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C onheça os valentes homens do Clube Inferno, que estão enfrentando seu maior
desafio.
O casamento!
Sebastian, Visconde de Beauchamp, vive guiado por um código de honra, e agora essa
mesma honra lhe diz que deve se casar com a senhorita Carissa Portland. Não se
arrepende de ter roubado um beijo dessa adorável intrometida..., e um adequado castigo
por meter aquele delicioso nariz onde não devia. Mas agora, flagrado em uma situação
comprometora, sabe que deve torná-la sua esposa.
Carissa não é fofoqueira..., apenas uma..., ‘dama da informação’. E tudo o que ela
estava tentando fazer era avisar o libertino Beauchamp sobre um marido furioso. Mas
nem sequer ela pode alardear isso para a sociedade, e enquanto sua cabeça lhe diz que
Beau é um notório sem-vergonha, o coração – e o corpo – está cativado por aquele
perigoso encanto. Mas, à medida que Carissa vai se aproximando da espionagem, o
segredo que descobre sobre o Clube Inferno pode, inclusive, acabar sendo mais perigoso
do que se apaixonar pelo próprio marido.
Capítulo 1
A lgumas pessoas neste mundo (tolos) ficavam satisfeitas cuidando da própria
vida.
Mas a senhorita Carissa Portland não era uma delas.
Sentada entre as primas, as formidáveis Filhas Denbury, com a preceptora, a senhora
Trent, roncando levemente no outro extremo, varreu a audiência com os delicados
binóculos de ópera, à qual estavam presentes mais ou menos mil pessoas no sábado à
noite, no Teatro Covent Garden.
Sem dúvida, os pequenos dramas, comédias, farsas e joguinhos da audiência eram bem
mais interessantes do que qualquer coisa que acontecesse no palco. Além do mais,
conhecer todos os demais segredos da alta sociedade parecia a forma mais segura de
proteger os próprios.
Examinando os três níveis de palcos dourados, esquadrinhou pausadamente a plateia,
enquanto as lentes dos binóculos das outras damas piscavam o olho de volta. Como
dominava a linguagem dos sinais, também, procurou aqueles tímidos sinais nos quais uma
dama discreta poderia enviar uma mensagem para um amante.
Hmmm..., bem ali. Lady S. – sentada ao lado do marido, havia acabado de abrir o leque
com uma batida e fazer um arco para o Coronel W. – que havia acabado de chegar com os
companheiros de regimento. O mequetrefe uniformizado sorriu com malícia ao receber o
convite. Carissa semicerrou os olhos. O homem tinha olhos verdes, típico. Melhor ter
cuidado com ele. Aleatoriamente, escolheu outros diferentes rumores daqui e dali: a
Condessa Jeweled, por exemplo, corria à boca pequena que ela estavade namorico com o
lacaio; e aquele senhor, político, que havia tido gêmeos com a amante que jurou de pés
juntos que não tinha.
Dos extremos opostos da sala, dois ramos de uma mesma família – Feuding –
fulminavam uns aos outros com o olhar, enquanto na parte de baixo, um notório caça-
dotes jogava um beijo sutil para a herdeira de algum invasor estrangeiro, que
aparentemente possuías algumas carvoarias.
Tsc, tsc, pobre homem, pensou, quando a ocasional espionagem recaiu na triste figura
de um marido enganado que havia apresentado queixa contra o sedutor da esposa.
Bom, as demais acompanhantes da frisa onde estavam exibiam seus produtos em
decotados vestidos e pareciam mais do que dispostas a consolá-lo.
Humpf! – pensou Carissa.
De repente, aquela exploração da plateia chegou a um ponto morto em uma frisa em
particular, no segundo nível, à esquerda.
Ela deixou escapar um suspiro. Ele está aqui!
No ato, seu nécio coração começou a bater com força. Oh, meu Deus!
Contornado pela lente do delicado binóculo, lá estava ele, recostado na cadeira, os
musculosos braços cruzados sobre o peito...
E o olhar cravado nela!
Um sorriso malicioso se abriu lentamente no rosto dele, e só para confirmar que, oh,
sim, viu que ele a comia com os olhos, aquele bonito demônio lhe enviou uma saudação
um tanto descarada.
Ela soltou um assobio quase felino e e soltou o impertinente binóculo no colo, como se
tivesse se queimado com ele.
Jurou que não voltaria a tocar nele até que o público soltasse uma nova onde de riso.
Oh, que inferno! Remexeu-se no assento, aflita, e olhou em volta inquietamente. É
claro que não estavam rindo dela, embora provavelmente ela merecesse.
Ao diabo com ele, com aquele olhar malicioso que a fez se sentir como uma prostituta.
Para a própria consternação, Carissa Portland estava se sentindo secretamente
fascinada por um libertino.
Mais uma vez.
De onde vinha aquela fraqueza, aquela suscetibilidade vergonhosa por um homem
atraente? Ela estava desesperada para descobrir.
Talvez devesse culpar seu cabelo castanho.
Os ruivos eram conhecidos por ter uma natureza mais apaixonada.
Provavelmente uma bobagem, admitiu, mas soava como uma boa desculpa.
E qual era a desculpa dele? Bom, nem se incomodou em procurar uma. Um semideus
de ouro caminhando sobre a terra como um filho desgarrado de Afrodite não precisava de
desculpa. Encanto, agudeza, incrivelmente atraente, com um sorriso que poderia derreter
as placas de gelo do Mar Nórdico.
Sebastian Walker, Visconde de Beauchamp, poderia ter conseguido o que bem
quisesse. Ele era o Conde de Lockwood, conhecido na alta sociedade como Beau.
Os dois haviam se conhecido fazia algumas semanas através de amigos em comum:
suas amigas mais próximas, Daphne e Kate, estavam casadas com companheiros dele do
Clube Inferno, Lorde Rotherstone e o Duque de Warrington. Frequentavam os mesmos
círculos e, é claro, havia ouvido falar sobre a reputação dele. Quase saíra no tapa com ele
não fazia muito tempo. O besta havia lhe dado um escandaloso beijo!
Em público!
Havia cometido o erro de detê-lo quando ele estava com pressa para ir a algum lugar.
Ficou receosa diante dele, mas precisava apenas de uma resposta simples a uma pergunta
muito séria: Aonde tinha ido todo mundo?
Tanto Daphne quanto Kate estavam ausentes da cidadefazia semanas, sem nenhuma
explicação. Isso era totalmente inusitado nelas.
Devido à amizade de Lorde Beauchamp com os respectivos maridos, tinha certeza de
que ele devia saber de algo. Os maridos também haviam sumido, supostamente em
alguma viagem de caça nos Alpes.
Mas Carissa estava começando a duvidar de tudo o que acreditava que sabia sobre
seus amigos. Todos estavam agindo muito misteriosamente antes de desaparecerem.
Tudo aquilo era muito incômodo. Ela não tinha nenhuma informação concreta, (Oh,
desesperador!), mas estava claro que ele estava tramando algo. Não entendia por que
havia sido excluída. A verdade era que, francamente, isso doía.
Felizmente, havia recebido uma carta de Daphne, finalmente, o que confirmava que
estava a salvo, mas a verborreia da amiga parecia deliberadamente vaga. E assim, com o
alívio chegou um incômodo ainda maior.
Por que diabos estavam mantendo-a no escuro deliberadamente? Por acaso não
confiavam nela?
Em um esforço para obter respostas, havia encurralado Beauchamp em um lugar
seguro (ou pelo menos ela acreditava nisso) e público. Mas, como ele havia se atrasado
demais, como ele mesmo disse, ralhando com ele, aquele magnífico bruto havia se
limitado a tomá-la nos braços e a por um ponto final às suas perguntas com um beijo
cheio de luxuria.
Como se ela fosse uma rameira de esquina, sem importância!
Se não estivesse chovendo..., se ele não os tivesse protegido da visão dos outros com o
guarda-chuva..., tinha certeza de que o escândalo teria sido tão desastroso que ter-se-ia
enforcado, ou, (para acompanhar a moda), ter-se-ia afogado no lago Serpentine.
Bom, o canalha obviamente não entendia as primeiras regras do comportamente
decente. Apesar de que, certamente, sabia como dar um beijo dos infernos em uma
mulher!
Propôs a si mesma se esquecer dele e de todo aquele episódio desconcertante,
tirando-o da mente pela força de vontade, direcionando a atenção para outra coisa.
O programa da noite começou com um concerto exuberante da Primavera, de Vivaldi,
seguido de uma trabédia medíocre chamada de A Filha Grega.
A segunda peça era uma comédia, A Fortuna da Guerra, à qual todos estavam
esperando. Tratava-se da última peça cômica do popular Senhor Kenney, um gênio notável
dentre a classe de escritores e membro fundador do Clube de Cavalheiros de Boodle.
Embora a obra não tivesse a presença do amado personagem recorrente do Senhor
Kenney, o malicioso Jeremy Diddler, parecia que a plateia estava gostando bastante.
Ondas de risadas tomaram conta da plateia enquanto os personagens faziam
brincadeiras de um lado para o outro do cenário. Carissa fez o possível para prestar
atenção, mas, pelo rabo do olho, estava bastante consciente de Lorde Beauchamp.
Quando a cortina se fechou brevemente para que os contrarregras pudessem mudar o
cenário, não conseguiu resistir e olhou cautelosamente na direção dele mais uma vez.
Teve a curiosidade recompensada quando viu uma das vendedoras de laranjas entrar
no camarote do Visconde para lhe entregar uma mensagem.
Carissa o viu pegar a pequena nota e lê-la, enquanto a moça das laranjas esperava uma
moeda.
Bom, Carissa não tinha escolha. Sua natureza inata de bisbilhoteira a obrigou. Pegou do
colo o binóculo de ópera e o levou aos olhos exatamente a tempo de ver o olhar ardente
que iluminou o rosto cinzelado de Lorde Beauchamp, que olhou para o outro lado da sala
com semblante suave, reconhecendo o remetente. Carissa focou o binóculo naquela
direção, também, tentando seguir o olhar dele.
Em vão.
Quem quer que tivesse lhe enviado o recado se perdeu em meio à multidão.
De fato, poderia ter sido qualquer uma daquelas rameiras de berço da alta sociedade
que queriam ter vez com ele nessa noite. Com o cenho franzido, fez uma busca nas
arquibancadas diante dele. Sinceramente, não sabia se estava mais irritada com
Beauchamp por todos os costumes de um puro-sangue, ou consigo mesma, por estar com
ciúmes por ele ser tão livre nas relações sem importância.
Virou de novo o binóculo para o Visconde, para ver o que ele faria em seguida. Beau se
virou para a vendedora de laranjas, pediu-lhe algo e ela lhe entregou um lápis.
Enquanto ele rabiscava a resposta, Carissa memorizou a figura da vendedora de
laranjas: meio baixinha, rosto cansado, como de camponesa. Ato contínuo, o libertino lhe
entregou uma nota junto com uma moeda e ela se foi para entregar a resposta.
À medida que a vendedora sumia pela pequena porta do camarote particular do
Visconde, as perguntas começaram a corroer Carissa. Com quem eleestava envolvido
ultimamente? É claro que ela sabia que havia muitas mulheres que o cercavam, como
regra geral, mas, havia alguém em particular?
E por que você se importa com isso? – perguntou seu bom senso.
Não sei. Preciso de algum motivo?
Sim, respondeu para si mesma.
Deu de ombros, negando-se a admitir qualquer coisa.
Só quero saber por que..., porque quero saber, ora!
De repente, teve uma inspiração malvada.
Podia ficar sentada ali, ardendo de curiosidade sobre qual mulher irresponsável estava
destinada a se jogar nas garras dele nessa noite, ou podia fazer algo.
Investigar.
Afinal de contas, como dama da informação, fazia tempo que descobrira que as
vendedoras de laranjas podiam ser..., subornadas.
Ótimo.
Levantou-se da cadeira instantaneamente e se desculpou com um sussurro. A
senhorita Trent acordou com um sobressalto, desorientada, enquanto as Filhas Denbury
reviraram os olhos. Aliás, essa era a resposta das belezas mimadas à maior parte das
coisas, na verdade.
— O que estás fazendo? – Queixou-se Lady Joss, de dezenove anos.
— Preciso ir à sala das senhoras.
— Não consegues segurar?
—Não.
— Oh, isso é repugnante – opinou Lady Min, de dezessete anos.
— Desculpai-me. – Fazendo caso omisso da irritação das primas, esgueirou-se para fora
do camarote Denbury e fechou a porta atrás de si.
Em seguida, Carissa, cujos sapatos repicavam barulhentamente em meio ao silêncio do
lugar,desatou a correr pelo corredor do terceiro andar.
Precisava encontrar e interceptar aquela vendedora de laranjas.
Sabia que não deveria se importar com quem Lorde Beauchamp compartilharia a cama
nessa noite, mas tinha que dar uma olhada naquela nota. Vê-la com os próprios olhos,
pensou, sem dúvida a ajudaria a se lembrar de que preciosas caveiras como Lorde
Beauchamp não passavam de problemas. Perseguiam o prazer e não se importavam com
quem sairia lesado.
Ela já deveria saber disso.
Por outro lado, com toda justiça – supunha – tinha que admitir que às vezes parecia
haver nele mais do que um simples encanto e carisma. E ombros largos. E músculos
encantadores. E tinha ainda aquela fascinante cor da espuma do mar dos olhos dele que
dançavam quando ria, o que acontecia amiúde, a mandíbula robusta, e lábios que pediam
muitos beijos...
Apressou-se para realizar a tarefa e avançou correndo. De fato, deixando a atração
física de lado, ele havia feito realmente algumas coisas interessantes na vida.
Usando os próprios métodos costumeiros, havia dado um jeito para descobrir uma
série de coisinhas estranhas sobre ele, incluindo algumas façanhas bastante coloridas do
passado de Beau.
É claro que a origem dele provinha de uma linhagem tão excelente quanto a dela. A
mãe, Senhora Lockwood, havia sido a grande beleza da época, e, de fato, ainda era,
mesmo aos cinquenta anos. Do pai, o Conde de Lockwood, dizia-se que era um brusco
ranzinza e que quase não ia à cidade, pois preferia caçar e atirar, a típica vida de um lorde
no campo.
Não sabia onde Beau havia passado a infância, mas que, como todo jovem nobre, havia
frequentado Oxford, estudou grego e latim e se sobressaiunas aulas sem ter que se
esforçar, conforme o que havia ouvido. Inteligente demais para o próprio bem, segundo
suas fontes, havia se aborrecido facilmente e se ocupara com sofreguidão de todo tipo de
aventuras selvagens. E até mesmo na juventude ele havia tido mulheres.
Aliás, um número indecente de mulheres.
Mas, ao que parecia, o jovem aristocrata luxurioso teve seus momentos heroicos,
também. Em uma ocasão, quando tinha vinte e um anos, de acordo com os rumores, ele
estava voltando para casa às primeiras horas da manhã, depois de uma longa noite de
orgia, quando se deparou com a casa de hóspedes tomada pelas chamas.
Não se sabe se foi devido ao uísque que estivera bebendo a noite toda que o deixou
estupidamente valente ou se ele sempre fora assim, mas, o fato é que ele havia se
precipitado para o prédio em chamas e resgatou todos que estavam lá dentro, antes
mesmo que os bombeiros chegassem. Salvou a vida de umas vinte pessoas mais ou
menos.
Não muito depois disso, seu pai, o Conde, fê-lo membro do Parlamento, usando um
dos municípios que controlava.
Havia colocado o filho no cargo para que este pudesse adquirir experiência, para ajudá-
lo a se preparar para que um dia ocupasse o lugar que tinha na Câmara dos Lordes.
Pouco importava ao conde que o jovem deputado tivesse provocado a indignação dos
líderes de ambos os partidos por causa do idealismo ardente, das críticas abrasadoras e a
negativa lamentável de se comprometer.
Supunha que era bom saber que nem sempre havia sido um cínico e que tinha senso
do dever cívico, apesar dos muitos pecadinhos românticos. Quando renunciou ao cargo
um ano mais tarde, desgostoso e irritado, voltou à antiga vida de libertino. Havia feito
inimigos políticos o suficiente para o resto da vida.
Esses, por sua vez, foram à forra contra o audaz e jovem Visconde, e correu à boca
pequena que ele havia se batido em duelo contra um rival exaltado por causa dos favores
de uma cadelona da alta classe da sociedade.
Beauchamp, universalmente conhecido como um atirador de primeira, nem se dignou
a matar o homem que o havia desafiado, somente o deixara ferido. Como resultado disso,
o rival teve que amputar a perna logo abaixo do joelho e, infelizmente, acabou que era o
sobrinho de um ministro de gabinete.
É claro que não havia nada escrito contra o duelo, pois era mais como uma cortesia à
classe alta que vivia e morria pela honra, mas essas leis quase nunca era aplicadas.
A menos que alguém tivesse inimigos nos altos escalões.
Os burocratas haviam derrubado Beauchamp como um martelo, dizendo que tinham
que fazer dele um exemplo, para mostrar aos outros jovens ingleses que não podiam
simplesmente sair por aí assim, atirando uns nos outros.
Foi só o que Lorde Lockwood pôde fazer para impedir que o filho escapasse
alegremente de Newgate. Em vez disso, depois de pagar uma grande multa e dos danos
causados ao agora atraente e jovem duelista com uma perna só, havia sido enviado, como
era de se esperar, para fazer uma viagem. Mandou o filho esfriar a cabeça selvagem no
estrangeiro, por assim dizer. Deram-lhe um posto ligeiramente unido ao esforço da guerra,
segundo se soube, mas, diante da insistência do pai, manteve-se geralmente fora de
perigo, bem atrás das linhas de combate.
Era muito difícil imaginar que não se metesseem encrenca, disse para si mesma, mas,
de alguma maneira, a guerra terminou e ali estava ele de novo, ileso.
Corria o rumor de que ele havia voltado para casa, para sempre.
E, é claro, mal havia se passado três meses que voltara à Inglaterra e já estava metido
em encrencas outra vez.
Ela não sabia muito bem o que diabos ele havia feito dessa vez, mas havia escutado
algo sobre o último atrito enquanto bisbilhotava no escritório do tio.
Sabia que seu tutor, Lorde Denbury, e seus compinchas da Câmara dos Lordes se
mantinham continuamente informados sobre as idas e vindas nas mais diferentes
incursões. Um daqueles informes parlamentares enviados ao seu tio havia lhe revelado
que o Visconde Beauchamp estava sendo investigado por uma equipe secreta do
Ministério do Interior. Não deram mais nenhum detalhe além disso.
Tudo isso era surpreendente demais, e era apenas uma parte da prova de que, por trás
daquele sorriso radiante, era uma semente formosa e má.
Correndo pela escadaria vazia, seguiu por entre os mezaninos, olhando para todos os
lados à procura de uma das vendedoras de laranjas em particular, aquela que tinha
aspecto cansado.
Um diálogo surdo vindo do palco e as risadas da plateia se fez ouvir através das
paredes da peça em curso. O Senhor Kenney estava, obviamente, matando a plateia de
tanto rir com o famoso senso de humor que tinha.
Carissa não tinha tempo para tal entretenimento, no entanto, o corredor entre os
mezaninos estava animado com todo tipo de serviço.
— Posso ajudar, senhorita? – Sussurrou um dos assistentes uniformizados quando ela
passou por ele.
Ela negou com a cabeça e deu, o que esperava que parecesse, um sorriso inocente, e
acelerou o passo.
Não seria bom que qualquer pessoa descobrisse o método secreto que ela tinha para
conseguir informações. Conferiu o bolso para se certificar de que tinha algumas moedas
para o suborno. Chegando ao longo da curva do corredor, escondeu-se no fundo do
contorno da sala fechada.
Quando virou o canto do corredor, finalmente viu a vendedora que procurava, mas
logo se agachou no vão mais perto das cortinas com um ofego. Alguém havia chegado
primeiro!
Cautelosamente, Carissa assomou pela beirada da cortina.
Maldição, mas quem era aquele?!Roubou meu plano!
Então, um calafrio a percorreu enquanto ela analisava o homem que falava com a moça
das laranjas.
Era bonito, tinha o cabelo preto e como que jogado para trás pelo vento, como se
tivesse acabado de chegar de viagem. Estava com o cenho franzido e viu que o corpo era
musculoso mesmo no escuro, ambora parecesse decididamente tacanho.
A boca de Carissa secou enquanto o via subornar a vendedora de laranjas para dar uma
olhada na nota que a dama, talvez sua senhora, havia trocado com Beauchamp. O coração
de Carissa bateu com força.
Oh, Beauchamp, espero que você não tenha assinado o bilhete com o seu próprio
nome.
Ninguém nunca assinava aqueles bilhetinhos clandestinos.
Com certeza ele era inteligente e experiente demais para cometer tal estupidez. Mas,
se tivesse cometido esse erro, temia que o libertino estivesse prestes a participar de outro
duelo. Pelo visto, parecia que ela não era a única a sentir ciúmes nessa noite.
Escondida atrás da cortina do balcão, viu com inquietude que o belo homem de
cabelos pretos estava lendo a nota e fazendo zombaria.
Ele soltou uma gargalhada cínica. Sacudiu a cabeça com um sorriso amargo e depois,
tensamente, pediu à vendedora outro pedaço de papel, o qual ela lhe deu. Amassou o
bilhete original e o enfiou no bolso da camisa.
Depois escreveu outra mensagem por conta própria.
Com um olhar sombrio, entregou o bilhete para a vendedora, colocando um dedo nos
lábios, como se lhe avisasse que era segredo.
Enfiou uma moeda na mão dela e a mandou de volta. O estranho ficou olhando a
vendedora se afastar, com as mãos nos quadris e as pernas afastadas. Depois, com um
sorriso frio, como se estivesse satisfeito por ter começado a armadilha, girou sobre os
calcanhares e se foi.
Carissa saiu facilmente do esconderijo, logo depois, e um terrível formigamento
percorreu-lhe o corpo todo.
Oh, Beauchamp, estão lhe estendendo uma armadilha!
Mal se atrevia a imaginar o que poderia acontecer com ele se fosse se encontrar com a
tal mulher do dia, fosse ela quem fosse. Poderia acabar morto!
Mais uma vez, Carissa se pôs em movimento, correndo atrás da vendedora de laranjas
para que não entregasse aquele bilhete, que não passava de um pedaço de traição.
Beauchamp podia ser um libertino mau e decadente, mas ela não estava disposta a
permitir que ninguém o matasse!
Correu atrás da vendedora de laranjas pelo corredor lateral, mas desacelerou ao
chegar à fileira de camarotes particulares, patinando até parar.
Tarde demais!
A vendedora já havia entrado por uma das portas estreitas até a metade da fileira.
Oh, não! E agora, o que é que eu faço?!
Com o coração trovejando no peito, olhou em volta inquietamente.
Estar simplesmente ali, de pé, sem acompanhante, em uma parte do teatro à qual não
pertencia, era algo assim como jogar na roleta. Depois de ter perdido a vendedora de
laranjas, a ideia de se aventurar na frisa de Beauchamp para alertá-lo lhe gelava o sangue
por ter que se arriscar a ser vista ali pelos outros bisbilhoteiros da plateia. Não podia se
dar ao luxo de forma alguma de se transformar em objeto de fofocas.
Já tinha coisas demais a esconder.
Foi então que se deu conta de que o mais inteligente que podia fazer era abandonar
aquela louca procura imediatamente, voltar correndo para o seu assento e fingir não não
havia visto nada.
Porém, a vida de um homem poderia estar em jogo.
E embora fosse completamente desesperador, o mundo seria um lugar mais escuro e
opaco sem ele. No entanto, pensando bem, talvez pudesse transformar essa pequena
virada do destino a seu favor...
Oooh, pensou. Uma troca de informação! Sim!
Se ele me disser onde estão Daphne e Kate e que diabos está acontecendo, então eu lhe
direi o que vi. É justo, não é? Se ele se negar, então talvez o libertino mereça o que possa
vir a receber.
Insegura sobre o que fazer, foi devagar até a porta do camarote, depois parou.
Provavelmente ele estava lendo o bilhete falso naquele preciso instante, começando a cair
na armadilha.
Ficou ali, destroçada e hesitante, quando algo lhe ocorreu. Se tentasse alertá-lo sobre o
que havia visto, ele se daria conta que ela estivera bisbilhotando seus assuntos pessoais.
Dar-se-ia conta também de que ela estava com ciúmes, e então, oh, então iria rir na
sua cara e zombaria dela como um colegial! E então, pouco importava o marido ciumento,
pois ela mesma mataria e torceria o pescoço daquele safado!
Nesse instante, antes que ela tivesse decidido o que fazer, a pequena porta do
camarote dele se abriu e a vendedora saiu correndo.
E atrás dela, o próprio arrogante surgiu, alto e principesco, a caminho do encontro.
Mas ele parou no mesmo instante no qual a viu, e arqueou as sobrancelhas.
Carissa ficou imóvel, olhando-o fixamente, com a língua presa. Sabia que fora
apanhada em flagrante. Ele esboçou um sorriso lupino que lhe deu ganas de gritar com
fúria mortificada e sair correndo. Mas se manteve firme e engoliu em seco, enquanto a
vendedora saía correndo, deixando-os a sós no corredor escuro e silencioso.
Próximos o suficiente para se tocarem.
— Ora, ora, minha querida Senhorita Portland, – ronronou ele, passeando o olhar
sobre ela em agradecimento pelo olhar de apreço à sua masculinidade. – Que surpresa
mais agradável. – Queres..., algo?
Capítulo 2
A pesar do habitual sorriso despreocupado, que usava como se fosse máscara de
carnaval, Beau havia entrado no teatro nessa noite e se flagrou com o humor sombrio e
desagradável, sentindo-se muito só naquela luta.
Estava sob enorme pressão, no limite mesmo, e irritado como o inferno por causa de
todos os golpes sofridos pela Ordem no último mês. Seu treinador, Virgil, estava morto, a
fuga e possível traição de Drake, seu companheiro Nick, Trevor e seus agentes
desaparecidos, e agora, a sombra do Ministério do Interior escarafunchando os métodos
de trabalho clandestino da Ordem.
Farto de tudo aquilo, havia entrado no território de caça dos ricos procurando o
remédio habitual: uma companheira de cama disposta a distrai-lo, mudando a frustração
que sentia por algumas horas de felicidade física.
Isso lhe faria bem, como a chuva pela manhã. Mas, quando saiu do camarote,
esqueceu-se da duquesa que havia lhe feito propostas. Ali estava um bocado bem mais
doce, a inimitável Senhorita Portland, olhando-o fixamente, como o gatinho malvado que
comeu o canário.
Não sabia explicar, mas algo naquela moça o fazia rir. Parecia que ela estava sempre
tramando algo, e por algum motivo, achou-a adoravelmente divertida.
Inclusive agora, a simples visão dela ali, de pé, iluminou seu estado de ânimo, como
sempre. Não conseguia controlar, parecia que sempre ficava meio estúpido quando ela
estava perto. Não conseguia parar de rir, como o bobo do povoado apaixonado pela
rainha da colheita. Reprimiu um sorriso.
Isto vai ser divertido.
— Minha querida Senhorita Portland – ele a cumprimentou com ar de grave
cavalheirismo, sabendo o quanto ela preferia o seu amigo, o grave e cavalheiresco Senhor
Falconridge, a ele. – O que te traz ao meu camarote esta noite? Com certeza eu não me
atrevo a esperar que tenhas vindo aqui só para ver a minha humilde pessoa.
Ela inclinou a cabeça e lhe deu um longo olhar de sofrimento.
— Se for assim, é claro, sou seu servo.
— Humpf... Talvez... – admitiu ela, levantando o queixo e cruzando as mãos atrás das
costas.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— É sério? E até admites? Geralmente tu somes toda vez que me vê.
— E por acasotu podes me culpar por isso? – Replicou ela com leveza.
Beau ficou olhando para ela.
Deus, quando sentiu aquele interesse feminino por ele, foi quase mais do que podia
suportar, e recuou um passo. Sentiu que suas regiões inferiores clamavam por ela e se
obrigou a afastar o olhar. Mas era verdade. De todas as mulheres naquele teatro,
incluindo atrizes e meretrizes (todas muito fáceis), a sobrinha de Lorde Denbury era a que
ele mais queria levar para a cama.
Infelizmente, isso era apenas fantasia, porque seus Irmãos Guerreiros já haviam
tratado de lhe descrever o que aconteceria se brincasse com a inocente amiguinha de
Daphne.
Geralmente ele não tinha medo de ninguém, mas eles eram agentes da Ordem, e três
deles,muito bem treinados, um pouco mais velhos e até com mais experiência do que ele.
Não, na verdade ele não gostaria de ter a cara amassada pelo punho de Rotherstone, ou
as costelas quebradas por um ataque de Warrington, isso para não falar do que
Falconridge poderia fazer com ele, tendo em conta o grande interesse do irmão do conde
de cabelo louro pela miúda dama da informação.
Jordan Lennox, Lorde Falconridge, recém-casado com a noiva que lhe fora designada
desde a infância, era do tipo tranquilo que nunca se irritava, mas quando se irritava, já era
tarde demais. O sujeito já estava morto.
Esses agentes experientes, um pouco mais velhos, conscientes das tendências
sedutoras de Beau e de como era seu amigo, avisaram-lhe que, como ela era a amiga
preferida de Daphne, conseguiram lhe arrancar, a contragosto, a promessa de não tocá-la.
Pouco importava o fato de que a lutadora, e por pouco rainha das fadas, quisesse ser
tocada.
Ah, bom. Mas isso não queria dizer que não podia olhar..., não é?
Ela estava usando um vestido simples de seda verde claro de primavera, parecendo
uma fantasia fugaz em torno do esbelto corpo. Mas, para sorte dela, ele já havia tomado a
decisão de não agir de acordo com a luxúria, além disso tinha as ameaças de morte por
parte de Rotherstone.
O fato era que Carissa Portland era uma mocinha bisbilhoteira e intrometida que tinha
paixão por desenterrar segredos, enquanto ele era um espião acusado de escondê-los da
Coroa. Uma moça como ela era problema. Problema esse que ele não precisava. Já tinha
muitos deles por conta própria.
— Então, o que posso fazer pela senhorita? – Murmurou, apoiando o ombro contra a
parede.
— Bom – ela mordeu o lábio e baixou o olhar, olhando-o fixamente por baixo dos cílios,
hesitando. – Para começar, podes me dizer com quem tu vais te encontrar...
— Como é que é?! – Exclamou ele, muito surpreso.
Ela se limitou a olhá-lo. Ele riu suavemente, cruzando os braços sobre o peito.
— E exatamente por que isso te importa?
— Por nada – disse ela, encolhendo os ombros e evitando o olhar dele. – Sou estou
curiosa.
Ele a olhou com ceticismo.
— Aliás, como é que a senhorita ficou sabendo disso, posso saber? Estavas me
espionando?
— Tenho olhos.
— E um nariz meio intrometido – ele concordou, dando pancadinhas com o dedo na
ponta do nariz dela. – Mas prefiro os lábios. Diz-me, – acrescentou com um murmúrio
confidencial, inclinando-se para mais perto – tu pensaste naquele beijo tanto quanto eu?
— Beauchamp!
—Portland.
Ela esboçou um sorriso hesitante, ao que parecia, apesar de si mesma, e se apoiou
contra a parede.
— Não – respondeu finalmente. – Não pensei nisso em absoluto. – E a pele macia de
marfim ficou rubra escarlate.
Beau a olhou, divertido.
— É uma lástima. Pensei que poderíamos ter outro...
— Creio que não. – Com olhar severo, ela o cortou e se afastou, colocando uma
distância segura entre eles.
— Muito bem, então, só que não tenho a noite toda, mocinha. Por que estás aqui?
Ela não respondeu imediatamente, mas considerou as palavras com cuidado.
— Seja lá com quem for que tu pretendes se encontrar esta noite, eu te aconselho a
não ir.
— E por quê, posso saber? – Ele arqueou uma sobrancelha fazendo uma careta
brincalhona. – Tens ideia melhor?
— Oh, agora chega. Eu te digo por que, assim que me disser onde está Daphne.
Beau gemeu e largou o corpo todo contra a parede.
—Por favor, não comeces com isso outra vez. Pensei que Daphne teescreveu.
Ele sabia com toda a certeza que assim era, porque foi o único que pediu à Senhora
Rotherstone que escrevesse para Carissa.
— Sim, eu recebi a carta, e te agradeço por isso. Eu sabia que tinhas algo a ver com
isso. Mas, mesmo assim, ela foi muito vaga. Olha, eu sei que está acontecendo algo, e sei
também que tu sabes o que é. Agora, tu podes me dizer o que é ou...
— Ou nada. – Interrompeu ele. – Não posso dizer nada.
— Por quê?
— Porque... Tuas amigas estão a salvo. E isso é tudo o que precisas saber.
Ela se afastou da parede, levantando os ombros com um gesto elegante.
— Está certo. A escolha é tua. Boa noite, Lorde Beauchamp. – Ela começou a se afastar.
— Espera aí, mocinha! – Ele a pegou pelo cotovelo para que ela parasse. – O que é que
tu ias me dizer?
— Hmmm?
—Estás sabendo de algo que eu não sei?
— Será que isso seria possível? – Zombou ela.
— Hmmm... Está bem, dona sabetudo. Vem cá. Vou sair com alguém. Reconheço, tu és
perita nas bisbilhotices da sociedade. Sabes de algo sobre a dama com a qual vou passar a
noite, que deveria ter em conta?
Ela riu zombeteiramente e soltou o braço do aperto dele com um puxão.
— Estás querendo que eu te diga, quando sei que não vais me dar nada em troca? Oh,
mas suponho que tu esperas que as mulheres caiam aos teus pés e façam o que tu lhes
diz!
— Seria bom – disse ele, encolhendo os ombros.
Ela se aproximou mais
— Ahá!
Então ficou sem fôlego quando ele lhe deu um belo sorriso.
— Então, é agora que eu te beijo? – Ele a atraiu para si, e embora ela franzisse o cenho,
permitiu que a aproximasse com suficiente boa-vontade. O pulso dele disparou com
aquela aquiescência. – Estás linda esta noite..., outra vez, atrever-me-ia a dizer.
— Elogios não vão te levar a parte alguma. Especialmente quando estás prestes a te
encontrar com outra mulher! Tu és um homem interessante, Lorde Beauchamp.
— Ora, vamos, o que há contigo? – Ele emgambelou-a com um sussurro sensual. –
Estás com ciúmes, querida? É por isso que estás aqui? Para que eu não preste atenção em
ninguém mais?
Ela se afastou com um resmungo.
— Na verdade, teu ego não conhece limites.
— Bom, não vejo por que isso deveria te interessar. Tu já deixastes bem claro que não
gosta de mim.
— Eu não fiz nada disso!
— É claro que não – disse ele com uma leve careta de sofrimento.
— Eu simplesmente não quero te ver ferido – admitiu ela com o cenho franzido com
cautela. –Deverias ter mais cuidado.
— E por quê?
Ela olhou para a parede e encolheu os ombros.
— Oh, não sei..., talvez pelos perigos que poderias esperar ao marcar esses encontros
idiotas se parasses para considerar os riscos.
— Por exemplo...? – perguntou ele, imensamente divertido.
— E se ela tiver aquela doença francesa? – sussurrou.
— E daí se ela tiver? – Respondeu ele.
Ela abriu a boca, horrorizada.
— Estás falando sério?!
— Ela está infestada dessa doença... Ora, vamos, estou brincando!
Ela deu um tapa no braço dele e sussurrou:
— Pois isso não é nada engraçado, diabos! – Em seguida apontou para o camarote
dele. – Por que não ficas longe de problemas e vais assistir a peça?
— Isso me entedia. Tanto quanto entedia a ti, aposto. Além do mais, aquela mulher me
prometeu prazeres os quais sequer tu poderias imaginar, – disse ele em tom desafiante,
só para ver o que ela ia fazer.
Ela o olhou, e seus olhos verdes dispararam chispas.
— Esse tipo de prazer, meu senhor, amiúde conduz à dor.
— Mas de vez em quando tem seus encantos, também. O que é que estás tentando me
dizer, boneca?
— Onde está Daphne? – insistiu ela.
Ele franziu o cenho, olhou para o relógio de bolso e se afastou da parede.
— Eu sinto muito, mas preciso ir.
— Está bem, então vai! Mas, já te ocorreu que essa senhora pode ter marido?
— Nem todas têm.
— Isso se chama adultério! – sussurrou.
— Ora, ora, estás preocupada com minha alma imortal... Que doçura!
— E com o teu corpo!
— Verdade? – Murmurou ele, fascinado.
—Eu não quis dizer dessa maneira! – Replicou ela, nervosa.
Ele riu baixinho.
— Pois meu chef poderia flambar algo nas tuas faces, amor.
— Só estou tentando te manter longe do escândalo!
— Mas eu gosto de escândalo. Os mexericos te deixam tanto tempo livre assim?
— Eu não sou mexeriqueira!
— Ah sim, desculpa-me. Dama da informação. Mas suponho que tens razão. Tu és
inocente e eu sou completamente malvado. Não devo te corromper – disse ironicamente.
– Portanto, despeço-me de ti, bela dama, mas devo te lembrar de que foitu quem veio me
procurar. Eu te desejo uma boa noite no teatro, e te peço desculpas por ter ofendido tua
delicada sensibilidade. Mais uma vez, isso é apenas uma sugestão, mas se minha
depravação te ofende, sempre podes tentar não te intrometer mais nos meus assuntos.
Piscou-lhe um olho e disse:
—Au Revoir!¹
— Aaaaiii! Beauchamp!
Ele parou e continuou de costas para ela, com um sorriso diabólico curvando seus
lábios.
— Sim, querida? – E se virou lentamente. – Precisas de mais alguma coisa? – perguntou
ele em tom de deliberada insinuação.
Ela levantou as mãos para cima com os punhos fechados.
— Por que és tão impossível assim?! Já pensastes alguma vez na dor que deves causar
a essas mulheres?
Ele zombou, fazendo caso omisso de algum remorso na consciência.
— Todas elas sabem muito bem que não devem me levar a sério. E tu deves aprender a
fazer o mesmo.
¹ - Au revoir – significa adeus em francês.
Ela se virou e começou a se afastar.
— Está bem, então, vai! E espero que aprendas a lição – completou ela em voz baixa. –
Bem que tu mereces o que lhe dão.
— E tu mereces uma auréola, suponho – respondeu ele.
— Isso significa o quê, pode-se saber?
Ele franziu o cenho e olhou para o outro lado, irritado por ter permitido que ela
chegasse até ele.
—Não importa.
— Nada disso, diz, o que é que quisestes dizer com isso? – Ela insistiu.
Ele olhou-a com o rabo do olho.
—Tu podes enganar toda a alta sociedade, Carissa Portland, mas receio que a mim não
enganas. Olha para ti, de pé aí, madura demais para ser enganada – e se aproximou. – Por
que vens até mim e me tortura? Hã? Por que não me deixas em paz?! Afinal, o que tu
queres que eu faça?!
Ela deu um passo atrás, três tons mais vermelha do que antes.
— Eu..., te rogo que me perdoe.
Ele arrastou um olhar ardente sobre o delicioso corpo de Carissa.
—O que tu precisas é de um bom beijo, para começar. – Sua boca se encheu d’água
enquanto percorria com o olhar os seios dela, cujos mamilos pareciam querer furar o
tecido do vestido, implorando pelo seu toque. Seu sangue se inflamou de desejo. – Oh,
sim. Está bastante claro que estás interessada. Mas o que é que tu esperas que eu faça
exatamente? Que e pegue à força? Sinto muito, não faço esse tipo de joguinho – informou
ele em voz baixa. – A não ser que tu venhas até mim por vontade própria..., caso
contrário, é nada, em absoluto. Mas, até que tu decidas o que vai ser, menina, corre para
tua casa, para o colo da tua babá. Vai em frente. Corre e te esconde de mim outra vez,
como fazes todas as vezes que nos encontramos. Sim, eu tenho defeitos, mas pelo menos
não sou hipócrita. Se tu tens medo do que sente, é problema teu. Mas não me procure
fingindo que tudo o que queres fazer é ralhar comigo. Acredite, fico feliz por satisfazer tua
curiosidade, e a minha própria também, sobre como vai ser entre nós quando estiveres
pronta para me pedir. Mas até então, eu preciso é de uma mulher de verdade, não de
uma menina. Portanto, se me deres licença, tenho um encontro, e com alguém que é
maior de idade, uma mulher adulta.
Isso é o que tu pensas, Carissa pensou furiosamente, muito consciente de que, na
verdade, era um homem que o esperava.
Um homem que ia dar a bela sova que o canalha merecia.
—Tu és rude, grosseiro, orgulhoso, horrível! Como te atreves?!
Sacudindo a cabeça e praguejando em voz baixa enquanto se afastava, saboreou a
ideia de que o canalha teria o merecido. Cada pancada que levasse nessa noite naquela
linda cara era totalmente culpa dele. E ele bem que merecia!
Algumas pessoas insistiam em cortejar o perigo. Mas ela estava tentando salvar o
diabo. E ela havia lhe insinuado o suficiente. O que acontecesse com ele, seria culpa era
apenas dele.
Ficou cravada no mesmo lugar, apertando os punhos, olhando-o ir embora pelo
corredor lateral mal iluminado. Quando desapareceu, ela bateu o pé no chão e amorteceu
um grito mental de raiva, como convém a uma dama.
— Oooooh!
Ele era a criatura mais exasperante da face da terra!
Um tremor de indignação mortificada a percorreu, furiosa consigo mesma por permitir
que ele percebesse que se sentia atraída por ele. E que estava com ciúmes!
Só podia estar louca se sentisse outra coisa que não fosse desprezo por aquele
libertino arrogante!
A forma como ele a olhava! Quem sabe até a tivesse despido com os olhos ali mesmo,
no corredor. Ainda indignada, voltou a si morrendo de vergonha.
Sentia-se nua pela forma com a qual ele havia olhado para o seu corpo e pelas coisas
atrevidas e pouco cavalheirescas que havia lhe dito. Mais alarmante ainda era o fato de
que, ao que parecia, ele a enxergou através daquela farsa virtuosa.
Lembrando-se da própria falsidade, imediatamente se deu conta de que era melhor
voltar para o seu assento.
Não lhe serviria de nada ter as primas lhe perguntando por que havia demorado tanto
no salão das senhoras. E mais difícil ainda se a Senhora Trent tivesse pedido a uma delas
que fosse procurá-la, para se certificar de que ela estava bem.
Como é que iria se desculpar se a preceptora não a encontrasse em parte alguma perto
do lugar onde ela havia dito que estaria?
Seu puritano tio a vigiava como um falcão, totalmente preparado, desconfiado, para
puxar-lhe a orelha se ela saísse da linha de novo.
Um erro apenas e a família já havia se preparado para protegê-la, graças à sua
inocência e juventude, e à influência duvidosa da alegre e mundana Tia Josephine, que
havia se encarregado da tarefa de criá-la depois que seus avós morreram.
Tia Jo era irmã do Conde de Denbury, que tinha dois anos a mais do que ele, embora
nunca o admitisse, e certamente não parecia, com o cuidado pródigo que tinha com o
cabelo e a cútis.
Vestia-se sempre de acordo com a moda, e ainda conseguia o que queria dizendo aos
muitos admiradores masculinos que tinha apenas trinta e três anos.
Depois do incidente, houve tal disputa entre tia Jo e tio Denbury que, às vezes, Carissa
ainda tinha pesadelos. Ela desejou não ter decidido espionar naquela ocasião em
particular.
Estremeceu enquanto se apressava para cruzar o mezanino para voltar ao camarote
antes que alguém notasse que ela estava demorando demais.Esperava que as primas
estivessem distraídas com as brincadeiras obscenas do Senhor Kenney. Com um pouco de
sorte, a Senhora Trent ainda estaria dormitando.
Lorde Beauchamp não estava à vista no andar de baixo. Carissa recolheu a saia para
evitar pisar no vestido devido à pressa e correu para a escadaria até o terceiro andar do
teatro. Ao mesmo tempo, a luta da família um ano e meio atrás lhe veio à mente, agora
que havia se lembrado.
Não tinha sentido se queixar do destino pela forma com o qual havia sido tratada, seus
pais morreram e depois os avós. A perda foi um acontecimento familiar àquela altura. Ela
havia aprendido a tratar, em todos os momentos, de antecipar o próximo golpe antes que
o mesmo chegasse.
Uma das melhores maneiras que havia encontrado para fazer isso era nunca se arriscar
se aproximando demais de ninguém, uma lição em dose dupla muito bem aprendida
depois da forma como havia sido traída.
Sentiu dor no estômago ao se lembrar de como havia decepcionado a família e de
como havia humilhado a si mesma. Ainda podia ouvir tio Denbury trovejando para a irmã.
— Como é que tupudestes permitir que isso acontecesse, Josephine?! Tu és a
responsávelpor ela! Se não fosse protegê-la, deverias ter deixado que Caroline e eu
cuidássemos dela anos atrás! Mas não, tu tinhas que criar a filha de Ben como se fosse
tua própria. Nossa pequena sobrinha..., e eu cedi porque tu não tinhas filhos. Mas não era
para ela ser tratada como adulta, Jo! Ela não passava de uma criança!
— Oh, Edward! Relaxe, tu estás parecendo velho. Todas as mocinhas já beijaram nessa
idade. Faz parte do crescimento.
— Mais do que beijar, foi o que aconteceu, Jo, e tu sabes muito bem disso! Aquele
bastardo conseguiu o pagamento que queria para comprar seu silêncio, e agora está em
algum lugar por aí e ninguém consegue encontrá-lo. Fugiu para a França, ou para a Itália,
pelo que me disseram.
— E o que me importa isso – Tia Jo havia disparado de novo, suavemente. – Eu jamais
deixaria que minha sobrinha se casasse com um idiota inútil daquele, mesmo que
conseguíssemos encontrá-lo. Oh, sim, ele é bem bonito, e até que não nasceu em berço
tão ruim, mas é um tolo. Fantasia consigo mesmo que será o próximo Lorde Byron! Foi por
isso que ela se apaixonou por ele, e por aqueles cachos despenteados e aquela poesia
idiota, eu te garanto isso!
— E ainda me pergunto quantas outras senhoritas esse Benton enganou – havia
grunhido o conde. – Se alguma vez ele colocasse a mão sobre uma das minhas filhas...,
mas eu nunca deixaria que isso acontecesse. Esse desastre aconteceu debaixo do teu
nariz, minha irmã. Tu falhastes com o nosso irmão, deixando-a sem controle. De fato, ela
seguiu o teu exemplo à risca! Essa mocinha é ingênua demais para perceber que uma
viúva de quarenta e três anos pode conseguir o que quiser, mas que isso é proibido para
uma debutante. Muito mal feito, Jo! Todos vós contribuísteis para a ruína dela.
— Eu não fiz nada disso! Podemos manter isso em segredo, e é golpe baixo se referir
assim à minha idade, isso é uma merda. Achas mesmo que eu queria isso para ela? Eu
adoro Carissa, eu a amo como se fosse minha!
— Tua o quê? Teu animalzinho de estimação? Teu gatinho fofo? Ela não é um
animalzinho de estimação, Jo! Não é um brinquedo. Venho dizendo isso para ti desde que
ela tinha seis anos! Ela não é um acessório feito para combinar com as tuas roupas, para
ser posta no colo e mimada quando tu te lembras de que ela existe, e depois te
esqueceres dela, quando estiveres ocupada demais com tua agenda social.
— Como é que te atreves a me criticar?! Eu fiz o melhor que pude para criá-la direito.
Eu sou a mãe dela! Bom, ela acabou sendo melhor do que aquele par de harpias mimadas
que tu tens!
— Agora tu insultas as minhas filhas?! – Havia berrado o conde. – Agora chega,
Josephine! Isso eu não vou tolerar. Tuas loucuras já causaram bastante dano à vida da
nossa sobrinha! Vou levar Carissa para Londres, essa é a minha decisão! Sou o tutor legal
dela, por isso talvez seja eu, em última instância, o único culpado. Ela só ficou contigo com
minha permissão, a quel eu revogo neste instante!
Os dois irmãos não mais se falaram desde então.
Carissa odiava ter sito a responsável por uma monstruosa disputa familiar. Tia Jo havia
partido em uma magnífica e longa viagem, enquanto Lorde Denbury havia levado Carissa
para a cidade.
Depois de uma severa reprimenda que havia posto nela o temor a Deus, ele a instalara
na própria casa como o mais novo membro da família, debaixo da proteção dele, caso
algum outro sedutor pretendesse desenhar um alvo no peito dela.
Mas o tio havia guardado o segredo dela, e quando subiu as escadas apressadamente,
Carissa entendeu muito bem que se cometesse só mais um erro, que saísse fora do
caminho reto e estreito que lhe fora traçado, não seria tolerado.Ela seria jogada na rua, ou
talvez, enviada para um convento de freiras. Atualmente, seu tio a olhava com
desconfiança e desaprovação quando em particular. O único ponto a seu favor era que ele
não havia contado nada para ninguém, nem mesmo para a própria esposa, o que havia
acontecido em Brighton. A verdade era que Lady Denbury jamais teria permitido que ela
ficasse na casa se soubesse. Não ia querer que Carissa contaminasse as filhas dela.
Somente três pessoas neste mundo, além de ela mesma, conheciam o segredo da
vergonha pela qual passara, apenas tia Jo, o tio e o canalha mentiroso que a havia
enganado. Rezava todas as noites para que Roger Benton não tivesse contado a ninguém
como havia conseguido se deitar com ela.
Esse havia sido o acordo: uma soma em ouro a troco desse segredo.
Uma bela poupança para que ele pudesse continuar com as atividades artísticas.
Ninguém queria pagar por aquelas rimas estúpidas, no fim das contas.
E acabou que ele não era nenhum Byron.
Não era de estranhar que fosse Lorde Beauchamp que houvesse visto através da
máscara de pureza que ela usava, admitiu para si mesma. Ao chegar à parte superior da
escadaria, prometeu a si mesma, pela oitava ou nona vez em dois dias, que não ia passar
perto dele outra vez. E a promessa se manteve até chegar à porta do camarote de
Denbury, onde fez uma incômoda pausa.
Ele ia morrer.
Se entrasse por aquela porta, voltasse ao seu assento e fingisse que nada havia
acontecido, ela bem poderia terminar com sangue nas mãos. O sangue dele.
Mais uma perda. E essa seria por culpa dela, porque, devido à ira e ao orgulho, havia
optado por não dizer nada quando podia ter falado e tê-lo advertido sobre o perigo que
corria.
Inferno, deveria ter lhe dito claramente o que havia visto, não porque merecesseou
não, mas porque era o certo.
Fechou os olhos.
Oh, Senhor, o que foi que eu fiz?! Não tenho consciência?
Olhou tristemente para a escadaria, depois mordeu o lábio, indecisa.
Mas o que há para decidir?! A vida dele pode estar em jogo! Tu tens que ir atrás dele!
Avisá-lo, como deveria ter feito antes. Precisas pelo menos tentar.
Só esperava que não fosse tarde demais...
Capítulo 3
carruagem. O barulho dos cascos e das rodas sobre as pedras desiguais do calçamento
fazia com que sua cabeça doesse ainda mais. De repente, o terror se apoderou das suas
entranhas, pois além de tudo, não sabia onde estava nem o que havia acontecido. A parte
de trás da cabeça parecia que estava em chamas.
Lutando para se orientar, começou a entrar em pânico de novo ao encontrar sua
mente, geralmente ocupada, com um grande espaço em branco.
Quando começou a se levantar, braços fortes a acalmaram.
— Shhh, deita de novo – disse ele num sussurro.
— Beauchamp? – Foi então que se deu conta de que ele a estava segurando, mantendo
algum tipo de tecido apertado contra um dos lados da sua cabeça.
— Estou contigo, meu bem. Apenas deita e relaxa. Vai ficar tudo bem – garantiu ele,
mas ela ouviu tensão na voz dele.
Os braços de Beau eram maravilhosamente bons em volta dela, muito protetores, mas,
enquanto se perguntava por que iam a toda velocidade cruzando ruas escuras numa
carruagem, de repente se lembrou.
Aquela explosão no instante no qual havia aberto a porta do teatro para adverti-lo
sobre o perigo...
E atiraram nela! Na cabeça.
Só que a bala era para ele.
— Eu vou morrer? – murmurou.
— Não, meu bem, é claro que não – garantiu ele. – Tu vais ficar bem. – No entanto, seu
tom de voz, sufocado, não foi muito convincente. Pensou que estava agindo com muita
brusquidão para que soasse tranquila. – Eu vou cuidar de ti, eu prometo. Agora só
precisas relaxar. Mantém a calma. Fica quietinha e deixa que eu mantenho a pressão no
ferimento, caso contrário a coisa pode piorar.
— Estou assustada – gemeu ela.
— Eu sei, meu anjo. Mas tu precisas ser valente um pouco mais. Estamos quase lá.
— Lá onde? – Lutando para manter os olhos abertos, olhou através da janelinha da
carruagem e viu a silhueta negra das torres distorcidas à luz da lua, envoltas pela névoa.
Ficou sem fôlego e tentou se levantar.
O Clube Inferno!
— Não! Eu não posso entrar lá! – Gritou freneticamente, ou pelo menos foi o que
pensou. Na verdade, sua voz saiu como um murmúrio.
— Calma, está tudo bem. Tu vais estar a salvo.
— Nenhuma moça decente entra lá. Vou ficar arruinada...
— Shhh... – sussurrou ele de novo, tranquilizando-a com um aperto na mão. – Meu
bem, tu vais ter que confiar em mim – sussurrou. – Confia em mim.
— Ooohh! – Seu pulso acelerou e a luta fez com que o sangue fluísse mais rápido pelo
ferimento, como ele havia lhe avisado.
Ela sentiu o sangue escorrendo quente junto ao ouvido e pela lateral do pescoço, e
essa sensação era tão repugnante, tão horrível que, muito a seu pesar, como uma idiota,
desmaiou de novo.
Beau a aconchegou nosbraços, tentando evitar que ela balançasse muito, quando se
aproximaram da sede da ordem. O coração dele batia forte, tomado de horror.
Havia visto muitos homens levarem tiro na vida. Ele mesmo havia sido o responsável
por muitos dos quais havia se dado ao trabalho de contar. Mas isto..., isto era
completamente diferente, pensou enquanto olhava o sangue que saía da cabeça de
Carissa Portland.
Na verdade, estava em um estado inaudito de puro terror, logo ele, um agente
rigorosamente treinado para não ter medo de nada. Mais do que isso, estava furioso.
Ia matar Nick por causa disso!
E se Carissa sobrevivesse ao tiro, era bem capaz de matá-la também, por ter ido atrás
dele para bisbilhotar e ainda por cima levar um tiro!
Quem sabe agora ela aprendesse a lição!
Estás vendo, meu pai? Estás vendo por que não me caso? – pensou, irritado. – Encontro
uma maldita moça de quem eu realmente gosto e ela acaba levando um tiro. É por isso
que só lhes ofereço cama e mantenho distância delas.
Será que era tão difícil assim de entender?
Não deu atenção alguma ao próprio ferimento no braço. Já havia tido piores. Era ela
que importava, e, no escuro, com todo aquele cabelo longo e grosso, não dava para saber
ainda a extensão do ferimento. Mas, com um pouco de sorte... Argh!
A cabeça dela estava sangrando muito, mas isso era bom, pelo menos era o que os
chefes diziam, conforme a própria experiência, tentou convencer a si mesmo. Sangue
demais não era nada bom, mas quando se tratava de lesões na cabeça, as pancadas das
quais não saía sangue algum, às vezes eram os piores. A pessoa adormecia e não acordava
de novo.
Se o céu tivesse misericórdia de um pecador como ele nessa noite, o ferimento poderia
ser apenas um corte, igual ao que ele tinha no braço.
Escolheu acreditar por enquanto que a bala havia pegado de raspão nela. Até que
pudesse examiná-la sob a luz, passar os dedos através daquelas luxuosas madeixas
castanhas, olhar o couro cabeludo e limpar o ferimento, determinando a gravidade do
mesmo, aferrava-se à esperança de que talvez não fosse tão ruim quanto parecia por
causa de todo aquele sangue. Ou poderia ser até pior.
Porém, uma coisa era certa: nesse momento podia entender com clareza o porquê Nick
queria deixar a Ordem.
No momento, com a carruagem sacolejando através das escuras e enevoadas ruas de
Londres, com o cocheiro chicoteando os cavalos para galoparem o mais rápido que
pudessem, sentia-se tentado a ir para o campo e viver uma vida tão aborrecida quanto a
do seu pai.
Sim, esquecer-se daquele jogo de espiões e todas aquelas emoções ilícitas.
Seu pai havia se transformado em um velho chato, fazendeiro que fumava cachimbo,
sem mais preocupações aflitivas do que decidir qual raça de ovelhas comprar para a
próxima primavera.
— Aguente firme. Luta, por mim, mocinha – murmurou para ela, pois já estavam se
aproximando do Clube Inferno. – Há uma lutadora dos diabos dentro de ti. Eu sei. Eu já vi.
Vamos, aguenta. Fica comigo, amor...
Graças a Deus, a carruagem finalmente parou diante de Dante House. Ir para ali era um
ato reflexo que tinha todas as vezes que tinha problemas, e pelo próprio treinamento em
tratamento médico de sobrevivência no campo de batalha, para que pudesse cuidar de si
mesmo e da própria equipe durante as missões, sabia que era o lugar onde teria tudo o
que precisasse para cuidar dela adequadamente.
Se o ferimento na cabeça dela estivesse além da sua capacidade de lidar com ele, a
Ordem sempre tinha dois ou três competentes médicos-cirurgiões dispostos a ajudar os
agentes se preciso fosse.
O cocheiro abriu rapidamente a porta da carruagem. Beau e Carissa estavam suando
frio, a testa de ambos perolada de gotas de suor, e as longamente esquecidas orações
correram céleres pela mente deles.
Ela ia ficar bem. Tinha que ficar. Não conseguia suportar a ideia de que qualquer dano
sobreviesse a ela, principalmente quando era culpa dele.
Ela não podia morrer, especialmente quando as últimas palavra que havia lhe dito
foram tão grosseiras e impróprias, proposições de um profundo canalha, quando a
verdade era que, no fundo, ela tinha mais sentido para ele do que a maioria das pessoas
em Londres.
Tirou-a da carruagem, a qual agora também tinha manchas de sangue, carregou-a com
cuidado até a sede, a casa do seu treinador.
— O portão – ordenou.
O cocheiro correu à frente, abriu de par em par o portão preto de ferro forjado e
correu de novo até a porta principal de Dante House.
Beau avançou pela trilha carregando o corpo inerte de Carissa nos braços.
— Cuidado com os cães – disse ao cocheiro. – Espera aqui. Pode ser que eu precise que
tu vás buscar o cirurgião, caso isto esteja além da minha habilidade. Do contrário, vou
precisar de uma mãozinha para ajudar.
— Sim, meu senhor. – Respondeu o cocheiro, abrindo a porta principal, e quando Beau
entrou, a matilha dos ferozes cães guardiões correram em volta dele para cumprimentá-
lo.
Fechou a porta com um pontapé e gritou em alemão com os cães, para que se
calassem. As feras negras se sentaram e se calaram.
— Gray! – berrou Beau.
O velho mordomo veio correndo enquanto Beau levava a insensata dama da
informação até o salão mais próximo, deitando-a cuidadosamente no sofá.
Então se deu conta de que estava tremendo.
Deus, o que é que havia de errado com ele? Havia tido ferimentos piores do que esse
através dos anos e nunca havia reagido tão mal!
Mas esse era diferente. Ela era inocente. Uma civil. Não tinha ligação alguma com o
caso. Ela não passava de uma mocinha.
O mordomo se apressou.
— Senhor?
—A senhorita está ferida.
— E o senhor a trouxe para cá? – Gritou.
Beau o olhou, mas só então se deu conta de que, inexplicavelmente, talvez, havia se
assustado um pouco.
Bom, agora era tarde demais para se sentar e tentar pensar em outro plano.
— Mas que inferno, homem, ela precisa de ajuda! Traz água quente e ataduras. E traz
lamparinas também, e velas. Precisamos de mais luz aqui. Vai buscar a maleta! Vai, anda!
E cuida dos cachorros, – acrescentou – o cheiro de sangue pode deixá-los assanhados.
— Sim, senhor, mas, senhor, o seu braço!
— Não importa! Apressa-te! – Ordenou, tirando o elegante casaco, agora arruinado.
Gray saiu para fazer o que Beauchamp havia lhe ordenado e fechando obedientemente
a porta atrás de si para evitar que os ferozes cães de guarda da Casa de Dante entrassem
para incomodá-los. Beau sentiu pena dos pobres animais. Aquelas pobres criaturas mal
sabiam o que fazer desde que o mestre, Virgil, havia sido assassinado. Ele gostaria que o
velho escocês estivesse ali naquela ocasião.
Ao pensar no brusco agente escocês, que havia tratado de ferimentos à bala e de
cabeças quebradas mais do que podia contar, Beau se encolheu. Achava que não
conseguiria aguentar outra perda de alguém com quem se importava, em meio a toda
aquela situação. Estava obcecado, e isso já era suficiente.
Como diabo ia explicar tudo para Rotherstone, de qualquer forma?
Não, eu não seduzi a moça, é claro, mas receio que a culpa seja minha por matarem-
na. Lamento, velho, mas tua esposa vai ter que encontrar uma nova melhor amiga.
Engoliu em seco. Não. Ela tinha que estar bem. Abaixou-se para alisar a testa dela
levemente. Ela estava pálida. E ele apertou a mandíbula.
— Espera, meu anjo. Eu volto já. Tu vais ficar bem, eu te garanto. E depois, nunca mais
vou te deixar longe da minha vista outra vez, querida pequena dor no traseiro.
Sem saber de onde havia vindo tal pensamento possessivo, afastou-se dela,
aproximou-se da estante, onde pegou o que parecia um simples objeto para segurar livros
no formato de uma pequena estátua de bronze, e a girou.
Ouviu-se o clique de um mecanismo, e então, uma porta disfarçada de uma das
estantes embutidas apareceu, levemente afastada da parede. Beau foi até lá e a abriu.
Fazendo uma pausa, olhou para Carissa por cima do ombro mais uma vez. Ela ainda
estava inconsciente. Então esgueirou-se para dentro da passagem secreta e correu para
pegar a maleta.
Carissa teve um sonho muito estranho. Foi encantador e aterrador ao mesmo tempo,
uma mistura febril de sangue e sensualidade. Sonhou que Lorde Beauchamp estava
afastando seu cabelo com delicadeza, afrouxando o vestido e o espartilho para ela respirar
melhor.
As mãos dele era quentes e firmes, e quando abriu os olhos e encontrou os dele, a
mesma veemência ardia nela.
— Está tudo bem – sussurrou ele, enquanto ela ofegava e se aferrava a ele com medo.
– Confia em mim – sussurrou de novo, com a mão na lateral do seu pescoço, apoiada na
nuca e calando seus protestos.
Fechou os olhos, dando um tempo para si mesma. Mas, por que ele ficava sempre
dizendo a mesma coisa? Ou seja, para confiar nele... Era rematada tolice dizer isso, vindo
de um libertino...
Ela sentiu que ele pressionava panos quentes e úmidos na sua cabeça, depois ouviu-o
expremer os trapos ensanguentados em um balde com água.
— Isso mesmo. Boa menina – sussurrou ele.
Quando olhou de novo, gemeu ao ver o próprio sangue tingindo a água de vermelho.
— Não quero morrer, Beau.
—Tu não vais morrer – disse ele com calma, soando bem mais seguro agora do que
quando estavam na carruagem. – Fico feliz de poder te dizer que a bala pegou de raspão
na tua cabeça. Tu só vais precisar de alguns pontos, aí vai ficar melhor. Tu já levastes
pontos de sutura antes, meu anjo?
— Não... – Ela se encolheu com a ideia da agulha. – Isso dói?
— É só uma picada. Nada comparado a levar um tiro, o qual já levei como soldado.
Ela se encolheu de novo. Ele acariciou-lhe a face, sustentando seu olhar com confiança
incondicional nos olhos azuis.
— Não te preocupes. Vou suturar isso rapidinho.
— Espera, o que vais fazer? Onde está o médico?
— Eu mesmo posso fazer isso.
— Tens certeza?
— Já dei pontos em muita gente, até em mim mesmo. Não é nada demais. Apenas
fecha os olhos e me deixa trabalhar, certo? Quanto mais rápido fecharmos esse corte,
melhor será. A sutura vai deter o sangramento. Agora, relaxa. E confia em mim.
— Eu gostaria que parasses de falar isso. – Disse ela em voz baixa, meio infeliz e
hesitante, gemendo, mas cooperou quando ele inclinou sua cabeça para começar a
suturar.
Então, à luz das lamparinas e das velas espalhadas por toda parte, deu-se conta de que
uma longa mecha do próprio cabela estava ao lado de uma tesoura, sobre a mesa.
—Tu cortastes o meu cabelo?! – reclamou ela.
— Só um pouco, da parte mais curta! Ora, eu precisei cortar! Estava atrapalhando. Mas
eu prometo que ninguém sequer vai notar. Se quiseres, levar-te-ei até a loja da melhor
modista de Londres e vou comprar todos os chapéus que tu quiseres. Mas agora,
podemos acabar logo com isto?
Carissa fechou os olhos de novo.
— Odeio-te!
— Eu sei, amor. – Ela pôde ouvir o sorriso na voz dele, sentir o calor perigoso do
encanto de Beau. – Agora, fica quietinha, ou vou te beijar de novo. Igual àquele dia, em
White Hall.
Ela sorriu, esquecendo-se de franzir o cenho, depois olhou-o com um olho só e ele
esboçou um meio sorriso malicioso. Mas quando ela o viu colocar a agulha sobre a chama
da vela para esterilizá-la, sentiu náuseas de novo.
— Argh! Agulhas e balas, tudo numa noite só!
Ele segurou sua cabeça. Ela fechou os olhos, mas de alguma forma ele a impediu de se
afastar, dando-se conta de que só estava se torturando com a desculpa de ajudá-la.
Então se pôs a trabalhar, juntando e segurando as bordas do corte na pele perfurando
os dois lados com a agulhar.
— Eu decidi – comentou ele em tom tranquilo enquanto suturava – que quando tudo
isto terminar... Vou procurar um marido para ti.
—É mesmo? – Murmurou Carissa, consciente de que ele estava falando com ela para
distrai-la do trabalho que estava fazendo no ferimento.
— Uhum... Tu precisas de alguém que cuide de ti, atrever-me-ia a dizer. Alguém bonito,
seguro e capaz de te manter na rédea curta.
— Eu te dou a rédea – murmurou ela.
— Tem seu lado bom, um companheiro sólido, sensível, que te impeça de seguir cada
impulso como uma lebre. Por que me seguistes? Só para me espionar? Nunca ouvistes
dizer que a curiosidade matou o gato?
— Não fui lá para te espionar – murmurou. – Fui lá para te salvar.
— Para me salvar? Mas de que diabo estás falando?!
— Eu o vi. Vi aquele homem. E não te avisei. Lamento tanto...
— Oh não, querida, não chora. Eu te perdoo.
— Foi por isso que fui até o teu camarote esta noite. Queria trocar informações, mas tu
não quisestes. Tu és teimoso demais! – disse ela. — Que tipo de Visconde serias, de
qualquer forma, se só tu soubesses dar pontos?
—Tu devias ver meus bordados...
— Isso lá é hora para anedotas, quando atiraram em mim?!
— Pois pela minha experiência, sim, este é o momento perfeito para uma anedota.
Ouve, tenho uma ótima para ti. Um sapo entrou em uma taverna e...
— Tem sangue sangue saindo da minha cabeça, caramba!
— Sim, mas não tanto quanto eu havia temido. Acredita, fico muito contente por isso.
Encantado mesmo. Tu não fazes ideia do quanto estou contente neste momento porque
isto tudo não foi bem pior.
— E o que seria pior?
— Pensei que ia encontrar a bala lojada nos teus vasos sanguíneos, mas fico feliz de
dizer que teu inteligente cérebro está fora de todo esse alvoroço. Foi só de raspão. Aliás,
para ser sincero, tivestes uma sorte incrível. Uma polegada mais abaixo e a bala poderia
ter tirado o lóbulo da orelha ou rasgado esse teu rostinho bonito. Ou algo bem pior, o qual
não quero nem pensar. E não te recomendo que pense nisso, tampouco.
Ela deu de ombros.
— Então, o que aconteceu com o sapo?
— Ah, sim. Acontece que o sapo saltou sobre um tamborete e daí para o balcão e
pediu uma bebida...
E continuou com a historieta, mas de forma tão íntima que ela agradeceu intimamente
pelo esforço dele para consolá-la. Carissa não conseguia prestar atenção na anedota,
porque ele estava costurando tranquilamente seu couro cabeludo de novo.
Fechou os olhos, decidida a aguentar firme. Em última instância, conseguiu se distrair
finalmente ao reviver a grata lembrança do beijo dele naquele dia.
— Espera, meu anjo. Só mais um. Quase terminamos já. Estás indo muito bem.
Pronto..., terminei.
— Quantos pontos?
— Sete, o número da sorte. Muita sorte, aliás, para que tu te dês conta. – Puxou a
agulha pela última vez e em seguida atou as pontas do fio, dando um nó. – Um bom
espetáculo, minha linda. Agora tu és oficialmente um soldado. E agora, se me deres
licença, creio que é a minha vez de desmaiar.
Beau tomou um longo gole da garrafa de brandy mais perto para se recompor depois
daquela terrível experiência, e em seguida ofereceu para ela.
— Vamos, toma um gole. Vai ajudar a acalmar a dor.
Ela franziu o cenho em sinal de desaprovação, o qual foi suave e leve, depois aceitou a
bebida cautelosamente e a levou aos lábios.
Beau a olhou com o coração inundado de alívio. Ela estava viva. E ficaria bem.
Finalmente, podia respirar.
Só que agora, com a adrenalina baixa, começou a sentir o braço latejando. E doía como
o inferno. Pegou a garrafa das mãos dela e tomou outro gole da ardente bebida.
O conhaque lhe esquentou até o ventre, mas não tanto quanto os olhos dela, com
aquela pele leitosa e o cabelo despenteado, o corpete do vestido de noite solto e o longo
cabelo solto, esparramado sobre os ombros nus.
Tudo nele ansiava por tomá-la.
Ele se negou a acreditar que não era assim tão depravado, depois de tudo o que
haviam passado. No entanto, curiosamente, sentia-se mais perto dela, como se a
confusão dessa noite os tivesse unido de forma meio estranha.
Cheio de vontade de protegê-la, um sentimento que nunca havia conhecido, o impulso
para reclamá-la para si grassou através dele.
Afastou o olhar, pegou um trapo limpo e derramou nele um pouco de conhaque.
— O último passo – murmurou, pressionando o corte suturado, para desinfetar.
Depois, inclinou-se e beijou-a longamente na testa, bem na linha do cabelo.
Ao fechar os olhos, fez uma oração de agradecimento por ela ter se salvado.
—Tu fostes muito valente.
— Bom, – disse ela com incerteza – eu tive a ajuda do sapo.
—Tu és um sapo – disse ele com carinho.
— Não, não sou, tu que és.
— Mas se me beijares, eu poderia me transformar em um príncipe.
— Nós dois sabemos que tués um príncipe.
— Acho que tem alguém aqui um tanto enjoado pela perda de sangue. – Ele deu um
passo atrás. – Quer ver os pontos? – E lhe ofereceu o espelho de mão que havia trazido
consigo, caso fosse necessário Gray segurá-lo para iluminar mais o corte para ele trabalhar
melhor.
Ela ficou olhando para o espelho com má vontade, pensando.
— O que foi isso, meu Deus? – murmurou ela, olhando-o. – Lorde Beauchamp, – disse
ela timidamente – Creio que tu salvastes a minha vida. – Então estremeceu e afastou o
olhar.
— Provavelmente.
— Agora vou colocar a atadura, depois tu mesma terás que fazer isso. – Ela se pôs de
pé. Mas depois se sentou obedientemente, observando-o enquanto ele enrolava uma
faixa branca limpa em volta da sua cabeça, a qual ficou parecendo a faixa de um chapéu. –
Apertado demais?
— Não, está bom, obrigada.
Enfiou a ponta da atadura por baixo da faixa, depois lhe ofereceu a garrafa de brandy.
Ela não discutiu, pegou-a e tomou mais um gole.
Beau se sentou de novo, pegou um trapo limpo e molhou-o em um recipiente com
água morna. Depois se inclinou sobre ela e, com cuidado, limpou o sangue seco da pele
dela, esfregando, limpando com ternura.
Ela não protestou.
Por fim, deixou escapar um suspiro, recostou-se no sofá de novo e fechou os olhos.
— Vou ficar arruinada agora, não é?
— Por que achas isso?
— Dante House. O malvado Clube Inferno. A ruína... Meu tio vai me expulsar de casa...
– refletiu em voz alta. – Não vou ter para onde ir..., jogada na rua...
— Ora, vamos, isso não vai acontecer. Teu tio pode ser um pouco severo, mas não me
parece que seja cruel. Além do mais, ninguém precisa saber que estivestes aqui, a menos,
claro, que um de nós o diga.
Ela o olhou com receio.
— Como assim?
— Bom, – enxaguou o trapo outra vez, então acariciou o ombro dela. – Tu és boa
mentirosa?
Ela desatou a rir, com cansaço, mas cinicamente.
Estava intrigada.
— O que significa isso? – perguntou ele.
— Oh, sou uma mentirosa muito boa quando preciso ser. Não te preocupes com isso. –
Ela tomou outro gole de brandy.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Está bem. Então, vamos refazer um pouco a história, e ninguém vai perceber.
— Achas mesmo que sempre podes conseguir o que queres?
— É claro que sim. – Ele analisou-a por um instante. – Em primeiro lugar, preciso saber,
por que não me avisastes que eu estava caindo em uma armadilha?
— Eu já te pedi desculpas por isso. Mas tu fostes muito grosseiro comigo. Tu sabes que
foi! Então pensei que finalmente ias aprender uma lição sobre flertar com todas aquelas
mulheres casadas. Mas então eu me senti culpada, então te segui.
Ele a olhou tristemente.
—Tu és uma pedra a ser lapidada – disse ele.
Ela se recostou contra as almofadas.
— Então, quem era? O marido ciumento, quero dizer.
— Oh, aquele não era um marido ciumento.
Ela pestanejou.
— Não? Então, quem era aquele que atirou em nós?
Ele bufou.
— Aquele..., era o meu melhor amigo. É melhor que tu me dês esse brandy.
Ela o olhou com assombro.
Beau encolheu os ombros e tomou mais um gole direto da garrafa, cujo volume ia
diminuindo rapidamente.
— O que foi que fizestes para ele? Por que ele tentou nos matar?
— Por que estás jogando a culpa em cima de mim? Acabastes de assumir que fiz algo
ruim para ele. Já te ocorreu pensar que sou um bom rapaz?
Não esperou resposta, mas ela estava pensando.
— Acredita em mim, se Nick quisesse nos matar, tu e eu já estaríamos mortos. Ele é
terrivelmente bom nesse tipo de coisa. Aliás, por falar nisso, se me deres licença, preciso
cuidar do meu braço.
— Teu braço? – Repetiu ela. Então ficou sem ar. – Por que não me dissestes que estavas
ferido também?!
— Hã..., porque estavas inconsciente?
Com olhar aflito, ele apertou a mão sobre a boca de Carissa.
Depois de todo aquele incômodo que havia lhe causado nessa noite, sentiu uma
cômica satisfação diante da contrição emocional que perpassou aqueles grandes olhos
verdes.
— Eu vou ficar bem – disse ele, tirando a mão lentamente dos lábios ela.
— Mas devias ter me dito algo! Não percebi que estavas ferido! – Olhando a carne
rasgada do braço dele, começou a ver tudo verde em volta. – Quer que eu te ajude? –
ofereceu-se ela, no entanto, tomando um gole.
Ele desatou a rir.
— Não, obrigado. Posso cuidar de mim mesmo.
O alívio foi nítido no rosto dela.
— Tens certeza?
— Sim, e Gray pode me ajudar se eu precisar. Gray é o mordomo. Chame-o se precisar
de algo.
— Ah, bom, então tu estás a salvo.
— Descansa um pouco, Carissa. Perdestes muito sangue. Decerto estáste sentindo
como o próprio diabo. Permita-me cuidar deste ferimento, – disse, inclinando a cabeça e
olhou para o próprio braço – depois, levar-te-ei para casa.
— Está bem. – E ela afundou de novo entre as almofadas.
Ele amenizou um pouco a bem iluminada sala para que ela pudesse descansar. Apagou
algumas velas e deixou apenas a lamparina a óleo, depois, pegou alguns sumprimentos
médicos e se virou para sair da sala.
Teria que tirar a camisa a fim de estender o braço, e ela era uma jovem cuja
sensibilidade já havia sofrido bastante por uma noite. Não precisava de um homem semi
nu e ensanguentado diante dela, tampouco.
— Lorde Beauchamp? – Murmurou, enquanto ele se dirigia à porta.
O som do próprio nome na língua dela esquentou-o mais do que o brandy.
Ele se virou.
— Sim?
— Obrigada por salvares a minha vida – disse ela com seriedade.
Ele olhou para baixo.
— Em primeiro lugar, foi culpa minha terem atirado em ti.
— Não, não foi. A culpa foi minha. Se eu tivesse te avisado imediatamente ao ver que
aquele homem havia trocado os recados, nada disso teria acontecido. Mas eu fui
orgulhosa demais, obstinada demais. Espero sinceramente que me perdoes.
— Fico feliz porque a bala só pegou em ti de raspão – respondeu ele, olhando-a nos
olhos.
Ela esboçou um sorriso hesitante, ao qual ele devolveu. O olhar que trocaram o
esquentou até a medula. Um tanto desconcertado, assentiu em despedida e mais uma vez
se dispôs a sair.
— Hã... Lorde Beauchamp? Mais uma coisinha...
— Sim, Senhorita Portland? – E a olhou por cima do ombro.
—Tu tinhas razão – admitiu. – Eu estava com um tantinho assim de ciúme.
— Ahá! – Disse ele com um sorriso de cumplicidade, que se estendeu de orelha a
orelha. Com um sorriso malicioso, despediu-se dela. – Eu sabia.
Capítulo 5
D epois que ele se foi, Carissa fechou os olhos e tentou descansar. Mas agora que
o pior já havia passado e sabia que ia viver, sua curiosidade voltou como uma vingança.
Dante House!
Não conseguia areditar que estivesse dentro do lendário clube de cavalheiros, onde os
homens se comportavam como qualquer coisa, menos como cavalheiros. Nervosa demais
depois de ter visto a morte tão de perto, não conseguiu relaxar, então se sentou
lentamente e olhou em torno.
Ficar deitada como uma violeta murcha não era o seu estilo, afinal de conta.
Já era bastante ruim ter desmaiado como uma tola. Não, o Senhor Beauchamp nunca
ia deixá-la viver com isso.
Em todo caso, ela não havia ficado tão inconsciente quanto Beau pensava quando
voltou com a maleta de primeiros socorros, entrando por aquela estranha porta oculta
atrás da estante. Tinha uma ideia para conseguir dar uma olhada mais de perto nisso.
Olhando em torno para se certificar de que ninguém ia aparecer, Carissa respirou
profundamente para reunir forças, em seguida se levantou.
Ainda meio cambaleante, mas sentindo-se bem melhor, apesar de tudo, tranquilizou-
se. Talvez o conhaque tivesse lhe subido à cabeça, mas persistia a sensação daquelas
mãos sobre ela. A forma com a qual ele havia lidado com tanta perícia com a sua roupa e
com o cabelo dava-lhe uma sensação muito incômoda. Provavelmente fosse a influência
perversa desse lugar, o qual alimentava os maus pensamentos de ceder à tentação.
Bom, não vou ficar aqui por muito tempo, disse para si mesma, e, sinceramente,
quantas senhoritas decentes tinham a chance de conhecer em primeira mão o que
realmente acontecia naquele antro de iniquidade escandalosa? Porque, enquanto dama
da informação, era praticamente seu dever dar uma olhada em tudo para que pudesse
contar para Daphne e Kate sobre o clube que os maridos delas frequentavam.
E então, Carissa se dispôs a bisbilhotar.
Bom, a decoração sem dúvida era chamativa, anotou mentalmente. Móveis em veludo
e couro, nas cores vermelho e preto. Andando nas pontas dos pés, tinha perguntas em
abundância. Por que tinha aquelas portas secretas e aqueles ferozes cães de guarda? Por
que Lorde Beauchamp sabia o que fazer em uma emergência médica?E por que, dentre
todos os maridos ciumentos nos quais ele havia posto chifre, era logo o melhor amigo
dele que queria matá-lo?
Eram muitos mistérios...
Enquanto se dirigia ao outro lado da sala até a estante que abria como uma porta, viu-
se no espelho e ficou horrorizada com o que viu.
O sangue havia secado na lateral do vestido e fazia com que ela parecesse a louca de
alguma história gótica. Mas estava ainda mais surpresa pela sua aparência imprópria.
O corpete estava solto, caindo dos ombros, o espartilho havia sido desamarrado, as
mãos estavam sem luvas e o cabelo caía livremente até a cintura. Céus, apenas sua criada
de quarto e a família a viram assim, e isso em raras ocasiões!
Por Deus, aquele homem a deixara semi nua!
Talvez isso fosse algo corriqueiro para ele, porque era liberal ao tratar uma dama, mas
ficou escandalizada mesmo assim. É claro, a obra principal sobre ela haviam sido os
pontos que havia suturado na cabeça dela, e, sem eles, supunha que ainda estaria
perdendo sangue.
Deu um passo para o espelho e ficou olhando para a atadura em volta da cabeça,
morbidamente assombrada.
Por que estou parecendo um soldado das tropas de Welly, marchando para o combate
em Boney House?
Diante do espelho, meneou a cabeça olhando para o próprio reflexo. E agora, que
diabos ia dizer para o tio?!
Certamente a Senhorita Trent e as primas deviam estar fora de si no momento,
perguntando-se o que havia acontecido com ela.
Ou talvez não. Olhou com incerteza para o relógio na parede.
Que horas eram, afinal de contas? Provavelmente quase meia noite.
A peça no teatro terminaria logo.
A cabeça começou a latejar com força enquanto se indagava como explicaria tudo
aquilo à família. Sentou-se na cadeira mais próxima, chamativa como as demais, e fechou
os olhos até que o enjoo passou.
Não, não podia pensar nisso agora.
Dali a pouco ela encontraria uma explicação inteligente para explicar sua ausência e o
aspecto chocante que tinha. Por enquanto, tinha bem pouco tempo para investigar o
mistério daquela porta secreta antes que ele voltasse.
O cavalheiro da agulha.
Então riu. A perda de sangue e o conhaque a deixaram tonta.
Arrumou apressadamente o espartilho, puxou o vestido e ajeitou-o o melhor que pôde
nas costas, pois não tinha a ajuda da criada, então se aproximou da estante e analisou-a,
batendo no lábio com o dedo enquanto procurava descobrir como funcionava.
Experimentou puxar alguns livros e bibelôs da estante, mas nada aconteceu, até que
pegou a estatueta, aquele discreto e pequeno busto de bronze de algum rei do passado.
A ideia surgiu quanto tentou tirá-lo do lugar e ele não se mexeu. Estava preso, e isso
não fazia sentido algum.
Mas logo descobriu que podia girá-lo, então ouviu o clique do mecanismo e a estante
se mexeu. Prendeu a respiração e segurou a beirada, puxando a porta e abrindo-a
lentamente, fascinada.
Era pesada, mas, mesmo camuflada, era uma estante cheia de livros de verdade, e
abria como uma porta comum.
Carissa assomou a cabeça e viu que estava tudo escuro lá dentro, e o coração
retumbando no peito. Um corredor escuro de menos de um metro de largura se abriu
naquele negrume em ambas as direções.
Ooohhh! Mal posso esperar para contar para Daphne sobre isto!
Correu de volta para pegar a lamparina a óleo, aumentando a iluminação ao máximo.
Depois a levantou bem no alto e se inclinou para dar uma olhada.
Uma passagem secreta dava para duas direções. Olhou para os dois lados, sentindo um
calafrio de emoção formigando suas extremidades. Onde será que vai dar isto?
Olhou por cima do ombro para se certificar de que a porta da sala continuava fechada.
Nem sinal de Beauchamp ainda.
Decerto ele está dando pontos em si mesmo, pobre homem.
Então fez uma pausa e mordeu o lábio, sentindo um tantinho de culpa porque ninguém
estava ajudando Beau da mesma forma com a qual ele a ajudara.
Oh, bom, concluiu rapidamente, dando de ombros mentalmente. Ele parecia
sumamente autossuficiente, não do tipo que iria querer uma mulher se lamentando perto
dele.
E o que era mais importante, ele estaria de volta a qualquer momento. Se quisesse
continuar bisbilhotando, é claro que, provavelmente, tivesse somente essa chance.
Respirou profundamente. Só uma olhadinha...
Sempre com a máxima cautela, passou pela porta da misteriosa biblioteca, deixando-a
aberta para evitar qualquer contratempo.
Infelizmente, ela não sabia que o funcionamento do mecanismo era ativado pelo peso
e, assim que pisou na primeira tábua depois do umbral, a porta-estante se fechou e a
trancou ali dentro.
Ofegante, ela se virou e percebeu que estava sepultada dentro da parede! Engolindo
em seco, levantou a lamparina, tratando de encontrar algum dispositivo ou o que fosse
para abrir aquela coisa de novo.
Então, viu um simples cabo, ou algo assim, em um nicho. Mas, quando o empurrou, a
estante não se mexeu.
— Ora, vamos lá, vamos lá! – Sussurrou, tentando abrir, mas nada aconteceu.
Levantou de novo a lamparina, esquadrinhando tudo em torno da porta e percebeu que,
no nível dos olhos, havia uma placa de bronze um tanto estranha, na parede.
Tinha uma linha central cercada de números, parecido com o mostrador de um relógio.
Ela arregalou os olhos e sentiu o coração encolher ao se dar conta do que era. Uma
fechadura de combinação, como um cofre. Para sair, seria preciso saber o código.
— Oh, não! Não, não, não! – sussurrou ela, passando os dedos no centro da esfera,
mas parou e tirou a mão.
De repente podia acionar algum mecanismo estranho com um movimento que não
fosse o correto.
Acalme-se, ordenou a si mesma, com a boca seca.
Essa passagem obviamente levava a algum lugar. Ela só teria que seguir em frente e
encontrar outra saída. Isso. Então poderia voltar à sala, retomar a pose de violetinha
murcha estendida no sofá e ele nunca ficaria sabendo.
Muito bem, pensou, assentindo mentalmente. Não sabia qual caminho tomar, já que a
maldita passagem se estendia tanto à direita quanto à esquerda. Dando de ombros,
escolheu aleatoriamente o lado esquerdo, armou-se de coragem e se foi, erguendo a
lamparina no alto. O brilho trêmulo emitia uma misteriosa luz à curta distância no estreito
espaço. Carissa se consolou ao se lembrar de que, se odiava ver sangue, pelo menos não
era claustrofóbica.
A cada passo à frente se sentia mais intrigada do que assustada.
O cheiro ali, dentro das paredes, era de mofo e umidade pelo tempo. Depois de ter
visto Dante House do lado de fora nas muitas vezes que havia passado pela Strand, ela
sabia que era uma fila de mansões antigas da cidade situadas ao longo do Tâmisa, uma
relíquia da época Tudor.
Agora, dentro daquelas paredes, podia sentir o peso da idade do prédio, e só conseguia
pensar em todos os transtornos de Londres dos quais aquela casa havia sido testemunha
durante séculos. Gemeu, como se a casa estivesse enfeitiçada. Ali estava cheio de teias de
aranha.
A passagem secreta tinha curvas demais, como um labirinto, fazendo-a subir e descer
degraus desiguais, mostrando caminhos ramificados aqui e ali, que a deixavam na dúvida
sobre qual deles tomar.
Tudo aquilo era um delicioso mistério, como o próprio Beau, mas sabia que não tinha
muito tempo para explorar e ainda não havia encontrado uma saída. O labirinto, negro
como tinta, parecia distorcer a noção do tempo e a sensação de espaço também, então
era difícil calcular onde diabos estava em relação à casa, e muito menos quanto tempo já
havia se passado.
Dez minutos, talvez? Ao mesmo tempo, ela caminhava depressa, tentando não gastar
as forças demais, principalmente depois da terrível experiência pela qual passara.
Quando chegou a outro escuro cruzamento, ficou aflita, sem saber se decidia se ia para
a direita, para a esquerda, ou se descia as escadas até o espaço vazio que tinha à frente.
Se não estivesse com a lamparina, pensou, teria caído naquele buraco e quebrado o
pescoço.
Segurou a lanterna à frente, tentando descobrir o que podia haver além da escuridão,
porém, não conseguiu. Mordeu o lábio inferior e decidiu que só havia uma maneira de
saber.
Dispôs-se a descer a escada com cuidado por causa do vestido longo, então, pendurou
a lamparina no pulso e pisou no primeiro degrau. Em seguida começou a desceu, rindo
por dentro ao pensar na reação de algum membro do clube se passasse ali agora e a visse.
Bem poderia confundi-la com o fantasma macabro de alguma senhora que assombrava o
velho prédio.
Ao chegar à parte inferior da escada, pisou em outro degrau, mas então pôde sentir
uma corrente de ar muito tênue roçar suas faces. Tirou-a do pulso antes que a chama se
apagasse e a ergueu bem alto.
— Nem pensar. – suspirou. Mas nem a ameaça de perder a luz a impediu de invadir as
trevas, e sorriu para si mesma.
O que será que diria Beau a respeitodo que ela estava fazendo?
Mais adiante, o brilho da lamparina revelou uma abertura.
— Mas o que é isso? – Murmurou em voz baixa.
Um pequeno cômodo surgiu diante dela, e então franziu o cenho ao olhar para a
principal característica do local: um grande buraco no centro do piso. Devia ter uns três
metros de diâmetro e ocupava a maior parte do cômodo.
Mas por que diabos alguém ia querer um enorme buraco no chão, e logo dentro de um
cômodo?!
Desconcertada, levantou o olhar e viu uma resistente corda pendurada no teto, com
grossos nós a intervalos regulares. A corda cheia de nós descia bem no centro do buraco,
a guisa de escada, pensou, mas estava fora do seu alcance, a não ser que ela viesse
correndo e desse um salto.
Mas também, é claro, se não conseguisse se segurar com força suficiente na corda,
cairia, pensou. Que diabos...!? Cautelosamente, andou até a borda e inclinou-se à frente,
perguntando-se o que havia ali. Ela devia estar no mesmo nível do alicerce da casa,
pensou, abaixo das poderosas vigas de madeira, já que agora só via paredes de pedra.
O buraco parecia ser fundo, cavado na pedra de calcário. Mas, por quê? Se quisessem
fazer uma simples adega embaixo da casa, por que fazê-la acessível apenas por uma
traiçoeira escada de pedra? Muito interessante, isso.
Segurou a lamparina sobre o buraco, tentando ver lá embaixo.
Tinha que haver algo ali embaixo que os homens do Clube Inferno não queriam que
ninguém mais descobrisse.
Ela sentiu um estremecimento na coluna vertebral. Só esperava que não fosse algo
sinistro. Mas, se fosse normal ou inofensivo, então, por que tomar todas aquelas
precauções para mantê-lo oculto? Lembrou-se de que o Ministério do Interior estivera
falando com Lorde Beauchamp sobre algo... Oh Deus! E se houvesse algo criminoso,
ilegal, acontecendo ali? E se houvesse, sei lá, pensou ela, cadáveres, ou coisa pior lá
embaixo?!
Engoliu em seco.
De repente lhe ocorreu que ela só podia estar completamente fora de si para fazer
aquilo. Havia parecido inofensivo, bisbilhotices comuns, então não seria nada demais.
Desejou que nunca tivesse lhe ocorrido xeretar em assuntos que teriam sido melhor
deixar de lado.
De fato, sequer aquela onda de curiosidade desmedida era forte o suficiente para fazer
com que ela corresse o risco de dar um salto para pegar a corda, e que era melhor usar a
escada para ver o que havia lá embaixo.
Principalmente porque, se pulasse, teria que largar a lanterna. Sem luz, poderia me
perder naquele labirinto para sempre, pensou, e foi então, justamente nesse instante, que
uma rajada de ar úmido apagou de repente a chama da lamparina.
Ela cambaleou, quase caiu no buraco e ofegou, horrorizada, então a lamparina escapou
da sua mão e caiu lá embaixo. Ela ouviu o estrépito no chão de pedra, vários metros
abaixo. Seu coração batia com muita força, e ela se viu olhando às cegas para a escuridão
total.
Oh, meu Deus! Como é que vou encontrar o caminho de volta, agora?!
Não conseguia ver nada, mas pelo menos teve o bom sendo de se afastar do buraco.
Quando sentiu a parede sólida às costas, soltou um trêmulo suspiro de alívio. Ótimo.
A primeira coisa a fazer era encontrar o caminho de volta para a escada.
Virando-se com a máxima cautela, voltou até o canto do corredor por onde tinha
vindo.
O pânico se enganchou nas bordas da sua mente, mas ela deu um jeito de mantê-lo à
margem enquanto caminhava tateando pelo longo e estreito corredor, até que finalmente
encontrou a escada. Disposta a manter a calma, começou a subir degrau por degrau.
Isso, pelo menos, ela conseguiu com facilidade.
Ao chegar à parte de cima da escada, tinha que escolher de novo para onde ir: direita,
esquerda, direita... Bom, ela tinha vindo pelo corredor e não havia nenhuma saída
diferente. Ficou olhando em uma direção, depois na outra. Encolheu os ombros e decidiu
tentar ir à direita.
Enquanto avançava pelo estreito corredor, tudo aquilo não conseguira distrai-la. A
escuridão fazia com que ela se sentisse oprimida, o ar viciado a sufocava. A cabeça estava
latejando de novo, e os pontos, ardendo.
O pior de tudo era que a escuridão estava começando a lhe pregar uma peça,
enchendo sua imaginação com pensamentos terríveis.
Tinha a impressão de que a casa estava viva e não a queria ali, que ela era uma intrusa.
E a sensação de milhares de coisas aterrorizantes, todas em volta dela na escuridão, e um
medo absurdo sussurrava dentro da sua cabeça que, uma vez lá dentro, nunca mais ia
sair...
Justo quando o pânico ia brotar da sua garganta, virou uma esquina e viu luz à frente.
Oh, graças a Deus! Aproximou-se em silêncio, atraída pela luz como uma traça.
A tênue luz se transformou em um ovalado suave que brilhava intensamente na parede
do corredor escuro.
Não parecia grande o suficiente para ser uma porta ou algo assim. De fato, não sabia
muito bem do que se tratava, até que se aproximou e olhou..., era um salão de refeições.
Fascinada, percebeu que estava olhando através de uma típica parede convexa de
espelho, com duas velas iguais de cada lado. Todos os lares da classe alte a tinham, pois
essa curva de vidro ajudava a amplificar a luz. Mas normalmente não se podia ver através
deles!
Ficou maravilhada com aquela brilhante invenção, sem ter ideia de como era feita,
embora,enquanto dama da informação, sabia que tinha que ter um daqueles. Uma janela
de espionagem disfarçada de espelho!
As chamas que dançavam acima das velas eram, obviamente, a fonte de luz que havia
visto antes. Em seguida, olhando através do vidro trabalhado, viu o Senhor Beauchamp.
Sem camisa. E cuidando do ferimento.
Oh, meu Deus!
Ela o olhou fixamente. Aquele homem era absurdamente belo.
Não era de estranhar que aquelas desavergonhadas escandalosas da alta sociedade
não conseguiam deixá-lo em paz!
Uma leve sensação de desmaio fazia com que ela se sentisse enjoada, mas atribuiu à
perda de sangue. No entanto, só pestanejou, olhando para aquele magnífico corpo com
apenas uma pontinha de culpa, escondida atrás do vidro.
Ela percebeu que o tratamento dado ao espelho para que ficasse transparente havia
também escurecido um pouco o vidro. De onde estava enxergava ligeiramente distorcido,
como se estivesse olhando através de uma garrafa de vidro marrom. Não dava para ver
muito bem os traços dele, mas, na verdade..., o que estava vendo já era suficiente para
um festim visual.
O formato dos largos ombros... O peito e os braços musculosos... A cintura elegante... A
visão impressionante do abdômen cinzelado...
Sem dúvida, isso já era mais do que suficiente sem precisar acrescentar as cores reais e
quentes da pele dele, a sedução daqueles olhos azuis esverdeados e o ouro angelical do
cabelo.
Mas algo a sacudiu daquele olhar aturdido, porque também podia ouvir através do
espelho, e a conversa em curso era das mais intrigantes.
— Custa-me acreditar, por Deus, que Forrester atirou no senhor!
Carissa inclinou-se à frente para ver quem havia falado.
Um mordomo, idoso e com o rosto marcado de rugas, muito sério, combinava com a
descrição que o visconde havia feito. O mordomo passou ao lado dos enormes cães de
guarda deitados no chão e parou perto da mesa, ao lado de Lorde Beauchamp.
Argh! – pensou, olhando para aquelas bestas estendidas no chão, com bocas e caninos
enormes, babando e ofegantes.
Teria sorte se não fosse comida por eles se conseguisse encontrar uma maneira de sair
daquele labirinto.
Beau, por sua vez, deu de ombros.
— Pois é, mas, como posso ficar zangado com ele?! Aquele cara é como um irmão para
mim! E fico feliz por ele estar vivo. – Fez uma careta enquanto lavava o ferimento com um
pouco de brandy. Ficou aliviada ao constatar que a bala só pegou de raspão. – Mas eu
atirei nele, também. Acertei na perna. Obviamente, nenhum dos dois queria causar
grandes danos um no outro. O problema todo aconteceu por causa da moça.
Francamente...
Carissa franziu o cenho.
— Ela bateu nas minhas costas com a porta, ao abri-la. Na hora pensei que Nick havia
trazido reforços. Ela teve sorte por eu não tê-la matado acidentalmente, pensando que
estava sendo atacada por ambos os lados.
O mordomo assentiu com a cabeça e disse:
— Bom, um ferimento na perna deve reduzir as reações do barão, pelo menos.
Beauchamp assentiu. Secou o ferimento com um pano, limpou o sangue e colocou
mais brandy sobre o mesmo.
— Bom, de qualquer forma, é por isso que não estou zangado. Tu deves saber o que
estive pensando todo esse tempo no qual ele esteve sumido, Gray, embora eu tenha me
negado a dizê-lo em voz alta.
— De fato, meu senhor. Todos nós temíamos o pior – assentiu o ancião com olhar
compreensivo.
— Agora que eu sei que ele e Trevor estão vivos, é só isso que importa.
— Está se referindo a contar para os anciãos? – perguntou o mordomo, inclinando a
cabeça na direção de um papel.
— É claro. Sim..., mas simplesmente não... Ainda.
— Senhor? – Respondeu ele, surpreso.
Anciãos? – perguntou-se Carissa.
— Gray, tu não entendes... – disse com olhar frustrado. – Vão colocar um preço na
cabeça dele, igual fizeram com Drake. Não vou mandar assassinos atrás do meu melhor
amigo. Eu vou contar tudo para eles, mas só depois que eu tiver resolvido tudo isto.
— Depois?
— Sim, depois – repetiu. – E estou contando contigo, Gray. Vou precisar do teu silêncio
e da tua cooperação. E tu vais ser tão leal comigo quanto o foi com Virgil, não vais?
Carissa acompanhava a cena que se desenrolava diante dela na mais completa
confusão. Sem dúvida, isso era muito mais interessante do que a peça no palco do Teatro
Covent Garden!
Gray, o mordomo, por sua vez, havia cruzado as mãos atrás das costas e fixou no
Visconde um olhar cético.
— Parece que o senhor tem muita certeza quanto a isso.
— Nick está confuso no momento. Isso ficou bem evidente. – Ele meneou a cabeça. –
Eu tenho que ajudá-lo. Posso fazê-lo voltar à razão, tenho certeza disso. Só tenho que
seguir o rastro dele.
— E quanto à moça? Ela lhe comprometeu, meu senhor.
Eu o comprometi?! Replicou ela mentalmente. Atrevo-me a dizer que é o contrário!
— Tenho consciência disso, crê em mim. É claro, tenho certeza de que eu a
comprometi, também. E sabes qual é a pior parte? O tio dela é aquele danado do Conde
de Denbury. Aquele que exige os mais altos padrões! Como eu queria que Rotherstone e a
equipe dele estivessem aqui!
Carissa franziu o cenho totalmente confusa quando Beau mencionou o marido de
Daphne. Lorde Rotherstone estava envolvido nisso de alguma forma? Equipe? –
perguntou-se ela, cada vez mais desconcertada.
— Quero dizer, não vejo por que Falconridge tinha que ir com eles. Sequer deveria ter
ido junto na missão, não com aqueles ferimentos.
Missão?Carissa inclinou a cabeça. Pensei que tinham viajado para caçar.
— Já se passou mais de um mês desde que matou aquele assassino – disse Gray. –
Tenho certeza de que ele está se recuperando bem.
Carissa arregalou os olhos. Assassino?!
O cavalheiresco Senhor Falconridge?! O modelo do universo, o conde maravilhoso, o
erudito ade quem ela ficaria encantada de ter como irmão mais velho, já havia matado...,
assassino?!
— Bom, ele deveria estar na cidade. Imperturbável como é, teria sido perfeito para
enfrentar Ezra Green. Melhor do que eu estou fazendo, pelo menos.
— Se os anciãos pensassem que o senhor não estaria à altura da missão, meu senhor,
não teriam hesitado em designar outro para tanto.
— Obrigado. – Beau largou o trapo que estivera pressionando sobre o ferimento e
pegou uma atadura. Enrolou a mesma em torno do bíceps e depois enfiou a ponta por
baixo da mesma, como há havia feito centena de vezes antes. – Tenho que levar a
Senhorita Portland para casa.
— Está bem, senhor. – O mordomo assentiu cordialmente, mas depois hesitou e
abaixou a cabeça, com ar de preocupação do rosto. – Meu senhor, acredita mesmo que o
Senhor Forrester tenha traído a Ordem?
Ordem?!
Beau deixou escapar um suspiro e negou com a cabeça.
— Eu realmente não sei, Gray – admitiu. – Só sei que Nick nunca trabalharia contra
nós. – Encolheu os ombros. – Ele disse que só queria sair, e na verdade, depois desta
noite, não posso dizer que o culpo por isso. Quando vi essa moça levar o tiro... – Um olhar
assassino endureceu seu rosto, e o grande corpo se eriçou, mas ele se recompôs. – Ela
teve sorte de não ter sofrido danos.
Alô! Uma bala passou de rastão pela minha cabeça!
— Diabos, depois da noite que tive, eu também odeio minha vida de espião!
A boca de Carissa escancarou, enquanto ele pegava a camisa, e então, todas as peças
do quebra-cabeças voaram para se juntar na sua mente. Os olhos pareciam duas luas
cheias, e o coração estava disparado. Em meio à escuridão, ela cobriu a boca muito aberta
com ambas as mãos, olhando-o com o maior assombro da vida.
Mas não havia engano nenhum. Seus ouvidos não a enganaram. O Senhor Beauchamp
era espião, e o Clube Inferno era uma fachada para uma espécie de cobertura secreta.
Daphne e o marido de Kate..., até mesmo o querido e cavalheiresco Senhor Falconridge!
Mas como pode ser isso?! Ela não sabia. Mas era. Tudo o que havia escutado não lhe
deixou dúvida alguma a respeito.
Não era de estranhar que Dante House tivesse todos aqueles corredores misteriosos! O
coração dela batia como se fosse explodir a caixa toráxica de tanto entusiasmo por aquele
verdadeiro tesouro de informação secreta.
Nunca havia ouvido uma fofoca na sociedade que chegasse perto de algo com isso!
Quanto à caçada nos Alpes, que Lorde Rotherstone, o Senhor Falconridge e o Duque de
Warrington haviam ido, bom, agora não havia lugar para meias-verdades!
Sem dúvida tinha a ver com o motivo da espionagem, não com Beau em si. De repente,
franziu o cenho e se perguntou se esse era o verdadeiro motivo pelo qual Daphne e Kate
haviam sumido da cidade.
A conversa entre Beau e o mordomo havia deixado bem claro que os problemas
estavam em curso. Talvez as esposas dos agentes tivessem sido simplesmente enviadas
para algum lugar, para a própria segurança delas. Mas é claro!
Esse era o motivo pelo qual a carta de Daphne lhe pareceu sem pé nem cabeça, sem
sentido algum! E por isso também que Beauchamp havia se recusado a dar mais detalhas.
Agora via tudo com toda clareza. Daphne não teve permissão de lhe revelar onde
estavam ela e Kate.
Oooohhh, mas é claro! É claro, é lógico! Carisa apertou a mão sobre o coração, cheia
de importância, na verdade, com imensa alegria, por entender finalmente que suas
amigas não a estavam excluindo. Havia ficado meio que convencida de que elas haviam se
voltado contra ela. Mas ela sabia também que não havia feito nada para ofendê-las!
Fechou os olhos, enquanto as dúvidas a respeito da amizade de Daphne se dissolviam.
Arrependeu-se de ter duvidado, alguma vez, fosse de Daphne ou de Kate. Não havia sido
rejeitada, afinal de contas. Deus, como havia agonizado por temer que suas amigas
tivessem ficado sabendo de alguma maneira sobre aquele incidente em Brighton e a
estivessem relegando ao ostracismo pela falta de moral e por esconder delas tal segredo.
Quanto a Lorde Beauchamp, ela agora o via, também, como novos olhos.
Pelo menos agora entendia por que ele sabia dar pontos. E por que viajara por todos
aqueles anos para o estrangeiro. E por que havia construído aquele corpo de ferro com
tantos músculos? Não, não era por vaidade, nem para atrair amantes, mas sim, por razões
práticas, para ser ágil e capaz de lutar pelo seu país.
No salão de refeições, ele começou a tirar a camisa de novo, depois viu que tinha
sangue por toda parte, então suspirou e começou a recolher o lixo.
— Podes me arrumar outra camisa, Gray?
— Agora mesmo, senhor. – O mordomo fez uma reverência e se retirou.
Beau pegou a vela mais próxima e tirou uma folha de papel de um calhamaço sobre a
mesa.
Carissa ficou olhando para ele, saboreando a nova compreensão sobre homem
misterioso, quando, de repente, sentiu cócegas estranhas subindo pelo braço.
Reagiu automaticamente, tirando a aranha do braço com a outra mão e soltando um
agudo grito de repulsa.
Ficou em silêncio tarde demais, então, e apertou os lábios, fechando-os e fazendo uma
careta, enquanto um frio desgosto continuou percorrendo todo seu corpo. Todo
movimento na sala de refeições cessou.
O mordomo havia parado a meio caminho da porta.
OSenhor Beauchamp estava olhando para o espelho. Os cães de guarda deitados no
chão, perto dele, haviam levantado as orelhas. Um deles grunhiu, levantou-se e os outros
começaram a se eriçar também.
— Hã..., ouviu algo, meu senhor?
— Ouvi sim. Espera um pouco, Gray. – O rosto de Beau endureceu, entãoafastou-se da
mesa e começou a espreitar o espelho. – Parece que temos um intruso.
Com o torso desnudo, aproximou-se e olhou para o vidro, em silêncio, por um longo
instante. Ela recuou, embora duvidasse que ele pudesse vê-la. Seu rosto se retorceu em
uma careta.
— Carissa! – Repreendeu ele com um profundo estrondo de reprovação.
Mas ela continuou perfeitamente imóvel.
O olhar dele se intensificou no dela a escassos centímetros de distância, enquanto na
verdade ela rezava para que ele não conseguisse vê-la através do vidro.
Ele cruzou os braços sobre o peito.
— Não adianta, eu sei que tu estás aí.
Ela fechou os olhos e praguejou baixinho.
— Vamos, responda! – ordenou ele.
Mas que diabos! Com o coração disparado, não sabia o que fazer, principalmente
porque ainda não havia conseguido encontrar uma maneira de sair daquele estúpido
labirinto.
Além do mais, não sabia como ele ia reagir diante dessa instrusão, então teve certeza
de que agora sim, estava encrencada. Nunca havia cruzado com nenhum libertino
ordinário que nem ele. Só havia desobedecido àquele homem, a quem, agora ela tinha
certeza, era um espião da Coroa.
Maldizendo a si mesma por ser uma rematada bisbilhoteira, cruzou os braços sobre o
peito.
Certo. Seria melhor acabar com aquilo de uma vez.
— Estou aqui – admitiu ela.
Capítulo 6
— M as é claro que estás aí – disse ele, sentindo uma nova onde de exasperação
por ela.
Gray o olhou, alarmado.
Beau olhou para o espelho.
— Pensei que havia te dito para descansar.
A voz dela chegou triste através do espelho:
— Eu sei, e lamento muito por tudo isto.
Ele cruzou os braços sobre o peito, mais indignado do que permitia que seu rosto
mostrasse.
Justo. Valente. Perfeito.
— O que é que estás fazendo aí, Carissa?
Ela soltou um suspiro.
— Eu tive que ficar aqui. – A frustração podia ser notada na resposta amortecida pelo
vidro. – Estou presa dentro da parede, ora!
Gray fechou os olhos e levou a mão à testa.
Um dos cães trotou e ficou de pé para colocar as patas dianteiras sobre o console
embaixo do espelho, farejando o cheiro dela com o nariz nervoso. Beau empurrou o
animal com um murmúrio tranquilizador antes que ele começasse a latir.
— Podes fazer o favor de me tirar daqui? – Insistiu ela. – Não consegui encontrar saída
alguma neste estúpido labirinto!
Ele franziu o cenho para a própria imagem distorcida pelo espelho convexo.
— Talvez não. Quem sabe tu não deves sair daí – isso lhe ensinaria uma lição. – O que
achas disso? Que tal é o sabor do próprio remédio, hein, querida?
— Senhor Beauchamp, por favor! Eu sei que não devia ter feito isso.
— Não, tu não devias ter feito mesmo! – concordou ele.
— Por favor, só me deixe sair daqui! Eu posso explicar...!
— Explicar o quê? Que és uma xereta meio descarada?! Ora, isso eu já sei
perfeitamente.
— Belas palavras, vindas de um espião... – replicou ela.
Beau estacou ao ter a confirmação de que ela havia escutado a conversa, e, oh sim,
Gray estava certo!
Trazê-la para Dante House havia comprometido seu disfarce, junto com o de todos os
seus companheiros agentes. Resumindo, trazê-la foi um rematado erro.
Afastou o olhar praguejando baixinho. E agora, que diabos vou fazer com ela?!Como
havia sido estúpido ao assumir que aquela mocinha, na verdade, não era como lhe
diziam!
Ela deve ter visto a expressão assassina no rosto de Beau.
— Eu não vou contar nada para ninguém – prometeu ela em tom solene.
— Ah, sim, isso faz com que eu me sinta muito melhor! – Zombou ele.
— Eu te dou a minha palavra!
— Sei, a palavra de uma mocinha que já me disse que é uma excelente mentirosa!
— Oh, por favor, não sejas grosseiro comigo outra vez, eu te rogo! Deixe-me sair deste
labirinto, então poderás gritar comigo o quanto quiser. Por favor! Está escuro aqui dentro,
estou com dor de cabeça e as aranhas são repugnantes.
—Tu bem que mereces – murmurou ele, mas a contenda chegou ao fim. E ela levou o
prêmio de amulher mais irritante da face da terra!
Ele falou com o mordomo com expressão tensa no rosto.
— Leva os cães para outro aposento. Se alguém aqui vai mordê-la, esse alguém sou eu.
— Sim, senhor – respondeu Gray, mas lhe lançou um olhar de censura enquanto
pegava a coleira do cachorro alfa. O olhar dizia claramente: Isto tudo é culpa sua! Beau
franziu o cenho de novo, muito consciente disso.
Ele poderia estrangular a si mesmo por levá-la para ali, uma reconhecida bisbilhoteira!
Mas que diabos, que outra coisa ele poderia ter feito com ela? Deixá-la sangrando
naquele beco? Uma civil? E mulher ainda por cima?!
Sim, ela estivera bisbilhotando assuntos que não eram da sua alçada, mas um dos
principais mandamentos da Ordem era a de proteger os inocentes.
Não que ele a teria levado de volta para o teatro, com metade da alta sociedade lá
dentro. Era apenas uma manobra para desviar a atenção.
Então teria que explicar aos burocratas, bem como às toneladas de bisbilhoteiros, que
alguém havia tentado matá-lo do lado de fora do Teatro Covent Garden.
E por que havia ficado a sós com Carissa Portland, em primeiro lugar? De fato, o tio
dela era político, sem dúvida ia querer saber a resposta para tanto. E isso era tudo o que
precisva. Os Conservadores iriam ficar muito irritados com ele, bem como os Liberais, com
tendência radical, que já andavam querendo encerrar as atividades da Ordem, começando
por baixo.
Com a investigação em curso, Beau não precisava de nenhuma atenção extra no
momento, nem queria ter o poderoso Senhor Denbury como inimigo.
Talvez ele pudesse ter tomado outra carruagem e levá-la para a casa dele, mas ficava
muito longe na cidade, e com o tanto de sangue que ela estava perdendo, cada minuto
era precioso.
Pois é, nenhuma boa ação ficava impune, pensou, com o pulso acelerado. Quando Gray
saiu com os cães e fechou a porta, Beau atravessou a sala.
Enquanto ia até a lareira, o pensamento mais inquietante que o atormentava era uma
suspeita persistente latejando no fundo da sua mente, e era que, de alguma estranha
maneira, ele havia feito aquela coisa idiota de propósito..., trazê-la para cá.
Mas não só por razões práticas.
Uma dúvida fugaz perpassava sua consciência, que talvez, apenas talvez, algum
demônio perverso e desesperado na sua cabeça havia se aproveitado do momento de
pânico quando a vira sangrando, fazendo com que ele reagisse pela emoção em vez de
usar a lógica habitual.
Não seria ele, já que estava tentando entender porque quando Carissa Portland estava
falando, aquele sorriso tolo e feliz geralmente aparecia no seu rosto quando entrava em
um recinto no qual ela estivesse.
Talvez seu coração, longamente negado dentro do peito, havia aproveitado essa
oportunidade para lhe mostrar a verdade sobre ele e sua vida, ou, pelo menos, para puxá-
lo pelo nariz, sabendo que ela, dentre todas as pessoas, engoliria a isca e faria
exatamente..., bom, o que havia acabado fazendo.
Porque ela estava ali agora, gostasse do fato ou não. Apesar de a razão lhe dizer que
isso era um desastre, o coração transbordava com a possibilidade de que talvez,
impaciente como era, agora ia encontrar alívio para a solidão na qual vivia.
Talvez, se ela soubesse a verdade sobre ele, finalmente pudesse se deixar conhecer e
ter uma ligação verdadeira com uma mulher.
Em primeiro lugar, Beau odiava a ideia de admitir sequer para si mesmo que estava
solitário, e mais ainda, que os próprios impulsos pudessem tê-lo enganado.
A ideia era ameaçadora demais. Zombou da mesma e a afastou, garantindo a si mesmo
que não passava de um tolo. Ainda perturbado, aproximou-se da lareira de mármore
branco, que era uma peça maciça da época da Renascença.
Os dois acessórios iguais no formato de candelabros ficavam nos dois lados da lareira.
Ele se aproximou do da direita e segurou no meio, torcendo a base de latão até que ouviu
um estalido mecânico.
O som de engrenagens pesadas veio de debaixo do piso e, de repente, a parte
posterior da lareira se abriu.
Ele passou por baixo do aparador da lareira e por cima do caixote com carvão, e saiu no
estreito corredor.
— Carissa! Aqui, vem! – Chamou severamente ao entrar na passagem secreta.
Não demorou nada e ela se apressou a voltar, tateando à procura do caminho certo
através da escuridão.
— Oh, graças a Deus! Obrigada, obrigada, obrigada! – Exclamou, correndoaté ele. – Tu
és um anjo de misericórdia! Está escuro demais aqui!
— Isso é para dissuadir pessoas que não pertencem ao nosso meio – respondeu ele
secamente.
Virgil havia feito com que os agentes memorizassem os labirintos anos atrás, para que
não precisassem de luz para percorrer as passagens.
— Eu sinto muito – murmurou ela em tom defensivo, correndo até ele torpemente por
causa da escuridão. Ele a segurou pelos braços quando ela levou as mãos à frente às
cegas, tentando se equilibrar quando tropeçou. As palmas das mãos de Carissa bateram
em cheio no peito nu de Beau e ela as puxou para trás bruscamente, com um ofego suave.
Não era o que ela tinha em mente. De fato, o impacto daquele toque provocou um
estremecimento de consciência, percorrendo cada uma das suas terminações nervosas.
—Tu estás bem? – Murmurou ele, consciente de repente de que estavasemi nus e que
estavam só os dois ali.
— Sim – ela se obrigou a responder, meio sem fôlego.
Bom..., ele nunca havia feito sexo em um labirinto antes.
Alijou o pensamento libertino e fez um gesto mostrando para ela a parte de trás da
lareira.
— É por aqui. Cuidado com a cabeça. – Ele estendeu-lhe a mão para ajudá-la.
— Obrigada. – Disse ela, pondo os dedos ligeiramente nos dele, cujo tato lhe deu outra
sacudida de prazer, mas ele não lhe fez caso. Já havia sido bastante estúpido por causa
dela.
Beau não se importava com o que teria dito o falecido grande Virgil sobre o erro que
ele cometeu, mas tinha certeza de que nenhum dos agentes mais experientes da equipe
de Rotherstone teria permitido que isso acontecesse. Teria muitas contas a prestar
quando eles voltassem.
Enquanto isso, Carissa estava olhando fascinada para a pedra aberta que formava a
porta secreta e meneou a cabeça.
— Fascinante – murmurou ela, inclinando-se para se aventurar através da mesma.
Os lábios dele torceram ante o assombro de Carissa, e quase que perguntou:
— Achaste que o labirinto fosse apenas uma brincadeira?
No entanto, continuou em silêncio, segurando-a, enquanto ela levantava a barra da
saia longa e, com muito cuidado, passou por cima do caixote de carvão. Quando
conseguiu atravessar com segurança para o outro lado, endireitou o corpo já na sala de
refeições, só aí ele passou também.
Em seguida, fechou a porta secreta girando o candelabro para o outro lado, e a porta
atrás da lareira ficou oculta.
Ela então começou a passar as mãos nos braços para tirar as teias de aranha,
verificando se não havia aranhas neles.
Beau apertou os lábios, recusando-se a sorrir.
— O que estás fazendo?
Ela correu até ele.
— Tem aranhas no meu cabelo?
Ele a olhou, muito tentado a fazer uma brincadeira, pois sabia muito bem que ela
merecia. Mas, quando olhou para o cabelo e viu sangue seco grudado nos fios castanhos,
lembrou-se de novo de tudo que ela havia passado nessa noite e decidiu tratá-la com
cuidado.
Mas é claro que ele ia ter que colocar o temor a Deus nela, para que compreendesse a
necessidade de manter segredo.
—Não – murmurou. – Mas receio que tens um problema maior do que o das aranhas
neste momento. – Ele pegou-a pelo cotovelo e a conduziu até a cadeira mais próxima. –
Senta aqui, Senhorita Portland. Não deves ficar andando por aí.
E ele realmente devia vestir uma camisa, pensou ela nervosamente, quando ele a levou
até uma cadeira junto à parede para que ela se sentasse.
Não conseguia parar de olhar para aquele corpo. A beleza natural e masculina do físico
dele era avassaladora a tão curta distância. Ele ficou de pé diante dela, completamente
decidido, inconsciente do quanto se parecia aos nus dos mármores greco-romanos
masculinos. Estava com as mãos na cintura, parecia que organizando os pensamentos
sobre como tratar com ela.
Ela não tinha sugestão alguma.
De fato, mal conseguia pensar, olhando para a luz das velas brincando com aquele
torso forte, cinzelado, bem diante dela, e aquele encantador umbigo bem ao nível dos
seus olhos. A iluminação das chamas quentes estava se divertindo à custa dela, fazendo
com que tivesse uma vontade imensa de tocar e explorar a suavidade daquela pele de
veludo.
Duvidava que o famoso libertino tivesse se importado, mesmo ela sabendo como ele
era na verdade. No entanto, ela era louca o suficiente para tentar, principalmente agora
que sabia que estava tratando não com um libertino comum, mas com um espião.
Então ele se aproximou, segurou nos braços da cadeira de madeira e se acocorou
diante dela.
E ela ficou ali, encurralada no assento, enquanto ele a olhava fixamente nos olhos, com
aqueles penetrantes olhos azuis e cheios de desconfianças.
—Tu tens sido uma mocinha muito travessa, Carissa. – Ela engoliu em seco. – Por que
ficastes ali, escutando? – Exigiu em tom baixo.
— Ma-mas e-eu já te disse, eu me perdi. Não consegui encontrar a saída...
— E me dissestes antes também que eras uma boa mentirosa. Portanto, agora não sei
se posso aceitar a tua palavra. Mas já te advirto, quero saber a verdade. Quanto tuestás
sabendo...?
Ela empalideceu.
— De tudo.
Ele arqueou as sobrancelhas inquisitivamente.
—Eu teouvi conversando com o mordomo. Quero dizer, não sei exatamente, é claro,
mas me dei conta de que...
— Sim? – Perguntou ele, olhando-a fixamente.
—Tu és uma espécie de agente secreto – sussurrou ela, mal conseguindo conter a
emoção. – Mal posso acreditar! E o senhor Rotherstone, o Senhor Falconridge e o Duque
de Warrington também são, não é? E este lugar é o quartel general de vocês, certo? – Ela
olhou em torno meio sem fôlego, mas Beau não respondeu.
O salão de refeições do clube estava tranquilo, escuro e vazio, mas só para eles. Só
então ela percebeu o estranho mural pintado nas quatro paredes sobre o revestimento de
madeira, como retorcidas visões nascidas da febre. Ela o olhou, dando-se conta de que
tais cenas representavam as viagens de Dante através dos diversos círculos do inferno, as
chamas, os demônios, os monstros e tudo o mais.
Ele ainda não havia respondido, mas ela tomou tal silêncio como uma confirmação.
Ele a olhava de maneira estranha.
— Finalmente, tudo agora faz sentido – disse ela em tom de cumplicidade. – É por isso
que Daphne e Kate tiveram que sair da cidade, não é? Vós estáis com algum tipo de
problema. É esse o motivo da investigação do Ministério do Interior?
—Sabes sobre isso também?
Ela abaixou a cabeça recatadamente e lhe deu um leve sorriso culpado.
— E quanto àquele teu amigo, agente secreto também, o que atirou em nós... Ele é
traidor?
— Carissa.
— Foi por isso que ficastes viajando todos aqueles anos? Por causa desse trabalho?
Não, não precisa te preocupar – ela apressou-se a tranquilizá-lo. – Eu sei guardar segredo.
Não vou contar para ninguém.
— Não, tu não vais contar – ele concordou.
Ela franziu o cenho diante do aço daqueles olhos e da frieza na voz dele.
— Estás zangado comigo. Bom, suponho que estás sim. E eu mereço, sei disso. Na
verdade, eu sinto muito. Estou me dando conta de que eu não deveria andar
bisbilhotando por aí, mas, como eu poderia resistir? Tu sabes que a minha natureza é
curiosa. Dentre todas as pessoas, slguém com o teu tipo de trabalho deveria entender
isso. Passagem secreta? Nossa, isso é interessante demais!
— Como eu te disse agora há pouco, tu não sabes o que aconteceu com a curiosidade
do gato?
Ela o olhou, consternada.
—Tu não vais me perdoar, não é?
— Não.
— Mas por que não?! O que eu fiz foi tão ruim assim?
— Há consequências para os teus atos, não entendes isso? – exclamou ele, a ira
chispando nos seus olhos.
— Consequências? O que queres dizer com isso?
Ele apenas a olhou, e seu silêncio só a deixou mais nervosa ainda.
— O que é que vais fazer comigo?
— Nem a metade do que eu gostaria – grunhiu ele.
— Está bem! Continua zangado comigo, então. – Ela tentou se levantar da cadeira, só
para ser pressionada de novo pela firme mão dele sobre sua coxa.
Ela ficou muito quieta.
Se a mão na perna não era o suficientemente inquietante, o duro olhar daqueles olhos
azuis fez com que um calafrio lhe percorresse as costas.
Foi então que ela começou a entender que poderia estar com problemas, e muito
sérios, na verdade.
— Muitas pessoas foram mortas por causa da informação que possuis agora, Senhorita
Portland – informou ele em voz baixa.
Concluiu com desgosto que, por mais que geralmente desaprovasse que a chamassem
pelo primeiro nome, dadas as circunstâncias preferia muito mais que ele a chamasse de
Carissa.
Senhorita Portland – dito assim, soava quase que como uma velada ameaça,
destacando a distância que de repente ele colocou entre eles.
Procurou os olhos dele, sentindo um aperto de aço em torno do coração.
— Eu já te disse, não vou contar para ninguém. Tu precisas acreditar em mim. – Passou
a língua pelos lábios, sentindo a boca seca. – Bom, pelo menos tens que admitir que sou
tão leal quanto qualquer inglesa!
Ele se limitou a olhá-la, um verdadeiro monumento de homem. Silêncio..., enigmático
e difícil.
O coração disparou com um medo repentino de que nunca mais sairia dali com vida,
depois de tudo. Talvez ela tivesse visto demais! Talvez aquele buraco com a corda fosse
um calabouço para os visitantes que foram lá espionar...
Ela engoliu em seco.
— Se o teu propósito aqui é realmente servir ao teu país, então certamente deves
reconhecer que eu nunca faria nada para por em perigo a segurança da Inglaterra.
Levantou o queixo ligeiramente, mas aqueles olhos que pareciam duas pedras
preciosas não revelaram nada, e ele simplesmente deixou que ela continuasse se
retorcendo.
— Daphne e Kate..., elas sabem de tudo isto? – perguntou ela esperançosa, tentando
outra tática. – Elas devem saber – respondeu à própria pergunta, sentindo o coração
retumbar no peito. – Bom, então é isso! Se podes confiar nas minhas amigas, então,
obviamente, podes confiar em mim também!
A resposta dele foi um grunhido.
— A única razão pela qual confiamos nas outras damas foi porque elas estão casadas
com os nossos agentes, Senhorita Portland. Entendes? Elas têm um interesse pessoal
muito forte na sobrevivência dos respectivos maridos, por isso que geralmente é seguro
podermos confiar nelas para que mantenham a boca fechada. Mas essa condição não se
aplica a ti. Além do mais, – acrescentou – elas não são damas da informação.
— Bom, isso é verdade. Mas eu sou digna de confiança!
— Digna de confiança? Tu?! – Exclamou ele, mostrando um pouco de emoção, mesmo
sendo indignação. – Ha!
— Como é que é?! Eu também sou digna de confiança sim! – insistiu com a dignidade
ferida.
— O que não passa de uma absurda pretensão da tua parte! Só que tu não és nada
disso.
Ela engasgou e tossiu.
— Tudo o que fizestes esta noite refuta esse teu argumento. – Desgostoso, ele se põs
de pé, um semideus zangado pairando sobre ela, seminu em meio à própria ira. – Como é
que pudestes fazer isso comigo, Carissa? Eu só te trouxe aqui para salvar a tua vida! Não
consigo acreditar inclusive que pudesses chegar tão longe! Arrisquei a minha vida para
salvar a tua, e quando eu viro as costas por um minuto, o que fazes? É assim que me
pagas? Invadindo um lugar ao qual tu não pertences? O que tu és, alguma criança, por
acaso? Tu nunca consegues deixar as coisas como estão?
Ela respirou fundo para responder, mas as palavras não saíram.
Santo Deus, ele tinha toda a razão!
Ela fechou a boca e abaixou a cabeça, pois sabia muito bem que merecia mesmo a
descompostura.
— E agora, o que vais fazer comigo? – Murmurou depois de um longo tempo. – Vou ser
presa ou algo assim?
— Não, tu não vais ser presa por ter sido intrometida. Só há uma coisa que posso fazer
contigo – resmungou ele. – É óbvio. Nós dois temos que nos casar.
— Como é que é?! – Ela olhou para ele com os olhos arregalados como dois pratos.
— As consequências..., lembra-te? – disse ele todo satisfeito, cruzando os braços
musculosos (um deles com atadura) sobre o peito, o perfeito Adonis irritado.
— Nós dois..., casar?!
— É a única maneira pela qual posso me certificar pessoalmente de que vais manter
essa boca fechada – declarou ele.
Ela o olhou boquiaberta por alguns segundos e, finalmente, fechou a boca e os olhos e
pressionou a testa com os dedos.
Sentia a cabeça latejar de novo, de fato, enquanto lhe dava voltas tirânicas procurando
uma solução.
Ela se esforçou para manter um tom tranquilo e relaxante, embora o pânico fervesse a
fogo lento debaixo da superfície da voz.
—Tu não achas que está sendo, oh, talvez, só um pouquinho exagerado, meu senhor?
— Que lástima!
—Tu queres te casar comigo tanto quanto eu!
— Isso agora pouco importa. Mesmo tendo boa intenção, eu cometi um erro ao te
trazer aqui, e agora tenho que pagar por isso.
Ela o olhou, assombrada.
— Qual dama de berço como eu se casaria com um homem em termos tão insultantes?
— Aquela que não tem opção.
Ela se levantou da cadeira com o cenho franzido.
— Não sejas tolo! Estás exagerando completamente! Já sabes onde me encontrar se
alguma vez eu contar para alguém os teus segredos. Então poderemos falar sobre
casamento.
— E então será tarde demais, pois o dano já estará feito. Posso te manter na linha com
maior eficácia quando estás comigo. Debaixo do meu teto. Conforme as minhas regras –
acrescentou sombriamente.
— Ora, espera um pouco – protestou ela, recuando. – Casamento não é o tipo de coisa
para ser imposta como castigo. Além do mais, nós mal nos conhecemos, e o que sabemos
um do outro começa pelos nossos defeitos.
— E...?
— Pense nisso! Esta noite, por exemplo, eu vi que estavasplanejando um encontro para
praticar o adultério e, crê em mim, não quero, de forma alguma, casar-me com um
homem que não vê nenhum problema nisso! E da minha parte, nós dois sabemos que
rapidamente eu poderia te deixar louco. Sou uma pessoa imperfeita demais, tu não irias
me aguentar!
— Não diz isso.
— Mas é verdade! Olha, eu sou covarde. E vivo xeretando a vida dos outros.
—Tu és curiosa – acrescentou com um sorriso frio e zombeteiro. – Teimosa como o
diabo. A típica ruiva.
— Bom, obrigada – replicou ela. – Mas tu és um anjo, eu te conheço.
— Não, eu não sou – ele negou vigorosamente. – Tampouco tenho intenção alguma de
me corrigir.
— Bom, isso resolve tudo, então. Não nos convém.
— Então, suponho que ambos estamos fadados a uma vida miserável, porque eu vou
me casar com você – retrucou ele.
— Não, não vai.
— Sim, eu vou.
— Oh, vamos, Beauchamp! – O alarme estava estampado nela, porque sentia que já
estava perdendo a batalha. – Metade das damas da alta sociedade vão morrer de angústia
se apareceres com uma esposa! Haverá gente ferida em massa! Vão se matar a
punhaladas pelas ruas!
— Nada disso é problema meu – disse ele com um brilho terrível nos olhos, parecendo
a luz de um farol.
Carissa o olhou com nostalgia.
Ah, seu sacana! Se ela fosse sincera consigo mesma, esteve apaixonada por ele por
várias semanas, e pouco importava se o desaprovava ou não.
Como poderia deixar passar tamanha oportunidade? Ele era agradável de
temperamento, fisicamente irresistível, e, em termos práticos, o malandroseria Conde um
dia. Casar-se com ele poderia vir a ser algo bom para ela, embora, sem dúvida, tivesse
seus riscos.
A questão era sobre que tipo de vida levaria se se casasse com um espião, o que já era
bastante aterrador, se é que essa noite pudesse servir de exemplo.
Por outro lado, era a chance que tinha de sair da casa do tio, onde havia vivido como
uma parente pobre no último ano e meio. Como uma órfã, que havia passado de mão em
mão entre os parentes, sem raízes, sem lar próprio, acampada onde realmente não
pertencia. Nunca havia tido nada de seu.
Essa poderia ser uma oportunidade de ouro de ser dona da própria casa, e ninguém
poderia expulsá-la de novo, nunca mais. Quanto ao seu vergonhoso segredo, pensou,
olhando para o chão, sem dúvida, se alguém pudesse entender por que ela havia caído em
desgraça, certamente seria Beauchamp, que era um pecador.
— E então? –ele a apressou.
Não que ele realmente estivesse lhe dando muitas opções.
Carissa o olhou fixamente, com o coração na garganta. Esse casamento poderia se
transformar rapidamente em um desastre para os dois, já que ele estava fazendo isso só
para mantê-la calada.
Aquele discurso sobre mão de ferro, sobre regras a serem seguidas, soava como se
fosse ser pior se ela tivesse se casado com aquele poeta estúpido.
Porém, que outra coisa poderiam fazer? Ela havia passado já quase duas horas a sós
com um dos sedutores mais famosos de Londres.
Nenhuma reputação de uma jovem dama podia suportar tal fato.
Ela devia ficar contente por ele estar disposto a se casar com ela para lhe salvar o bom
nome, além de salvar sua vida. Deus sabia que ela não queria submeter a família do tio a
outro escândalo...
— Carissa, eu quero uma resposta. – Cruzou os braços com o cenho meio franzido. –
Vais cooperar ou vou ter que te arrastar até o altar?
O coração dela batia com muita força.
—Tu não precisas me arrastar para canto algum – ela se forçou a dizer com voz
sufocada. Em seguida, pigarreou para limpar a garganta e aprumou o corpo para olhar
para o futuro marido. – Eu aceito.
Os olhos azuis de Beau se estreitaram ligeiramente de satisfação.
— Pronto. Vistes? Foi tão difícil assim?
Ela abaixou os olhos, sentindo-se tonta outra vez pela perda de sangue, ou talvez fosse
mais pelo fato de que havia aceitado se casar com um espião.
Beau pegou a camisa limpa que o mordomo havia lhe trazido e deixado sobre a mesa
ali perto.
Ela envolveu os braços em volta de si mesma, sentindo um pouco de frio.
— Sabes que horas são?
Ele assentiu, apontando com a cabeça para o relógio na parede.
— Passa um pouco da meia-noite.
A peça de teatro devia ter acabado uns quinze minutos atrás.
Refletiu sobre as consequências do fracasso que tivera ao tentar voltar para o
camarote. As primas e a preceptora decerto estariam frenéticas àquela altura.
Não sentia vontade alguma de presenciar o que viria depois.
Ele vestiu o casaco ensanguentado.
— Vamos – disse ele com olhar cauteloso. – Vou te levar para casa. E vamos contar à
tua família as boas novas.
Capítulo 7
B eau estava ainda meio emocionado pela dificuldade que havia sido convencer
aquela obstinada mocinha a dizer sim. Não havia lhe escapado aquela veemente recusa
em um primeiro momento. Bela mal-agradecida! Pensava mesmo que ia conseguir melhor
oferta de outra pessoa?
Bom, suponha que, talvez, os termos que havia usado não haviam sido uma proposta
para fazer uma dama desmaiar. Mesmo assim! Ele era Sebastian Walker, por Deus, o
futuro Conde de Lockwood. Era, de longe, uma estratégia brilhante. Não sabia quantas
mulheres da nobreza, e das mais belas, perseguiam-no todos os dias?
Isso era algo que ele não conseguia sequer imaginar. Cada vez que acreditava ter
descoberto os mecanismos secretos do cérebro feminino, ela virava em outra direção e ia
zumbindo e estalando como um autômato pouco engenhoso criado pelo próprio Merlin,
com o propósito de levar os homens à loucura.
Seu orgulho masculino engasgou. Imaginou tudo o que podia significar; no entanto, era
o que pelo menos havia conseguido como sua noiva.
Nenhum dos dois falou muito enquanto se dirigiam à casa do tio de Carissa. Ele
esperava encontrar a casa do conde virada em um escândalo pela falta da sobrinha de
Denbury. Não estava com boa disposição para aquela visita.
Logo os cavalos pararam diante da elegante casa toda cercada de jardins. Ficaram ali
um pouco, à luz da lua. A rua estava escura demais.
Beau olhou as brilhantes janelas da mansão Denbury, depois olhou-a, e podia dizer,
pelo olhar nervoso no rosto pálido de Carissa, que ela tampouco estava com vontade de
entrar ali.
Virou-se e encontrou o olhar dela.
― Chegamos – disse ela.
― Preparada? Lembra-te do que tens que dizer? – murmurou. Haviam combinado tudo
antes de sair de Dante House.
Ela assentiu com a capeça.
― Não te preocupes. Eu vou ficar bem – garantiu ela em voz baixa.
― Como está a cabeça?
Ela tocou a atadura com olhar tímido.
― Nada mal.
― Deixa-me ver. – Ele estendeu a mão e virou o rosto dela para ver se havia sangue na
atadura, mas não havia mancha alguma, nem pontinhos vermelhos. – Creio que estamos
até com boa aparência.
Ela sorriu ironicamente na escuridão.
―Tu estás me devendo um chapéu.
― Pois é, devo-te sim – ele concordou com uma piscada tristonha. – Certo, então.
Vamos acabar logo com isto.
Foram até a porta principal, trocaram um olhar inquieto, então Carissa entrou primeiro,
com Beau atrás dela.
Pela atividade na casa, parecia que um galinheiro havia sido invadido por uma raposa.
Ouviam-se gritos, parecidos com cacarejos histéricos, e correria, principalmente das
mulheres, as quais nunca haviam visto Beau.
A Senhora Denbury estava fora de si, a preceptora chorava, e as duas famosas harpías,
conhecidas como as Filhas Denbury, berravam com as criadas.
Todo aquele caos se intensificou quando a mulher viu a atadura em volta da cabeça de
Carissa e o sangue no casaco.
Como o velho Denbury conseguia aguentar tudo aquilo? Beau se perguntou, mas
quando o Senhor Denbury chegou e passou por toda aquela algazarra, as três escapuliram
do escritório deixando-os a sós, e o conde fechou a porta. Em seguida, contaram para o
poderoso tio de Carissa a história previamente combinada.
Lado a lado, os dois contaram ao presidente patrício de um número infinito de
comissões parlamentares que quando Carissa, sentindo-se mal dentro do teatro, saiu para
tomar ar fresco e havia sido assediada por alguns bandidos que estavam escondidos, à
espreita na praça em frente.
Então Beau explicou qie, enquanto estava esperando um amigo, ouvira um grito de
socorro, e saiu correndo para salvá-la. Mas, ao afugentar os ladrões horrorosos que
estavam tentando roubar a bolsa e o colar de Carissa, um deles, enquanto fugiam, virou-
se e disparou.
― Como o senhor pode ver, a bala pegou no meu braço. – E olhou para a manga
rasgada e ensanguentada do casaco, a prova de que o que estava dizendo era verdade,
bom, pelo menos essa versão se aproximava da mesma. – Eu estava protegendo a sua
sobrinha, mas a senhorita Portland queria ver o que estava acontecendo.
― Como sempre – murmurou o conde, arqueando uma sobrancelha.
― Quando ela surgiu atrás de mime assomou a cabeça por trás do meu corpo, a
mesma bala pegou de raspão na cabeça dela. Como já lhe disse, ela tem muita sorte.
Poderia ter morrido ali mesmo.
― Então o senhor a levou a um médico?
― Não, senhor. Não havia tempo para tanto. Eu mesmo a atendi.
― Como é que é?!
― Ela já estava inconsciente, e, devo lhe dizer, havia muito sangue. Quando servi na
guerra adquiri prática em cuidar desse tipo de ferimento. Mas tive que levá-la para onde
eu tinha os suprimentos necessários à mão e espaço para trabalhar sem ser um teatro
cheio de mexeriqueiros olhando.
― Então, para onde o senhor a levou, exatamente? – perguntou o conde.
― Para Dante House.
O Senhor Denbury gemeu e cobriu o rosto com as mãos.
― Felizmente, logo constatei que a bala havia pegado só de raspão – continuou Beau. –
Mas ela precisava de alguns pontos, e eu também. Assim que terminei e coloquei a
atadura, eu a trouxe para cá. Posso lhe garantir, senhor, que não aconteceu nada de
desonroso. Eu lhe dou a minha palavra. Infelizmente, como nós dois sabemos, a alta
sociedade não vai encarar isso dessa forma.
― Absolutamente. – Denbury tirou as mãos do rosto e o olhou com receio. – Mas,
como o senhor é um cavalheiro, espero que saiba o que isso significa.
― Eu sei sim, senhor – disse Beau com firmeza. – E é justamente por isso que estou
aqui. Posso proporcionar à sua sobrinha uma boa vida, e não vejo nenhum motivo pelo
qual ela seja inadequada para mim. – Carissa e ele trocaram um olhar cauteloso. – O
sobrenome dela é mais do que honrado, e, além do mais, meu pai já está velho –
continuou. – E ele já me falou várias vezes sobre o desejo de ter um neto que garanta a
continuação da nossa linhagem.
A expressão do Senhor Denbury mudou à menção do Senhor Lockwood.
– Sim... Já ouvi falar sobre o seu pai. Um homem sólido. Os amigos dele sentem a falta
dele em Londres. Precisa dizer isso para ele.
― Obrigado, senhor. Eu vou dizer – murmurou Beau, baixando o olhar.
O Senhor Denbury olhou para Carissa com receio, estudando-a por um instante.
― Esse compromisso é adequado para ti também? Apesar da tua reputação? –
Acrescentou o tio secamente.
Ela manteve a cabeça baixa, com ar tão manso que Beau achou surpreendente.
― É sim, meu tio – respondeu ela.
Então ele meneou a cabeça.
― Muito bem, Beauchamp. Já que o senhor é mesmo filho de Lockwood, não posso
negar meu consentimento. Especialmente nestas circunstâncias, que, diga-se de
passagem, são bastante duvidosas. Atrevo-me a dizer que os dois formam um belo casal.
― Obrigado, senhor – respondeu Beau com um sorriso e fazendo caso omisso do fato
de que o que o conde dissera provavelmente não era um elogio.
Carissa ficou olhando para os dois homens que se parabenizaram com um aperto de
mãos e, em seguida, pegaram um cálice de Porto para brindar.
E com isso, o destino de Carissa estava selado.
E foi assim que tudo começou.
Os preparativos do casamento demoraram o tempo que o Arcebispo de Canterburry
levou para expedir a licença especial para que pudessem se casar rapidamente, o que
provocou um verdadeiro turbilhão de atividade, e ambas as partes se esforçavam para
organizar tudo para a iminente união.
Tío Denbury ficou encarregado da igreja, enquanto a esposa dele ficou com a partes
das flores, da música e do bolo. Beau foi procurar um anel e ordenou à criadagem da
própria casa que tudo estivesse pronto para a chegada da nova senhora. Carissa, por sua
vez, escapuliu para a loja da sua modista favorita, onde pediu para ver os vestidos formais
que a famosa costureira pudesse ter, algo que pudesse estar pronto dentro de poucos
dias. Foi necessário até agendar a visita para ficar longe das mexeriqueiras da sociedade.
Ambos queriam que o casamento fosse um fato consumado antes que a alta sociedade
começasse a fazer perguntas.
A inteligente modista mostrou ser sua salvadora ao sair do quarto de costura nos
fundos da loja com um vestido de cetim quase terminado. Era uma criação refinada em
rosa claro muito delicado, com um leve tom de vermelho, muito suave, para não entrar
em conflito com o cabelo ruivo de Carissa.
Vendo ali uma oportunidade, a modista sugeriu acrescentar bordas de renda branca
com pérolas. Carissa concordou com entusiasmo, e em seguida tratou de verificar o resto
do enxoval. As luvas e os sapatos seriam brancos, a combinação teria de ser a melhor e a
mais bonita, e debaixo desta, como supunha que seu noivo descobriria na noite de
núpcias, estariam as meias de seda branca sustentadas por ligas cor de rosa.
Carissa deu à costureira dois dias para fazer as modificações, então se dedicou a se
programar para sair da casa do tio. Os próximos dois dias ela dedicou a empacotar e
organizar toda a roupa, livros e demais pertences, inclusive com a ajuda de várias criadas.
As primas de Carissa observavam tudo aquilo tecendo poucos comentários. Pareciam
estranhamente abaladas pelo fato de que ela estava indo embora. Pela primeira vez não
se queixaram dela desde o dia no qual havia chegado àquela casa, e não havia dúvida de
que ficariam encantadas por se livrarem dela, pensou. Mas, ver as primas um pouco mais
velhas, realmente, sair dali para inicial uma nova vida com seu marido, parecia fazer com
que elas se lembrassem que em breve elas próprias estariam fazendo o mesmo, pois era o
curso normal das coisas.
Elas ficaram estranhamente grudadas à mãe, e a tia Denbury decerto estava pensando
a mesma coiss, porque não questionou nada, mas puxava as moças contra o próprio peito
para lhes dar muitos abraços e beijos ocasionais na testa de ambas.
Carissa se absteve de fazer comentários. Perguntou-se o que será que a própria mãe
teria dito do seu futuro marido. É claro, ela ainda era criança quando viu a mãe com vida
pela última vez. Encolheu os ombros àquelas dolorosas recordações e se concentrou na
tarefa de organizar um baú cheio de pertences pessoais.
Carissa não queria parecer ingrata, mas, na verdade, seria um alívio sair da casa do tio.
Depois de quize anos passando de mão em mão de parentes diferentes, mal podia esperar
para ter o verdadeiro e próprio lar, finalmente.
Apesar do pequeno broto de entusiasmo esperançoso, e de seu coração ir aos poucos
se enchendo de orgulho ante a perspectiva de se estabelecer em um lugar para senpre, ao
qual realmente pertencesse, esse otimismo acabou se misturando ao temor cada vez
maior sobre como seria sua noite de núpcias.
Agora que compartilhar a cama com ele era uma certeza, e apenas uma questão de
tempo, viu-se corroída por inumeráveis temores, imaginando todas as possíveis formas
com as quais ele poderia reagir diante da revelação de que havia se casado com uma
moça que não mais era virgem.
E se ele não fosse tão compreensivo quanto ela esperava...?
Aliás, o que aconteceria se ele ficasse furioso? Afinal, ele era um guerreiro. E se ficasse
violento? Podia matá-la tão facilmente quanto a um mosquito. Certo, provavelmente não
a matasse, admitiu. Mas, e se a abandonasse? Se anulasseo casamento? Se se divorciasse
dela? Será que ele a envergonharia diante de todo mundo?!
Fantasmas aterrozizantes desse tipo a mantiveram acordada durante os três dias antes
do casamento, dando voltas e mais voltas na cama.
Só que ela não se atrevia a contar para ele antes do tempo. Senão ele poderia cancelar
o casamento, e os rumores já começariam a correr entre a sociedade, e tudo porque o
primo de Araminta havia contado a fofoca para o melhor amigo.
O relógio continuava correndo. Rumor era como uma febre infecciosa que levava certo
número de horas para recuperar forças antes que a doença se instalasse completamente
no hospedeiro.
Talvez devesse tentar fingir que ainda era virgem, na noite de núpcias, pensou, olhando
para o teto. Alguma coisa para que ele pudesse passar através da mesma. Afinalde contas,
nem todas as mulheres sangravam na primeira vez. Tia Jo havia lhe dito isso quando
tiveram uma conversa terrivelmente incômoda.
Mas será que conseguiria fingir inocência suficientemente bem para enganar um
espião? Um homem que havia tido mais mulheres do que um sultão com um harém? E ela
realmente queria começar um casamento tendo como base o engano? Primeiramente, ele
só estava se casando com ela porque não confiava que ficaria em silêncio sobre a Ordem.
Por outro lado, se ela escolhesse ser honesta e lhe contasse tudo, então ele poderia
concluir que havia se casado com uma mulher na qual não seria capaz de confiar, e
simplesmente a descartaria.
Mas ele pode confiar em mim, insistiu seu coração, enquanto continuava deitada e
acordada nessa noite. Aquele deslize não havia passado de uma ingenuidade juvenil. Era
tão importante assim trazer à baila tudo o que era desagradável?
E quanto ao bom senhor, enquanto espião, o que poderia fazer com Roger Benton se
ela lhe contasse a história de como havia sido seduzida? Não que ela se importasse se
Beau reorganizasse a cara do poeta, mas não pretendia mandar o novo marido de
imediato para outro duelo.
Ora, vamos, argumentou consigo mesma. E por que tinha que contar tudo para ele, na
verdade? Isso tudo aconteceu no passado. Todo mundo tem segredos, e tinha certeza
absoluta de que Beauchamp jamais lhe contaria os dele.
Tais preocupações se prolongaram até o dia seguinte, enquanto terminava de
empacotar a última leva de coisas a serem enviadas para o novo lar.
Pressionou o conteúdo para que tudo coubesse ali, em seguida fixou as presilhas de
latão. Tirou a poeira das mãos e pediu ao lacaio que levasse o último baú até a carruagem.
Enquanto o baú era retirado, tia Denbury fervilhava, envolvida nos preparativos
relacionados ao casamento. O bolo de Gunther já havia sido encomendado.
Ela havia procurado os serviços de um dueto de harpa e flauta para tocar na cerimônia.
Os poucos buquês de flores também estariam prontos pela manhã, só que, em meio a
isso tudo, havia um problema. Faltando apenas vinte e quatro horas para o evento, ainda
não se sabia onde seria celebrado o casamento.
Nessa noite, então, tio Denbury chegou em casa com um sorriso incomum, largo, do
tipo que dizia que acabara de salvar o dia. Ele os chamou e anunciou, à família e à noiva,
que depois de ter mexido alguns pauzinhos, e graças a uma doação importante, havia
acabado de conseguir permissão para que o casamento fosse celebrado em um lugar não
menos magnífico do que a capela da Virgem, dentro da não menos também magnífica
Abadia de Westminter. Esse era o presente de casamento para eles.
Carissa o abraçou, agradecendo-lhe a gentileza, mas ainda estava meio abalada com
aquilo tudo, quando o dia seguinte chegou. O dia do grande evento.
Depois de todo aquele frenesí de frenética atividade, todo mundo conseguiu finalizar
os preparativos no último instante, como que por obra de magia.
Estava na hora e todos já estavam na abadia, fascinados diante da beleza serena dos
vitrais da capela.
O harpista e o flautista estavam tocando, os buquês de flores perfumavam o ar, seu
vestido era esplêndido, e enquanto ela olhava solenemente através do véu branco que lhe
cobria a cabeça, via que, pelo menos naquele instante, não tinha nada para se
envergonhar como a noiva de berço que era, digna de um futuro conde.
A sociedade poderia até arquear uma sobrancelha diante daquele casamento a toque
de caixa, mas estava tudo certo no final. Na verdade, a cerimônia estava meio terminada.
Talvez agora ela pudesse começar a se concentrar no casamento em si. Acontecesse o que
acontecesse, ela ia fazer tudo o que fosse possível para que desse certo. Beauchamp não
era perfeito, mas também não era ruim.
Como o tio havia dito brincando, eles eram um casal.
As asas que brotavam da emoção alcançaram seu coração, ao se posicionar diante do
altar. Deu uma olhada nervosa para o atraente visconde ao seu lado. Celestial, alto,
orgulhoso e nobre naquela casaca cinza-pombo, parecia um anjo de ouro visitando a terra
sob a aparência de um cavalheiro inglês.
A gravata branca brilhava à perfeição, e a ponta mais longa do cachecol de seda claro
assomava por baixo da casaca feita sob medida, listrada em azul e prata. As calças eram
brancas e os sapatos, pretos.
Ela olhou para a própria mão enluvada apoiada na dele enquanto o vigário lia o
Corínto.
— O amor é paciente. O amor é bondoso...
Ela sabia essa passagem de cor, então sua mente divagou. Apesar da beleza do lugar,
não podia negar que era bastante solitário para um casamento.
Os únicos convidados eram tio e dia Denbury, que serviram como testemunhas, e as
filhas do casal; a senhorita Joss ainda parecia desconcertada com tudo aquilo. Araminta
levou a mão à boca para esconder um bocejo. A senhorita Trent secou lágrimas silenciosas
de novo, enquanto o futuro senhor Denbury, seu primo de dez anos de idade – o jovem
Horácio – franzia o cenho inquietamente por ter que vestir roupa de domingo no meio da
semana. Era um monstrinho aquele menino.
Carissa queria que Daphne estivesse ali. E também o Senhor Falconridge, por quem
tinha um carinho especial. Oxalá pelo menos pudesse esperar que tia Jo tivesse sido
convidada e viesse de Paris. Ela deveria chegar dali alguns dias, mas o senhor Denbury
disse que era melhor assim. Não se atrevia a dar à mundana irmã a chance de vir com
aquelas cenas alegres, como costumava fazer, e que dissesse algo indigno que assustasse
o noivo, ou pior, que a abandonasse. No entanto, parecia que não havia nenhum perigo
disso.
Beau estava firme ao seu lado, atento à leitura do vigário.
Então ela se perguntou se ele já não estaria lamentando tudo aquilo. Quando ela o
olhou de novo, viu que ele estava sorrindo. Apenas um toque de suavidade em torno dos
lábios.
A ansiedade e a obsessão de pura agonia fizeram com que ela contraísse todos os
músculos. Querido Deus, por favor, não permita que ele note nada estranho em mim esta
noite! Eu não aguentaria se ele me odiasse!
Em meio a toda aquela loucura de três dias de pura preocupação, havia jogado suas
cartas e decidira mais ou menos provar que era tudo um engano. Não queria fazer isso,
mas, com todos os problemas de espião, ele já tinha preocupações suficientes sem ter
também o medo de que havia se casado com um prostituta sem perceber.
Depois de tudo, o que aconteceria se pensasse que ela lhe daria carta branca para
continuar a levar a vida de libertino, à qual ele estava acostumado, em vez de se
comportar como um marido adequado? Ela já havia sentido ciúme dos relacionamentos
dele com outras mulheres antes mesmo de falarem sobre casamento. Se ele retomasse
aquela vida depois de casados, ela realmente não sabia como iria suportar.
Então ela decidiu que, nessa noite, bancaria a inocente, o que não deveria ser difícil, já
que só havia feito uma vez, de qualquer forma.
Se ele expressasse desconfiança depois, repreendê-lo-ia por ser canalha e patife,
desonrando-a com dúvidas e acusações. Porque, diga-se de passagem, ela poderia ter um
ataque histérico digno de Araminta, se fosse o caso.
A ideia original, de ser capaz de lhe confiar seu segredo, desvaneceu-se na escuridão
conforme o momento da verdade se aproximava.
— O amor não registra erros...
O sábio vigário olhou Carissa como se soubesse, de alguma forma, que as palavras que
estava dizendo entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Ela olhou para o noivo de
soslaio, esse homem perigoso e encantador estava a ponto de se transformar no seu
companheiro para a vida toda, e queria uma coisa bastante simples, com todo o seu
coração.
Que ele a amasse.
Cheio de terno protecioninismo em relação à noiva, Beau olhou para ela, encantado
mais uma vez com tamanha beleza. Ela parecia radiante hoje, e quase que não aguentava
esperar para por as mãos nela nessa noite. Finalmente teria o direito de usufruir dela
como bem lhe aprouvesse, com o pleno consentimento de Deus e dos homens.
Lamentou o fato de que nenhuma das pessoas das quais havia esperado que fossem ao
casamento estivessem presente, mas de nada adiantava se queixar. Afinal, Virgil estava
morto. A equipe de Rotherstone estava na Europa, e Nick e Trevor, Deus sabia onde.
Enquanto sua noiva estava febrilmente envolvida com os preparativos do casamento,
ele havia feito o mesmo, e mais, fez um cálculo de cada recurso que lhe restava para por
todos os agentes ativos em Londres à procura de Nick.
O barão não tinha família para que Beau pudesse entrar em contato com eles, então
havia coberto os ângulos legais e financeiros. Notificou os bancos e advogados caso Nick
tentasse alguma manobra para tomar posse de todo o dinheiro que haviam lhe pagado
por atos nefandos. Beau também havia dado um alerta sobre o paradeiro de Nick para um
oficial de Bow Street em particular, que às vezes os ajudava a seguir pistas.
Da mesma forma, havia ativado sua rede de informantes naqueles infernos de
jogatinas e tavernas que Nick costumava frequentar. Também havia alertado os armeiros,
cujos serviços haviam utilizado no passado, para que o avisassem caso Nick entrasse em
contato com eles, mas sem colocar o ex-agente de sobreaviso.
Nick, sem dúvida, havia se escondido em algum lugar no qual ia ser impossível
encontrá-lo, mas, com centenas de olhos espreitando, em breve ele não conseguiria
beber um gole sequer em toda Londres sem que Beau ficasse sabendo, bem como onde e
quando.
No entanto, ainda sofrendo pela traição do amigo que sempre havia esperado que
fosse seu melhor homem, alijou Nick da mente e se concentrou na cerimônia.
O vigário fez a célebre pergunta.
Sorrindo, Beau olhou para Carissa, talvez fosse hora de arrumar um novo melhor
amigo. Pôs a mão sobre os dedos dela, para que os apoiasse levemente no seu antebraço.
Depois olhou à frente e exibiu um semblante cheio de orgulho para o sacerdote.
— Sim, eu aceito.
Capítulo 8
Q uando voltaram para a casa dos Denbury, Carissa não conseguia parar de olhar
C asado. Será que ele queria isso mesmo? Beau estava na carruagem, em silêncio,
olhando a esposa que dormia na cama. Fisicamente estava muito satisfeito, mas,
mentalmente, mal sabia o que fazer com aquela experiência. O mistério de Carissa tinha
que, decididamente, ser mais aprofundado.
Um beijo dizia para um homem muitas coisas sobre uma mulher quando fazia amor
com ela, inclusive mais, e, a partir desse momento, mal sabia o que pensar da bela
desconhecida com quem havia se casado. Ela dormia no esgotamento saciado, depois de
ter cumprido com os deveres de esposa muito além das suas expectativas mais selvagens.
Beau estava confuso. Não tinha muita certeza do que ela havia lhe presenteado..., não
tanto a união física, mas, talvez, a falta de inibição durante a mesma.
Ele havia se deleitado na paixão dela, com o entusiasmo dela, mas depois, havia
começado a questionar. E quando o brilho do prazer se dissipou, a realidade havia
começado a se estabelecer, trouxe também perguntas que pareciam nuvens de tormenta
à sua mente enquanto olhava Carissa dormir.
Agora, sentado ali, estudando-a no escuro do quarto, sombriamente preocupado pela
falta de menção de qualquer coisa que quisesse saber sobre isso. No entanto, ao mesmo
tempo, olhando para ela percebeu que nunca havia sentido ternura maior por qualquer
outra criatura, nem havia se sentido mais protetor.
Ela estava na sua cama, ele sabia que ela estava exatamente onde pertencia, mas, além
disso, realmente não sabia o que devia pensar ou sentir.
Por mais que odiasse que lhe mentissem, no entanto, podia entender por que ela
tentou conseguir o que queria nessa noite através do engano.
Qualquer outro homem estaria gritando com ela agora e levando-a de volta para a
família, cheia de vergonha. Fossem quais fossem seus defeitos, no entanto, Beau nunca
havia sido um homem cruel, principalmente com as mulheres.
Maldição, ele achava que era um bom espião. Devia tê-la investigado antes de se meter
nisso. Mas também, quando é que havia tido tempo para isso?
Havia sido uma correria doida desde o instante no qual a arrastara para Dante House
para lhe salvar a vida. Ele temia que o destino havia lhe pregado uma peça, mas a verdade
mais provável era que havia se deixado cegar pela luxúria. Todas as vezes que havia
olhado Carissa Portland, ele a quis. Será que teria sinais que poderia ter notado se não
tivesse pensado com o pau, no que se referia a ela?
Ato contínuo, um frio nó de medo se formou na boca do estômago enquanto se
perguntava se essa chocante revelação na sua noite de núpcias era apenas uma mostra do
que viria pela frente.
Meu Deus... E se ele havia se casado com uma mulher que acabaria por lhe ser infiel no
futuro, assim como sua mãe havia feito com seu pai? Será que sua apaixonada ruiva faria
dele um cornudo?! Estava condenado a trilhar o mesmo caminho de humilhação do pai?
Mas também, como é que podia ele, mais do que ninguém, queixar-se honestamente
depois de todas aquelas aventuras do passado com as esposas de outros homens?
Provavelmente ele merecia isso.
Sim, talvez isso não fosse mais que o destino irônico fazendo com que ele pagasse em
espécie pelo próprio passado como libertino. Franziu o cenho e apertou o queixo com ira
defensiva. Está certo, ele não era nenhum santo, mas nunca havia tentado esconder dela
esse fato.
Carissa, por outro lado, havia tentado enganá-lo, embora enquanto se entregava a ele,
havia se rendido. Era uma baixa terrível da parte dela. Era uma questão de caráter, na sua
opinião. Falta de honestidade. Falta de juízo. E uma clara falta de respeito. Por acaso ela
achava que ele era algum estúpido?! Era um insulto ver que realmente não confiava nele.
Por enquanto, ele tampouco confiava nela.
Beau fechou os olhos e esfregou a testa e, depois de lutar consigo mesmo por algum
tempo, decidiu, por pura força de vontade, que não ia se irritar com isso.
Ficou tentado a usar suas sutis habilidades de interrogatório para convencê-la a lhe
dizer a verdade, pela manhã. Ele poderia facilmente trabalhar nela aos poucos até
conseguir extrair a história toda.
Mas retrocedeu diante da possibilidade de usar o treinamento que tinha para espionar
a própria mulher. Ela não era um daqueles violentosPrometeos.
Não. Deixaria que ela viesse até ele e lhe contasse tudo quando estivesse pronta.
Pensou na inscrição de luxo no relógio musical e se deu conta de que o mínimo que podia
fazer era lhe dar algum tempo. Até então, podia evitá-la, mas também teria que ter
cuidado com a esposa até que, voluntariamente, ela abrisse o jogo.
Sabia que não seria fácil para ela. Ela já havia lhe dito que não confiava em ninguém.
No entanto, obrigá-la a lhe dar detalhes, humilhá-la com o fato de que sabia que ela
estava lhe mentindo, ou prejudicá-la de alguma forma, era inaceitável. Jurou para si
mesmo que, mais cedo ou mais tarde, ia ganhar a confiança de Carissa. Afinal de contas,
se havia uma coisa da qual tinha absoluta certeza era que ela não lhe desejava mal algum.
E nunca desejou. Não quando o havia seguido até aquele beco. Não quando o seguiu,
colada à parede, naquele labirinto secreto. A lembrança do medo que ela sentira pelas
aranhas o fez sacudir a cabeça, enquanto o coração se encolhia.
Tu és uma calamidade ambulante, menina. Mas é a minha calamidade.
Além do mais, era importante ter isso em perspectiva. Entre Nick e o Ministério do
Interior, tinha tantos outros problemas maiores no momento que a última coisa que
queria era uma guerra com sua esposa, quando havia se casado fazia apenas doze horas.
Com um suspiro triste e incerto, Beau se levantou da cadeira e voltou a se deitar ao
lado da esposa na cama, pois era melhor dormir ali, com ela. Deitou-se e puxou para os
seus braços aquela criatura encantadora, enlouquecedora. Carissa dormia sobre seu
peito, tranquila como uma criança.
Ele a beijou na cabeça com ternura demais apesar de si mesmo, então se deu conta,
muito surpreso, o quando lhe doía desconfiar com tanta intensidade e não saber ao certo
por que ela havia se entregado a outra pessoa antes dele. Então, pensou inquietamente,
essa era a dor que ele havia causado àqueles homens, deitando-se casualmente com as
respectivas esposas.
Agora que havia calçado o sapato alheio e sabia que sua esposa mignon não mais era
virgem, tal fato lhe alterou a consciência, obrigado a enfrentar a verdade do próprio
comportamento no passado. Mas nem o sermão de um pregador poderia tê-lo mudado
mais do que a vergonha que estava sentindo, agora que compreendia realmente o que
havia feito aos outros, já que parecia que, finalmente, estava colhendo o que havia
semeado.
Como é que não havia conseguido ver isso antes?! – perguntou-se. Acontece que ele
não quis ver, bloqueou cuidadosamente toda maldade da mente enquanto desfrutava dos
prazeres onde e com quem queria e continuava alegremente seu caminho.
Mas agora seus olhos se abriram, e se rebelou contra si mesmo. O libertino estava
angustiado e muito contrito, em silêncio, enquanto a repreensão de Carissa naquela
noite, no teatro, ressoava nos seus ouvidos.
Alguma vez pensaste na dor que tu deves ter causado àquelas mulheres?
É claro que, para ele, nunca havia significado nenhum dano em especial, mas já não
podia ignorar o quanto havia sido cruel, o quanto havia sido destrutivo por causa do
egoísmo. A costumeira e alegre desculpa que usava, a de que todo mundo fazia isso, foi
reduzida a pó. Sem dúvida, qualquer ideia sobre a possibilidade de ser infiel à esposa em
um futuro imediato desapareceu no ato. Essa pequena mostra do tipo de angústia que
havia causado a terceiros era suficiente para postergar para sempre o esporte favorito da
sociedade.
Estremeceu e se aproximou mais de Carissa, ardentemente feliz pela vida fiel que teria
com ela. Enquanto estava deitado ali, tratou de impedir que o orgulho masculino ficasse
obcecadamente indignado pelo fato de quem diabos havia tido sua mulher antes dele.
Vou te dizer uma coisa, pensou, olhando para a escuridão. Seja lá quem for, se ele te
forçou, é um homem morto.
Capítulo
11
D urante o desjejum, na manhã seguinte, o segundo dia oficial de casados,
Capítulo
12
O mordomo de Lady Lockwood abriu a porta antes de eles chegarem lá, e
Capítulo
14
A o voltar para Londres ficaram sabendo que aquele precipitado casamento havia
uma livraria particular em Russel Square, a qual era conhecida por ser um refúgio de
radicais.
Se a Comissão Especial estava investigando seu marido, ela decidiu que era um bom
momento para rinvestigar seus membros também.
O que Beau havia dito sobre Ezra Green e o antigo mentor deste, o tal professor que
havia caído em desgraça, parecia completamente suspeito.
Felizmente para Beau, ele havia se casado com uma consumada bisbilhoteira.
Para ter certeza, essa investigação a levava tão longe das águas pouco profundasdos
círculos da moda quanto ela estivera, no mundo estranho e um tanto desordenado dos
intelectuais e artistas de Londres.
Como se já não tivesse tido o bastante de poetas, pensou secamente.
Efeetivamente, a extravagante e pequena livraria de pedra perto do Museu Britânico
devia parecer um lugar estranho para se encontrar uma Viscondessa e sua criada em um
ensolarado dia de primavera. No entanto, ela havia planejado para estar ali, porque havia
lido no jornal que o professor Culvert daria uma conferência messe local, naquela mesma
tarde, para divulgar seu último livro.
Quando estavam se aproximando da livraria ela disse para Jamison, o cocheiro, que
não parasse ainda, que estacionasse um pouco mais abaixo.
Se parassem bem em frente à livraria, a ostentosa carruagem, presente de casamento
de Beau, ficaria amplamente visível pela janela da frente, e ela não queria chamar a
atenção de todos os presentes metidos a santinhos, bancando os puritanos.
Ela conhecia o tipo.
É claro, eles se espojavam no pecado e na corrupção, mas, em termos financeiros,
transformavam-se estranhamento nos mais santos da paróquia.
Eram os diletantes que confiscavam os bens materiais alheios e, no entanto,
estranhamente, sempre esperavam que os outros pagassem pela vida boêmia que
levavam – protestando contra os mesmos patronos aristocráticos que guardaram esses
mesmos bens a sete chaves.
Carissa meneou a cabeça. Roger Benton, de novo.
Ele bem podia seguir o mesmo tom de A Verdade e a Beleza,podia justificar todo tipo
de mentira e feiura – sedução, chantagem, etc – e, no entanto, ele continuou escrevendo
cegamente aqueles nauseabundos poemas de amor. E ainda se perguntava por que
ninguém queria publicá-los!
Ela estremeceu de ira reprimida. Na verdade, aquele canalha não sabia nada de amor.
Beau tinha muito mais poesia em uma risada do que Roger Benton em todos aqueles
sujos caderninhos. Apertando os dentes ao pensar na própria ruína, aceitou a mão do
condutor e desceu da caixa de joias que era sua carruagem.
Na companhia da criada, Margaret, que se arrastava, caminhou a curta distância até a
livraria. Com o coração disparado, fez uma pausa para olhar rapidamente para cima
esperando, quem sabe, um sinal de que essa não havia sido uma má ideia.
Só estava simplesmente sendo ela mesma, uma dama da informação – e esposa fiel.
Ela endireitou os ombros e foi ver todas aquelas estranhas pessoas sobre as quais ela e
Beau já haviam comentado: os cidadãos comuns, os amantes livres, os revolucionários de
mesa. Ela podia ter ficado um pouco nervosa por ir àquele lugar e estar entre aquelas
raridades, mas, no fim das contas, era apenas uma livraria.
A conferência já havia começado – ou melhor, o protesto. Ela entrou em silêncio
enquanto um velho de cabelos brancos e nariz vermelho de bêbado, vestindo um
enrugado casaco de flanela, estava barrando os que haviam distribuídos panfletos sobre
as Leis do Milho.
Ela captou a cena com um cauteloso olhar enquanto se dirigia ao interior da livraria.
Uma pequena multidão estava reunida nas fileiras de cadeiras na parte dos fundos, mas
alguns clientes estavam procurando livros para comprar e mal prestavam atenção à voz
que vinha de lá.
Margaret olhou para a livraria. A pobre criada, bem como o cocheiro, Jamison, não
tinham ideia do que estavam realmente fazendo ali.
Carissa não tinha certeza se sua criada sabia ler e escrever, mas lhe deu permissão para
dar uma olhada, caso quisesse comprar livros ou revistas.
Um empregado se aproximou, olhando-a com ceticistmo.
— Posso vos ajudar, senhora? – perguntou em voz baixa.
— Oh, sim! – Ela esboçou um insípido sorriso social. – O senhor teria romances
sobrenaturais?
Ele a olhou de alto a baixo, passando um olhar zombeteiro sobre o vestido na última
moda, como se dissesse: Eu devia saber.
— Na prateleira daquela parede, senhora. O último exemplar da Senhora Radcliffe
acabou de chegar.
Carrissa agradeceu com uma leve inclinação de cabeça e se dirigiu às estantes que
continham uma seção de sobrenaturaisespantosos, que valeu o desprezo de tais
vendedores de livros pelo mundo todo, apesar de serem esses que sustentavam as vendas
da livraria.
É claro que sequer as fortes vendas dos romances sobrenaturais não poderiam ser
comparadas à popularidade das coleções de ensaios religiosos pelos principais pastores
da atualidade.
Mas supunha-se que o professor Culvert e seus seguidores zombavam desses, também.
Como ela sumiu em meio às estantes, essa posição lhe deu uma visão melhor da
conferência em curso.
O professor Culvert nada fazia para inspirar o patriotismo nos corações ingleses e
parecia quase elogiar os americanos por matarem três mil soldados britânicos em 1.812,
em um território da fronteira chamado New Orleans.
Fingiu que examinava o último e arrepiante conto da Senhora Radcliffe enquanto ouvia
Culvert relatar, quase que com alegria, como a Inglaterra quase havia perdido a batalha
nessa guerra. Ela mal conseguia acreditar no que estava ouvindo.
Será que Culvert odiava o próprio país?! E como é – maravilhou-se ela – que ninguém
naquela audiência parecia se preocupar com o modo pelo qual aquela negligente preleção
depreciava o sacrifício dos soldados mortos?!
Quanto mais ouvia, mais crescia nela a angústia por pensar que um dos antigos
discípulos do chamado profeta havia segurado nas mãos o destino dos próprios
guerreiros.
Mas certamente ninguém estava levando a sério aquele delirante velho, pensou. Esse
deve ser o motivo pelo qual o Ministério do Interior sempre o soltou todas as vezes nais
quais ele havia sido detido.
O chamado profeta não era o vilão sinistro que havia esperado, mas alguém digno de
piedade, com os olhos esgazeados e transtornados, fazendo um monólogo contra o
mundo.
Pobre tolo, estava tão louco quanto o Rei – a quem ele, sem dúvida, odiava também.
Por outro lado, as pessoas que acreditam nele, pensou, talvez fossem as mais perigosas.
Contrariada, passou os olhos discretamente pela plateia.
Sim! – gritavam os enojados ouvintes, com óculos sujos e dedos manchados de tinta,
levantando os punhos fechados.
Havia ali meia dúzia de gatos pingados, trágicos artistas que parecia que tinham
acordado no chão de algum pub.
Acabou que a única mulher, depois de uma segunda olhada, era homem.
Os olhos de Carissa se arregalaram. Por que isso? Ela havia ouvido falar dessa gente,
mas nunca havia visto nenhum deles. Que ela soubesse, claro! Então se corrigiu
rapidamente e desviou o olhar.
Além de comuns demais, os ouvintes de Culvert pareciam ser artesãos, ou um rico
comerciante aqui e ali, a julgar pelas roupas sombrias.
Havia um sacerdote católico, que ela reconheceu pelo colarinho branco, esperando
para ouvir a posição de Culvert sobre a importante questão do voto católico. Ela ouvira tio
Denbury discutindo às vezes com os colegas. Viu também alguns dissidentes – quakers,
concluiu – pelo evidente estilo de roupa, mas não estavam sentados, apenas ouviam com
ceticismo, em pé, na última fileira.
Eles pareceram concordar quando o professor Culvert falou sobre o preceito de que
homem algum havia nascido melhor do que seus companheiros.
Pareceu-lhes justo. Mas, quando ele deixou escapar um comentário ridicularizando
Deus, eles menearam a cabeça, terrivelmente ofendidos, e saíram da livraria.
O sacerdote apenas franziu o cenho, mas talvez tivesse decidido perdoar setenta vezes
sete. Concluindo que já havia visto o suficiente, Carissa foi pagar o livro de Radcliffe, mas o
empregado havia corrido até a mesa do professor para pô-lo a par das consequências da
conferência.
O famoso Culvert Blake estava sentado agora diante de uma mesa, esperando para
assinar as cópias do seu livro para aqueles que quisessem comprá-lo.
Esperando que o vendedor voltasse, Carissa perambulava por ali perto.
Sentiu-se tentada a ir falar com o velho e comprar o livro dele, para entender melhor o
chão no qual uma flor nociva como Ezra Green pudesse ter crescido. Mas os radicais
rodearam seu herói e em seguida começaram a formular perguntas que fizeram com que
o velho professor expusesse uma centena de novos assuntos.
O homem gosta de falar, observou ela em voz baixa. Estava de pé, um tanto afastada,
esperando a vez para comprar aqueletolo romance sobrenatural.
Ela pegou uma ou duas revistas de moda só para espicaçar o pouco altaneiro
empregado, mas nem assim ele lhe deu atenção.
Com efeito, isso era extraordinário, pois como é que ela, uma jovem de berço, uma
Viscondessa, parecia ser invisível nessa parte da cidade. As pessoas naquela livraria
pareciam tê-la julgado no ato como uma senhorita de cabeça oca, só por causa da roupa
que estava usando. Iluminadas almas! A impaciência, então, tomou conta dela. Estava
prestes a deixar de lado o romance da Senhora Radcliffe e ir embora quando, finalmente,
algo interessante aconteceu.
Um homem muito alto e magro, com grande nariz e comovedores olhos de cachorro
que levou uma sova, aproximou-se impacientemente e estacou diante da mesa onde
estava Culvert.
— Senhor! – o homem cumprimentou o professor com ar de intimidade.
O professor parou de falar por um segundo. A essa altura, Carissa não teria acreditado
que fosse possível. Ele pestanejou para o homem em estado de choque e rapidamente
baixou a voz, olhando em volta.
— Charles! Mas o que é que tu estás fazendo aqui?!
— Lamento se perdi vossa conferência, senhor. Tivemos clientes que simplesmente não
iam embora, mas finalmente minha mãe me disse que eu podia vir.
— Espera um instante. – Culvert virou-se para o homem ao lado e despediu-o com um
gesto, pedindo um pouco de privacidade.
Todas as refinadas habilidades de Carissa como bisbilhoteira se puseram em alerta
total. O profeta se virou para o recém-chegado. O homem alto e sensível estava
aparentemente alheio à misteriosa ira do velho professor devido à presença dele.
— Parabéns pelo vosso novo livro, senhor!
— Vai embora daqui! – Culvert ordenou em voz baixa.
— Oh, mas está tudo bem! Eu só vim vos contar que minha última cena está quase
terminada. Espero que o senhor vá até Southwark para vê-la!
— Charles, foi um tremendo erro da tua parte ter vindo aqui. Tu deves ir embora
imediatamente. Usa a porta dos fundos. Aqueles malditos soldados..., eles sempre
mandam alguém para me espionar, e o mesmo deve chegar a qualquer momento.
— E daí? – Charles sorriu para ele com cumplicidade e baixou a voz. – Não tenho nada
a esconder. Não é mesmo?
No entanto, despediu-se do seu ídolo e retirou-se com uma respeitosa reverência.
Hmmm... Carissa ficou olhando para o homem, assombrada, no entanto, continuou
fazendo o máximo possível para fingir que estava cuidando dos próprios assuntos.
Pergunto-me se devo segui-lo... Mas então deu de ombros.
Ela havia ido ali por causa de Culvert.
Margaret a olhou fixamente quando saíram, um pouco mais tarde.
— Está tudo bem? – Carissa lhe perguntou.
— Eles estão loucos! Loucos! – exclamou a criada. – O que foi tudo aquilo, senhora?
— Não tenho a menor ideia. Devíamos ter ido à Hatchard. O atendimento lá é muito
melhor. E os frequentadores mais bem selecionados também.
Beau não estava em casa quando Carissa regressou, e era melhor assim, pois não sabia
o que dizer sobre a espionagem que havia feito mais cedo. Talvez fosse melhor não
sobrecarregá-lo com isso, também. Principalmente agora, pobrezinho; ele havia passado o
dia inteiro diante do Comitê, e provavelmente iria precisar de um pouco de ânimo quando
chegasse a casa.
Provavelmente não atingiria seu objetivo se lhe contasse onde havia ido. De fato, era
muito provável que tivesse o efeito contrário. Uma mulher casada e inteligente aprendia a
escolher as próprias batalhas sabiamente, depois de tudo, e essa não valia a pena.
Por que se arriscar a uma briga por confessar algo que não havia lhe fornecido
nenhuma informação útil e desnecessariamente incômoda?
Esquece-te disso.
A decisão estava tomada. Contar tudo, e ainda com aquela pequena e persistente culpa
por causa do pequeno segredo criado, era uma bobagem, disse para si mesma.
Por que deveria se culpar, quando o que estava tentando fazer era só ajudar? Certo,
não havia conseguido nada. E daí? Deu de ombros.
Deixa para lá.
Em todo caso, o sol de primavera estava tão atraente que quando chegou a casa
colocou o chapéu de palha de aba larga e saiu para espairecer um pouco no jardim.
Colocou uma cadeira na sombra e se divertiu folheando alegremente uma revista
feminina de variedades que havia acabado de comprar.
Com a luz do sol salpicando-lhe a saia e a suave brisa soprando no seu rosto, não
demorou muito a fechar os olhos e ficar dormitando, maravilhando-se de como estava à
deriva de forma tão satisfeita, e de como havia se acomodado tão bem à recente nova
vida.
Não sabia quanto tempo havia ficado descansando quando teve a sensação de que
alguém a observava. Assim que a consciência voltou a formar um pensamento claro, ela
assumiu que era o marido.
Ela havia dito aos criados para que não a incomodassem, mas que dissessem a Beau
onde estava assim que ele chegasse a casa.
Estava esperando que se unisse a ela, então, um sorriso sonhador curvou seus lábios,
como um dedo se arrastando pelo seu rosto. Então foi abrindo os olhos lentamente e
olhou para cima.
— O senhor!
— Acalme-se, Lady Beauchamp. Não vou causar-vosnenhum mal.
Ela se encolheu, o coração batendo com força e disparado. Diante dela, com toda a
calma, estava o estranho de cabelos pretos que havia visto naquela noite no Teatro
Covent Garden.
— Perdoe-me se tenho minhas dúvidas – obrigou-se a dizer, endireitando-se na
cadeira. – O senhor atirou em mim na última vez na qual nos encontramos!
— Eu não estava apontando para a senhora, como aposto que sabe muito bem, minha
senhora. No entanto, estou sinceramente arrependido pelo sofrimento pelo qual a
senhora passou.
O melhor amigo de Beau, Nick, fez-lhe uma pequena e irônica reverência de contrição.
— O que o senhor está fazendo aqui? – perguntou ela, recuando no assento para se
sentar mais atrás. – O que o senhor quer? Meu marido não está em casa.
— Minha querida Viscondessa, não deve dizeruma coisa dessas para um homem que
invade vossa propriedade. Tende isso em conta no futuro. Mas é claro que, no meu caso,
eu já sei disso. É com a senhora que eu vim falar.
Ela o olhou com receio.
— Para quê?
— Bom, principalmente para vos dar os parabéns pelo vosso casamento. Mais de uma
moça tentou e fracassou no que a senhora conseguiu. A senhora o ama?
— Como se atreve!? – exclamou ela, corando violentamente.
Tão moreno quanto Beau era claro, Nick lhe deu um sorriso que brilhava como a lua no
verão.
— Mas é claro que deve amá-lo. Todo mundo ama Beau. A pergunta é: ele vos ama?
— Como se atreve a fazer perguntas tão impertinentes?
— É apenas preocupação fraternal, só isso. A senhora deve informar ao nosso rapaz o
quanto estou decepcionado por não ter sido convidado para o casamento. Sempre pensei
que estaria ao lado dele no altar como seu melhor homem.
— Ele teria convidado, mas parece que o senhor estava se escondendo da lei – ela
caprichou no tom de reprovação.
O olhar dela desviou para a perna de Nick, pois ela se lembrou de que ele também
havia sido ferido naquela noite, no beco atrás do teatro. Ele notou o olhar de Carissa e
deu uma palmadinha na coxa.
— Não vos preocupais. Já tive ferimentos piores. Admito, o ferimento ardeu bastante. –
Ele apontou para baixo, mas a pontaria dele é ótima.
— E o senhor quase fez voar a minha cabeça!
— Ora, vamos, aquilo foi um acidente! E vós sabeis muito bem disso – informou ele,
embora uma ponta de culpa tivesse perpassado por trás daqueles olhos negros como o
carvão. – Está bem, eu sinto muito! Repito, sinto muito. Quantas vezes quereis ouvir isso?!
Ah, Senhor! Mulheres!
Carissa o olhou fixamente, completamente desconcertada com aquele homem.
Apesar de nervosa, sem dúvida, sentada ali com um homem que sabia que era um
assassino treinado, e mercenário ainda por cima, ela tentou manter o controle e pensar o
que seria melhor para ajudar Beau.
Ela sabia que o marido queria encontrar Nick.
Talvez ela pudesse retê-lo um pouco. Entretê-lo com alguma conversa e ganhar tempo
até que o marido voltasse para casa. Ele deveria estar de volta logo, do interrogatório.
Engoliu em seco e, junto, uma dose de coragem.
— O senhor sabe, Beau pensa que o senhor o traiu.
Nick soltou um suspiro.
— Sinto muito de novo, mas não posso me dar ao luxo de me preocupar com o que
pensa Beauchamp. Não é a vida dele, é a minha.
— Mas ele é seu melhor amigo, não é mesmo? – Nick olhou para o outro lado. – O que
foi que ele lhe fez para que o senhor lhe virasse as costas?
Ele revirou os olhos.
— Não tive escolha.
— Ele não renunciou ao senhor, sabia?
— É claro que não. É Beau. Ele não se dá por vencido por nada. Jamais.
— Ainda dá tempo de resolver isso, sabe…, o que está errado. Eu sei que ele não pensa
que o senhor é de todo mau – Lorde Forrester, certo? – Ela se aventurou, dirigindo-se a
ele pelo título. Ele assentiu com a cabeça, confirmando o nome.
— Olhai, Beau não fez nada de errado, como eu já vos disse. Sou eu o vilão aqui, todos
nós sabemos disso.
— Por que o senhor o traiu?
— Parai de fazer perguntas! Eu não traí ninguém! – replicou ele, com os olhos escuros
ardendo. – Sinto muito se estão vendo tudo dessa maneira, mas a Ordem não pertence a
mim!
Ela baixou o olhar.
— Por que não fica para jantar? Então poderá nos contar o que aconteceu e como
podemos ajudar. Eu, por exemplo, estou muito curiosa para saber como é que um Barão
acaba se transformando em mercenário.
Ele arqueou a sobrancelha.
— Ele vos disse isso?
Ela encolheu os ombros.
— Bom, sou esposa dele.
— E é por isso que estou aqui. – Ele a olhou com estranhesa. – Realmente não
entendeis do que se trata este momento, não é?
— Como é que é?
Ele rodou os olhos de novo.
— Deus, como vós sois ingênua! Nunca pensei que um libertino que nem ele fosse ficar
caidinho por uma mocinha tão delicada, mas não importa. Vim aqui porque quero que
entregue uma mensagem da minha parte ao nosso amigo em comum.
— Diga-lhe o senhor mesmo, ele vai chegar a qualquer momento.
— Poderia a senhora ficar quieta e me deixar terminar uma frase pelo menos?
— Cuidado, senhor, não vai me fazer calar como se seu fosse um cão de caça!
— Bom, então parai de uivar como um.
— Ninguém aqui está uivando. Se quer escutar uivos, acredite, posso fazer isso, e todos
os criados virão correndo. É isso que o senhor prefere?
— Lady Beauchamp – ele se corrigiu com profunda gentileza. – Por favor, podeis dizer
ao seu marido que vim aqui para visitar a senhora? Apenas diga que a senhora e eu
tivemos uma conversinha amistosa. E que ele supere isso.
Ela franziu o cenho.
— É essa a mensagem? – Ele assentiu, olhando-a nos olhos. – Bom, não é uma
mensagem muito interessante, não acha?
— Não vos preocupai – murmurou ele com frieza. – Ele vai entender. – Lorde Forrester
se levantou e se dirigiu ao portão do jardim.
Levantando-se da cadeira, Carissa procurou outro modo de retê-lo.
— Quer dizer então que o senhor vai saindo assim, sem mais nem menos...
— Está bastante óbvio, vós não achais? – e se foi, sem olhar para trás.
— O senhor é bem-vindo se quiser ficar! Não precisa ir embora! Espere, o portão está
trancado à chave!
— Não preciso da chave. Mas foi uma boa tentativa para me segurar aqui, Lady
Beauchamp – comentou ele, piscando por cima do ombro. – Apenas lhe entregue a
mensagem.
Quando ele desapareceu de vista atrás de um alto arbusto coberto de terra, ela
arrepanhou a saia e correu atrás dele. Maldição, volte aqui, homem incomodativo!
Ela podia ver por que eles eram amigos. Tinham muito em comum. A arrogância, a
personalidade... Sim, pensou, ambos eram igualmente exasperantes.
— Lorde Forrester! Nick! – gritou ela, justo quando ele deu uma corridinha para pular e
se segurar na beirada do muro de tijolos.
Ela praguejou baixinho enquanto ele saltava por cima do muro e pousaca do outro
lado. Logo o perdeu de vista, mas continuou ouvindo os passos dele do outro lado do
muro, afastando-se.
Perplexa com aquela estranha visita, ela colocou as mãos na cintura.
Muito bem! Quer dizer então que isso era tudo. Tinha certeza de que a reação de Beau
ia ser interessante, mesmo que a mensagem simples de Nick não o fosse.
No entanto, aquele breve visita a deixou inquieta. Foi muito atrevimento da parte dele
vir aqui, pensou. Por outro lado, estava aprendendo rapidamente que agentes da Ordem,
e até mesmo ex agentes, ao que parecia, não conheciam o significado da palavra medo.
Quando Beau finalmente chegou, contou-lhe imediatamente o que havia acontecido,
mas não estava preparada para a reação que ele teve. A qual foi, em uma palavra, raiva,
pura e simples.
— Ele veio aqui?! – trovejou ele. – Ele te causou algum dano? Juro por Deus, se ele
colocou um só dedo em cima de ti...!
— Não, eu estou bem! – Ela se encolheu ligeiramente, porque nunca havia visto o
tolerante marido agir daquela forma antes.
— Ele te causou algum tipo de dano, Carissa?
— Não! Ele só me surpreendeu um pouco, no início. E foi bastante amável. – Ela
meneou a cabeça. – Mas..., foi a coisa mais estranha! Ele se desculpou pelo tiroteio,
depois nos parabenizou pelo casamento. Mas o principal é que ele queria que eu te
entregasse uma mensagem.
— Que mensagem? – grunhiu Beau.
— Não é muita coisa – disse ela encolhendo os ombros. – Ele só queria que eu te
dissesse que ele esteve aqui.
— E de fato ele esteve – disse Beau em tom gélido. Praguejou baixinho e se afastou,
fervendo de raiva. – Mas que filho da puta!
Ela franziu o cenho, desconcertada.
— Estou perdendo alguma coisa…? – Ele a olhou de soslaio. – Conta-me! – Insistiu.
Foi a vez de ele franzir o cenho.
— Ele estava te ameaçando, Carissa.
— O quê?! Não! Certamente tu estás errado...
— Não, não há erro algum. Não deixou óbvio o significado porque não quis te assustar.
Fico satisfeito de ver que pelo menos teve a decência de não assustar uma mulher. Não –
disse ele. – A mensagem era para mim.
— Não entendo, o que significa essa mensagem?
Ele a olhou gravemente. Ela podia ver que ele não queria lhe dizer.
— Por favor! Se isso diz respeito a mim de alguma forma…
— Foi uma advertência. Se queres mesmo saber, ele estava demonstrando que pode
chegar até ti quando bem entender.
Os olhos dela se arregalaram, enquanto Beau continuou exaltado, quase tremendo de
tanta raiva.
Ela se sentiu desfalecer.
— Oh, querida!
Bem, quando o marido colocou a coisa toda dessa maneira... Engoliu em seco. Aquele
era, depois de tudo, o homem que havia disparado contra ela.
— Tu achas mesmo que ele vai tentar me…, matar?
— É difícil dizer. O Nick que eu conheço nunca faria mal a uma mulher. Espero em Deus
que ele esteja mentindo. Mas, nos dias de hoje, quem diabos pode saber? – Sacudiu a
cabeça com fúria inquietante. – Decerto ele está metido em um maldito monte de
problemas, porque certamente não está agindo como ele mesmo.
— Mas po-por que ele iria querer me causar dano? – exclamou, tremendo e ainda
abalada pela notícia. – O que foi que eu fiz para...?
— Meu bem, a única coisa que tufizestes, foi te casares comigo. Esse foi teu único erro
– murmurou ele. – Só que isso não tem nada a ver contigo. Trata-se de atingir a mim.
Porque não fiz o que ele me pediu e não chamei meu pessoal. De fato, coloquei ainda
mais pressão sobre ele através de observadores e informantes desde aquela nossa última
conversa. Devo ter sacudido um pouco a jaula dele. Mas, mesmo assim! Aproximar-se da
minha esposa?! Vou tirar sangue da cabeça dele por isso!
Beau parecia a ponto de quebrar a cabeça de qualquer que se aproximasse demais
dele naquele instante. O homem estava literalmente grunhindo para si mesmo.
— Tu estás me assustando… - murmurou ela, intimidada por tamanha ira.
Ele lhe deu um olhar turvo, depois fechou os olhos e esfregou a testa, esforçando-se
visivelmente para se acalmar. Com as mãos nos quadris, ele inspirou profunda e
lentamente e soltou o ar devagar.
— Desculpa-me. – Quando abriu os olhos de novo, já tinha dado um jeito de suavizar a
expressão e olhou-a com os olhos cheios de tristeza enquanto meneava a cabeça.
—Lamento muito não estar aqui para te proteger. Aqueles políticos sanguessugas me
mantiveram uma hora a mais do que eu pensava demorar! Mas tu precisas saber de uma
coisa: aconteça o que acontecer, eu vou te manter a salvo. Eu te dou a minha palavra
solenemente sobre isso.
— Eu sei que tu vais fazer isso, marido. – Ela assentiu com a cabeça, aproximando-se
com cautela. – E, realmente, não aconteceu nada desde então e até agora. Eu te garanto
que estou bem.
Ele a atraiu para os seus braços e a abraçou apertado por um instante. Ela podia sentir
aquele grande corpo ainda ferozmente eriçado com raiva protetora, enquanto a protegia
naquele abraço.
— Normalmente, eu te enviaria agora para a fazenda onde estão as outras damas que
estão sendo vigiadas vinte e quatro horas. Mas Nick é um agente da Ordem. Ele conhece a
localização de todas as nossas casas de segurança – beijou-a na testa enquanto pensava
sobre o assunto. – Não – murmurou finalmente. – Creio que agora o lugar mais seguro
para ti é ao meu lado. E se ele se aproximar de ti outra vez, vou fazer a cabeça dele voar
pelos ares!
— Não deveríamos procurar algumas respostas, primeiro? Temos que averiguar o que
está acontecendo com ele.
— Mas é claro! Tu tens razão. Informação! Vickers! – gritou de repente.
O mordomo chegou apressado.
— Sim, milorde?
— Prepara nossas coisas. Vamos para a França.
— À França?! – gritou Carissa, recuando e saindo dos braços dele. – Do que estás
falando?!
— Vamos chegar ao fundo disto. Tenho uns dois dias antes de voltar a me apresentar
diante do Comitê. Deve ser o tempo justo para chegar em Paris e voltar, mas vamos ter
que agir rápido. Tu tens razão. Precisamos de informações. Não tenho ideia do que está
acontecendo com Nick, mas conheço alguém que sabe. Preciso falar com Madame
Angelique.
— E quem é essa? – questionou ela.
— A harpía intrigante que o corrompe, aposto. Fala para a tua criada preparar uma
maleta para ti também. Agora corre. Não há tempo a perder. – Ele apontou com a cabeça
para a escadaria, o olhar pétreo. – Vamos navegar contra a corrente.
Capítulo
16
Beau estava seriamente cansado do sarcasmo de Ezra Green, mas mordeu a língua.
Pelo menos eles não haviam ficado sabendo que ele havia saído do país nas últimas
quarenta e oito horas.
— Senhores, do que se trata agora? – perguntou no tom mais gentil que conseguiu ao
se sentar na fria pedra da Câmara Parlamentar. Green o olhou do alto do assento no
centro da longa mesa diante de Beau.
— Ontem à noite recebemos a notícia sobre a maior e mais impactante violência que
teve lugar faz algumas semanas, na Alemanha. Baviera, para sermos exatos, vários
quilômetros ao norte de Munique, justamentenas proximidades onde o senhor disse que
seus colegas foram.
Beau estava muito quieto.
— O que aconteceu? – perguntou ele.
— Assassinato em massa, é o que parece. Mais de setenta corpos foram encontrados
queimados, cujas cinzas estavam dentro de uma grande caverna nos Alpes. – Green não
conseguia controlar o prazer que estava sentindo, e encolheu os ombros. – Teve uma
espécie de uma tremenda explosão que as pessoas da redondeza declararam ter ouvido a
quilômetros dali. Alguns aldeões, inclusive, viram uma enorme bola de fogo. Pensaram
que talvez um escapamento de gás tivesse pegado fogo dentro de uma das antigas minas
nas montanhas – disse ele. – Quando os moradores foram investigar, encontraram
dezenas de corpos carbonizados no interior da caverna.
— Mas que tragédia – disse Beau cautelosamente.
— Hmmm... Sim, é verdade. As autoridades de Munique foram chamadas para
investigar. Eles ainda não têm certeza de quantas pessoas morreram nessa ocasião. Para
alguns, não restava muitos deles para encontrar.
Beau ficou sentado ali, tamborilando ociosamente o tampo da mesa com os dedos.
— E onde é que eu entro nisso tudo?
— Ora, não seja reticente! – disse Green com desdém. – Nós dois sabemos que vossos
companheiros agentes estão por trás disso!
— Nós?! Talvez os aldeãos tenham razão... Deve ter sido um acidente. Escapamento de
gás de uma antiga mina... A não ser que o senhor tenha alguma prova de que isso esteja
ligado aos meus agentes... Eles foram vistos pelos vivos que foram encontrados entre os
mortos?
— Muito bem, o senhor que fazer esse joguinho... Quem eram os mortos, pergunto eu.
E respondo: apenas alguns do jogadores mais poderosos da Europa. Amigos pessoais de
várias cabeças coroadas, desde Roma até a Rússia!
—Prometeos – murmurou Beau.
— Então o senhor sabe! Apesar de os corpos estarem tão queimados a ponto de
ficarem irreconhecíveis, as autoridades conseguiram adivinhar a identidade deles pelos
objetos pessoais que deixaram na casa de um nobre, próximo dali. Castelo Waldfort, soa
familiar para o senhor?
Beau apertou a mandíbula. Com efeito, soava sim. Era o nome do lugar ao qual Drake
havia ido com James Falkirk.
— As autoridades de Munique interrogaram os criados do castelo. Um deles admitiu
finalmente que houve uma agitada aglomeração de estranhos lá. Falou sobre uma batida
policial, na qual o Conde Glasse, legítimo proprietário do castelo, foi assassinado. Com a
morte do Conde, tudo foi transferido para um inglês. Creio que o senhor sabe o nome
dele: Drake Perry, Conde de Westwood. – Beau disfarçou a surpresa rapidamente. – Vosso
colega nem se deu ao trabalho de dar um nome falso.
— E por que haveria de fazê-lo? Os Prometeos já sabiam da identidade dele quando o
capturaram. Eles o torturaram até destruírem a mente dele, Senhor Green.
— Bom, é possível que lhe interesse saber que, pouco depois que Lorde Westwood
tomou o comando do Castelo Waldfort, outro inglês se apresentou lá, e coincide com a
descrição do seu amigo, Lorde Rotherstone.
O coração de Beau estava disparado. Então, voltaram ao assunto anterior.
Setenta corpos?!
— Os corpos estavam naquela caverna? – perguntou, preparando-se para o pior. –
Sabe-se se estão vivos?
— Não faço ideia, o senhor omite o caso inteiro! – exclamou Green. – Não percebeis?
As autoridades alemãs rastrearam tudo até a Inglaterra! Temos dezenas de ricos e
poderosos que viraram cinza dentro de uma caverna, e se descobrirem que agentes
britânicos estão por trás disso, vossos amigos podem ter desencadeado um grande e
sangrento incidente internacional!
— E quanto à palavra de uma criada? – ele disparou. – Para começar, o que os
senhores deviam se perguntar é o que todos aqueles sangradores estavam fazendo
naquela caverna. Essa é a verdadeira pergunta! Mas o senhor não quer ouvir a resposta,
não é mesmo? – Ele lutou para controlar a ira. – Sabíamos fazia muito tempo que os
Prometeos tinham um dos seus templos subterrâneos nos Alpes, mas nunca conseguimos
encontrar a localização do mesmo. Ao que parece, até agora.
— Portanto, o senhor admite que a Ordem estava por trás disso?
— Eu não saberia dizer, mas certamente que assim o espero.
Intimamente, o assombro de Beau cresceu, enquanto saboreava a notícia da façanha
dos colegas. Setenta mortos! Líderes sobreviventes do culto Prometeo haviam se reunido
no castelo Waldfort – pelo menos essa havia sido a teoria da Ordem. Se a notícia fosse
verdadeira, significava que a centenária guerra nas sombras, da Ordem contra os
Prometeos, estava realmente terminada, finalmente! Deus, como ele queria ter estado lá!
Emvez disso, ficou com a miserável tarefa de limpar a desordem que a vitória deles
havia causado. Mas, pelo menos era uma vitória! Ele perguntou novamente:
— Nossos homens sobreviveram?
Green lhe lançou um olhar fulminante.
— Desconhecemos, mas é pouco provável, especialmente Lorde Westwood.
Ofuncionário disse que levou os outros até a caverna naquela noite. Assim ele poderia
acabar com eles, é o que parece. E sem perguntas. Não há provas adequadas. Sem o
devido processo para qualquer um desses do alto comando – homens colocados nos
diversos países, alguns dos quais são supostamente amigos da Inglaterra. Se isso for
verdade, mais uma vez, nossos inomináveis, sem rosto, invisíveis agentes da Ordem se
encarregaram de agir como juiz, jurado e verdugo.
— Mas aqueles bastardos eram Prometeos!
—Prometeos..., sei – disse Green com um sorriso.
Beau o olhou, assombrado.
— Ainda não acredita que a ameaça seja real, mesmo depois de todas as provas que
viu?!
Mas o frio sorriso de Ezra Green lhe informou que o homem já havia formado um
conceito com o único propósito de definir quem era o verdadeiro inimigo. Então olhou
para Beau com um ódio tal que já nem se incomodava em disfarçar.
— Vai ser um inferno pagar por isto, deveis entender, Lorde Beauchamp. Sequer o
Regente pode mais proteger vossa preciosa Ordem. Não depois disto.
— Apenas lhes diga que foi um acidente devido a um escapamento de gás.
— Ah, os senhores, cavalheiros, são tão bons para cobrir os próprios rastros... Mas
desta vez, o senhor foi longe demais. Não pode se eximir da culpa devido à distância. Este
caso é uma vergonha para o nosso governo. Lamento informar-vos, Lorde Beauchamp,
sequer os Pares do reino têm liberdade de cometer assassinatos em massa no
estrangeiro.
Beau se pôs de pé e fechou as mãos sobre a mesa em sinal de frustração.
— O senhor não se importa com a verdade, não é, Senhor Green? Esta investigação é
uma farsa, e me atrevo a perguntar quais são vossos verdadeiros motivos para esta caça
às bruxas!
— Mas o que significa isso?! – gritou Green.
— Isso significa que as cabeças coroadas que o senhor diz que vão ficar tão ofendidas
com essas mortes, são as mesmas às quais a Ordem salvou! O Regente, o Czar, o
Imperador de Hadsburg, todos eles deviam agradecer a nós!
— E por que, pode-se saber?
— Por garantir suas terras contra uma ameaça que sequer reconhecem até que tudo
exploda debaixo do nariz deles! Exatamente como o senhor está fazendo! Por que é isso,
não é mesmo, Senhor Green? Por que é que o senhor varre essa ameaça para debaixo do
tapete?! Será que é porque... – Beau engoliu as palavras, obrigando-se a se calar para não
se colocar em posição verdadeiramente temerária.
— Oh, não, por favor, não pare, continue... – Green o incentivou, apoiando o queixo na
mão e esperando atentamente que Beau terminasse. A pergunta não formulada ficou
suspensa no ar como uma nuvem de fumaça negra no recinto da Câmara. Seria possível
que Green pudesse ser um deles...? Mas até mesmo Beau sabia que isso era absurdo. Se
Ezra Green fosse um Prometeo, a Ordem teria sabido disso há muito tempo. Não, Green
os odiava por razões completamente diferentes.
—Não é nada, —murmurou Beau.
— Ótimo. Agora, continuando, estou terminando com as acusações, milorde. Quando
souber algo sobre vossos companheiros, qualquer coisa, vireis até aqui comunicar isso
diretamente a mim.
— Por quê? – perguntou Beau. – O que é que o senhor vai fazer? – Os olhos de Green
brilharam.
— Terei que prender todos no preciso instante no qual colocarem o pé em solo inglês.
— E por quê?
— Pelos setenta assassinatos. Não quero fazer isso, é claro, levar nossos heróis sob
custódia – disse ele. – Porém, receio que seja essa a única maneira pela qual
conseguiremos aplacar a ira de todos esses governos estrangeiros. Pelo menos vossos
companheiros vão receber o tipo de julgamento que não deram às vítimas deles.
— Vítimas?! – exclamou irado, mas logo se conteve, procurando ter paciência. – Quer
dizer que é isso o que planeja para eles. Um julgamento da Câmara dos Lordes?
— A justiça assim o exige.
— É o vosso orgulho que o exige, Senhor Green..., não vou me sentar! – gritou, quando
outro membro do comitê tentou lhe dizer que se sentasse. – Humilhação pública?! Então
o senhor não conhece esses homens! Preferem morrer antes de serem desonrados!
— Oh, imagino que ambas as coisas vão acontecer, Lorde Beauchamp. A boa corda
inglesa é forte o suficiente para pendurar tanto nobres quanto plebeus. A única pergunta
é: o senhor vai se juntar a eles na forca?
— Os da sua laia não preferem a guilhotina? – disparou Beau, mas Green se limitou a
sorrir.
— Confie em mim, vamos chegar ao fundo de tudo isto, Lorde Beauchamp. Enquanto
isso, não faça nenhuma bobagem, por favor. Para minha satisfação, até agora o senhor
colaborou, mas se tentar advertir seus irmãos sobre os nossos planos, eu lhe prometo que
vai compartilhar da mesma sorte que eles.
Feita a ameaça, Green ignorou o comitê e saiu da câmara.
Seu bastardo desgraçado!
Beau estava tremendo de tanta raiva. Irritado, tirou a gravata, pois se sentia
estrangulado. Se pelo menos Virgil estivesse vivo para lhe dizer o que devia fazer...
Sem dúvida, a maior vitória da Ordem não podia pagar tal preço. Eles sempre
estiveram dispostos a dar a própria vida pelo país; mas serem julgados como os viões
naquela etapa final era uma traição do país ao qual eles haviam dado tudo para defender.
Quando saiu à rua, ainda como que em um sonho, Beau jurou que não deixaria que
isso acontecesse. Drake e os demais haviam acabado de derrotar os últimos Prometeos;
agora cabia a ele salvá-los.
Mas como? Pense! Parecia que as paredes estavam se fechando em torno dele. O que
faria Virgil?
De chapéu na mão, apoiou as costas na parede do prédio e olhou para o céu azul acima
das torres de Westminster, tentando convencer a si mesmo que não estava aterrorizado
nem completamente angustiado.
Aos poucos o pulso começou a voltar à normalidade. Esforçou-se para clarear a mente.
Obviamente tinha que mandar uma mensagem para Max, para adverti-lo que não
voltasse ainda à Inglaterra com a equipe, caso algum deles ainda estivesse vivo.
Infelizmente, devido à investigação, Green já conhecia a maior parte dos canais de
comunicação que os agentes da Ordem usavam.
Mas, quanto mais pensava no assunto, supôs que não seria um problema tão grande
assim enviar uma carta para Madame Angelique. Ela podia colocar alguns batedores ao
longo da costa francesa para ver se encontravam Max e seus homens e lhes entregar a
mensagem.
Claro que já poderia ser tarde demais. Se o incêndio naquela caverna nos Alpes havia
acontecido algumas semanas atrás, então eles poderiam desembarcar na costa a qualquer
momento, e dali, não era uma viagem tão longa de volta à Inglaterra. Ele poderia colocar
seus homens para vigiar os agentes que voltassem ás costas britânicas, bem como nos
vários cais de Londres.
Mas Green, sem dúvida, também teria feito isso. Seria simplesmente uma corrida para
advertir seus irmãos guerreiros para que ficassem longe dali até que tudo aquilo se
resolvesse, a não ser que Green os prendesse antes.
Com a cabeça ainda fervilhando, seu estado de ânimo se abateu. Beau estava ansiando
pela companhia de Carissa quando chegou a casa.
Estava condenadamente cansado, quase não havia dormido na noite anterior devido às
condições da viagem. Aquelas horríveis estradas e o sacolejo do mar havia tornado difícil
conciliar o sono, e ao chegar a casa, em vez de descansar, teve que ir correndo se sentar
diante do comitê para se submeter àquele extenuante interrogatório.
Agora tinha em mente a esposa dormindo na cama lá em cima, pondo em dia o
descanso, também. Mal podia esperar para tirar a roupa e se juntar a ela. Não havia nada
melhor do que sentir seu calor, aquele corpo macio junto ao dele..., e se acontecesse algo
mais além de dormir, ficaria feliz com isso também. Só a visão do terno sorriso dela já o
alegrava.
O toque suave e estável de Carissa lhe proporcionaria comodidade sem palavras depois
de todo aquele agravo.
Inferno, era tão errado assim que um homem tivesse ocasional necessidade do afeto e
do apoio da esposa?
Abriu a porta, entrou e fechou-a silenciosamente, esperando que a senhora da casa
estivesse dormindo ainda.
—Lady Beauchamp está lá em cima? —murmurou para o mordomo, assim que pisou
no vestíbulo da entrada.
— Não, milorde. Milady saiu – respondeu Vickers.
— Saiu?! – repetiu ele, muito surpreso. – O que quer dizer com saiu? – Não era essa a
resposta que ele queria ouvir.
Não havia lhe dito especificamente que ficasse a salvo dentro de casa, devido à ameaça
de Nick?
— Aonde ela foi?
Antes que o mordomo pudesse responder, o tilintar das badaladas do relógio musical
disparou. Beau apertou os dentes. A delicada melodia parecia um rangido sobre ele.
— A senhora deixou um itinerário, caso o senhor quisesse se juntar a ela, milorde.
— Itinerário...? – murmurou ele, meio aborrecido, arrebatando o papel da mão de
Vickers.
À medida que seu olhar percorria a nota, não conseguia acreditar no que lia. Era uma
lista de galerias de arte que, ao que parecia, ela havia ido visitar. Um desafio claro e nítido
às ordens estabelecidas por ele.
Mas que inferno, ela deve ter ido bisbilhotar para obter informações sobre aquele
maldito artista!
Por que ela...? Aquela pequena encrenqueira intrometida! Ele se indignou. Como é que
ela se atrevia a ignorar seu senhor e a simples solicitação do seu marido de forma tão
descarada?! Com os últimos avanços do comitê, a última coisa que precisava no momento
era que sua pequena esposa bisbilhoteira andasse por aí metendo o bedelho de novo no
que não lhe dizia respeito, causando problemas, fazendo perguntas suspeitas pela cidade!
A Ordem já tinha problemas suficientes, e eles não precisavam daquela senhora da
informação complicando as coisas ainda mais.
Inferno, tudo isso era culpa dele, que deveria ter colocado rédea curta nela muito
antes disso. Com a fúria crescendo, seus pensamentos voltaram imediatamente ao
engano da noite de núpcias. Ele havia lhe dado duas semanas para contar tudo, havia sido
mais do que gentil com ela nesse meio tempo, e ela ainda não havia confessado nada.
Percebeu que havia cometido um erro. Devia tê-la confrontado no ato, na manhã
seguinte, pois agora ela estava pensando claramente que havia conseguido o que queria
com aquele joguinho. Bem, ele havia permitido isso, e agora estava pagando caro. Decerto
ela o via como um tolo.
Se ela podia desobedecer de forma tão descarada as instruções específicas que lhe
dera, então era óbvio que a gentileza e a paciência que tivera com ela haviam sido
interpretadas como fraqueza. Beau olhou para o primeiro local da lista e, com um
grunhido baixo, foi até a porta. Já estava na hora de trazer sua boa esposa de volta para
casa.
Capítulo
19
C arissa estava cansada, também, mas não se deu ao luxo de dormir. Se Beau
tinha que sofrer, ela sofreria junto com ele. Jurou que ele não passaria por tudo aquilo
sozinho.
Mesmo assim, a fadiga, ou todas aquelas intrigas de espiões, na certa estavam
deixando-a meio paranoica, pensou enquanto caminhava através da galeria de arte,
porque poderia jurar que estava sendo seguida. Sem dúvida alguma era simplesmente sua
mente cansada, ou então, coisas da imaginação, que prega peças nas pessoas.
Depois de tudo, Beau tinha razão, ela não era uma agente treinada, na verdade, não
passava de uma neófita, nervosa com a procura que havia empreendido. No entanto,
estava decidida a ajudar o marido. Podia ser apenas uma bisbilhoteira, mas sabia como
reunir informações sobre alguém, que tipo de perguntas a fazer e como conseguir
respostas sem ser óbvia demais.
Na realidade, ela estava usando suas artimanhas femininas em cima do curador da
terceira galeria de arte que havia visitado até o momento, enquanto que Beau estava
retido, sendo assado a fogo lento e repreendido mais uma vez pelo Comitê.
Pobre querido.
Não via razão alguma pela qual não devesse começar, já que não havia tempo a perder
se fossem investigar quem havia contratado Nick, e oxalá o impedissem de atirar em
quem quer que fosse o alvo pelo qual ele havia vindo até Londres, para matar.
Ela sabia, é claro, que Beau poderia fazer um escarcéu quando lhe contasse o que havia
feito durante o dia.Mas, no final, tinha certeza de que iria lhe agradecer seus esforços,
embora, para ser sincera, a investigação não tivesse dado muito resultado ainda.
Mas não importa.
Ela não voltaria para casa de mãos vazias. Tinha que encontrar algo sobre o artista que
Madame Angelique havia descrito. Era a maneira perfeita de mostrar ao marido que tinha
valia, pois ela estava decidida a fazer com que o seu oh-muito-capaz marido a levasse tão
a sério quanto havia feito com Madame Angelique. Com efeito, ela havia tomado a
decisão de que não queria apenas o afeto do marido, mas também o respeito. Por
estranho que parecesse, sua consciência não estava nada satisfeita com isso.
Como é que podes querer exigir respeito quando, na verdade, não conquistastes dito
respeito?
Sequer lhe dissestes a verdade! Mas farei isso, ela insistiu. Eu vou contar tudo para ele,
assim que estiver segura de que ele não vai destruir nosso casamento. Não lhe dizer a
verdade é o que pode destruir teu casamento, sua covarde inteligente, repreendeu a si
mesma.
Mas não posso correr esse risco. Não consigo suportar sequer a ideia de perdê-lo!
Em seguida sacudiu a cabeça, tratando de sacudir também as dúvidas.
Devo ser tão louca quanto a metade desses artistas, disse ela baixinho, falando sozinha.
A sensação mais incômoda de todas era a desconfiança de que não era o respeito de
Beau que ela procurava de verdade, mas o próprio.
Pode ser que haja um pouco disso sim,admitiu ela.
Sem dúvida, o fato de que ela havia acreditado nas mentiras de Roger Bentone, devido
a isso caído em desgraça, havia se jogado nos braços de um homem que nunca a amou,
pois ela estivera tão desesperada para amar que voluntariamente enganou a si mesma
sobre a sinceridade dele; é claro que, no fundo, sabia que ele era um tremendo sem-
vergonha, mas ela havia ignorado deliberadamente a própria intuição pela premente
necessidade de acreditar. O fato de ter enganado estupidamente a si mesma lhe custou
grande parte da autoestima. Pior que ela nunca havia se perdoado por isso.
E se isso lhe custasse Beau também, ela nunca contaria nada. Não, isso não valia a
pena todo aquele risco, pensou com um estremecimento. Depois de ter ficado órfã,
passara de casa em casa, de mão em mão, seduzida e traída, e agora, finalmente, havia
encontrado o amor. Se tivesse que mentir para continuar com ele, então, que assim fosse!
Talvez fosse melhor mesmo que ele nunca ficasse sabendo.
— Então, como posso vos ajudar hoje, Lady Beauchamp? – perguntou o curador, todo
solícito depois que ela lhe entregou o cartão de visita.
Ela ainda ria por dentro ao ver como um título mudava tanto as coisas, quando,
realmente, depois de tudo, ela continuava sendo a mesma por dentro. Era um grande
contraste com o empregado daquela livraria em Russell Square, pois este pequeno
comerciante de arte havia largado tudo para atender Sua Senhoria.
— Estou interessada em ver obras de artistas ingleses que pintaram quadros tendo
como tema a Revolução Francesa – disse ela.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Um tema curioso, se me permite observar.
— Oh sim, eu sei! – respondeu ela alegremente, representando o papel da dama
cabecinha de vento mais uma vez, pois sempre dava uma olhada na coluna da sociedade
no Post e se lembrava que ele sempre vendia arte para a aristocracia. As pinturas sempre
eram requisitadas para quintas e palacetes. E serviam como presente de casamento para
os recém-casados da nobreza, também.
— O senhor deve ter lido uma nota no jornal sobre a grande festa organizada pela
minha tia, a Condessa d’Arras, para mim e meu marido.
— Ouvi algo a respeito – admitiu ele com um sorriso. – Minhas humildes felicitações a
ambos, para a senhora e Lorde Beauchamp, milady.
— Oh, obrigada! Quanta gentileza da vossa parte! Em todo caso, quero agradecer à
minha tia, presenteando-a com uma pintura. Ela foi casada com um Conde francês, sabe.
Ela ainda tem uma propriedade lá e sei que muitas obras de arte francesas vieram para a
Inglaterra durante a guerra.
— É verdade, milady. Muitos nobres franceses tiveram que vender suas coleções para
terem dinheiro vivo para financiar a fuga da França para sobreviver. Muito triste isso. Arte
e joias foram os objetos de valor mais fáceis de serem transportados para um lugar
seguro, enquanto grande parte das propriedades foram confiscadas pela Revolução.
Ela meneou a cabeça.
— É difícil imaginar que os revolucionários simplesmente se apossaram daquelas
propriedades cujos donos estavam ausentes, onde famílias viviam há gerações e
entregado depois ao estado, e todas as outras coisas aos próprios partidários – disse ela.
— Jacobinos – cuspiu o homenzinho, enquanto os pensamentos dela remontaram ao
discurso do professor Culvert, falando de tais assuntos.
Até mesmo uma senhorita da sociedade sabia que o Ministério do Interior estava
aterrorizado com os subterrâneos dos simpatizantes jacobinos na Inglaterra. Sabia-se que
esses grupos existiam.
O governo estava sempre tentando erradicá-los antes que conseguissem iniciar um
movimento para implantar a danosa Rovolução com a indefectível guilhotina em solo
inglês.
— Bom, graças a Deus por Wellington – murmurou ela.
— É verdade – respondeu ele, concordando. – Então, poderia me fornecer, Lady
Beauchamp, mais informações sobre o tipo de pintura que a senhora está procurando?
Temos um bom número de retratos militares e algumas cenas de batalha. – Disse ele,
apontando para a parede onde estavam pendurados alguns deles.
— O senhor teria algo um pouco mais contemporâneo? Cenas das ruas de Paris na
década de 1790, talvez?
Ele ficou pensando um pouco, considerando o pedido.
— Pode ser que eu tenha algo lá atrás. Permita-me ir buscá-los para a senhora. Posso
vos oferecer uma cadeira enquanto espera, milady?
E fez um gesto para um conjunto de elegantes assentos na parte dianteira da loja,
perto de uma grande janela ensolarada. Ela sorriu.
— Isso me parece bastante agradável. Obrigada. – Ele fez uma reverência.
— Não vou demorar.
Ele se retirou para os fundos da loja e Carissa se acomodou em uma cadeira
Chippendale forrada em azul pastel com listras de cetim. Margaret continuava de pé,
então Carissa apontou para a panificadora do outro lado da rua.
Mesmo de onde estava, o delicioso cheiro de pão lhe deu água na boca.
—Tu poderias ir até o outro lado da rua e comprar alguns pãezinhos para nós,
Margaret? A manhã foi bastante agitada e estou faminta. Compra algo para ti também –
acrescentou ela, entregando-lhe algumas moedas que tirou da bolsinha presa ao pulso.
A criada sorriu e fez uma reverência, depois se apressou para cumprir sua missão. A
campainha em cima da porta da loja soou quando ela saiu. Carissa apoiou o cotovelo no
braço da cadeira, apoiou o queixo na mão e fechou os olhos; a esperança de comer algo a
ajudaria a ficar acordada. Com o sol de primavera que entrava profusamente pela janela,
bem que ela poderia dormitar, contente como um gato.
Quando a campainha soou de novo pouco depois, ela estava cansada demais para
olhar o cliente que havia chegado. Ouviu a porta sendo fechada e, ato contínuo, alguns
passos quando a pessoa entrou na loja.
— Pelo que vejo agora é patrocinadora das artes, Lady Beauchamp – disse uma voz. –
Como é aristocrática! Estou impressionado.
Ao ouvir essa voz, ela prendeu a respiração e pestanejou, arregalando os olhos e
ajeitando-se na cadeira com as costas retas. Olhando para o homem de cachos escuros,
despenteados e extravagantes, a roupa mais amarrotada ainda, ela estremeceu de pavor.
Certamente ela estava dormindo e isso era apenas um pesadelo. Roger Benton estava
diante dela, olhando-a com um sorriso socarrão.
— Se está querendo render homenagens às musas, milady, posso pensar em uma
maneira melhor de fazê-lo do que desperdiçar o dinheiro do seu marido em pinturas
caras.
A boca de Carissa secou, vendo-o se aproximar e apoiar as mãos no respaldo da
cadeira diante dela. Ele passeou o olhar por ela inteira.
— O casamento lhe fez muito bem. Tu estás espetacular, Carissa.
— Ora, cala-te – disse ela entre dentes, com o coração disparado. – Fica longe de mim!
—O quê, vais dizer que não tem tempo para um velho amigo, agora que és
Viscondessa?!
Ela estava perplexa, quase que surpresa demais para falar. Como é que ele se atrevia a
se aproximar dela dessa maneira?! Bem que Tia Jo havia lhe advertido de que ele poderia
tentar algo assim, só que ela não esperava que fosse tão rápido.
—Eu sempre soube que um dia te encontraria de novo – disse ele, levantando as abas
da casaca cor de ameixa escura e se sentando diante dela com a desenvoltura de um
dandy.
Ele adotou uma pose elegante, cruzando as pernas e apoiando o queixo nos nós dos
dedos. Ele lhe deu outro sorriso forçado, mas ela só conseguia reparar na mudança da
aparência dele. A dissipação havia enviado a boa aparência dele para o espaço. Ele havia
emagrecido demais, ela notou. A pele estava macilenta, tinha círculos escuros debaixo dos
olhos e os grossos lábios, os quais tanto a encantaram, estavam agora irritados e
inchados, como se tivesse passado várias semanas gripado. Mas foi naquele olhar vítreo
que ela notoua maior mudança. Os olhos dele brilhavam com desespero. O que é que
esse homem havia feito a si mesmo? – ela se perguntou, sobressaltada ao sentir uma leve
ponta de pena em meio ao ódio e repulsa.
—Tu estavas me seguindo?
— Apenas com a esperança de finalmente ter uma oportunidade de te desejar muitas
felicidades pelo teu casamento. Sabes, estive me lembrando dos momentos que
passamos juntos...
— Para já com isso, seu abutre – interrompeu ela em tom baixo. – Tu sabes muito bem
que não quero ver a tua cara!
— Oh, mas isso é muito triste mesmo. Bom, receio que vai te custar algo para que eu
me vá.
Com o coração disparado, ela olhou para os lados, certificando-se de que nem
Margaret nem o comerciante de arte estavam à vista. Depois se virou para olhá-lo.
— Lamento muito – disse ele cortesmente. – Nunca pensei que chegaria a tanto. Mas a
trejetória de um poeta não é fácil.
— Só que tu não és poeta – sussurrou ela.
— Eu sou sim. Até escrevi um poema para ti, minha querida. Uma quintilha. Queres
ouvi-la? Era uma vez, uma senhora em Brighton, uma ruiva a quem quase nada conseguia
assustar, antes que a desaprovação da tia fizesse com que o tio, cuja fortuna era
grande,fosse o titã que a escondesse5.
Ela zombou e se esforçou para ter paciência, então meneou a cabeça.
5. A poesia perde o sentido original ao ser traduzida.(Nota da tradutora).
— Você sabe o que o meu marido vai fazer contigo se ficar sabendo disto?
— A pergunta certa é: o que é que tuirias fazer? – Retrucou ele.
Ela o olhou friamente.
— Quanto é que tu queres?
— Duas mil libras – respondeu em tom neutro. – Creio que é justo, não?
Ela estremeceu.
— Mas isso é mais do que da última vez.
— As apostas subiram.
A pena que havia sentido se dissipou. Não, ela se deu conta, ele é um ser repugnante!
Como é que podia ter pensado diferente antes?!
— Mas isso é muito dinheiro. Preciso de algum tempo. Tenho apenas quinhentas libras
na minha conta pessoal.
— Bom, fico com essas quinhentas por enquanto, e vou te dar dois dias para me
trazeres o restante.
— Muito generoso da tua parte – murmurou ela friamente. – Tu sabes que eu queria,
com todo o meu coração, nunca ter posto os olhos em ti. Não sabes?
— Não precisas ser tão pouco gentil, querida. Agora que estou te vendo, – disse ele,
fazendo uma careta – tu devias me agradecer porque tudo que te peço é dinheiro.
Serzinho repugnante!
O que foi que eu vi nele um dia? Ela mal conseguia acreditar que estava se deixando
chantagear, mas, à essa altura, ela teria pagado a soma pedida só para que ele fosse
embora. Supunha que, pelo menos, devia agradecer pelo fato de que ele não havia se
apresentado na casa dela. Suas mãos tremiam de medo quando pegou o livrinho de
cheques na bolsa. Baixou a cabeça e usou a pena que estava sobre uma mesa ali perto
para preencher o cheque que esvaziaria sua conta.
Ela o entregou para ele, que sorriu e soprou o papel para secar a tinta.
— Pronto... Vistes? Foi tão difícil assim? Bom, foi um prazer fazer negócio com a
senhora de novo, milady. Podes levar o restante para mim no Hotel The Clarendon, depois
de amanhã. De acordo?
— Vai para o inferno! – disse ela, e ele forçou um sorriso tenso.
— Quanto ardor! Quase havia me esquecido de como tu te queimastes por causa da
veemência, ma chère. Vou entender isso como um sim. – Dobrou o cheque e o colocou
discretamente no bolso interno da casaca. – Até então. – Pôs-se de pé e esboçou uma
reverência.
—Lady Beauchamp.
Quando se virou para sair, a campainha da porta da loja soou de novo. Carissa deu
graças a Deus que Margaret não estivesse ali para presenciar a cena, mas, quando olhou
para a porta, ficou paralisada de horror.
Não era a criada.
Seu marido entrou na loja, com aqueles penetrantes olhos azuis analisando a cena com
olhar arrebatador. Pelo visto, Roger não havia se dado conta de quem era o recém-
chegado enquanto se dirigia à porta, parecendo ansioso para trocar o cheque no banco e
pegar o dinheiro para gastá-lo no primeiro antro mais próximo para fumar ópio.
Mas, quando Roger se aproximou, Beau fechou a porta e a trancou com chave.
Ele parou, surpreso, ao se dar conta do perigo quando viu Beau baixar a persiana.
Beau se apoiou contra a porta e cruzou os braços sobre o peito. Ela congelou na
cadeira, olhando incredulamente para o quadro do seu pesadelo: o homem que a havia
seduzido cara a cara com o homem que amava. O marido para quem havia mentido.
De repente, Roger começara a lhe parecer mais desarrumado do que nunca, mas
tratou de tirar isso da cabeça. Roger tinha a esperança de que estivesse errado sobre a
grande suspeita quanto à identidade do homem louro diante dele.
—Hã..., estás bloqueando a porta, companheiro – disse ele em tom amistoso.
Beau o olhou com olhar sombrio carregado de morte iminente.
— Carissa – murmurou ele com voz aterradoramente calma. – Quem é este?
Capítulo
20
encontrou em nenhuma das duas, ele foi até a terceira da lista. Continuava querendo, a
cada metro que percorria, estrangular aquela mocinha por xeretar em assuntos os quais
ele havia dito especificamente que deixasse por conta dele.
Em todo caso, estava vindo pela rua onde ficava o próximo endereço quando viu a
criada da esposa sair da galeria de arte e ir até a panificadora que ficava em frente.
Viu a carruagem que havia dado para Carissa como presente de casamento e disse ao
cocheiro que estacionasse atrás da mesma. Então desceu e olhou pela grande janela da
galeria de arte enquanto ia se aproximando, e viu sua mulher falando com um homem.
Por uma fração de segundo, a reação instintiva que teve foi o pensamento arrepiante
da infidelidade da própria mãe com seu pai. Mas, aproximando-separa ver melhor o
homem em questão, o medo foi embora.
Não, ele se deu conta, algo mais estava acontecendo ali.
Olhou de novo para Carissa e, na próxima batida do coração, seus instintos muito
afiados de espião se fixaram nos sutis sinais que lhe diziam que ela estava se sentindo
ameaçada. A postura tensa. A palidez do rosto. Então, a raiva que havia sentido por ela ter
ignorado suas ordens sumiu imediatamente quando seus instintos protetores se puseram
em alerta máximo.
Ele já estava prestes a entrar para resgatá-la quando viu que ela escreveu algo em um
papel e o entregou ao homem. Ele estacou, um tanto desconcertado. Será que ela estava
passando informações para alguém? Será que era algum dos inimigos dele? Foi então que
resolveu intervir.
Na verdade, estava esperando uma resposta, mas parecia que Carissa não conseguia
falar. Dirigiu então a próxima pergunta ao estranho, para aquele magro e um tanto
arruinado dândi.
— Tendes algum assunto com minha esposa? – perguntou ele calmamente.
— Nã-não.
— O que foi que ela vos deu?
— Nada!
Sem disposição paradiscutir, Beau disparou a mão direita e agarrou o dândi pelo lenço
que o outro tinha em volta do pescoço. Então, levantou o braço um pouco para forçar o
assustado sujeito até que ele ficasse nas pontas dos pés para evitar ser estrangulado.
Pelo rabo do olho, viu Carissa olhando-o com a mão sobre a boca aberta, enquanto o
desconhecido lutara para se soltar daquelas garras que lhe apertavam a traqueia. Beau,
por sua vez, enfiou a mão no bolso interno da casaca e, calmamente, recuperou o pedaço
de papel que havia visto o sujeito colocar ali. Soltou o jovem, que cambaleou à frente,
arquejando e procurando respirar golfadas de ar, segurando o pescoço.
—O senhor é louco!
— Sinto muito – disse Beau suavemente.
Desdobrou o papel. Não sabia o que o esperava, mas, sem dúvida alguma, não era o
que estava vendo. Um cheque da conta pessoal da esposa no valor de quinhentas libras.
Ele ficou olhando para o cheque, controlando a fúria e tentando dar sentido à coisa toda.
Mas que diabos...?!
Nas discussões financeiras que havia tido com o tio dela quanto à elaboração dos
detalhes do acordo matrimonial antes do casamento, Beau ficara sabendo que, como
órfã, Carissa havia herdado um fundo fiduciário muito generoso do próprio pai. O
fideicomisso outorgava a ela uma renda anual de 500 libras para ela fazer o que bem
quisesse, além do próprio acordo de dote que lhe proporcionava certa quantia em
dinheiro todo mês.
Mas, por que diabos ela havia acabado de abrir mão de um ano inteiro de renda em
favor desse estranho?!
Beau olhou para ambos.
— Alguém pode me explicar o que significa isto?
Ela tampouco respondeu, mas o olhar terrível que trocaram, de fato, algo quanto à
forma com a qual ambos reagiram entre si lhe avisou de que os dois já haviam sido um dia
mais do que amigos. E então, a verdade brilhou. A falta de virgindade de Carissa na noite
de núpcias... A maneira atenta com a qual ela cuidava de toneladas de fofocas... Agora
entendia que não era nenhum interesse lascivo, mas porque estava vigiando os próprios
segredos.
Ele somou dois mais dois e estremeceu por dentro. Quer dizer então que era esse o
sujeito de quem ela não quis me falar.
O desconhecido então tentou mentir. Primeiro, pigarreou. Depois, disse:
— Suponho que o senhor seja Lorde Beauchamp. Sou artista, senhor. Sua Senhoria
acabou de me encomendar um quadro. Supunha-se que iria ser uma surpresa para o
senhor.
— Sério? E agora eu vim e estraguei a surpresa..., não, acho que não – murmurou, e
quando o dono da galeria veio da parte dos fundos da loja, ele gritou bruscamente para o
homenzinho: – Deixe-nos a sós!
Assustado, o homenzinho parou no meio de uma passada, olhou em torno e para os
outros dois, em seguida, sem uma palavra, voltou para onde tinha acabado de sair.
Mesmo que Beau tivesse a sensação de que já sabia qual seria a resposta, perguntou
assim mesmo.
— Para que é o dinheiro?
Quando deu um passo à frente, o desconhecido pulou para trás, mantendo-se à
distância de um braço.
— Sejamos racionais quanto a isto, Beauchamp! Violência não resolve nada! Além do
mais... – olhou para Carissa. – E o senhor pode se dar a esse luxo. O que estou vendendo
vale pelo menos o dobro do preço que pedi.
— E o que exatamente está vendendo, senhor...?
— Benton – respondeu ele cautelosamente. – Roger Benton.
— E está vendendo...?
— Proteção, – respondeu, armando-se visivelmente de coragem – para a reputação da
vossa senhora.
Endurecido que estava pelo lado sombrio da vida, Beau ficou meio surpreso pelo fato
de que o canalha havia acabado de admitir a extorsão. O que será que havia de tão ruim
assim que Benton tinha a respeito dela? Beau olhou para Carissa, ansiando que ela
dissesse algo. Qualquer coisa.
Mas ela ficou olhando-o com angústia emocionada transbordando pelos olhos. A dor
no olhar da esposa renovou a fúria crescente nele. Não sabia o que poderia ter
acontecido entre aqueles dois, mas era óbvio que esse homem havia lhe causado dano, e
isso era tudo o que lhe importava.
Tudo nele queria atirar Benton pela janela. Mas ele tinha em mente uma ideia melhor...
— Entendo. – Ele endireitou o corpo com olhar muito calmo.
— Quanto, então?
— Três mil.
—Tu tinhas dito dois! – exclamou ela.
Ele olhou por cima do ombro com um olhar zombeteiro.
— Os bolsos dele são mais fundos do que os teus.
— Oh, Deus! – Ela finalmente desabou, ocultando o rosto entre as mãos e se virando.
— Não, é justo – disse Beau rigidamente, como uma cópia do tio dela, Lorde Denbury.
Interpretando seu papel com um tenso assentimento, ele estava, é claro, planejando já
a vingança.
— Este assunto é muito sério, e todos nós sabemos o quanto é fácil começarem os
rumores. Uma vez iniciados, são impossíveis de serem erradicados. Não vale a pena.
Milady, a senhora poderá me explicar vossa parte nisto mais tarde. Senhor Benton, é claro
que eu pagaria qualquer preço para proteger a honra da minha família.
— Muito razoável, Beauchamp.
— Eu sou um homem razoável – disse ele com os dentes apertados – e não desconheço
os caminhos do mundo. Mas meu talão de cheques está na minha casa. Se me
acompanhar no meu coche, vamos lá agora mesmo e eu vos faço um cheque com o valor
integral. Então o senhor poderá seguir vosso caminho...
— Um momento. Agora, depois de tudo, dificilmente entrarei no vosso coche,
Beauchamp. Não sou tolo. E não tenho interesse algum em ver o interior da vossa casa,
embora esteja seguro de que é esplêndida – disse ele com um sorriso zombeteiro,
parecendo muito satisfeito com a própria inteligência. – Vamos nos encontrar em um local
público.
— Como quiser – Beau lhe dirigiu um olhar frio. – Nem todos são tão honrados quanto
o senhor, Benton. Eu só estava tentando manter este assunto longe dos olhos alheios.
Mas, já que o senhor prefere assim, então podemos nos encontrar em..., digamos, na
Osteria da Gaivota Cinza, no cais perto de Billingsgate. Conhece o lugar?
Benton assentiu com cautela.
— Eu vos encontrarei lá.
— Ótimo. Então, quando tivermos concluído nosso negócio, nunca mais vai vos
aproximar da minha mulher de novo, e vai manter a boca fechada sobre este assunto..., se
é que dá valor à vossa vida.
—Bastante justo.
Beau deu um passo para o lado de onde estivera bloqueando a porta e a abriu para
Benton, que avançou para sair, parecendo um tanto aliviado por conseguir escapar
limpamente. Olhou para Carissa, depois parou junto de Beau, com a mão na maçaneta.
— Na Osteria A Gaivota Cinza, dentro de uma hora.
Beau assentiu com a cabeça e Roger Benton saiu. Ele o seguiu com o olhar, levantando
a cortina da janela da porta e olhando-o com os olhos semicerrados quando o canalha fez
sinal para um coche de aluguel, que parou para ele.
Benton subiu e, enquanto o coche contratado rodava pela rua, a criada de Carissa
retornou. Ele abriu a porta para ela, que entrou com uma alegre lufada de vento.
— Oh, então Sua Senhoria nos encontrou! Está com fome, senhor? – Levantou o
embrulho de madalenas que havia comprado na padaria.
— Não, Margaret. Sua senhora estava de saída para voltar para casa. Chegando lá, diga
ao Senhor Vickers que prepare a carruagem de viagem, entendido? Sua senhora vai
viajar..., e a senhora vai com ela. Vão sair imediatamente, esta tarde ainda.
— Beau! —Gritou Carissa.
Ele a ignorou, e ela estremeceu.
— Vai ser uma longa viagem pelo país, portanto, embale todas as roupas que achar que
ela vai precisar para um mês. Pode ir para a carruagem agora e espere lá. Sua Senhoria vai
daqui a pouco. – Disse ele para Margaret.
— Sim, senhor – murmurou a criada, hesitando, com um olhar sombrio para sua ama.
Mas quando ele fez um suave movimento em direção à porta, Margaret fez uma
reverência e correu para dizer a Jamison que sairiam dali a pouco.
Beau ouvia Clarissa chorando de mansinho, então, virou-se lentamente e deu de cara
com aquele olhar choroso.
— Lamento muito – sussurrou ela, com a vergonha e a dor estampadas nos olhos.
Ele ficou rígido, ameaçado pelas lágrimas. Aquele não era o lugar nem o momento para
discutir o assunto e ele não estava disposto a abrir mão da ira que estava sentindo. No
entanto, cavalheiro até o último fio de cabelo, ofereceu a mão à esposa.
— Venha, eu te acompanho até a tua carruagem.
Ela ficou parada onde estava, lutando para manter a compostura, então tirou um
lencinho da bolsinha amarrada ao pulso.
— Está me mandando embora?
—Tu não me deixas opção – respondeu ele.
— E t-tu va-vais lá para ma-matá-lo?
— Deveria?
Ela sacudiu a cabeça, encolhendo os ombros.
— Só me surpreendi pelo fato de tu não desafiá-lo para um duelo.
— Não tem sentido duelar com um homem que não tem um pingo de honra. Isso
aniquila o propósito todo em si. – Ele fez uma pausa, baixando a cabeça. – Não quero
fazer suposições equivocadas, já que tu não facilitastes nenhuma informação para mim,
para que eu siga em frente, mas me parece que esse homem não tem poder para te
chantagear, a menos que a tua participação com ele em algum momento foi voluntária...,
é isso?
— Sim – admitiu ela em um sussurro sufocado, baixando a cabeça. – Foi o maior erro
da minha vida, mas ele..., ele não me forçou a nada.
Beau assentiu com a cabeça, sentindo-se estranhamente amortecido, como se
estivesse observando a cena que ali se desenrolava fora do próprio corpo. Talvez seu
coração continuasse abalado, agora que enfrentava a realidade do tal engano, mas nada
disso lhe parecia real.
— Sabes que se eu tivesse tomado outra atitude aquele sujeito estaria morto aqui, no
chão, neste preciso instante, não sabes? – Secando as lágrimas com o lencinho, ela
conseguiu assentir. – Isso ainda pode ser arranjado, se tu achas que ele merece –
acrescentou ele. – A escolha é tua. Apenas dei minha palavra, e vou me encarregar de
tudo. De fato, isso me daria um prazer enorme.
— Não. Mas não pelo bem dele, mas pelo teu próprio bem. Não vale a pena o risco que
tu correrias, com o comitê respirando na tua nuca.
Ele não conseguiu evitar uma reação cínica, murmurando:
— Estou comovido pela tua preocupação.
— Por favor! Não era minha intenção te magoar...
— Para com isso! – Ele a olhou em sinal de advertência, lutando contra uma maré de
angústia. – Agora não. – E a olhou de novo. – Venha. Vou te levar para casa.
Ela fechou os olhos, procurando se acalmar. Pegando a bolsinha, foi com ele até a
porta, de cabeça baixa. Mas de repente, parou, olhando-o nos olhos.
—Tu vais mesmo pagar esse homem, igual fez Tio Denbury?
— Claro que não – respirou ele. – Vou dar o troco a ele.
O que Roger Benton não sabia era que a Osteria da Gaivota Cinza era a guarida de um
bando de reputação infame, que trabalhava nos molhes como caça-recrutas, estivessem
estes dispostos ou não.
Portanto, em vez de ir até lá entregar mais de três mil libras para comprar o silêncio do
chantagista, era o chantagista que iria ser entregue ao grupo de caça-recrutas.
Quando Beau se sentou na taverna do marinheiro diante de Roger Benton uma hora
mais tarde, deu uma olhada para o grupo de morenos lobos do mar que bebiam em um
canto. Ele lhes fez um discreto sinal com o dedo, depois desatou a rir quando eles
rodearam o dândi chantagista.
Era uma verdadeira lástima que Carissa não estivesse ali para ver como o grupo de
caça-recrutas arrastou Roger Benton para longe, esperneando, choramingando e
ginchando, para apresentá-lo ao serviço de Sua Majestade e vestirem um uniforme no
mais novo recruta da Marinha Real.
Agora ele pode ter a chance de fazer algo de bom por si mesmo, pensou Beau,
divertido, enquanto tomava uma bebida. Ia precisar disso antes de voltar para casa, pois o
próximo passo era a parte mais difícil daquilo tudo.
Lidar com Carissa.
Não havia sentido protelar o assunto. Esmagado pelo peso da cólera e da frustração,
ele bebeu um merecido gole de uísque, ignorando também a dor. Em seguida, colocou o
copo sobre o tampo da mesa, organizou os pensamentos e voltou para casa.
Ao chegar, os criados já haviam empacotado tudo nas malas. Margaret estava dizendo
aos lacaios que ainda tinham que carregar tudo para dentro da carruagem de viagem.
— Onde está Lady Beauchamp? — perguntou ele ao mordomo.
— No salão, milorde.
Beau subiu a escadaria lentamente e a encontrou sentada sozinha diante do relágio
musical automático, esperando o mesmo soar. Os ombros estavam caídos. E os finos
braços estavam envoltos na cintura, como se estivesse tentando evitar um calafrio.Ele
empurrou a porta, depois a fechou com um leve clique. Ela nem o olhou.
Quando parou ao seu lado, ela o olhou. Ele reparou nos olhos vermelhos, inchados, e
no rosto pálido. A imagem dela, daquele jeito, quase arrancou seu coração. Teve o ímpeto
de pegá-la nos braços e lhe dizer que nada daquilo importava; queria aliviar a dor que
aquele bastardo havia feito a ela.
Mas ela o usara, e um homem precisa estabelecer um limite em algum ponto, ou ele
deixaria de ser homem. Desconfiando das próprias emoções, sem saber muito bem o que
fazer, sentou-se ao lado dela e ficou olhando para o relógio também.
— Benton nunca mais será problema – disse ele, passando por cima dos detalhes. –
Caso tu queiras saber dele.
— Obrigada – sussurrou ela com voz trêmula. Fez uma pausa, com a cabeça muito
baixa. – Tu sabias o tempo todo, não é?
— Que tu não eras virgem? Mas é claro que sim –murmurou ele com cautela. – Desde
a noite de núpcias.
— E por que não me dissestes nada?
Ele se virou para ela.
— E por que tu não me falastes?
Ela hesitou.
— Tive medo.
— De mim? É sério isso?! – ele perguntou em voz baixa, cheia de indignação. – Por
quê? O que foi que eu te fiz para que me visses como uma ameaça?
— Não, não foi isso o que eu quis dizer... Eu não queria te perder!
— Entendo. – Essa resposta era uma verdadeira prova para um homem cínico. – Quer
dizer que tu me enganastes por amor? É essa a tua defesa?
— Beau, por favor. Eu não sabia como irias reagir se eu te contasse antes. Tu terias
retirado o pedido de casamento, e depois ainda tinha o fato de que nós dois nos
colocamos naquela situação escandalosa. E então, mais tarde, depois da nossa noite de
núpcias, parecia que tu não tinhas te dado conta, e eu não sabia como trazer o assunto à
baila! Eu só queria que as coisas ficassem como estavam. E então ele..., apareceu. E mais
uma vez, queria dinheiro. Aquele horroroso..., parasita!
— Bom. – Ele cruzou os braços sobre o peito. – Eu diria que o teu gosto para homens
melhorou muito desde então. – Olhou-a de soslaio. – Pelo menos agora eu entendo por
que tu vivias obcecada pelos mexericos.
— Se te interessa saber, eu vou me envergonhar de mim mesma pelo resto da vida!
Não consigo acreditar que fui tão egoísta assim. Sequer pensei no impacto que causaria
na tua reputação, mesmo depois de casados.
— Oh, sou bastante difícil de envergonhar – disse ele arrastando as palavras em voz
baixa, embora não pudesse dizer por que diabos estava tornando as coisas tão fáceis para
ela, que merecia sofrer, ou pelo menos se humilhar, mas só um pouco.
Ela o olhou com aqueles olhos grandes e expressivos, cheios de dor e pesar.
— Eu só estive..., com ele..., uma vez. Faz quase dois anos, uma indiscrição juvenil.
Nunca tive a intenção de que isso acontecesse, mas..., apenas aconteceu.
— Por favor, não preciso saber disso.
Ela soltou uma dolorosa zombaria com lágrimas nos olhos.
— Afinal, devo te contar ou não? De qualquer modo, tu vais ficar zangado comigo,
tanto faz se eu te contar ou se continuar em silêncio...
— Ouve... Não é o fato de teres te deitado com ele que me dói. Pelo amor de Deus, eu
mesmo não sou santo – murmurou, muito surpreso ao ouvir a si mesmo admitir que nada
podia lhe causar dano. Ele a olhou, meio perdido. – É evidente que tu não sentias que
podias confiar em mim. Durante todo esse tempo tu pensastes que havias conseguido o
que querias. Tu realmente deves achar que eu sou um rematado tolo.
— Não!
— Não sou tolo, Carissa. Eu estava tratando de ser gentil contigo. Desde aquela noite,
fui tão paciente quanto pude ser. Esperando que tu me procurasses e que confiasses em
mim. Eu te dei várias oportunidades para me contar, então tu podias ver que eu ia
entender. Queria que tu soubesses que estava a salvo comigo. Pensei que, certamente, se
eu te desse algum tempo, tu acabarias por se abrir comigo e verias que podes confiar em
mim. Mas tu nunca fizestes isso. – Ela começou a chorar de mansinho de novo, com a mão
nos lábios. – O que tu achas que eu faria..., abandonar-te?! – perguntou ele com voz
cansada, oferecendo-lhe um lenço. – Depois de todas as mulheres com as quais estive?
Não sou tão hipócrita assim..., mas tenho que admitir que fiquei um tanto decepcionado.
Como é que tupudestes te enganar tanto assim ao meu respeito?
— Sinto muito.
— Pelo que, por mentires para mim, ou por que fostes apanhada na mentira?
— Eu não devia ter te mentido.
— É verdade, não devias mesmo – ele concordou, lutando para se manter firme diante
daquelas lágrimas.
Seus olhos cor de esmeraldas registraram a atitude suplicante da esposa, enquanto os
lábios rosados que havia beijado tantas vezes tremiam de remorso.
— Milorde, podes me perdoar?
Ele olhou bem para ela.
— Que tipo de ogro não o faria?! – exclamou ele. – Por favor, para com isso! Odeio te
ver chorar. Não vou te causar dano algum, Carissa. Não é questão de perdoar ou não. Não
percebes? Para ser honesto, não sei o que fazer contigo neste instante. Tu não consegues
ser verdadeira comigo. Não fazes nada do que eu te digo. Se não confias em mim, como é
que posso confiar em ti? E se não há confiança entre nós, como acha que podemos amar
um ao outro?
— Mas eu te amo! Eu te amo, Beau!
A forma como as palavras foram arrancadas dela pela primeira vez, com tanta paixão,
doeu nele, e as lágrimas naquele rostinho tão querido quase que o afligiu. Ele a olhou em
silêncio, tomado pela surpresa devido àquela feroz declaração. Antigas amantes já haviam
lhe dito isso antes, mas nunca de forma que ele pudesse acreditar..., até agora.
Até Carissa.
Aproximou-se mais, atraído por ela, mais desesperado do que nunca havia se atrevido
a admitir, pelo amor que ela lhe oferecia, fosse verdadeiro ou falso; incapaz de dizer uma
palavra sequer, tomou-a nos braços, com o coração disparado. Ela tremia nos braços do
marido, que abaixou a cabeça e reclamou sua terna boca em uma feroz tormenta de
necessidade.
Atraindo-a contra seu corpo, aprofundou o beijo e ela passou os braços languidamente
pela sua nuca, e a única coisa que ele sabia era que mulher alguma o havia feito se sentir
assim.
Queria estrangulá-la e ao mesmo tempo queria levá-la para longe, para escondê-la em
algum lugar seguro, em um estojo de veludo, onde ninguém pudesse lhe causar dano
algum. Ele ansiava se perder nela, pelo esquecimento do seu corpo rendido, a ternura
daquele coração; e, concomitantemente, com a mesma força, como um cavalo chucro que
nunca havia sido domado, queria fugir dela..., mas não conseguiu...
Ela havia se imiscuído dentro da sua alma, e ele temia por isso, sabendo que ela podia
destruí-lo se algum dia o abandonasse, já que era isso que as mulheres faziam. Não se
devia confiar nelas. Hoje ele tivera uma prova disso. Seu pai já havia lhe dito quando ele
ainda era criança, e, em algum lugar bem no fundo de si, ainda acreditava nele.
Mas, que diabos estou fazendo?!
De repente, aquilo tudo era mais do que ele podia suportar. O frio, solitário, todas as
partes sobreviventes de si mesmo que nunca havia compartilhado com nenhuma amante,
a parte que havia lhe permitido usufruir de uma noite na cama de quem quer que fosse
sem o menor risco para o seu coração..., de repente, clamando como o inferno para que
saísse dali, que mantivesse aquela mulher à distância de um braço, pelo menos. Antes que
ela o destruísse. Interrompeu o beijo e a afastou, ofegante e confuso em meio à repentina
percepção irônica de que, ao que parecia, ele não confiava em ninguém mais, só nela.
Com o coração disparado, só sabia que se não conseguisse recuperar o controle da
situação estaria condenado.
—Tu precisas ir para o campo – grunhiu, negando-se a nunca mais permitir que ela,
pateticamente, levasse-o pelo nariz.
Pelo menos ela não sabia como ele estava se sentindo. Ela se aferrou ao marido, as
lágrimas brilhando nos olhos iguais doces esmeraldas.
— Por favor, não me mandes para longe, Beau – ela suplicou, em uma rasgada mostra
denecessidade sexual. – Não me afastes de ti, meu querido marido. Agora não.
— Não. – A voz saiu áspera e estranha até para ele mesmo. – Já está na hora de fazeres
o que te digo e me mostres que podes ser uma boa esposa. – Engoliu saliva, afastando
suavemente as mãos dela do rosto dele. – Tu vais para o campo e ficarás esperando junto
com as outras senhoras até que seja seguro voltar. Então, vou mandar alguém te buscar.
Tu ficarás bastante confortável lá, e segura.
— Mas e quanto a Nick? Tu dissestes que ele sabe sobre esse lugar...
— Vou enviar instruções especiais ao sargento Parker, informando-o sobre a situação.
Tu ficarás bem. – Sentiu-se mais normal quando olhou para o outro lado e se concentrou
de novo no que precisava ser feito. – Além do mais, não pretendo dar tempo para que
Nick fique sabendo sobre a tua localização. Vou caçá-lo assim que tusaíres de Londres.
Tenho que resolver isso com ele o mais rápido possível – grunhiu, evitando os olhos dela.
Mas viu, pelo rabo do olho, que parecia que ela havia entendido o recado. Estava
colocando os pés no chão.
— Então, promete-me que vais te cuidar.
— É claro que sim.
De repente, ela pulou, soltando um grito sufocado, sobressaltada, quando o relógio
soou. Ambos estavam tão silenciosos que a metálica melodia parecia um estrondo no
silêncio da sala.
Beau colocou as mãos na cintura, sentindo dor ao se lembrar do dia no qual se casou e
de todas as esperanças que havia sentido. Mas disse para si mesmo que não era o fim do
mundo. Todo casamento tem seus altos e baixos. No entanto, por algum motivo, não
conseguiu olhá-la nos olhos enquanto soava a melodia. Cada nota tinha um tom
levemente angustiante para ele no momento.
— Vem. Está na hora de ires – disse ele quando a melodia finalmente acabou. Antes
que eu mude de ideia.
— Devo mesmo? – sussurrou ela.
— Tu não me deixas opção! – disse ele com veemência demais, negando-se a se
deixar levar. – Mas que inferno, tenho coisas demais com as quais me procupar sem a tua
intromissão, e tu tornando tudo mais difícil! Sinto muito, mas fostes tu mesma quem
provocou tudo isso.
Com a mandíbula apertada, acompanhou a esposa pelo salão com um leve toque na
parte baixa das costas dela. Ele a ajudou a descer a escadaria até o vestíbulo de entrada,
onde lhe entregou a bolsinha de pulso e ajeitou levemente a peliça sobre os ombros da
esposa para mantê-la quente.
Em seguida, levou-a para fora, onde o cocheiro esperava e beijou levemente os nós dos
seus dedos antes de ajudá-la a subir. Ela caminhava com a graça e a dignidade estoica de
uma verdadeira dama.
No momento ela se parecia muito pouco com a sua Carissa, mas, pelo que sabia, talvez
agora, livre de todos aqueles segredos e podendo ser verdadeira com ele, pudesse vir a
ser uma pessoa completamente diferente.
Só o tempo diria. Esperava que a verdadeira Carissa não fosse diferente demais. Ele
gostava muitíssimo daquele jeito adorável e enlouquecedor que ela tinha, das mentiras e
de tudo o mais. Talvez fosse esse o problema. Quiçá, no fundo, os dois fossem parecidos
demais.
Quando se acomodou no interior da grande e confortável carruagem de viagem, ela o
olhou através da porta aberta, quase como que esperando que ele mudasse de opinião.
Mas Beau se fez de desentendido.
— Escreve-me para me informar assim que chegarem lá em segurança.
Ela assentiu.
— Sinto muito – sussurrou ela mais uma vez.
Ele devolveu o olhar, rasgado de pesar e pela necessidade de mantê-la fora de perigo.
— Eu sei, doçura. – Mais uma vez, quase que ele sucumbiu à emoção, mas
rapidamente se controlou, para manter a mente nos fatos. – Diz-me – disse ele, mudando
de assunto – antes de ir, conseguistes averiguar algo útil sobre os artistas da Revolução
Francesa, nas galerias?
— Não. – Ela sacudiu a cabeça com amargura. – Toda a minha intromissão foi em vão.
Tudo foi um tremendo desperdício.
Ele franziu o cenho, notando a nota de frieza da ira dirigida a elamesma e o desgosto
no tom baixo da resposta.
—Tu só estavas entando me ajudar – disse ele, consolando-a.
Ela sacudiu a cabeça e olhou para o outro lado, os lábios em uma tensa linha reta.
— Adeus. Fecha a porta, por favor. Cocheiro!
Beau fechou a porta da carruagem e disse adeus a Margaret, que havia ficado sentada
bancando a surda-muda durante a conversa, como só o melhor dos criados conseguia.
— Tudo certo, Jamison! Mantem-nas a salvo!
— Sim, meu senhor! – respondeu o cocheiro, em seguida, cantarolou uma ordem para
os cavalos e estalou as rédeas.
Beau ficou na calçada olhando a carruagem se afastar. Cruzou os braços enquanto uma
inquietante pergunta flutuava como um fantasma sombrio perpassando sua mente.
Será que parte do motivo de ter guardado silêncio sobre o fato de conhecer o segredo
de Carissa fosse porque essa era uma forma de manter uma distância segura entre eles?
Será que ele não havia sido um nobre cruel ao lhe negar a confrontação durante todo
aquele tempo? Talvez ele estivesse apenas se poupando do risco de se entregar realmente
a ela.
Sussurrou uma maldição dirigida a si mesmo enquanto olhava a carruagem sumir de
vista ao virar a esquina. Mas que inferno! Ele era um belo de um hipócrita, isso sim.
Hipocrisia era o que mais odiava, depois dos Prometeos.
Podia ser também que... Meu Deus, talvez ele fosse até um tanto covarde, pensou com
humildade.
Os perigos que corria nas batalhas nunca o fizeram hesitar, mas nenhuma mulher antes
de Carissa jamais havia tido esse tipo de poder sobre ele.
Sabendo do perigo no qual isso o colocava, fez com que ele realmente ficasse nervoso,
inquieto.
Qualquer coisa era melhor do que insistir no assunto. Empurrou todas as perguntas
emaranhadas para longe, voltou a entrar na casa e para a empreitada em questão.
Caminhando altaneiro, voltou para o reino da vida, onde ele era o amo e senhor.
Escreveu rapidamente uma mensagem cifrada, usando um código secreto, para a
equipe da Ordem em Calais, responsável pela casa de segurança, os mesmos homens que
haviam recolhido ele e Carissa na costa, quando haviam ido ver Madame Angelique.
Dificuldades na Inglaterra. Diga a Rotherstone e equipe que permaneçam na França
até segunda ordem minha.
Curto e objetivo. Só esperava que não fosse tarde demais.
Depois, voltou a ir até os molhes, não muito longe de onde havia entregado Roger
Benton para o grupo de caça-recrutas, para entregar a mensagem.
Caminhando pelo molhe, encontrou-se com o velho pescador cujos serviços já havia
usado antes para levar mensagens através do Canal; pagou ao sujo marinheiro uma
pequena fortuna e o advertiu mais uma vez com as habituais e graves ameaças para que
nunca dissesse palavra alguma sobre o assunto. Então, satisfeito, voltou à cidade, com os
olhos semicerrados enquanto se preparava para a próxima tarefa, consideravelmente mais
difícil.
Procurar Nick.
Capítulo
21
C arissa estava se sentindo miserável, mas o reencontro com as amigas era um
consolo. Daphne e as outras mulheres se surpreenderam quando ela chegou sem avisar
na idílica casa de campo escondida em um local ermo da campina de Hampshire, a duas
horas de coche de Londres.
Os jardins esculpidos e o parque criavam um ambiente tranquilo, mas a presença dos
guardas armados era uma clara recordação do perigo.
As outras mulheres fizeram a parte delas, dando-lhe as boas-vindas com abraços e
lágrimas, em seguida, com gritinhos de assombro quando ela lhes contou que havia se
casado com Lorde Beauchamp.
— Por que não me escrevestes nem me mandastes um recadinho para que eu
soubesse imediatamente? – Gritou Daphne, abraçando-a e felicitando-a.
— Eu queria te contar pessoalmente.
— Oh, eu sabia!... Eu te disse que ele estava louco por ti! – Soltou Daphne, mas Kate
analisou Carissa, ladeando a cabeça.
—Tu não pareces assim, terrivelmente entusiasmada, a respeito – observou a jovem
duquesa de cabelo escuro, cruzando os braços sobre o peito.
— Estamos brigados – admitiu Carissa, e era a única coisa que podia fazer para não
desatar a chorar estupidamente de novo.
Não conseguia acreditar que aquele homem havia feito dela uma carpideira. Mas
Daphne a consolou com carinho.
— Pobrezinha. Não, não, querida. Vem e conta-nos tudo o que aquele malandro fez
contigo.
— Prefiro não falar sobre isso – disse ela com um soluço digno.
Seria muita humilhação admitir que finalmente havia dito ao marido que o amava e ele
não havia respondido nada. Não que pudesse culpá-lo depois do que ela havia feito com
ele. Era uma bela de uma mentirosa, além de desavergonhada e furtiva, e não merecia o
marido. Talvez ele não pensasse assim, mas ela pensava.
— Bom, nós estamos aqui para te ouvir sempre que precisares falar. – Consolou-a
Daphne. – Agora, tu acabastes de chegar e de te instalares, e nós faremos o melhor que
pudermos para te animar. É maravilhoso tu teres vindo, justamente quando estávamos
ficando loucas de tédio! Senti muita falta da tua engenhosidade. Vamos nos divertir juntas
e tirar o melhor partido de tudo isto. Afinal de contas, somos esposas da Ordem, e
sabemos e entendemos qual é o nosso dever! Não é mesmo?
As outras assentiram com a cabeça, apesar de considerarem que Carissa estava
bastante estranha. Ela supôs que não parecia em nada à habitual lutadora que era.
Daphne colocou um braço em volta dela.
— Então, vamos lá. Há duas belas alcovas para tu escolheres...
A loura marquesa a acompanhou até a bela casa de campo e as demais as seguiram. Lá
dentro, Carissa parou para sorrir para o pequeno e adorável filho de dois anos de Mara,
Thomas, do casamento anterior. Aos trinta anos, Mara, Lady Falconridge, era vários anos
mais velha do que o resto delas e havia enviuvado antes do recente casamento com
Jordan, Lorde Falconridge.
Carissa não conhecia Mara tanto quanto conhecia as outras. Com efeito, havia sido
cética com relação a ela, não só porque as más línguas haviam espalhado aos quatro
cantos que ela era amante do Regente, mas porque sabia que Mara havia partido o
maravilhoso coração de Jordan quando os dois tinham apenas vinte anos. Mas,
recentemente haviam se acertado..., e muito mais...
Thomas chorou pedindo que a mãe o pegasse no colo. Mara o levantou para
aconchegá-lo, depois o colocou na cadeira.
— Beauchamp ficou sabendo de algo sobre os nossos maridos? – Murmurou Kate.
Carissa negou com a cabeça.
— Não que eu saiba, sinto muito.
Kate suspirou.
— Sinto muita falta do meu bruto.
Carissa sorriu ao ouvir o apelido que os outros homens haviam dado ao marido de
Kate, Rohan, o Duque de Warrington, fazia anos. Todos os homens eram amigos e se
conheciam desde a infância.
— É difícil estar separados.
Daphne concordou, tomando para si o papel de líder, como o marido, Lorde
Rotherstone, fazia com os homens.
— Mas eles estão fazendo o que precisa ser feito – declarou com um sorriso. – Além do
mais, tenho certeza de que eles sentem mais a nossa falta do que nós a deles.
Carissa não disse nada, sabendo que o marido não sentia saudades dela em absoluto.
Deverto estava mais do que satisfeito por ela ter partido. Então as mulheres lhe
mostraram o interior da casa. As pacientes disposições para suportar qualquer sacrifício
no que se requeria delas angustiou-a completamente.
Não era de estranhar que Beau estivesse exasperado com ela se a estava comparando
às esposas-modelo como Daphne.
Tu não pode lhes dizer a verdade, vais fazer o que eu te digo...
Agora que estava de volta entre as amigas, o vínculo de segredos compartilhados entre
elas enquanto esposas da Ordem era mais importante na sua mente, e, finalmente, deu-
se conta de que havia arriscado a segurança de todos por ter feito todas aquelas
perguntas nas galerias de arte que havia ido investigar.
Deus amado, poderia ter posto todos eles em perigo! Se ela tivesse falado demais, se
as perguntas chegassem até o artista que havia contratado Nick, e depois aos vilãos,
fossem lá quem fossem, poderiam rastrear Beau, os outros homens, as mulheres, até
mesmo o pequeno Thomas.
O perigo ao qual ela havia exposto os amigos a deixava enjoada, principalmente pela
forma como havia mentido para Beau. Como havia sido estúpida! Arrogante! Cega!
Havia pensado que o risco era apenas para ela mesma e havia se preparado para
enfrentar esse perigo com suficiente coragem. Mas se ela tivesse parado um pouquinho
para pensar nos outros e apenas por uma vez não pensasse em si mesma como solitária,
sem vínculos reais com ninguém, como havia feito desde que ficara órfã, então teria dado
ouvidos ao marido e não teria ido bisbilhotar nesse dia.
Não importava que ela estava apenas tentando ajudar. Ela havia arriscado sem querer a
segurança de todos com quem se importava. O que diabos havia pensado que estava
fazendo, intrometendo-se daquela maneira?! Ela não era espiã! Não tinha treinamento
algum.
Quem era ela para levar a peito uma investigação?
Apenas alguns milhares de tolos mexericos, fingindo que sabia o que estava fazendo.
Enfiou o rosto entre as mãos depois que as demais a haviam deixado a sós no quarto que
lhe fora designado.
Os criados haviam levado sua bagagem e as outras haviam lhe dado um pouco de
privacidade para se por à vontade antes do jantar. Outra pisada na bola. Ela havia
ultrapasasado os limites como se fosse uma pequena sabichona ao perder a virgindade
com um canalha e depois mentir para o seu maravilhoso marido a respeito do fato.
Meneou a cabeça, desgostosa consigo mesma e totalmente deprimida.
Jurou que, dali em diante, deixaria a espionagem para os espiões. Não queria mais
nada com toda aquela intriga, sequer havia falado sobre o assunto com as amigas, o que
era bom, considerando que Beau havia lhe ordenado que não tocasse no assunto com
elas.
Pelo menos, a recompensa por se desfazer de Roger Benton era não mais precisar
monitorar aquelas enxurradas de mexericos como dantes.
Com efeito, pensou, já estava na hora de começar a se ocupar dos próprios assuntos.
Quanto a Beau, não podia culpá-lo se a odiava naquele momento, embora aquele beijo
torturado havia sido qualquer coisa, menos ódio.
Sabia que havia ferido o marido, e ela sentiu dor dos pés à cabeça por causa disso.
O que será que ele iria fazer agora? – ela se perguntou. Afaster-se-ia dela para sempre?
Castigá-la-ia, saindo para procurar outra mulher que satisfizesse suas necessidades mais
viris, enquanto ela ia embora? Essa simples ideia lhe provocou dor no estômago, mas isso
não a surpreenderia. Ele não havia dito Eu te amo, depois de tudo. Fechou os olhos
àqueles horríveis sentimentos.
Realmente, ela não sabia qual era a própria posição com relação a ele no momento. Só
sabia que, àquela altura, a única coisa que podia fazer era controlar as próprias ações,
então decidiu que havia chegado o momento de mudar. A única forma pela qual podia se
redimir era mostrando-lhe que podia obedecer como uma boa esposa o faria; podia dizer
a verdade, e aceitaria a autoridade que lhe correspondia como seu marido.
Deus sabia que tinham que começar por alguma parte. Aceitaria a condenação de ter
sido exilada no campo sem se queixar. Colocando a mão sobre o coração, levantou a
cabeça e fez um voto silencioso de ser uma boa e obediente esposa da Ordem..., assim
como Daphne. Exatamente daquele momento em diante.
Nessa noite, Beau atravessou o burburinho da multidão de homens reunidos para
verem as lutas de boxe. Cerveja inglesa e a ruína azul fluindo; o ar estava carregado da
fumaça de incontáveis charutos; risos ásperos se ouviram em um grupo no qual um
homem havia acabado de contar para os companheiros uma anedota muito suja.
E acima de tudo aquilo, as apostas voavam, pois para isso haviam ido ali.
Era um lugar tão provável quanto qualquer outro para encontrar o amigo mercenário.
Ele havia verificado com seus vários contatos, a quem havia dito que mantivessem os
olhos e os ouvidos abertos para qualquer notícia de Nick.
Mas os olheiros não tinham nada para informar. Aquele bastardo estava, obviamente,
tomando todo o cuidado. Mas, já que eram amigos havia anos, Beau decidiu verificar em
todas as casas de jogo clandestinas que sabia serem as favoritas de Nick.
Madame Angelique havia dito que Nick já havia recebido parte do pagamento pelo
serviço. Conhecendo-o, não demoraria muito para que ele estivesse de volta às mesas de
jogo. Beau sabia, por experiência própria, que Nick sempre procurava a distração
embriagadora dos jogos de azar quando estava sob pressão, tal como agora.
Quando ficou sabendoque em um daqueles antros, Covent Garden, Tom Cribb iria lutar
nessa noite, sabia que era lá que teria que procurá-lo. Nick gostava de apostar,
especialmente em lutas de boxe, e o campeão inglês era seu boxeador favorito. A luta
principal da noite seria com Cribb. Beau sabia que Nick tinha que estar ali.
Olhou um por um os rostos dos presentes, mas nem rastro dele.
Enquanto isso, no ringue, a luta intermediária começaria dentro de poucos minutos. Os
atléticos pugilistas estavam recebendo as últimas instruções dos respectivos treinadores.
Beau continuou caçando, maldizendo-se intimamente por não ter contado para Virgil
há muito tempo sobre os problemas de Nick com o jogo.
Cada vez que ele ia falar com o velho escocês a respeito, Nick o procurara em particular
e havia prometido que ia mudar.
Em três ocasiões diferentes, Beau havia se deixado convencer por Nick que Beau era
como um irmão para ele, e também porque queria acreditar nele.
Certamente que ele não havia querido que novos agentes ainda verdes substituíssem
seu melhor amigo na equipe. Nick era um excelente agente, sem medo, letal. Isso para
não falar que era contra a natureza de Beau ser desleal.
Havia ficado cego pela lealdade e, talvez, perdoado uma falha. E agora, olha aonde isso
os havia levado. Ai, ele estava pagando o preço por isso agora, embora não tão alto
quanto o preço que Trevor estava pagando.
Espera, companheiro, disse ele mentalmente ao outro amigo, refém de Nick. Eu vou te
tirar dessa enrascada, esteja tu onde estiveres.
Ele percorreu o tortuoso caminho entre as mesas dos anotadores de apostas e se
apoiou em uma coluna, de onde podia ver os homens que iam e vinham fazer as apostas.
A multidão estava emocionada, e a conversa forte e barulhenta enchia o recinto. Em
todos os lugares os homens debatiam sobre os diferentes pontos fortes e fracos dos
pugilistas a ponto de começar a discutir e a expressar opiniões sobre a última luta.
De repente, Beau viu Nick no meio da multidão. No mesmo instante foi até ele. Estava
com as Manton carregadas dentro do coldre debaixo do casaco, caso o amigo precisasse
ser persuadido.
Ele não queria forçar Nick enfiando-lhe uma pistola nas costelas. De uma forma ou de
outra, ele ia por um ponto final nisso, e depois ainda tinha aquela questão para resolver
com Carissa.
Beau queria muito cobrar do amigo o fato de ter assustado sua mulher. Até Nick sabia
que havia ido longe demais. Mas os sentidos altamente treinados deviam ter alertado
Nick quanto à aproximação do inimigo. Beau estava apenas a dez metros dele quando o
mercenário de cabelos pretos olhou por cima do ombro e o viu se aproximando.
Então saiu correndo. No mesmo instante Beau sai correndo atrás dele, abrindo
caminho entre a multidão enquanto os lutadores estavam sendo apresentados no ringue.
Os fanáticos do boxe começaram a ovacionar o favorito, enquanto Nick fazia o possível
para se perder em meio à multidão.
Beau o viu justamente antes de Nick desaparecer pela porta, então, arremeteu atrás
dele.
— Maldição! Volta aqui! – rugiu, enquanto explodia para a escura e fria noite úmida.
Nick se esgueirou e dobrou a esquina. Beau não se deixou intimidar, correndo atrás
dele e deixando para trás as lamparinas do portal do edifício. As estreitas ruas do entorno
estavam tomadas pelo coches dos espectadores estacionados por ali.
Beau estava caçando sua presa através do labirinto de veículos, de arma em punho.
Quando se agachou para olhar por baixo das intermináveis filas de coches, viu pernas
correndo e as perseguiu.
— Não me obrigues a atirar em ti de novo, seu estúpido filho da puta! – gritou ele na
escuridão. – Para de correr como covarde e fala comigo! Eu sei o que está acontecendo,
porque falei com Angelique! – gritou.
— Tua esposa é muito bonita – zombou Nick em meio às sombras, em algum lugar
próximo.
Beau se levantou e olhou em torno com o peito agitado. Ele o ouvia, mas não
conseguia vê-lo. De repente, a porta de um dos coches se abriu, mas Nick não estava lá
dentro.
— Aproxima-te dela de novo e vou me esquecer de que já fomos amigos!
— Relaxa, Beauchamp, eu só queria te mostrar uma coisa.
— O quê, que perdestes todo senso de honra? – Beau se arrastou até um beco logo à
frente. – Quem é que eles querem que tu mates? – insistiu, tratando de continuar falando
para conseguir localizá-lo.
— Ainda não sei quem é. Provavelmente eu fique sabendo em breve. – Nick parou. –
Não que isso seja da tua conta.
— Mas isso é loucura total, homem. Tu sequer conheces quem te contratou. Isso não
está cheirando nada bem e tu sabes disso. – Dobrou a esquina, arma em punho, mas Nick
não estava ali. – Onde estás? – gritou, perdendo a paciência. – Sai e mostra a fuça que
nem homem!
Mas não obteve resposta. Continuou procurando, mas Nick havia escapulido. Beau
praguejou baixinho, passando a mão pelo cabelo enquanto se virava, frustrado,
explorando em todas as direções pela última vez. Nick não estava em parte alguma.
Então parou, respirou fundo, fechou os olhos para clarear a mente e apertou as
pálpebras, usando o dedo polegar e o médio. E agora? Pense. Com o coração ainda
disparado e a fúria lhe percorrendo as veias, demorou pouco para elaborar a próxima
estratégia. Depois foi até o próprio coche com largas passadas. Se Nick seria difícil, tinha
outros caminhos para seguir.
Havia somente um armeiro em Londres em quem os agentes da Ordem realmente
confiavam para fabricar as armas das quais suas vidas dependiam com tanta frequência.
Hans Schweiber era armeiro de Hesse, cuja família estava no ramo de armas havia
gerações.
Foi um dos principais contatos que Beau havia alertado primeiro para que ficasse
atento quanto a Nick, mas ele não havia ouvido nada de novo, então decidiu que nessa
noite poderia valer a pena parar e conversar um pouco com o velho.
Quando Beau entrou na loja de armas meia hora mais tarde, Schweiber olhou para ele
por cima dos pequenos óculos retangulares. O resto da loja estava às escuras e o curtido
armeiro estava sozinho, trabalhando à luz de velas em uma das sua elegantes criações
bem balanceadas.
—Herr Schweiber – cumprimentou Beau.
— Lorde Beauchamp. Achei mesmo que vos veria em breve – comentou o velho
serenamente, fazendo uma pausa para trocar de ferramenta.
— E por quê? – perguntou Beau.
Beau fechou a porta e se aproximou. Achou a loja de Schweiber estranhamente
reconfortante, os cheiros familiares de pólvora e óleo e o couro das sacolinhas de pólvora
à venda. Troféus de caça e lembranças militares enfeitavam as paredes, presentes de
honra dos fanáticos da aristocracia pela caça e dos oficiais militares que veneravam o
armeiro pela habilidade que tinha na fabricação de armas que haviam salvado suas vidas.
Schweiber olhou por cima dos óculos de novo.
— É o senhor quem vai me dizer.
Beau apoiou um cotovelo no balcão, admirando o trabalho do armeiro.
—Tu sabes do problema que estou enfrentando com Forrester, não sabes? – Ele
encontrou o olhar do armeiro. – Ele esteve aqui?
Schweiber o olhou com receio.
— Sim – admitiu, depois de um instante de hesitação.
— Quando? E por quê não me comunicastes isso?
— Foi anteontem, e eu estava justamente pensando nisso.
— Como assim, pensando nisso?
O armeiro encolheu os ombros.
— Ele disse que o senhor é que era o problema.
— Eu? – exclamou Beau.
— Sim. Ele me disse que o senhor é um traidor.
Beau o olhou com assombro, depois desatou em uma irritada risada cínica.
— Oh, então foi isso que ele disse para ti. – Meneou a cabeça. – Schweiber, tu não
acreditastes nele, não é?
— Eu não sabia muito bem em quem acreditar – disse o armeiro com aquele astuto
olhar alemão.
— E tu não estavas nem um pouco ansioso para tomar partido – replicou Beau com
total naturalidade.
Schweiber encolheu os ombros.
— Por acaso ele não tentou te ameaçar para que ficasses de boca fechada?
— Não, não. Eu sou útil demais para ser ameaçado, até mesmo pelos meus clientes
mais perigosos – disse ele com uma risadinha.
— Bom, posso te garantir que estou seguindo todo o protocolo habitual. Foi Nick quem
abandonou a ordem. Tenho que encontra-lo antes que ele cometa alguma imprudência. O
quê ele queria de ti?
— Um rifle de longo alcance. – Schweiber soltou o trapo e olhou para Beau com
aceitação cautelosa.
—Rifle de longo alcance – repetiu ele, assentindo com a cabeça. – Disse algo sobre o
tipo de mira tinha que ter? Pediu alguma especificação incomum na arma? – Schweiber
negou com a cabeça. – Ele te deu algum endereço para enviar a cobrança, ou para onde
enviar a arma quando estiver pronta?
— Não foi preciso nada disso. Ele comprou a melhor arma que eu tinha àdisposição. Na
verdade ele me pagou adiantado por ela. Pela primeira vez, até onde posso me lembrar.
— Como uma novela – disse Beau secamente.
— Sim – disse o velho, e fez uma pausa. – O que me fez pensar.
— No quê? – pressionou Beau.
Schweiber o olhou, atento.
— Ele parecia agitado. Estava agindo de forma tão estranha que mandei meu aprendiz
segui-lo, a uma distância segura, claro. Bons aprendizes são difíceis de se encontrar. Eu
disse ao rapaz que não se deixasse ver.
Beau estava totalmente imóvel, ouvindo.
— E para onde ele foi?
— Para East End Englands. A rua não tinha placa, mas Michael pode vos mostrar o lugar
quando voltar. Ele saiu para fazer uma entrega.
— Maravilha. Bom trabalho, Schweiber. Graças a Deus que alguém neste cidade tem
mais cabeça do que eu. Quando teu aprendiz deve voltar?
— Não até amanhã. A entrega foi em Leicestershire.
— Manda o rapaz falar comigo assim que ele chegar aqui. O tempo é crucial.
— Sim – disse Schweiber serenamente.
— Obrigado, Hans. – Beau se dirigiu à porta, mas parou antes de sair. – Esse rapaz tem
certeza de que Nick não percebeu que estava sendo seguido?
O velho armeiro assentiu com sagacidade.
— Michael se orgulha de ser sigiloso. Ele quer ser agente da Ordem.
Beau arqueou uma sobrancelha sardonicamente.
— Dissuade-o de tal ideia.
Schweiber sorriu e pegou de novo o trapo que usava para limpar as armas. Beau fez um
leve gesto com a cabeça, a guisa de despedida, depois voltou a se embrenhar na
escuridão.
Capítulo
22
N essa noite, Carissa estava sentada na sala de estar com as outras mulheres.
Thomas estava encantando a todas, rolando uma bola de um lado para o outro e com
cada uma delas por vez, fazendo ouvidos moucos às reiteradas chamadas da mãe dizendo
que já estava na hora de o pequeno senhorzinho ir para a cama.
— Ele é o nosso entretenimento. – Explicou Daphne, jogando a bola de volta para o
menino.
As mulheres haviam tido um bom jantar nessa noite, seguido de um passeio pelos
jardins ao entardecer e um pouco de criquet no gramado.
Porém, a parte mais interessante depois da chegada de Carissa à quinta da Ordem,
além de ver as amigas, foi o passeio que fizeram para mostrar-lhe a propriedade,
acompanhado pela exposição de todos os procedimentos de segurança do Sargento
Parker, fiel cavalheiro da Ordem que havia sido designado como chefe de segurança da
quinta, juntamente com mais de uma dúzia de homens sob seu comando.
O soldado rude e curtido pelo sol era muito mais duro, suspeitou ela, que sua fornida e
compacta estrutura sugeria à primeira vista. Parker lhe mostrou as três diferentes rotas de
escape do quarto dela, dependendo de qual a direção na qual a ameaça pudesse chegar.
Mostrou algumas fechaduras na porta do quarto e lhe entregou uma pistola carregada
para que ela a guardasse na gaveta do criado-mudo ao lado da cama, depois lhe mostrou
a escada de corda escondida dentro do armário caso precisasse escapar pela janela do
terceiro andar.
Ato contínuo, mostrou-lhe uma mochila com suprimentos básicos que haviam
preparado para ela, caso precisasse fugir e se eles fossem atacados por qualquer motivo.
Ela estava fascinada. A mochila continha um pouco de dinheiro, um cantil com água,
uma pequena quantidade de alimentos secos, um par de sapatos resistentes, balas extras
para a pistola e uma bússola.
— É claro que a senhora compreende, milady, que tudo isto é para ser usado em
último caso. Os Prometeos nunca descobriram este lugar, mas temos que estar sempre
preparados.
— É claro, entendi perfeitamente – havia respondido fracamente, mesmo sem ter
certeza de quem eram aqueles tais de Prometeos.
— Bom. Agora a senhora já sabe o que fazer caso aconteça o pior, caso sejamos
atacados aqui e consigam passar pelos nossos homens. Não precisa se preocupar, é claro.
Não tenho motivo algum para pensar que estejamos correndo o mínimo perigo que seja
por enquanto, mas esses são os nossos procedimentos, por isso estou lhe mostrando tudo
isso agora porque a Ordem acredita que devemos estar preparados para qualquer
eventualidade. – Ela assentiu, inquieta. – Agora, caso aconteça algo e se a senhora ouvir
eu ou um dos meus homens lhe fazer o sinal para fugir, pegue a mochila, use a escada e
desça. Deixe tudo para trás. A senhora vai precisar se misturar às pessoas dos arredores.
Joias e roupas caras farão com seja fácil identificar qual mulher é a aristocrata.
— Isso faz parecer como se quisessem mesmo me caçar, e às outras mulheres, não?
— Ai, senhora. Como esposa de um dos nossos agentes a senhora seria um refém
muito valioso.
Oh, meu Deus! – pensou ela.
— Sua Senhoria chegou a mencionar o que a senhora deve fazer caso seja apanhada? –
Perguntou Parker.
—Não – respondeu ela com os olhos estatelados.
— Certo. Preste atenção então. Virilha. Garganta. Olhos. Golpes certeiros. Esses são os
vossos objetivos caso não consiga chegar até vossa arma. Só para que saiba o que fazer.
— Ah! – murmurou ela com assombro.
— Continuando, então – ele retomou a explicação. – Se ouvir o sinal, de mim ou dos
meus homens, fuja. Não espere para ouvir duas vezes. Fuja para o bosque e trate de se
juntar às outras mulheres, mas não espere nas cercanias. É importante continuar
avançando. Se ficar separada das demais, deve seguir o riacho. A senhora viu o riacho no
jardim?
— Sim, eu o vi.
— Há uma trilha ao lado dele. Siga riacho abaixo por mais ou menos três quilômetros
até chegar à pousada nos arredores do vilarejo, onde tem coches de aluguel. Se preferir,
pode alugar um cavalo com sela feminina e continuar viagem. É melhor que se afaste do
lugar de uma vez. Mas, se a senhora não se sentir confortável para cavalgar uma longa
distância, pode usar o ouro da mochila para comprar passagem na diligência que vai para
Londres. De qualquer forma, deve chegar a Dante House o mais rápido possível. Estará a
salvolá. Não fale com ninguém pelo caminho se puder evitar. Entendeu tudo que vos
expliquei, milady?
— Sim. Muito obrigada, sargento. Atrever-me-ia a dizer que nossos maridos
escolheram o homem adequado para este trabalho.
Ele baixou o olhar com um sorriso modesto.
— Eles fazem a parte deles, senhora. Eu faço a minha.
— Bom, eu vos agradeço por tratar tão abertamente esse assunto conosco e não tentar
simplesmente nos proteger da realidade.
Ele sorriu com tristeza.
— Eu sei que algumas dessas coisas são difíceis de se ouvir e aterrador demais para
imaginar. Mas, em todos os meus anos de serviço, senhora, se me permite dizer, os
homens da Ordem não se casam com mulheres fracas.
Ela ainda estava refletindo sobre aquela lição de segurança pessoal quando Mara
conseguiu finalmente capturar o filho, colocou-o no colo e começou a lhe fazer cócegas.
—Tu tens que ir para a cama, senhor! – Thomas riu alegremente.
— Não! Eu vou ficar aqui!
— O que é que estás olhando? – Perguntou Carissa para Kate, apontando para a revista
que a jovem duquesa estava folheando distraidamente.
—La Belle Assemblée. Na verdade, é uma revista bastante tola, mas tem alguns trechos
sobre todas as atrações da temporada disponíveis em Londres no momento.
Honestamente, vivo lá a metade do ano e não fazia ideia de que havia tanta coisa para se
fazer! Mas agora eu realmente agradeço pela revista, depois de ficar presa aqui durante
semanas. Todos esses entretenimentos, concertos e diversões bem debaixo do meu nariz
e eu nunca fui vê-los.
— Como o quê, por exemplo? – quis saber Daphne.
— Os jardins de Kew, por exemplo. Abre para o público todos os domingos, mas eu
nunca fui lá. E tem Vauxall, também.
—Tu nunca estivestes em Vauxall?! – Espantou-se Daphne.
— Não! Cresci em Dartmoor, lembra-te?
—Tuestivestes isolada demais! – brincou Mara.
— O que há de errado com Dartmoor? – protestou Daphne. – É bastante pitoresco!
— Sim, bom, bem que poderia ter sido a face oculta da lua. Não há nada para se fazer
lá, a não ser ler ou ver cavalos selvagens.
— Temos que te levar até Vauxall quando tudo isto terminar – declarou Mara. – Tu vais
adorar, Kate. Música, fogos de artifício, tudo.
— Não te esqueças da mulher do trapézio – lembrou Daphne.
— Oh, isso parece tão excêntrico! – Kate bateu na página com o dedo. – Um museu de
cera! A parte de gala da história! Já estivestes lá?
— Em Southwark, não é? – perguntou Mara.
— Isso! Do outro lado do rio. Já estivestes lá?
— Oh, sim – respondeu ela ironicamente. – Infelizmente, cometi o erro de pensar que
seria um entretenimento adequado para o meu filho. E tenho certeza de que será, mas
quando ele tiver quinze anos.
Kate arqueou a sobrancelha, espiando sobre a parte de cima da revista.
— Algo obsceno?
— Não, foi absolutamente violento! – exclamou. – Provavelmente tu, com teus
romances sobrenaturais, ias adorar.
Kate endireitou o corpo.
—Verdade?
— Garantido para provocar um calafrio pela coluna vertebral. Sobre a porta tem um
letreiro que promete muito. – Respondeu Mara.
Daphne olhou-a, zombeteira.
— E tu levastes uma criança de dois anos lá?!
— Mas se foi ideia de Jordan! Honestamente, não sabíamos no que estávamos nos
metendo. Ninguém pensa que são figuras históricas. Pensei que seria educativo. – Ela
fingiu um estremecimento. – Bom, realmente foiuma aula de história, concordo. Mas
tratava-se das cenas mais horríveis da história da humanidade retratados nas telas. O
Coliseu Romano... Inquisição Espanhola... Revolução Francesa...
A cabeça de Carissa disparou.
— Provavelmente os rapazes ficaram encantados – riu Daphne entre dentes.
— E este pequeno gritando nos meus ouvidos – respondeu Mara.
—Tudissestes Revolução Francesa? – Carissa arriscou, o coração de repente batendo
com um incômodo pressentimento.
— Oh, sim – Mara virou os olhos. – A guilhotina. Maria Antonieta..., e um cesto com
cabeças, tudo muito realista. – Kate desatou a rir.
— Maravilha!
— Creio que o artista que pintou aquelas telas deve ser completamente insano– Mara
arrastou as palavras.
— E não o são todos? – perguntou Daphne.
— Bom, esse, sem dúvida alguma, sente um mórbido prazer nas cenas de morte e
destruição.
— Por acaso tu sabes o nome desse artista? – Insistiu Carissa.
Mara deu de ombros.
— Não faço ideia. Por quê?
— Nada. Perguntei por perguntar... – respondeu ela cautelosamente.
— Gostarias de ver o anúncio? – Kate lhe ofereceu a revista.
Carissa se levantou e pegou a revista, estudando cuidadosamente o pequeno anúncio
quadrado do Sessão de Gala da História do Museu de Cera em Southwark. Charles
Vincent, proprietário.
Charles... Sothwark... Uma lembrança foi tomando forma no fundo da sua mente, mas
não aparecia claramente. Kate inclinou a cabeça para o lado.
— Tudo bem contigo? Parece até que vistes um fantasma.
— Ora, vamos – brincou Daphne. – Não sejas tola. Tenho certeza de que as cenas de
fatalidade não são tão realistas assim! – Carissa esboçou um sorriso triste.
— Isso parece horrível, no entanto. Mas tu tens razão. Provavelmente nossos maridos
ficariam encantados com isso.
Apesar de a conversa ter desviado para outro assunto, a mente dela insistiu.
De repente, a lembrança reapareceu, mais clara agora. Sim! Aquela livraria em Russel
Square, com todos aqueles radicais, artista e intelectuais, onde havia ido para ouvir o
professor Culvert falar. E aquela conversa enigmática que havia flagrado depois da
conferência surgiu de novo na sua mente.
— Charles, tu não deverias estar aqui!
— Ora, e por que não? Não tenho nada a esconder, não é?
Ela se lembrou do estranho sorriso que Charles havia dado ao professor.
—O senhor precisa ir comigo até a minha casa, em Southwark, para ver meus últimos
quadros...
Ela disfarçou a surpresa diante das amigas jogando distraidamente a bola para Thomas.
Tinha alguma coisa ali. Podia sentir nos próprios ossos. Os nomes dos poucos pintores que
havia coletado nas galerias de belas artes pareciam improváveis candidatos para o que ela
procurara. Os marchants não teriam sido de muita ajuda se tivessem tentado.
Será que ela estivera procurando no lugar completamente errado? Mas, um museu de
cera...?
E esse Charles Vincent, dono do Sessão de Gala da História, será que poderia ter algum
tipo de ligação com o tal Alan Manson, de Madame Angelique?
E se fossem o mesmo homem?!
Mara havia confirmado que vira uma cena da Revolução Francesa no museu de cera, e
Madame Angelique havia informado que era a área de interesse do artista. O sangue de
Carissa virou água gelada nas veias quando uma inquietante imagem começou a emergir
lentamente.
Porque, se Charles Vincent era Alan Manson, o artista, cujas perguntas indiscretas
poderiam deixar nervosa até mesmo Madame Angelique, então erapossível traçar uma
linha lógica desde o artista da Revolução Francesa até o professor Culvert... e deste, até o
seu antigo protegido da vez, Ezra Green.
Oh, não...
Será que o próprio chefe do comitê, encarregado da investigação da Ordem, era o
mesmo que havia contratado Nick? Mas, por quê? Ela se esqueceu até de respirar,
olhando para o chão.
Então aquilo tudo poderia ser encenação, uma cortina de fumaça.
Sua boca secou. Estava gelada, tremendo. Se isso fosse verdade, poderia significar que
os motivos de Ezra Green haviam sido não o de investigar, mas destruir a Ordem desde o
início.
Meu bom Deus! Beau... Preciso adverti-lo!
Já era bastante ruim que ele enfrentasse tudo aquilo sozinho. Agora ela via que, assim
que Nick fizesse o trabalho para o qual havia sido contratado, todos os maridos das
amigas, inclusive o seu, estariam condenados. E se era Green quem havia contratado Nick,
então ele se encarregaria de fazer com que o assassinato acontecesse, pois estava na
posição perfeita para tanto. Ezra Green e seus cupinchas podiam apresentar esse
assassinato como prova irrefutável de que a Ordem era corrupta e poderosa demais.
Tudo o precisavam fazer era flagrar Nick no ato, e, se eram eles que davam as
instruções, a parte do onde e do quando apertar o gatilho seria fácil. Contudo, uma
pergunta ainda mais aterradora se formou na mente dela.
Quem era o alvo do assassinato, para o qual Nick havia sido contratado?
Pelo que havia escutado naquele dia, na conferência do professor Culvert, os radicais
odiavam quase que todo mundo. Parecia que havia alguns vilões escolhidos por eles em
mente: o Primeiro-Ministro, a família real...
O que faço agora, meu Deus?!
Ela sentia nos ossos que estava certa. Tinha que ver aquele lugar, saber mais sobre o tal
artista.
Não! Esquece isso! Se desobedeceresasordens de Beau, ele nunca vai te perdoar. E tu
sabes muito bem que a tua vinda para cá é um teste. Esta é a tua segunda chance, caso
contrário, é bem possível que não tenha outra.
Está certo. Mas, e se tu simplesmente adverti-lo por carta? – perguntou-se ela. Mas
isso significaria admitir que já estivera bisbilhotando antes na livraria, e ela nunca havia
dito nada ao marido sobre isso, porque sabia que ele ficaria furioso.
Ele ficaria surpreso ao saber que ela havia se atrevido a ir investigar o antigo mentor do
político que estava lhe dando tantas dores de cabeça. Depois da grande briga que
acabaram de ter, se confessasse agora que estivera fazendo investigações por conta
própria, provavelmente ele a jogasse aos lobos. De qualquer modo, mesmo que se
atrevesse a explicar a Beau por carta o que havia feito naquele dia, o que havia
ouvido,embora tivesse pensado que carecia de sentido no momento, o que aconteceria se
dita carta fosse interceptada pelos sequazes de Green?
Ela sabia que o comitê mantinha Beau sob vigilância. Se ela lhe escrevesse uma carta
confirmando as suspeitas que ele tinha sobre quem eram os verdadeiros vilões, e esses
mesmos vilões confiscassem a mesma, isso poderia representar um grave perigo para
todos eles. Não, ela não se atrevia a colocar nada sobre esse assunto por escrito. Se fosse
dar continuidade a isso, teria que fazê-lo pessoalmente. Era a forma mais segura para as
amigas, os respectivos maridos e o próprio marido dela.
Preste atenção! Não é permitido sair daqui! – insistiu seu bom senso. Beau vai te
matar se tu deixares a proteção da casa. Além do mais, como é que vais conseguir passar
por todos os guardas lá de fora?
Ah, mas o sargento Parker havia feito todo o possível para lhe mostrar exatamente
como escapar em caso de emergência. Obviamente, nunca havia ocorrido ao
incondicional soldado que ela poderia ser tola o suficiente para tentar por conta própria.
Tu não deves ir.
Daphne nunca faria nada assim, destacou severamente para si mesma, sentindo o
pulso acelerado.
É, Kate... – respondeu seu lado mais teimoso. E as ordens de um homem certamente
não deteriam Madame Angelique. Ela mordeu o lábio, angustiada pela indecisão. Sentia
que seria condenada se o fizesse, e condenada se não o fizesse.
E se estiveres enganada...? E isso era provável sim. Poderia arriscar tudo por nada. Se
tu te esgueirares para longe daqui, e ele ficar sabendo que tu o desobedecestes outra vez,
provavelmente Beau nunca vai te perdoar.
Ela quis com toda gana que tal teoria nunca tivesse lhe ocorrido. Não queria ir. Era
aterrorizante. Não queria botar a perder seu casamento.
Mas, e se eu estiver certa? E se estiverem preparando tudo para apresentarem Beau e
o resto dos nossos homens como criminosos, e Nick está sendo usado apenas como bode
expiatório e exemplo?
Essa seria uma desculpa para que os inimigos destruíssem a Ordem. Carissa ficou sem
fôlego ao ver o anúncio. A íntima decisão lhe provocou nó no estômago, principalmente
agora que havia se dado conta do perigo que qualquer erro da sua parte poderia trazer
para seus amigos, isso para não falar da destruição do próprio casamento. Mas o sargento
Parker havia dito isso de forma excelente.
Os homens da Ordem não se casam com fracotas.
Viu que não tinha escolha. Não sabia o que era pior, se acabasse tendo razão ou estar
errada. Mas, seja lá como for, tinha que saber. A pergunta era grave demais para deixá-la
sem resposta. Se alguma vez tivesse um momento no qual uma dama da informação teria
que salvar a lavoura, essa ocasião havia chegado. E seria nessa mesma noite.
É melhor que tu estejas certa sobre isso.
Se chegasse a ter êxito, talvez, então, Beau a perdoasse.
— Hora de ir para a cama, Tommy – disse Mara ao filho. – Quero dizer agora, tu.
Vamos, dá boa-noite para as tuas tias.
Thomas foi correndo de Kate para Daphne, repartindo abraços. No entanto, ele havia
conhecido Carissa apenas naquele dia, por isso ela ainda não havia ganhado um. Mas ele
deve ter decidido que gostava dela, porque se aproximou e lhe ofereceu um bloco do
alfabeto.
— Oh, bom, obrigada – respondeu ela, sorrindo. Ela deu uma batidinha com o dedo no
nariz dele. – Que tenhasuma boa-noite, Thomas – disse, e Mara o levantou e o levou para
a babá.
— Creio que vou me retirar, também – disse Carissa. – Foi um dia muito longo.
Ela disse boa noite às amigas, em seguida pegou uma vela e foi calmamente para o
quarto, já planejando a fuga.
Nessa noite, de volta à Londres, Beau vagou sem descanso de um aposento ao outro. A
casa estava vazia demais sem Carissa. A ausência dela havia deixado um enorme buraco
que ele não havia esperado. Sentindo falta dela com cada terminação nervosa, não sabia
bem o que fazer com isso.
Fez todo o possível para não pensar nela, mas não havia nada mais que o distraísse,
esperando que o aprendiz do armeiro voltasse daquela entrega que fora fazer no campo.
Mais que enlouquecedor, na verdade. Pensou em lhe escrever uma carta para passar o
tempo..., mas, o que podia lhe dizer?
Ainda estava aborrecido desde a briga que tivera com ela. O relógio musical bateu uma
hora. Beau se apoiou contra a porta na escuridão e ficou olhando para o relógio,
questionando-se se havia sido duro demais com a esposa. Sabia que ela só estava
tentando ajudar.
Quando as badaladas terminaram, apoiou as costas contra o marco da porta, olhando
o vazio. A casa parecia grande e vazia demais, e a ideia de ir para o quarto só fez com que
seu peito doesse vagamente. Aproximou-se lentamente do escritório, serviu-se de
conhaque e se sentou perto da lareira para bebê-lo. Justamente quando estava
começando a acalmar a mente perturbada, ouviu uma batida urgente à porta principal.
Ouviu o lacaio da noite ir atender. A porta rangeu.
— Sim? Posso ajudar?
— Mensagem para Lorde Beauchamp! – disse o mensageiro.
Beau se levantou da cadeira enquanto o lacaio pagava o mensageiro.
Quando foi até o hall de entrada, o criado estava bloqueando a porta.
Deixando a cerimônia de lado, Beau foi até ele e pegou a mensagem em vez de esperar
que o criado a levasse. Ergueu a mensagem até a luz da vela e seu rosto endureceu ao
reconhecer a letra. Ele desdobrou o papel e leu a carta de Rotherstone com o pulso
acelerado.
Estamos com Drake. Ele não é traidor, é o maldito tolo mais valente que já conheci.
Espere até ouvir o que ele aprontou na Alemanha. Já desembarcamos na costa e amanhã
estaremos em Londres.
— Algo errado, senhor?
Maldição, já estavam na Inglaterra! A advertência que havia enviado, obviamente,
havia chegado tarde demais.
—Não, nada. Meu abrigo.
Ele foi buscar as armas enquanto o criado foi buscar o abrigo.
— Ouve-me com muito cuidado – ordenou, vestindo o casaco. – Tenho que sair por
algum tempo. Não permita que ninguém entre aqui enquanto eu estiver fora,
especialmente o senhor Green ou qualquer outra pessoa do governo.
Os olhos do criado se arregalaram.
— Sim, senhor. Precisa de ajuda, senhor?
— Não, mas obrigado. – Beau parou no umbral. – Não sei precisar quando vou voltar,
mas estou esperando uma pessoa que virá aqui amanhã, da parte do Senhor Schweiber, o
nome dele é Michael, é aprendiz de armeiro. Deixa-o entrar. De fato, se eu ainda não tiver
voltado quando ele vier, manda-o até o rio. Não sei exatamente onde estarei, mas em
algum lugar perto dos molhes de Londres. Diga-lhe que eu falei para ele ir até lá se
encontrar comigo. É imperativo que eu fale com ele. Mas não diz a ninguém, preste
atenção, a ninguém, aonde eu fui.
— Sim, meu senhor, perfeitamente.
Ato contínuo ele se foi, e a única preocupação que tinha era chegar até Max e os outros
antes dos soldados de Green. Tinha que impedi-los de pisar em terra firme, advertí-los
pelo menos para que fossem para a Escócia. A sede da Abadia da Ordem na Escócia seria
o lugar mais seguro para eles, pelo menos até que todas aquelas bobagens com o comitê
estivessem resolvidas.
Se pusessem um só pé em solo inglês, Ezra Green cumpriria o que havia prometido.
Estariam indo direto para uma armadilha.
Capítulo
23
N a manhã seguinte, Carissa estava diante do estranho estabelecimento em
Capítulo
24
O vento se levantou enquanto Carissa e o aprendizde Schweiber se aproximavam
Capítulo
26
— B om..., eu reconheço que errei – disse Beau, enquanto saíam de Carlton House
com o braço casualmente sobre os ombros dela. – Tu, minha pequena dama da
informação, és uma espiã muito melhor do que alguns agentes que conheci. – Carrissa
sorriu para ele.
— É verdade isso?
— É a mais pura verdade. Todos nós temos para contigo uma enorme dívida de
gratidão. Tu agistes corretamente. Sou suficientemente homem para admitir isso. Se tu
não tivesses vindo até mim com aquela informação tão crucial, sabe-se lá onde
estaríamos agora...
— Então isso significa que tu me perdoas por ter te desobedecido?
— Mas é claro que sim! Mas não foi por causa dos teus atos heroicos de hoje não. – Ele
parou e se virou para ela, apertando-lhe suavemente os ombros. – Eu já havia te
perdoado quando nos separamos naquele dia, minha querida. Tu não ouvistes quando eu
disse?
— Acho que não. Eu estava ocupada demais sentindo-me horrível. – Ela o olhou nos
olhos azuis. – Pelo que eu não ouvi tu dizeres... – aventurou-se, então estremeceu.
— Sim? – perguntou ele ternamente.
— Bom..., quando eu te disse Eu te amo, Beau,tu não me respondestes.
— Mas que covardia a minha!
Ela esquadrinhou o rosto dele, indecisa, pois seu coração ainda estava ferido e
vulnerável. Ele inclinou a cabeça e olhou-a nos olhos com muita ternura.
— Eu te amo, Carissa.
—Tu não precisas dizer isso se não quiseres...
— Mas eu quero sim.
Ele pegou o queixo da esposa e levantou sua cabeça, obrigando-a a olhá-lo nos olhos
atormentados. Pegou a mão dela e colocou-a sobre o próprio coração.
— Isto aqui é teu, meu amor. Quando tu dissestes que me amava, naquela primeira
vez, eu só estava..., fui surpreendido com tudo o que havia acabado de acontecer com
Benton. Naquelas circunstâncias, fiquei sem saber como reagir. Sequer tinha certeza de
que o que tu havias acabado de me dizer não era para me manipular, assim eu não me
irritaria contigo. Eu só estava tentando evitar que tu fizesses de mim teu animalzinho de
estimação. – Ela negou com a cabeça.
— Eu te disse porque era a verdade. A partir de agora eu só vou te dizer a verdade,
Beau, por mais difícil e duro que seja. Aprendi a lição, acredita em mim. Não mais vou
permitir que nenhum segredo se interponha entre nós. Eu te dou a minha palavra. Se me
deres outra chance, vou te mostrar que posso ser honesta contigo a partir de agora.
Nunca mais vou me arriscar a te perder de novo.
— Doçura, tu tebs todas as chances que precisares, e espero que faças o mesmo
comigo, porque provavelmente vou precisar muito.
— É claro que sim – sussurrou ela suavemente, com um nó na garganta.
Então ela se aproximou e o abraçou, e ele a envolveu nos braços.
Carissa apoiou a cabeça no peito do marido.
— No fim das contas, o amor é isso, não é? – perguntou ela baixinho. – Perdoar todos.
Encontrando coragem para confiar.
Ele a beijou no alto da cabeça e assentiu, enquanto a apertava nos braços.
Depois mergulhou em um pensativo silêncio por um instante.
— Sabes..., assumo parte dessa responsabilidade, também, por ter escolhido não tocar
no assunto sobre a tua..., hã..., situação, depois da nossa noite de núpcias – disse ele
discretamente devido ao local onde estavam, ternamente abraçados no meio do reluzente
corredor do palácio do Regente.
Ela o olhou, e ele lhe deu um meio sorriso distraído, perdido nos próprios
pensamentes.
— Pensei que só estava sendo gentil, fazendo-te um favor ao não tocar no assunto.
Mas, por outro lado, foi uma forma de manter uma distância segura entre nós. – Ele
meneou a cabeça. – Talvez eu estivesse com medo de nos aproximarmos demais, medo
do que tu pudesses fazer comigo se eu realmente te deixasse entrar... Mas não quero isso
nunca mais – sussurrou. – Eu também aprendi a lição. Quero ver aonde este amor pode
nos levar.
O primeiro lugar para o qual os levou, para surpresa de ambos, foi para casa, melhor
dizendo, diretamente para a cama. Um beijo decidiu a questão. Eles olharam nos olhos
um do outro com mútua compreensão, em seguida saíram do palácio do Regente e
correram para casa, no afã trepidante de reafirmarem o vínculo entre eles. Duas horas
mais tarde, o som do relógio musical os acordou. Beau gemeu e enfiou a cara no
travesseiro.
— Ah, por que me ocorreu te dar essa coisa? Vive fazendo barulho!
Rindo suavemente, Carissa correu o dedo em uma leve carícia pela curva das costas
nuas do marido.
—Tu me destes o relógio porque me ama – ronronou ela, plenamente saciada pelo
amor dele, que virou o rosto no travesseiro e olhou-a com aqueles lindos olhos azuis
brilhando.
— Sim, porque eu te amo.
— Adoro ouvir tu dizeres isso.
— Amo-te– repetiu ele.
Ela sorriu com um brilho no coração e o beijou.
— Eu também te amo.
Ele pegou-lhe a mão e cruzou os dedos com os dela. Puxou a mão da esposa
cansadamente e levou-a aos lábios, roçando levemente os nós dos dedos. Depois
suspirou, colocou as mãos de ambos sobre o travesseiro e fechou os olhos.
—Tu não imaginas o quanto estou contente por tudo aquilo ter acabado finalmente!
— Eu também – sussurrou ela, acariciando o cabelo dourado do marido e saboreando
com assombro a lembrança do quão brilhante ele havia sido nesse dia.
De como ele havia olhado o futuro Rei da Inglaterra nos olhos, fazendo-o se lembrar de
qual era o dever dele enquanto Regente.
A forma pela qual ele havia derrotado Ezra Green usando a própria arma favorita do
homemzinho – as palavras – muito embora Beau não fosse advogado, mas guerreiro, um
homem de ação.
Quanto a Nick, parecia que os agentes da Ordem eram muito difíceis de matar,
especialmente porque a arma com a qual Green havia atirado nele era uma pistola de
pequeno calibre, porque era mais fácil de ser escondida. Mas suficientemente mortal
quando à queima-roupa, havia lhe dito o marido, cuja pistola que tinha no bolso podia ter
matado Beau quando abordou Green, se este tivesse atirado nele.
Em vez disso, o radical havia optado por se concentrar no Príncipe, que estava sentado
a uns cinco metros de distância. Devido a isso, os médicos reais não precisaram cavar
fundo para recuperar a pequena e achatada bala, alojada na dura camada de músculos do
abdômen de Nick. Felizmente, a bala não havia atingido nenhum órgão interno. Nick teria
pronta e completa recuperação e ainda, como bem havia salientado Beau, outra cicatriz
para exibir.
Nesse meio tempo, Lorde Rotherstone e os demais haviam sido libertados da Torre.
Beau e Carissa foram avisados que deviam se reunir mais tarde na casa de segurança do
campo, onde as outras mulheres estavam esperando. Não havia dúvida alguma de que os
agentes ainda estavam zangados pela injusta prisão. Ezra Green e Charles Vincent haviam
sido presos, e o Regente enviou soldados para prenderem também o professor Culvert e
seu círculo de devotos.
O Primeiro-Ministro foi informado sobre a conspiração para assassiná-lo, frustrada
antes de acontecer; ironicamente, a ira de Lorde Liverpool fez com que ele iniciasse uma
ofensiva contra todos os radicais na Inglaterra, exatamente o contrário do que Culvert
esperava conseguir.
Um bom número de conspiradores, por trás da infame trama, já estavam sendo presos.
O único obstáculo real era como a coisa toda se resolveu, pois foram incapazes de
disfarçar a comoção diante dos bisbilhoteiros profissionais: os repórteres de todos os
jornais emcirculação.
Beau já havia dito que eles eram capazes de evitar que qualquer notícia relativa à
Ordem aparecesse nos jornais. Mas, graças à maneira tão pública com a qual Ezra Green
havia escolhido para prender os agentes no molhe, quando os mesmos retornaram, o que
ele fez só para desonrá-los, havia lá inúmeras testemunhas, agora Londres inteira
fervilhava. Em resumo, o verdadeiro propósito do Clube Inferno havia sido exposto,
portanto, a Ordem não teve como se esquivar e precisou falar com os repórteres.
Pobre Vickers e o resto da criadagem que já haviam afugentado dezenas de jornalistas
que esperavam do lado de fora da casa. Tanto que eles fizeram para evitar o escândalo..,
pensou Carissa com ironia. Em vez de alarmá-la, no entanto, ela estava achando aquilo
tudo muito divertido. Beau, por outro lado, estava bastante incomodado.
— Devemos ir esta noite para a casa de campo com os demais – informou ele.
— Talvez seja melhor mesmo que o grande segredo sobre o Clube Inferno tenha por
fim vindo à tona. Talvez, finalmente, tu e os demais consigam o crédito que merecem.
— Argh! – Respondeu Beau. – Decerto Virgil está se revirando no túmulo esta hora.
— Não. Tenho certeza de que ele ficaria muito orgulhoso pela forma com a qual tu
lidastes com a coisa toda. Eu sei disso.
Ela apoiou o braço nas costas dele e lhe deu uma palmadinha afetuosa.
— É..., está certo... – replicou ele com a voz descaradamente cansada. – Sabia que tu
estás apaixonada?
Ela soltou um bufo indignado, mas, é claro, o danado daquele malandro estava
perfeitamente certo na brincadeira.
— Estou, é? – Brincou ela, então inclinou-se e mordeu suavemente o ombro dele.
— Ei! – Ele levantou a cabeça do travesseiro, muito surpreso. – Tu me mordestes!
—E tu merecestes. – Ela pegou-o pelo ombro e o virou. – Olha para ti. Todo
desarrumado e absolutamente tentador. Tu terás sorte se eu não te comer inteiro de uma
só vez.
—Hmmm... Gosto muito de como isso soa... – ronronou ele, quando ela se ajoelhou
sobre ele.
Ela riu, sentindo a excitação dele, porque ambos estavam nus, exceto por alguns
pedaços de lençol que os cobriam aqui e ali.
— Atrever-me-ia a dizer que tuestás, milorde.
— Ruivas! Tu estás me saindo mais descarada ainda do que quando te conheci! – disse
ele, passando as mãos pelas belas coxas nuas da esposa. – Por mim, acho isso
absolutamente encantador.
Ela baixou os cílios e deslizou os dedos amorosamente pelo peito dele, acariciando
aquele esplêndido corpo. Quando se inclinou à frente para lhe dar um comovente beijo,
sentiu que ele respirou profundamente, então baixou a mão sensualmente mais para
baixo, entre os dois corpos esculturais.
Ele pegou os dedos dela e os beijou, depois os colocou no seu membro.
Ela lhe deu prazer como que em um feliz transe, beijando-o em vários lugares
interessantes até que ele a virou de costas e se posicionou sobre ela. E em breve a
delicada música lúdica do relógio automático se misturou aos entusiasmados gritos de
prazer dois dois fazendo amor. Só que, desta vez, sabendo que tinham todos os dias, horas
e segundos de vida juntos, nenhum dos dois prestou a mínima atenção à melodia,
ocupados demais se deleitando um com o outro.
Epílogo
o verdadeiro propósito do Clube Inferno conhecido em todo o planeta, a Coroa não teve
alternativa senão fazer de todos eles heróis. Todas as operações disfarçadas e as diversas
missões que Ezra Green quis expor com o objetivo de mandá-los para a forca, em vez
disso, deixou o povo inglês assombrado.
Talvez a surpreendente revelação servisse para o irônico senso de humor britânico
que,o tempo todo, o mundo em geral havia acreditado que os Lordes de Dante House
eram os mais depravados libertinos, mas que, em segredo, estiveram o tempo todo
protegente valentemente a nação.
A notícia se espalhou pelos quatro cantos. Aonde quer que fossem, os agentes eram
aplaudidos e ovacionados nas ruas. Em White’s, foram rodeados pelopúblico em vários e
apinhados salões de baile. Não podiam ir a parte alguma nem conseguiam fazer nada,
porque depois de anos de fiel serviço, agora tinham que aguentar o castigo do furor de
terem se transformado em celebridades.
Nem as respectivas esposas dos agentes se livraram. Mas até que isso era bom, já que
Carissa havia chegado a um acordo consigo mesma que um pouco de notoriedade era
parte natural por ter se casado com seu escandaloso visconde.
Todas as mulheres dos agentes foram entrevistadas pelas revistas femininas de moda
sobre o que vestiam no dia-a-dia. Daphne, criatura paciente, lidou com tudo, é claro, com
aquela habitual e imperturbável serenidade. Mas a coisa toda chegou a tal ponto do
absurdo que Kate, a Divina Duquesa de Warrington, gritou alguns palavrões que havia
aprendido quando criança com os marinheiros, na coberta do navio do seu pai, e bateu a
porta na cara deles.
Emily, Condessa de Westwood, foi ainda mais direta: recorreu ao arco e flecha quando
os repórteres tiveram o descaramento de incomodar Drake e ela na casa de campo deles,
uma ameaça à qual um repórter qualificou como encantadora.
Nesse meio tempo, o progresso de Mara, a gravidez de Lady Falconridge, transformou-
se em verdadeira obsessão em geral, e foi consultada devido à experiência que tinha
como mãe. Claro está que, durante a conversa, o pequeno Thomas ficou correndo pela
sala sem controle algum, como um indiozinho selvagem. Mas isso não importava, todas as
falhas foram perdoadas. Tudo o que disseram é que elas eram muito inteligentes.
A Inglaterra inteira estava apaixonada por eles. Falou-se em erigir uma estátua de São
Miguel Arcanjo no centro de alguma praça da cidade em honra deles. Mas, quando foi
anunciada uma nova encenação musical baseada nas aventuras em Vauxhall, em cartazes
espalhados por toda a cidade, dizendo O ESPETÁCULO MAIS ESPETACULAR DE TODOS OS
TEMPOS, COM FOGOS DE ARTIFÍCIO, EXPLOSÕES E FAÇANHAS IMPRESSIONANTES E
ATREVIDAS, Prinny levantou as mãos com desespero.
A história toda era suculenta demais e não conseguiria ser abafada, como esperava Sua
Alteza Real. Algo precisava ser feito quanto àquele desastre.
Então, talvez, ele não tivesse que enfrentar as lembranças diárias de como ele havia
causado dano aos bastardos. Ele já estava bastante impopular.
Com um suspiro, havia chamado o arcebispo. Havia chegado o dia no qual iam ter as
devidas honras com toda pompa e circunstância na Abadia de Westminster. Depois disso,
se Deus quisesse, o mundo (do ponto de vista de Prinny) iria parar de falar neles, e do
ponto de vista destes, seriam deixados em paz para usufruir, finalmente, da paz que
haviam ajudado a promover.
Os homens, vestindo uniforme completo, de pé em uma fila na parte dianteira da
magnífica igreja e, sentados ao lado, os Anciãos da Ordem. As damas, vestidas com seus
melhores trajes esentadas nos primeiros bancos, sorriam com orgulho para seus
respectivos maridos.
Tudo o que haviam passado só havia fortalecido o vínculo entre aquelas mulheres, que
agora se consideravam irmãs. Carissa se sentou entre Kate e Daphne, que se deram e
apertaram as mãos umas das outras, pois todos olhavam com lágrimas nos olhos o futuro
Rei da Inglaterra cobrindo com medalhas o peito de cada um dos homens.
Até permitiram que Nick participasse. Aliás, até mesmo o fiel sargento Parker foi
homenageado com distinções especiais.
Enquanto soava a música do grande órgão da Abadia e do coro, intercalados com
nobres melodias de gaiteiros escoceses, representantes de todos os níveis de elite das
forças armadas estiveram presentes para apresentar seus respeitos.
Inúmeros líderes parlamentares compareceram, incluindo o mui agradecido Primeiro-
Ministro, Lorde Liverpool. Embaixadores haviam sido enviados pelas diferentes cabeças
coroadas cujos tronos a Ordem havia ajudado a proteger ao longo dos anos.
Em meio a toda essa balbúrdia, haviam discutido em particular e com certa inquietude,
entre eles mesmos, sobre o fato de terem sido expostas suas identidades depois de tudo
o que haviam feito e de todos inimigos que haviam angariado. Mas o que podiam fazer?
Odisfarce deles já havia ido pelos ares, o passarinho já havia fugido da gaiola...
Nãopodiam fazer mais nada a não ser se garantirem entre si, pois a Ordem já se valia
por simesma. Todos estariam sempre olhando um pelo outro, e nada podia mudar esse
fato. Isso valia para as mulheres, também. Pelo rabo do olho, Carisa viu Kate soprar um
beijo para o seu Bruto, enquanto Daphne enxugava os olhos com um lencinho.
Depois que o Regente percorreu a fila dos homens perfilados dando os parabéns a
cada um deles, a cerimônia terminou.
Os homens tentaram ir até onde estavam suas respectivas damas, mas o avanço deles
foi impedido pelo mar de simpatizantes e admiradores agradecidos que os rodearam.
Beau abriu caminho entre a multidão. Carissa viu os pais dele, que estiveram sentados
juntos durante a cerimônia. Talvez não estivessem só mais do que orgulhosos do filho, o
que havia inspirado o Conde e a Condessa de Lockwood a se unirem e lhe mostrar apoio.
Parecia que eles estavam se dando melhor desde que ela e Beau haviam anunciado a
gravidez de Carissa.
Beau os obrigara a entrar no mesmo aposento para ouvir a notícia, então havia
informado severamente aos pais que, se quisessem passar um tempo com os netos que
viriam, iriam ter que dar um exemplo razoável e não agir como crianças. As coisas
passaram a se desenrolar com surpreendente maciez desde então. O casal parecia
tentado a confraternizar com a família de novo. Quando Lorde e Lady Lockwood
percorreram o longo e amplo corredor com portas gigantes da Abadia, Carisa também viu
Tio Denbury e família conversando mais além. Tia Jo caminhava entre duas damas, Lady
Joss e Lady Min. Tendo aprendido a lição, a glamurosa Condessa d’Arras não ia permitir
que outra sobrinha se extraviasse. Havia dado um passo adiante para começar finalmente
a colocar alguns empecilhos nos esforços da pobre senhorita Trent para manter as
formidáveis belezas sob controle. Afinal de contas, a própria mãe das mocinhas não iria
fazê-lo.
Carissa sorriu vendo os parentes saírem arrastando os pés.
Ela os encontraria depois da recepçãos aos heróis conquistadores. Nick, no entanto,
não teve permissão para comparecer à essa parte das festividades do dia. Os fornidos
gaiteiros da Ordem, que haviam desempenhado o papel de guardas durante a cerimônia,
redobraram os esforços.
Iriam escoltar o desobediente Barão Forrester como reforço até a sede da Ordem, na
Escócia, para devolvê-lo à cela.
Passaria no mínimo dois anos no calabouço. As grandes escoltas vestiamkilt e lhe
prestaram a grande honra de não acorrentá-lo diante de todo mundo, mas Nick parou a
pouca distância de onde Carissa estava de pé, para se despedir dos companheiros.
Os três antigos membros da equipe confabulavam ali perto em voz baixa. Não
conseguia escutar muito, além do mais, ela estava tentando não ouvir furtivamente. Mas
podia dizer, pela expressão dos rostos dos homens, que Nick estava se desculpando com
Beau e Trevor pela última vez.
— Boa sorte no cárcere! – ouviu Beau dizer tristemente ao amigo de cabelos pretos, no
final. – Não te preocupes, vamos te escrever com frequência. Não vamos nos esquecer de
ti.
— Obrigado. Isso significaria muito para mim, lá dentro. – Apertos de mãos e abraços
de urso foram trocados.
— Vou sentir tua falta, homem – admitiu Trevor. – Cuida-te.
— Faz o mesmo. E sê feliz – respondeu. – E ambos, cuidem bem das vossas respectivas
damas. – Nick lhes deu uma piscada maliciosa e, com isso, os guardiões da Ordem o
levaram.
Beau enfiou as mãos nos bolsos com um olhar nostálgico, enquanto ele e Trevor
observavam os soldados escoltando o companheiro de equipe, depois trocaram um olhar.
— Tu achas que ele vai ficar bem? – perguntou Trevor.
— É Nick – disse Beau. – É bastante indestrutível. Ele vai ficar bem. – Em seguida deu
uma cotovelada no amigo. – E quanto a ti?
— Eu vou para casa. Há uma dama esperando por mim. A nova casa está quase
terminada e minha vida de verdade pode, finalmente, começar.
Trevor sorriu, os olhos cinza brilhando, e Carissa, ouvindo dissimuladamente, apesar
das boas resoluções, achou-o muito bonito, principalmente agora que havia tirado aquela
barba desgrenhada. Curiosamente, no entanto, havia mantido a longa cabeleira, o que lhe
dava um arum pouco selvagem. No momento, estava recolhido em um rabo de cavalo.
Beau lhe deu uma palmadinha nas costas.
— Bom, não vou te reter, então. Vai buscar a tua Laura. Mas espero ser teu padrinho
de casamento.
— Mas é claro que sim! Desde que ela ainda me aceite...
— Como é que é?! – Protestou Beau. – E tu ainda tens alguma dúvida?! Mas é claro
que ela vai te aceitar. Principalmente agora, que tu és um herói famoso – disse,
arrastando as palavras, dando-lhe uma palmadinha no braço. Trevor encolheu os ombros.
— Ela ficou sem saber nada sobre mim durante muito tempo, só isso.
—Não te preocupes, meu amigo. Tenho certeza de que tu vais encontrá-la exatamente
onde a deixastes. E estou vendo ali uma dama esperando por mim.
E acenou para Carissa. Colocou os braços em torno dela e lhe deu um carinhoso beijo.
— Tu estavas esplêndido ali, aliás, todos vós – ela parabenizou os dois.
— Estávamos mesmo, não é? – Beau falou lentamente, enquanto saíam.
A luz do dia primaveril brilhava através das videiras quando todo o grupo saiu, para o
crepúsculo sagrado da Abadia de Westminster, respirando o ar puro e brilhante.
O céu, de um azul resplandescente, parecia envolver as torres da Abadia. O bando de
pombas que residia nas torres levantou voo. Ao vê-las, Beau sentiu a garganta
inesperadamente apertada. Ele e seus irmãos guerreiros pararam no umbral da Abadia e
ficaram observando o voo das mesmas. Quando as aves voaram livres, os homens se
olharam em silêncio, com estóica compreensão. A luta havia sido excessiva. Para eles,
pelo menos.
Haviam cumprido com o dever e havia dado um bocado de trabalho sanar as sequelas,
mas, finalmente, estavam livres de verdade.
Aquela tensão que carregavam desde que eram pouco mais que crianças estava
começando a aliviar. Ainda tinham cicatrizes de todas as batalhas às quais haviam
enfrentado, todas as provas que, de alguma maneira, haviam passado. O dia, aquele ao
qual mal se atreveram a sonhar, finalmente havia chegado. O dia no qual eles saíram para
o outro lado.
Beau quase havia desistido de acreditar que esse dia pudesse realmente chegar a
acontecer.
Mas o dia especial estava ali, pairando sobre eles. Iriam precisar aprender uma nova
forma de viver. Enquanto olhavam em volta e de um para o outro com mútua
compreensão, uma chispa de curiosidade brilhou nos olhos de cada um, luz essa que
parecia perguntar se talvez a aventura não estivesse apenas começando. Então a jovial voz
de Kate rompeu o silêncio reflexivo.
— Vamos, rapazes, não fiquem aí parados, animem-se! Vamos acabar perdendo nossa
própria festa!
Em seguida, arrepanhou a saia e passou por eles, indo organizar as carruagens. Alguns
dos rapazes sorriram para Rohan.
— Não se parece muito com uma duquesa, não é? – observou Max.
— Filha de pirata – murmurou Rohan para os demais, com um sorriso maroto.
— E ele não iria querer que ela fosse de outra maneira – retrucou Jordan, e Rohan
assentiu, concordando totalmente. –Max era quem queria uma dama refinada. E ele
conseguiu uma – acrescentou, fazendo sinal com a cabeça para Daphne.
Max lhe deu uma palmada no ombro.
— Meu amigo, minha refinada dama tem um lado que tu nem podes imaginar. E não
estou sugerindo que tu o verifiques – Rohan disse rindo.
— Isso nem me ocorreria, irmão.
Então Mara ergueu o pequeno Thomas e o entregou para Jordan. O pequeno, de dois
anos, jogou-se nos braços do padrasto. Jordan o colocou sobre os ombros para que
Thomas pudesse ver do alto todas as pessoas, enquanto Drake e Emily caminhavam de
braços dados, tão inseparáveis quanto haviam sido desde crianças. Max olhou para o céu
outra vez enquanto esperavam as respectivas carruagens. Beau tinha a sensação de que
sabia o que o líder da outra equipe estava pensando.
Bem que Virgil podia estar ali...
A ausência do velho escocês havia deixado um buraco entre eles. Pelo menos a morte
dele havia sido vingada quando os agentes haviam ido à Alemanha.
— Tenho certeza de que ele está nos vendo – Jordan murmurou com um olhar
significativo, segurando o enteado no colo. Beau sorriu com ironia.
— Suponho então que estaríamos agora nos comportando à altura.
— Tal como deve ser! – interveio Carissa, voltando para o lado do marido.
— Sim – murmurou ele sorrindo. – Tal como deve ser. – Beijou-a no alto da cabeça,
envolvendo-a com o braço. Em seguida, todos foram juntos para iniciar a comemoração.
Ao voltar para casa, Lorde Trevor Montgomery segurou as flores às costas com tanta
força que quase quebrou os cabos das mesmas.
— Lady Laura está em casa? – perguntou mais uma vez ao mordomo da família Bayne,
que ficou estatelado, imóvel, olhando-o como se estivesse vendo um fantasma.
— E-eu... – O pobre criado fechou a boca bruscamente, em seguida abriu a porta para
ele com ar de quem não sabia como agir.
Quando Trevor entrou, sentiu o coração bater furiosamente, e foi então que teve o
primeiro indício de que as coisas ali não estavam como ele as havia deixado.
Primeiro ouviu uma alegre canção tocada ao piano vinda lá de cima – o instrumento
ficava na sala do andar de cima, se ele bem se lembrava. A música foi acompanhada por
uma gargalhada juvenil, e esse som familiar fez brotar o início de um sorriso no rosto de
Trevor. Nisso estavaa beleza de Laura.
Assim, despreocupada, sem ter sido tocada por toda a fealdade que ele havia visto. Ato
contínuo, uma voz mais profunda – masculina – se juntou à risada dela. Trevor ficou
imóvel, com o olhar lá em cima, no topo da escada.
Mas que diabos...?!
O mordomo empalideceu e olhou para ele com ar de desculpa, estremecendo um
pouco, e então, as duas vozes começaram a entoar com harmonia um alegre dueto. Uma
canção de amor. Trevor ficou muito quieto, ouvindo.
— Quem é esse? – perguntou em um tom de calma assassina.
O mordomo engoliu em seco.
— Eu sinto muito, milorde. Esse é..., hã... – Ele semicerrou os olhos, esperando. – O
novo noivo de Lady Laura – completou o mordomo falando atropeladamente,
aterrorizado.
— Novo noivo?! – repetiu ele em um sussurro surpreso.
— Lamento muito mesmo, milorde, mas a pobre moça pensou que o senhor havia
morrido. Alliás, todos nós pensávamos – sussurrou o mordomo. – Tenho certeza de que
ela ia vos contar muito em breve.
Trevor mal registrou algo depois disso. Como o dueto continuava cantando de forma
brincalhona no andar de cima, não pôde deixar de notar que, se de fato Laura havia
pensado que ele estava morto, não parecia tão incomodada com a morte dele. Bom Deus.
A traição quase lhe tirou a respiração.
De repente se sentiu mal. Esticou a mão e segurou o mordomo, impedindo-o de ir
buscá-la, principalmente porque não confiava em si mesmo para não cortar a jugular do
novo noivo diante dela.
— Quem é ele? – perguntou com um grunhido.
O mordomo disse o nome, mas Trevor nunca havia ouvido falar desse homem. Quando
deu por si, estava de pé na calçada, como quem em sonho.
O mundo girava, e não era devido ao excesso de bebida ingerida durante a recepção na
noite anterior, na Abadia de Westminster. Havia se sentido no apogeu com seus
companheiros, os heróis conquistadores. Esperava que a vitória continuasse hoje quando
fosse reclamar a recompensa mais doce de todas.
Mas isso..., havia sido uma surpresa muito desagradável, para dizer o mínimo.
Como é que ele estava passando por aquilo?! Tudo o que havia planejado tão
meticulosamente... A nova vida que ele havia esperado tanto tempo... A oportunidade de
uma existência normal e organizada, com uma bela mulher, em uma bela casa nova...
Tudo havia ido por água abaixo agora.
Seu estúpido, idiota!!
E tudo para nada!!
Ele não conseguia acreditar.
Primeiro, Nick o havia prendido em um porão; depois, a Coroa havia praticamente
jogado seus companheiros agentes aos lobos. E agora, até mesmo Laura demonstrara que
havia sido infiel.
Tinha mil perguntas sobre o momento exato no qual ela havia decidido desistir de
esperar por ele e seguir em frente com a própria vida. Mas estava abalado e irritado
demais para lhe perguntar isso, no momento.
Além do mais, tinha a mais sombria e amarga sensação de que isso simplesmente não
lhe importava. A imagem que havia mantido na mente dos dois juntos através dos últimos
e brutais anos de guerra jazia aos pedaços no chão.
Novo noivo?! – Sussurrou para si mesmo.
Não sabia para onde ir nem o que fazer, apenas começou a andar a esmo, às cegas
pelas ruas da moda de Mayfair, parando só quando se deu conta de que ainda estava com
as flores na mão. Estava em tal estado de choque incrédulo que mal conseguia se lembrar
de como elas haviam chegado à sua mão. Rosas de Arlequim..., coisas tolas. Berrantes.
Rajadas de cor de rosa e branco, as favoritas dela.
Quanto cuidado havia tido para tirar todos os espinhos para que não machucassem
aquelas delicadas mãos!
De repente, jogou a cabeça para trás e soltou uma amarga, porém cínica risada.
Estúpido! E começou a atirar as malditas coisas na rua.
Que fossem pisoteadas, esmagadas pelas patas dos cavalos, pensou com raiva, mas,
pelo rabo do olho, deu-se conta da triste figura que havia acabado de passar por ele.
Viu uma senhora idosa, de aspecto pobre, envolta em um manteu puído e que parecia
que estivera esfregando pisos nas últimas horas apoiada em uma cerca de ferro forjado,
provavelmente esperando o ônibus. Então ele parou, virou-se e se aproximou dela.
Entregou-lhe as rosas sem uma só palavra, e ela, ao que parecia, ficou emocionada até a
alma.
— Oh, para mim?! Oh, oh, Deus meu! O senhor é muito gentil, querido rapaz! –
exclamou a idosa, frágil avó, animando-se. As lágrimas brotaram fartas dos olhos da
velhinha.
Isso o humilhou de alguma, mas sacudiu-o, fazendo com que prestasse atenção em si
mesmo. Ele não conseguiu nem esboçar um sorriso, mas inclinou a cabeça
respeitosamente para a idosa, ato contínuo, continuou a andar.
Não tinha ideia para onde iria... E no entanto, estranhamente, sentiu-se mais leve no
instante no qual as rosas saíram da mão dele.
Se a mulher que ele havia desejado como esposa se preocupava tão pouco com ele,
então, talvez tivesse acabado de se esquivar de uma bala fatal.
Talvez Laura tivesse servido para um propósito definido, o de fixar-se na mente dele
para lhe dar esperanças, para mantê-lo vivo e em movimento. Talvez aquela história toda
com ela havia sido um engano desde o começo.
E agora, faço o quê?! – perguntou-se, perplexo.
Agora é que são elas...
Notório e sem medo, o Senhor Trevor Montgomery deve enfrentar seu maior desafio:
o casamento!
Tímida e de bom coração, a Senhorita Grace Kenwood sabe que não tem nenhuma
possibilidade de tentar seu novo vizinho, o Senhor Trevor Montgomery. Toda mulher bela
pode ser escolhida e desmaia sobre o bem-educado ex espião.
Apesar de que ele uma vez a beijou até deixá-la sem fôlego, ele simplesmente não
podia ter interesse algum em alguém como ela. Mas, de alguma maneira, o malandro
sedutor dá rédea solta ao próprio demônio interior...
Toda mulher ama o herói, mas Trevor não interesse algum em nenhuma delas, salvo
pela candidez refrescante de Grace.
Se ele tivesse coração, Grace o roubaria. Ela insiste que ele é melhor do que pensa, e
ele tem certeza de que ela está absolutamente enganada. Até que o perigo espreita
novamente, e Trevor descobre outra vez o quão fácil é ser o herói..., da senhorita certinha.