, depois olhou
para Nick.
— Estás pronto?
Nick assentiu.
O guarda da porta anunciou:
— O Visconde Beauchamp e o Barão Forrester!
E ambos entraram, sempre em guarda.
O Regente se sentou no trono baixo com dossel de veludo drapeado. Vários homens
pertencentes aos ministérios pareciam ter acudido até ali para averiguar por que quatro
dos seus mais destacados companheiros da alta sociedade haviam sido trancafiados na
Torre.
— Ah, Lorde Beauchamp! – O Regente se dirigiu a ele. – Foi muito bom o senhor ter
vindo. Talvez o senhor possa nos contar a história do ponto de vista da Ordem.
— Seria uma honra, Sua Alteza Real – respondeu, enquanto ele e Nick faziam as
reverências correspondentes.
Então ele e Nick se separaram e caminharam cautelosamente em torno de Ezra Green
e depois se postaram um de cada lado dele. O Senhor Green se virou nervosamente para
os dois lados, tentando ver os dois ao mesmo tempo.
— Ouvi um trecho do que o Senhor Green estava dizendo, mas receio que ele deixou
de lado a parte mais importante da história.
Green bufou zombeteiramente, mas o Regente arqueou as sobrancelhas.
— Ah, sim? E qual foi essa parte?
— Embora os setenta homens que morreram naquela explosão na Baviera fossem
realmente amigos pertencentes às cortes de vários príncipes, e aristocratas de grandes
famílias, acabaram sendo também o restante dos líderes do culto dos Prometeos. Sim,
nossos agentes os detiveram matando os últimos deles. Por isso nossos homens devem
receber agradecimentos e serem felicitados, e não encarcerados por cumprirem com seu
dever.
— Ha! E o que mais devemos esperar que ele diga?! – replicou Green com desprezo. –
É claro que ele vai defendê-los. É um deles! Mas não vos deixai enganar por esse discurso
macio, Senhor. Os agentes da Ordem foram treinados para mentir descaradamente, tanto
quanto foram treinados para matar. Por isso o comitê resolveu provar que eles são uma
ameaça! É claro que eles demonstram lealdade à Coroa, – continuou – mas e se isso for
mais uma mentira da parte deles? Porque o antigo treinador deles mal conseguia
controlá-los, arrogantes como são! Com as habilidades que têm, com as influências,
poder, fortuna e o acesso às informações secretas do governo, pensai na ameaça que
poderiam representar para todos nós se tratassem de se unir em torno de algum objetivo
em comum! Poderiam ser uma ameaça para este governo!
Beau riu alto. O rosto de Green ficou muito vermelho ao se virar para olhar o Regente.
— Não que isso fosse uma nova habilidade para eles! Já fizeram isso antes, senhor! Em
Nápoles! E em alguns dos principados alemães!
— Para limitar o alcance de Napoleão – interveio Nick, justificando essa acusação.
— A questão é que eles sabem como fazer isso. E agora que a guerra terminou e estão
todos juntos aqui na Inglaterra, como é que vão se manter ocupados, senhor? Guerra é
tudo o que eles conhecem. Tais golpes já fazem parte da natureza e do repertório deles,
caso fiquem inquietos!
— Suponho que tem razão, provavelmente poderíamos, se realmente quiséssemos –
Beau arrastou as palavras. – Fazer prisioneiro Sua Alteza Real? Controlar os membros-
chave do Parlamento? Talvez já estejamos fazendo isso – zombou ele.
— E eu vos pergunto – disse o ministro responsável pelo gabinete. – Os senhores estão
fazendo isso?
— É claro que não, Lorde Eldon. Nós todos somos leais. Essa é a principal diferença
entre nós e o senhor Green e seus obscuros amigos.
— Eu vos pelo perdão! – pronunciou Green com murcha indignação.
— Como grande estudioso da natureza humana que devo ser, e como bom espião,
aprendi que todos somos hipócritas, de certo modo. As pessoas em geral acusam os
outros com mais veemência pela própria culpa à qual eles mesmos são propensos
secretamente. E é isso que acontece com o senhor Green. – Beau se virou para o
verdadeiro traidor. – O senhor acusa a Ordem de deslealdade. De conspirar para se
apoderar do país. Isso é absurdo. Se a Ordem quisesse fazer isso, já seria fato consumado
faz décadas, talvez até mesmo há séculos. Mas, vêde, seria ir contra tudo o que
acreditamos e representamos. Só que não acontece o mesmo com o senhor Green.
— Como vos atreveis?! – gritou o membro do Parlamento, muito zangado.
— Descobrimos a verdade sobre quem é que realmente está pretendendo refazer a
Inglaterra, e não é a Ordem, isso eu posso vos garantir.
— Como é que é?! Isso é verdade? – Os antigos Ministros presentes na sala começaram
a murmurar entre eles.
— O que está insinuando, senhor? – perguntou Green.
— Estou dizendo que o traidor é o senhor, Senhor Green.
— Isso é mentira! – gritou. – Não quero ouvir essas bobagens. Senhor, esse é o tipo de
calúnias manipuladoras nas quais a Ordem se especializou, bem como qualquer evidência
que possa produzir para apoiar essa ficção!
— Beauchamp, o que é que está acontecendo, afinal? – Perguntou Prinny com
expressão de curiosidade.
— Sua Alteza Real, Senhores Ministros, senhores, está na hora de acabarmos com esta
farsa.
O Senhor Green estava sacudindo a cabeça e olhando para ele, mas começando a
parecer nervoso.
— Não tenho ideia do que ele pode querer dizer com tudo isso.
— Então terei que vos esclarecer as coisas. Receio que meu amigo Lorde Forrester aqui
é o mercenário a quem o senhor e seus co-conspiradores contrataram para matar Lorde
Liverpool. – Um gritou se ergueu no salão. – O qual está vivo e muito bem – Beau se
apressou a acrescentar. – Não vos alarmais, cavalheiros. O Primeiro-Ministro nunca esteve
em perigo. Para vosso conhecimento, Lorde Forrester estava trabalhando disfarçado,
infiltrado em uma missão que durou meses para conseguir descobrir quem são os
verdadeiros traidores entre nós. Simplesmente não esperávamos encontrar um membro
do Parlamento entre eles.
A cor desapareceu do rosto de Ezra Green.
— Não tem nada a dizer em vossa defesa, senhor?
— Isso é ridículo! Um verdadeiro disparate! – disse ele, atropelando as palavras e
recuando com um olhar de pânico. – Estáis vendo, Sua Alteza? Estáis vendo como esses
homens estão fora de controle? Honestamente, Beauchamp, como vos atreveis a vir
diante do Regente e fazer tais acusações infundadas, selvagens? Não que alguém aqui vá
acreditar nisso...
— Mas eu acredito nisso sim – contrapôs Nick.
— A palavra de um canalha e libertino que flertou com a metade das esposas dos que
aqui estão? – Green zombou dos cavalheiros presentes, sacudindo a cabeça. – Não sei que
tipo de brincadeira de mau gosto é essa, Beauchamp, porque o senhor não tem provas,
portanto, eu o verei na corte por causa dessa calúnia imperdoável.
— Hmmm... Provas, o senhor diz... Ótimo. – Cruzou os braços sobre o peito,
saboreando imensamente o momento. – Talvez vosso companheiro possa ajudar a
refrescar vossa memória. Montgomery! Podes trazê-lo agora!
A porta se abriu e Trevor entrou, escoltando o assustado prisioneiro até o salão.
Quando Ezra Green e Charles Vincent se viram cara a cara, o reconhecimento no rosto de
ambos foi inconfundível. Green olhou-o rapidamente e parecia prestes a desmaiar.
— Estáis lembrado agora? – perguntou Beau.
Green olhou para ele e sua expressão endureceu, formando uma máscara de fúria
gelada.
— Nunca vi esse homem.
— Mas é claro que já viu. E ele vai admitir isso. Por que não deveria, já que o senhor
pretendia que ele fosse sozinho para a forca, como único responsável por toda essa
conspiração? A única pergunta aqui é: foi o senhor ou o professor Culvert quem urdiu
primeiro o complô para contratar nosso assassino aqui para matar o Primeiro-Ministro? –
perguntou, fazendo um gesto casual na direção de Nick.
— Mas por que ele iria querer matar Liverpool?! – perguntou Prinny, assombrado.
— Por quê? Pois é, aí é que está. Porque ele é um revolucionário secreto, seguindo os
passos do mentor dele, Sua Alteza. Ele pretendia matar dois pássaros com um só tiro. Não
só poderia se desfazer de um homem que ele e seus companheiros viam como um tirano,
mas poderia também ter condenado a Ordem durante o processo, atribuindo a nós tal
assassinato através de Forrester. Mas, felizmente para todos nós e, claro, para Lorde
Liverpool, esta foi uma operação da Ordem desde o princípio.
O queixo de Ezra Green caiu. Beau esboçou um sorriso, e isso fez com que o
homenzinho reagisse.
— Vão para o inferno todos vós! – grunhiu Green selvagemente, e dobrando o corpo de
repente, sacou uma pistola que havia escondido na bota. – Morte aos tiranos!
Mas Beau já estava em ação. Saltou sobre Green, que estava apontando a arma para o
grande e fácil alvo que era o surpreso Regente. Beau o derrubou no chão quando a arma
disparou. Em torno do opulento salão os ministros gritavam, alarmados, e Beau estava
vagamente consciente de Carissa correndo ao ouvir o disparo, enquanto ele se esforçava
para dominar Green.
Ele o colocou fora de combate dando-lhe um soco na cara, o que para ele foi,
francamente, uma boa catarse. Maldição, ele queria fazer isso fazia semanas já. Então,
com o peito agitado, olhou por cima do ombro para se certificar de que Prinny estava
bem. Mas perdeu o fôlego com o que viu.
Nick estava sangrando. Enquanto Beau lutava com o traidor, Nick havia se apressado a
proteger o Príncipe. A bala destinada a George havia terminado no peito do aspirante a
mercenário. Nick caiu no chão.
Trevor largou Charles Vincent na mão dos guardas do palácio que haviam chegado
correndo e voou para o lado de Nick, jogou-se de joelhos no chão polido e chegou
escorregando ao lado do amigo caído.
— Seu imprudente...
— Ora, cala-te. Eu tinha que fazer isso. Ele será o Rei. – O sangue escorria entre os
dedos de Nick, que segurava o ferimento. – Trev, – disse ele com voz rouca – podes me
perdoar?
— Diabos, não, porque tu não vais morrer agora – replicou Trevor, sufocado pela
emoção. – Sequer tentes isso, senão vou até o inferno para chutar tua bunda!
Nick sorriu fracamente da brincadeira, mas acabou fechando os olhos.
— Até que eu gostaria de ver tu tentares isso...
Aflita, Carissa viu Beau se juntar aos outros, pedindo um médico, aos gritos. Sabia que
esse era o pior pesadelo do seu amado marido, ver o melhor amigo se esvaindo em
sangue e perdendo a vida diante dos próprios olhos.
Por favor, Deus, que ele se salve. Nick pode ser um sem-vergonha, mas Beau não
merece isto. Não permita que ele perca mais um amigo.
Os políticos no recinto gritavam uns com os outros, enquanto o Príncipe Regente
olhava tudo horrorizado e comovido. Os guardas do palácio colocaram Eztra Green e
Charles Vincent sob custódia, enquanto os médicos reais se apressavam para tentar salvar
a vida de Nick. Trevor acompanhava tudo com olhar atento, mas Beau se virou, exaltado,
para o Regente e, para surpresa de Carissa, o marido se aproximou do soberano.
— O senhor está vendo isso? Consegue ver que somos leais? – gritou, dando um passo
até ele, o suficiente para alarmar os soldados que se aproximavam. – Confiscar nossos
lares?! – gritou. – Ele levou um tiro para salvar sua vida! O senhor sequer sabe, Sua Alteza,
sequer sabe quantos já morreram pelo seu bem..., pelo bem da Inglaterra! Dariam a
própria vida sem pensar duas vezes..., e o senhor os joga na Torre?! Ora, maldito seja,
senhor! Digo, maldição, senhor! O que mais precisamos fazer, e até quando, para que seja
suficiente? Para que o senhor consiga enxergar e entender isso?!
O Regente estava de pé com um olhar tão irado e ofendido no rosto rubicundo por ter
sido tratado daquela maneira que Carissa temia que o marido tivesse acabado de assinar
a sentença de morte de todos os agentes, inclusive a dele mesmo. Correu até Beau e
segurou-lhe o braço, tentando acalmá-lo.
— Perdoe meu marido, Sua Alteza Real, eu vos imploro! – declarou, com o coração
disparado pelo medo. – Lorde Beauchamp jamais pensaria em censurar-vos. Ele está fora
de si por ver o amigo ferido.
Beau soltou o braço da mão dela.
— Bobagem! Eu quis dizer mesmo cada palavra que disse.
E manteve o olhar fixo no olhar real sem desviar os olhos, sem se inclinar, sem recuar, e
com o queixo erguido. Ficou olhando para o monarca de homem para homem até que,
finalmente, foi o Príncipe quem cambaleou ligeiramente.
— E o que quer que façamos?
— Mostrai que ainda tem esse maldito antigo pulso – respondeu. Em seguida, inclinou
a cabeça com respeito, embora seus olhos ainda brilhassem muito. – Sua Alteza Real –
acrescentou obedientemente, com os dentes apertados.
Carissa o olhou, incrédula. Agora sim, com certeza, o marido seria mandado para a
forca. Não só havia gritado com o futuro Rei. E o havia amaldiçoado, também. Ela estava
fora de si.
Estamos perdidos!
O Regente se virou lentamente para o Capitão da Guarda e lhe deu uma ordem:
— Libertem os nossos agentes daquela Torre.
— Como é?! – soprou ela, olhando por cima do ombro de Beau, que levantou a cabeça
de novo e disse:
— Bom, não perca tempo, homem! Tu recebestes uma ordem do Regente!
— Sua Alteza... – Um dos Ministros tentou intervir.
—Não-me-questione! – Gritou George, já parecendo quase que como um rei. –
Beauchamp está certo. Eu nunca devia ter deixado que este assunto fosse tão longe
assim. – Ele arrepanhou as laterais da capa e se sentou no trono de novo. – No entanto,
eu vos digo, rematadamente impertinente! E tomai muito cuidado para não vos dirigir a
mim assim de novo, senhor! Nem uma vezinha sequer! – Levantou um dedinho gordo e
cheio de joias. – Pelo bem do vosso amigo. Mas não vos preocupais com ele. – Murmurou
o Regente. – Lorde Forrester não tem a nossa permissão para morrer.
— Muito obrigado, Sua Alteza Real. Obrigado.
Beau fechou os olhos e Carissa passou os braços em volta dele, que apoiou a cabeça
contra a dela e soltou um longo suspiro trêmulo.

Capítulo
26
— B om..., eu reconheço que errei – disse Beau, enquanto saíam de Carlton House

com o braço casualmente sobre os ombros dela. – Tu, minha pequena dama da
informação, és uma espiã muito melhor do que alguns agentes que conheci. – Carrissa
sorriu para ele.
— É verdade isso?
— É a mais pura verdade. Todos nós temos para contigo uma enorme dívida de
gratidão. Tu agistes corretamente. Sou suficientemente homem para admitir isso. Se tu
não tivesses vindo até mim com aquela informação tão crucial, sabe-se lá onde
estaríamos agora...
— Então isso significa que tu me perdoas por ter te desobedecido?
— Mas é claro que sim! Mas não foi por causa dos teus atos heroicos de hoje não. – Ele
parou e se virou para ela, apertando-lhe suavemente os ombros. – Eu já havia te
perdoado quando nos separamos naquele dia, minha querida. Tu não ouvistes quando eu
disse?
— Acho que não. Eu estava ocupada demais sentindo-me horrível. – Ela o olhou nos
olhos azuis. – Pelo que eu não ouvi tu dizeres... – aventurou-se, então estremeceu.
— Sim? – perguntou ele ternamente.
— Bom..., quando eu te disse Eu te amo, Beau,tu não me respondestes.
— Mas que covardia a minha!
Ela esquadrinhou o rosto dele, indecisa, pois seu coração ainda estava ferido e
vulnerável. Ele inclinou a cabeça e olhou-a nos olhos com muita ternura.
— Eu te amo, Carissa.
—Tu não precisas dizer isso se não quiseres...
— Mas eu quero sim.
Ele pegou o queixo da esposa e levantou sua cabeça, obrigando-a a olhá-lo nos olhos
atormentados. Pegou a mão dela e colocou-a sobre o próprio coração.
— Isto aqui é teu, meu amor. Quando tu dissestes que me amava, naquela primeira
vez, eu só estava..., fui surpreendido com tudo o que havia acabado de acontecer com
Benton. Naquelas circunstâncias, fiquei sem saber como reagir. Sequer tinha certeza de
que o que tu havias acabado de me dizer não era para me manipular, assim eu não me
irritaria contigo. Eu só estava tentando evitar que tu fizesses de mim teu animalzinho de
estimação. – Ela negou com a cabeça.
— Eu te disse porque era a verdade. A partir de agora eu só vou te dizer a verdade,
Beau, por mais difícil e duro que seja. Aprendi a lição, acredita em mim. Não mais vou
permitir que nenhum segredo se interponha entre nós. Eu te dou a minha palavra. Se me
deres outra chance, vou te mostrar que posso ser honesta contigo a partir de agora.
Nunca mais vou me arriscar a te perder de novo.
— Doçura, tu tebs todas as chances que precisares, e espero que faças o mesmo
comigo, porque provavelmente vou precisar muito.
— É claro que sim – sussurrou ela suavemente, com um nó na garganta.
Então ela se aproximou e o abraçou, e ele a envolveu nos braços.
Carissa apoiou a cabeça no peito do marido.
— No fim das contas, o amor é isso, não é? – perguntou ela baixinho. – Perdoar todos.
Encontrando coragem para confiar.
Ele a beijou no alto da cabeça e assentiu, enquanto a apertava nos braços.
Depois mergulhou em um pensativo silêncio por um instante.
— Sabes..., assumo parte dessa responsabilidade, também, por ter escolhido não tocar
no assunto sobre a tua..., hã..., situação, depois da nossa noite de núpcias – disse ele
discretamente devido ao local onde estavam, ternamente abraçados no meio do reluzente
corredor do palácio do Regente.
Ela o olhou, e ele lhe deu um meio sorriso distraído, perdido nos próprios
pensamentes.
— Pensei que só estava sendo gentil, fazendo-te um favor ao não tocar no assunto.
Mas, por outro lado, foi uma forma de manter uma distância segura entre nós. – Ele
meneou a cabeça. – Talvez eu estivesse com medo de nos aproximarmos demais, medo
do que tu pudesses fazer comigo se eu realmente te deixasse entrar... Mas não quero isso
nunca mais – sussurrou. – Eu também aprendi a lição. Quero ver aonde este amor pode
nos levar.
O primeiro lugar para o qual os levou, para surpresa de ambos, foi para casa, melhor
dizendo, diretamente para a cama. Um beijo decidiu a questão. Eles olharam nos olhos
um do outro com mútua compreensão, em seguida saíram do palácio do Regente e
correram para casa, no afã trepidante de reafirmarem o vínculo entre eles. Duas horas
mais tarde, o som do relógio musical os acordou. Beau gemeu e enfiou a cara no
travesseiro.
— Ah, por que me ocorreu te dar essa coisa? Vive fazendo barulho!
Rindo suavemente, Carissa correu o dedo em uma leve carícia pela curva das costas
nuas do marido.
—Tu me destes o relógio porque me ama – ronronou ela, plenamente saciada pelo
amor dele, que virou o rosto no travesseiro e olhou-a com aqueles lindos olhos azuis
brilhando.
— Sim, porque eu te amo.
— Adoro ouvir tu dizeres isso.
— Amo-te– repetiu ele.
Ela sorriu com um brilho no coração e o beijou.
— Eu também te amo.
Ele pegou-lhe a mão e cruzou os dedos com os dela. Puxou a mão da esposa
cansadamente e levou-a aos lábios, roçando levemente os nós dos dedos. Depois
suspirou, colocou as mãos de ambos sobre o travesseiro e fechou os olhos.
—Tu não imaginas o quanto estou contente por tudo aquilo ter acabado finalmente!
— Eu também – sussurrou ela, acariciando o cabelo dourado do marido e saboreando
com assombro a lembrança do quão brilhante ele havia sido nesse dia.
De como ele havia olhado o futuro Rei da Inglaterra nos olhos, fazendo-o se lembrar de
qual era o dever dele enquanto Regente.
A forma pela qual ele havia derrotado Ezra Green usando a própria arma favorita do
homemzinho – as palavras – muito embora Beau não fosse advogado, mas guerreiro, um
homem de ação.
Quanto a Nick, parecia que os agentes da Ordem eram muito difíceis de matar,
especialmente porque a arma com a qual Green havia atirado nele era uma pistola de
pequeno calibre, porque era mais fácil de ser escondida. Mas suficientemente mortal
quando à queima-roupa, havia lhe dito o marido, cuja pistola que tinha no bolso podia ter
matado Beau quando abordou Green, se este tivesse atirado nele.
Em vez disso, o radical havia optado por se concentrar no Príncipe, que estava sentado
a uns cinco metros de distância. Devido a isso, os médicos reais não precisaram cavar
fundo para recuperar a pequena e achatada bala, alojada na dura camada de músculos do
abdômen de Nick. Felizmente, a bala não havia atingido nenhum órgão interno. Nick teria
pronta e completa recuperação e ainda, como bem havia salientado Beau, outra cicatriz
para exibir.
Nesse meio tempo, Lorde Rotherstone e os demais haviam sido libertados da Torre.
Beau e Carissa foram avisados que deviam se reunir mais tarde na casa de segurança do
campo, onde as outras mulheres estavam esperando. Não havia dúvida alguma de que os
agentes ainda estavam zangados pela injusta prisão. Ezra Green e Charles Vincent haviam
sido presos, e o Regente enviou soldados para prenderem também o professor Culvert e
seu círculo de devotos.
O Primeiro-Ministro foi informado sobre a conspiração para assassiná-lo, frustrada
antes de acontecer; ironicamente, a ira de Lorde Liverpool fez com que ele iniciasse uma
ofensiva contra todos os radicais na Inglaterra, exatamente o contrário do que Culvert
esperava conseguir.
Um bom número de conspiradores, por trás da infame trama, já estavam sendo presos.
O único obstáculo real era como a coisa toda se resolveu, pois foram incapazes de
disfarçar a comoção diante dos bisbilhoteiros profissionais: os repórteres de todos os
jornais emcirculação.
Beau já havia dito que eles eram capazes de evitar que qualquer notícia relativa à
Ordem aparecesse nos jornais. Mas, graças à maneira tão pública com a qual Ezra Green
havia escolhido para prender os agentes no molhe, quando os mesmos retornaram, o que
ele fez só para desonrá-los, havia lá inúmeras testemunhas, agora Londres inteira
fervilhava. Em resumo, o verdadeiro propósito do Clube Inferno havia sido exposto,
portanto, a Ordem não teve como se esquivar e precisou falar com os repórteres.
Pobre Vickers e o resto da criadagem que já haviam afugentado dezenas de jornalistas
que esperavam do lado de fora da casa. Tanto que eles fizeram para evitar o escândalo..,
pensou Carissa com ironia. Em vez de alarmá-la, no entanto, ela estava achando aquilo
tudo muito divertido. Beau, por outro lado, estava bastante incomodado.
— Devemos ir esta noite para a casa de campo com os demais – informou ele.
— Talvez seja melhor mesmo que o grande segredo sobre o Clube Inferno tenha por
fim vindo à tona. Talvez, finalmente, tu e os demais consigam o crédito que merecem.
— Argh! – Respondeu Beau. – Decerto Virgil está se revirando no túmulo esta hora.
— Não. Tenho certeza de que ele ficaria muito orgulhoso pela forma com a qual tu
lidastes com a coisa toda. Eu sei disso.
Ela apoiou o braço nas costas dele e lhe deu uma palmadinha afetuosa.
— É..., está certo... – replicou ele com a voz descaradamente cansada. – Sabia que tu
estás apaixonada?
Ela soltou um bufo indignado, mas, é claro, o danado daquele malandro estava
perfeitamente certo na brincadeira.
— Estou, é? – Brincou ela, então inclinou-se e mordeu suavemente o ombro dele.
— Ei! – Ele levantou a cabeça do travesseiro, muito surpreso. – Tu me mordestes!
—E tu merecestes. – Ela pegou-o pelo ombro e o virou. – Olha para ti. Todo
desarrumado e absolutamente tentador. Tu terás sorte se eu não te comer inteiro de uma
só vez.
—Hmmm... Gosto muito de como isso soa... – ronronou ele, quando ela se ajoelhou
sobre ele.
Ela riu, sentindo a excitação dele, porque ambos estavam nus, exceto por alguns
pedaços de lençol que os cobriam aqui e ali.
— Atrever-me-ia a dizer que tuestás, milorde.
— Ruivas! Tu estás me saindo mais descarada ainda do que quando te conheci! – disse
ele, passando as mãos pelas belas coxas nuas da esposa. – Por mim, acho isso
absolutamente encantador.
Ela baixou os cílios e deslizou os dedos amorosamente pelo peito dele, acariciando
aquele esplêndido corpo. Quando se inclinou à frente para lhe dar um comovente beijo,
sentiu que ele respirou profundamente, então baixou a mão sensualmente mais para
baixo, entre os dois corpos esculturais.
Ele pegou os dedos dela e os beijou, depois os colocou no seu membro.
Ela lhe deu prazer como que em um feliz transe, beijando-o em vários lugares
interessantes até que ele a virou de costas e se posicionou sobre ela. E em breve a
delicada música lúdica do relógio automático se misturou aos entusiasmados gritos de
prazer dois dois fazendo amor. Só que, desta vez, sabendo que tinham todos os dias, horas
e segundos de vida juntos, nenhum dos dois prestou a mínima atenção à melodia,
ocupados demais se deleitando um com o outro.
Epílogo

N ão foi possível evitar. A Ordem havia sido irremediavelmente exposta. Com

o verdadeiro propósito do Clube Inferno conhecido em todo o planeta, a Coroa não teve
alternativa senão fazer de todos eles heróis. Todas as operações disfarçadas e as diversas
missões que Ezra Green quis expor com o objetivo de mandá-los para a forca, em vez
disso, deixou o povo inglês assombrado.
Talvez a surpreendente revelação servisse para o irônico senso de humor britânico
que,o tempo todo, o mundo em geral havia acreditado que os Lordes de Dante House
eram os mais depravados libertinos, mas que, em segredo, estiveram o tempo todo
protegente valentemente a nação.
A notícia se espalhou pelos quatro cantos. Aonde quer que fossem, os agentes eram
aplaudidos e ovacionados nas ruas. Em White’s, foram rodeados pelopúblico em vários e
apinhados salões de baile. Não podiam ir a parte alguma nem conseguiam fazer nada,
porque depois de anos de fiel serviço, agora tinham que aguentar o castigo do furor de
terem se transformado em celebridades.
Nem as respectivas esposas dos agentes se livraram. Mas até que isso era bom, já que
Carissa havia chegado a um acordo consigo mesma que um pouco de notoriedade era
parte natural por ter se casado com seu escandaloso visconde.
Todas as mulheres dos agentes foram entrevistadas pelas revistas femininas de moda
sobre o que vestiam no dia-a-dia. Daphne, criatura paciente, lidou com tudo, é claro, com
aquela habitual e imperturbável serenidade. Mas a coisa toda chegou a tal ponto do
absurdo que Kate, a Divina Duquesa de Warrington, gritou alguns palavrões que havia
aprendido quando criança com os marinheiros, na coberta do navio do seu pai, e bateu a
porta na cara deles.
Emily, Condessa de Westwood, foi ainda mais direta: recorreu ao arco e flecha quando
os repórteres tiveram o descaramento de incomodar Drake e ela na casa de campo deles,
uma ameaça à qual um repórter qualificou como encantadora.
Nesse meio tempo, o progresso de Mara, a gravidez de Lady Falconridge, transformou-
se em verdadeira obsessão em geral, e foi consultada devido à experiência que tinha
como mãe. Claro está que, durante a conversa, o pequeno Thomas ficou correndo pela
sala sem controle algum, como um indiozinho selvagem. Mas isso não importava, todas as
falhas foram perdoadas. Tudo o que disseram é que elas eram muito inteligentes.
A Inglaterra inteira estava apaixonada por eles. Falou-se em erigir uma estátua de São
Miguel Arcanjo no centro de alguma praça da cidade em honra deles. Mas, quando foi
anunciada uma nova encenação musical baseada nas aventuras em Vauxhall, em cartazes
espalhados por toda a cidade, dizendo O ESPETÁCULO MAIS ESPETACULAR DE TODOS OS
TEMPOS, COM FOGOS DE ARTIFÍCIO, EXPLOSÕES E FAÇANHAS IMPRESSIONANTES E
ATREVIDAS, Prinny levantou as mãos com desespero.
A história toda era suculenta demais e não conseguiria ser abafada, como esperava Sua
Alteza Real. Algo precisava ser feito quanto àquele desastre.
Então, talvez, ele não tivesse que enfrentar as lembranças diárias de como ele havia
causado dano aos bastardos. Ele já estava bastante impopular.
Com um suspiro, havia chamado o arcebispo. Havia chegado o dia no qual iam ter as
devidas honras com toda pompa e circunstância na Abadia de Westminster. Depois disso,
se Deus quisesse, o mundo (do ponto de vista de Prinny) iria parar de falar neles, e do
ponto de vista destes, seriam deixados em paz para usufruir, finalmente, da paz que
haviam ajudado a promover.
Os homens, vestindo uniforme completo, de pé em uma fila na parte dianteira da
magnífica igreja e, sentados ao lado, os Anciãos da Ordem. As damas, vestidas com seus
melhores trajes esentadas nos primeiros bancos, sorriam com orgulho para seus
respectivos maridos.
Tudo o que haviam passado só havia fortalecido o vínculo entre aquelas mulheres, que
agora se consideravam irmãs. Carissa se sentou entre Kate e Daphne, que se deram e
apertaram as mãos umas das outras, pois todos olhavam com lágrimas nos olhos o futuro
Rei da Inglaterra cobrindo com medalhas o peito de cada um dos homens.
Até permitiram que Nick participasse. Aliás, até mesmo o fiel sargento Parker foi
homenageado com distinções especiais.
Enquanto soava a música do grande órgão da Abadia e do coro, intercalados com
nobres melodias de gaiteiros escoceses, representantes de todos os níveis de elite das
forças armadas estiveram presentes para apresentar seus respeitos.
Inúmeros líderes parlamentares compareceram, incluindo o mui agradecido Primeiro-
Ministro, Lorde Liverpool. Embaixadores haviam sido enviados pelas diferentes cabeças
coroadas cujos tronos a Ordem havia ajudado a proteger ao longo dos anos.
Em meio a toda essa balbúrdia, haviam discutido em particular e com certa inquietude,
entre eles mesmos, sobre o fato de terem sido expostas suas identidades depois de tudo
o que haviam feito e de todos inimigos que haviam angariado. Mas o que podiam fazer?
Odisfarce deles já havia ido pelos ares, o passarinho já havia fugido da gaiola...
Nãopodiam fazer mais nada a não ser se garantirem entre si, pois a Ordem já se valia
por simesma. Todos estariam sempre olhando um pelo outro, e nada podia mudar esse
fato. Isso valia para as mulheres, também. Pelo rabo do olho, Carisa viu Kate soprar um
beijo para o seu Bruto, enquanto Daphne enxugava os olhos com um lencinho.
Depois que o Regente percorreu a fila dos homens perfilados dando os parabéns a
cada um deles, a cerimônia terminou.
Os homens tentaram ir até onde estavam suas respectivas damas, mas o avanço deles
foi impedido pelo mar de simpatizantes e admiradores agradecidos que os rodearam.
Beau abriu caminho entre a multidão. Carissa viu os pais dele, que estiveram sentados
juntos durante a cerimônia. Talvez não estivessem só mais do que orgulhosos do filho, o
que havia inspirado o Conde e a Condessa de Lockwood a se unirem e lhe mostrar apoio.
Parecia que eles estavam se dando melhor desde que ela e Beau haviam anunciado a
gravidez de Carissa.
Beau os obrigara a entrar no mesmo aposento para ouvir a notícia, então havia
informado severamente aos pais que, se quisessem passar um tempo com os netos que
viriam, iriam ter que dar um exemplo razoável e não agir como crianças. As coisas
passaram a se desenrolar com surpreendente maciez desde então. O casal parecia
tentado a confraternizar com a família de novo. Quando Lorde e Lady Lockwood
percorreram o longo e amplo corredor com portas gigantes da Abadia, Carisa também viu
Tio Denbury e família conversando mais além. Tia Jo caminhava entre duas damas, Lady
Joss e Lady Min. Tendo aprendido a lição, a glamurosa Condessa d’Arras não ia permitir
que outra sobrinha se extraviasse. Havia dado um passo adiante para começar finalmente
a colocar alguns empecilhos nos esforços da pobre senhorita Trent para manter as
formidáveis belezas sob controle. Afinal de contas, a própria mãe das mocinhas não iria
fazê-lo.
Carissa sorriu vendo os parentes saírem arrastando os pés.
Ela os encontraria depois da recepçãos aos heróis conquistadores. Nick, no entanto,
não teve permissão para comparecer à essa parte das festividades do dia. Os fornidos
gaiteiros da Ordem, que haviam desempenhado o papel de guardas durante a cerimônia,
redobraram os esforços.
Iriam escoltar o desobediente Barão Forrester como reforço até a sede da Ordem, na
Escócia, para devolvê-lo à cela.
Passaria no mínimo dois anos no calabouço. As grandes escoltas vestiamkilt e lhe
prestaram a grande honra de não acorrentá-lo diante de todo mundo, mas Nick parou a
pouca distância de onde Carissa estava de pé, para se despedir dos companheiros.
Os três antigos membros da equipe confabulavam ali perto em voz baixa. Não
conseguia escutar muito, além do mais, ela estava tentando não ouvir furtivamente. Mas
podia dizer, pela expressão dos rostos dos homens, que Nick estava se desculpando com
Beau e Trevor pela última vez.
— Boa sorte no cárcere! – ouviu Beau dizer tristemente ao amigo de cabelos pretos, no
final. – Não te preocupes, vamos te escrever com frequência. Não vamos nos esquecer de
ti.
— Obrigado. Isso significaria muito para mim, lá dentro. – Apertos de mãos e abraços
de urso foram trocados.
— Vou sentir tua falta, homem – admitiu Trevor. – Cuida-te.
— Faz o mesmo. E sê feliz – respondeu. – E ambos, cuidem bem das vossas respectivas
damas. – Nick lhes deu uma piscada maliciosa e, com isso, os guardiões da Ordem o
levaram.
Beau enfiou as mãos nos bolsos com um olhar nostálgico, enquanto ele e Trevor
observavam os soldados escoltando o companheiro de equipe, depois trocaram um olhar.
— Tu achas que ele vai ficar bem? – perguntou Trevor.
— É Nick – disse Beau. – É bastante indestrutível. Ele vai ficar bem. – Em seguida deu
uma cotovelada no amigo. – E quanto a ti?
— Eu vou para casa. Há uma dama esperando por mim. A nova casa está quase
terminada e minha vida de verdade pode, finalmente, começar.
Trevor sorriu, os olhos cinza brilhando, e Carissa, ouvindo dissimuladamente, apesar
das boas resoluções, achou-o muito bonito, principalmente agora que havia tirado aquela
barba desgrenhada. Curiosamente, no entanto, havia mantido a longa cabeleira, o que lhe
dava um arum pouco selvagem. No momento, estava recolhido em um rabo de cavalo.
Beau lhe deu uma palmadinha nas costas.
— Bom, não vou te reter, então. Vai buscar a tua Laura. Mas espero ser teu padrinho
de casamento.
— Mas é claro que sim! Desde que ela ainda me aceite...
— Como é que é?! – Protestou Beau. – E tu ainda tens alguma dúvida?! Mas é claro
que ela vai te aceitar. Principalmente agora, que tu és um herói famoso – disse,
arrastando as palavras, dando-lhe uma palmadinha no braço. Trevor encolheu os ombros.
— Ela ficou sem saber nada sobre mim durante muito tempo, só isso.
—Não te preocupes, meu amigo. Tenho certeza de que tu vais encontrá-la exatamente
onde a deixastes. E estou vendo ali uma dama esperando por mim.
E acenou para Carissa. Colocou os braços em torno dela e lhe deu um carinhoso beijo.
— Tu estavas esplêndido ali, aliás, todos vós – ela parabenizou os dois.
— Estávamos mesmo, não é? – Beau falou lentamente, enquanto saíam.
A luz do dia primaveril brilhava através das videiras quando todo o grupo saiu, para o
crepúsculo sagrado da Abadia de Westminster, respirando o ar puro e brilhante.
O céu, de um azul resplandescente, parecia envolver as torres da Abadia. O bando de
pombas que residia nas torres levantou voo. Ao vê-las, Beau sentiu a garganta
inesperadamente apertada. Ele e seus irmãos guerreiros pararam no umbral da Abadia e
ficaram observando o voo das mesmas. Quando as aves voaram livres, os homens se
olharam em silêncio, com estóica compreensão. A luta havia sido excessiva. Para eles,
pelo menos.
Haviam cumprido com o dever e havia dado um bocado de trabalho sanar as sequelas,
mas, finalmente, estavam livres de verdade.
Aquela tensão que carregavam desde que eram pouco mais que crianças estava
começando a aliviar. Ainda tinham cicatrizes de todas as batalhas às quais haviam
enfrentado, todas as provas que, de alguma maneira, haviam passado. O dia, aquele ao
qual mal se atreveram a sonhar, finalmente havia chegado. O dia no qual eles saíram para
o outro lado.
Beau quase havia desistido de acreditar que esse dia pudesse realmente chegar a
acontecer.
Mas o dia especial estava ali, pairando sobre eles. Iriam precisar aprender uma nova
forma de viver. Enquanto olhavam em volta e de um para o outro com mútua
compreensão, uma chispa de curiosidade brilhou nos olhos de cada um, luz essa que
parecia perguntar se talvez a aventura não estivesse apenas começando. Então a jovial voz
de Kate rompeu o silêncio reflexivo.
— Vamos, rapazes, não fiquem aí parados, animem-se! Vamos acabar perdendo nossa
própria festa!
Em seguida, arrepanhou a saia e passou por eles, indo organizar as carruagens. Alguns
dos rapazes sorriram para Rohan.
— Não se parece muito com uma duquesa, não é? – observou Max.
— Filha de pirata – murmurou Rohan para os demais, com um sorriso maroto.
— E ele não iria querer que ela fosse de outra maneira – retrucou Jordan, e Rohan
assentiu, concordando totalmente. –Max era quem queria uma dama refinada. E ele
conseguiu uma – acrescentou, fazendo sinal com a cabeça para Daphne.
Max lhe deu uma palmada no ombro.
— Meu amigo, minha refinada dama tem um lado que tu nem podes imaginar. E não
estou sugerindo que tu o verifiques – Rohan disse rindo.
— Isso nem me ocorreria, irmão.
Então Mara ergueu o pequeno Thomas e o entregou para Jordan. O pequeno, de dois
anos, jogou-se nos braços do padrasto. Jordan o colocou sobre os ombros para que
Thomas pudesse ver do alto todas as pessoas, enquanto Drake e Emily caminhavam de
braços dados, tão inseparáveis quanto haviam sido desde crianças. Max olhou para o céu
outra vez enquanto esperavam as respectivas carruagens. Beau tinha a sensação de que
sabia o que o líder da outra equipe estava pensando.
Bem que Virgil podia estar ali...
A ausência do velho escocês havia deixado um buraco entre eles. Pelo menos a morte
dele havia sido vingada quando os agentes haviam ido à Alemanha.
— Tenho certeza de que ele está nos vendo – Jordan murmurou com um olhar
significativo, segurando o enteado no colo. Beau sorriu com ironia.
— Suponho então que estaríamos agora nos comportando à altura.
— Tal como deve ser! – interveio Carissa, voltando para o lado do marido.
— Sim – murmurou ele sorrindo. – Tal como deve ser. – Beijou-a no alto da cabeça,
envolvendo-a com o braço. Em seguida, todos foram juntos para iniciar a comemoração.

Ao voltar para casa, Lorde Trevor Montgomery segurou as flores às costas com tanta
força que quase quebrou os cabos das mesmas.
— Lady Laura está em casa? – perguntou mais uma vez ao mordomo da família Bayne,
que ficou estatelado, imóvel, olhando-o como se estivesse vendo um fantasma.
— E-eu... – O pobre criado fechou a boca bruscamente, em seguida abriu a porta para
ele com ar de quem não sabia como agir.
Quando Trevor entrou, sentiu o coração bater furiosamente, e foi então que teve o
primeiro indício de que as coisas ali não estavam como ele as havia deixado.
Primeiro ouviu uma alegre canção tocada ao piano vinda lá de cima – o instrumento
ficava na sala do andar de cima, se ele bem se lembrava. A música foi acompanhada por
uma gargalhada juvenil, e esse som familiar fez brotar o início de um sorriso no rosto de
Trevor. Nisso estavaa beleza de Laura.
Assim, despreocupada, sem ter sido tocada por toda a fealdade que ele havia visto. Ato
contínuo, uma voz mais profunda – masculina – se juntou à risada dela. Trevor ficou
imóvel, com o olhar lá em cima, no topo da escada.
Mas que diabos...?!
O mordomo empalideceu e olhou para ele com ar de desculpa, estremecendo um
pouco, e então, as duas vozes começaram a entoar com harmonia um alegre dueto. Uma
canção de amor. Trevor ficou muito quieto, ouvindo.
— Quem é esse? – perguntou em um tom de calma assassina.
O mordomo engoliu em seco.
— Eu sinto muito, milorde. Esse é..., hã... – Ele semicerrou os olhos, esperando. – O
novo noivo de Lady Laura – completou o mordomo falando atropeladamente,
aterrorizado.
— Novo noivo?! – repetiu ele em um sussurro surpreso.
— Lamento muito mesmo, milorde, mas a pobre moça pensou que o senhor havia
morrido. Alliás, todos nós pensávamos – sussurrou o mordomo. – Tenho certeza de que
ela ia vos contar muito em breve.
Trevor mal registrou algo depois disso. Como o dueto continuava cantando de forma
brincalhona no andar de cima, não pôde deixar de notar que, se de fato Laura havia
pensado que ele estava morto, não parecia tão incomodada com a morte dele. Bom Deus.
A traição quase lhe tirou a respiração.
De repente se sentiu mal. Esticou a mão e segurou o mordomo, impedindo-o de ir
buscá-la, principalmente porque não confiava em si mesmo para não cortar a jugular do
novo noivo diante dela.
— Quem é ele? – perguntou com um grunhido.
O mordomo disse o nome, mas Trevor nunca havia ouvido falar desse homem. Quando
deu por si, estava de pé na calçada, como quem em sonho.
O mundo girava, e não era devido ao excesso de bebida ingerida durante a recepção na
noite anterior, na Abadia de Westminster. Havia se sentido no apogeu com seus
companheiros, os heróis conquistadores. Esperava que a vitória continuasse hoje quando
fosse reclamar a recompensa mais doce de todas.
Mas isso..., havia sido uma surpresa muito desagradável, para dizer o mínimo.
Como é que ele estava passando por aquilo?! Tudo o que havia planejado tão
meticulosamente... A nova vida que ele havia esperado tanto tempo... A oportunidade de
uma existência normal e organizada, com uma bela mulher, em uma bela casa nova...
Tudo havia ido por água abaixo agora.
Seu estúpido, idiota!!
E tudo para nada!!
Ele não conseguia acreditar.
Primeiro, Nick o havia prendido em um porão; depois, a Coroa havia praticamente
jogado seus companheiros agentes aos lobos. E agora, até mesmo Laura demonstrara que
havia sido infiel.
Tinha mil perguntas sobre o momento exato no qual ela havia decidido desistir de
esperar por ele e seguir em frente com a própria vida. Mas estava abalado e irritado
demais para lhe perguntar isso, no momento.
Além do mais, tinha a mais sombria e amarga sensação de que isso simplesmente não
lhe importava. A imagem que havia mantido na mente dos dois juntos através dos últimos
e brutais anos de guerra jazia aos pedaços no chão.
Novo noivo?! – Sussurrou para si mesmo.
Não sabia para onde ir nem o que fazer, apenas começou a andar a esmo, às cegas
pelas ruas da moda de Mayfair, parando só quando se deu conta de que ainda estava com
as flores na mão. Estava em tal estado de choque incrédulo que mal conseguia se lembrar
de como elas haviam chegado à sua mão. Rosas de Arlequim..., coisas tolas. Berrantes.
Rajadas de cor de rosa e branco, as favoritas dela.
Quanto cuidado havia tido para tirar todos os espinhos para que não machucassem
aquelas delicadas mãos!
De repente, jogou a cabeça para trás e soltou uma amarga, porém cínica risada.
Estúpido! E começou a atirar as malditas coisas na rua.
Que fossem pisoteadas, esmagadas pelas patas dos cavalos, pensou com raiva, mas,
pelo rabo do olho, deu-se conta da triste figura que havia acabado de passar por ele.
Viu uma senhora idosa, de aspecto pobre, envolta em um manteu puído e que parecia
que estivera esfregando pisos nas últimas horas apoiada em uma cerca de ferro forjado,
provavelmente esperando o ônibus. Então ele parou, virou-se e se aproximou dela.
Entregou-lhe as rosas sem uma só palavra, e ela, ao que parecia, ficou emocionada até a
alma.
— Oh, para mim?! Oh, oh, Deus meu! O senhor é muito gentil, querido rapaz! –
exclamou a idosa, frágil avó, animando-se. As lágrimas brotaram fartas dos olhos da
velhinha.
Isso o humilhou de alguma, mas sacudiu-o, fazendo com que prestasse atenção em si
mesmo. Ele não conseguiu nem esboçar um sorriso, mas inclinou a cabeça
respeitosamente para a idosa, ato contínuo, continuou a andar.
Não tinha ideia para onde iria... E no entanto, estranhamente, sentiu-se mais leve no
instante no qual as rosas saíram da mão dele.
Se a mulher que ele havia desejado como esposa se preocupava tão pouco com ele,
então, talvez tivesse acabado de se esquivar de uma bala fatal.
Talvez Laura tivesse servido para um propósito definido, o de fixar-se na mente dele
para lhe dar esperanças, para mantê-lo vivo e em movimento. Talvez aquela história toda
com ela havia sido um engano desde o começo.
E agora, faço o quê?! – perguntou-se, perplexo.
Agora é que são elas...

Meu Notório Cavalheiro (O Clube


Inferno 6)

Notório e sem medo, o Senhor Trevor Montgomery deve enfrentar seu maior desafio:
o casamento!
Tímida e de bom coração, a Senhorita Grace Kenwood sabe que não tem nenhuma
possibilidade de tentar seu novo vizinho, o Senhor Trevor Montgomery. Toda mulher bela
pode ser escolhida e desmaia sobre o bem-educado ex espião.
Apesar de que ele uma vez a beijou até deixá-la sem fôlego, ele simplesmente não
podia ter interesse algum em alguém como ela. Mas, de alguma maneira, o malandro
sedutor dá rédea solta ao próprio demônio interior...
Toda mulher ama o herói, mas Trevor não interesse algum em nenhuma delas, salvo
pela candidez refrescante de Grace.
Se ele tivesse coração, Grace o roubaria. Ela insiste que ele é melhor do que pensa, e
ele tem certeza de que ela está absolutamente enganada. Até que o perigo espreita
novamente, e Trevor descobre outra vez o quão fácil é ser o herói..., da senhorita certinha.

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