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3.

Moralidade e Eticidade em Hegel

Como foi trabalhado no capítulo anterior, na Introdução dos Princípios, Hegel coloca suas
considerações iniciais sobre a ciência filosófica do direito, onde a liberdade, enquanto
substância da vontade livre, é o vetor que conduz os indivíduos a sua autodeterminação. Após
esta colocação, o filósofo inicia sua reflexão sobre as condições particulares para que a
vontade da liberdade inicie a busca de sua plenitude no mundo externo ou, mais
especificamente, na vida em sociedade.
O autor divide este momento da obra em três partes. Em cada parte que se segue - com
exceção da primeira, que naturalmente é derivado das ideias colocadas na Introdução -, o
autor traz uma série de pensamentos derivados das partes anteriores de sua filosofia social
incidida sobre a liberdade. Uma das consequências desse momento descrito por ele consiste
no processo de construção da moral do sujeito.
Por meio disso, então, Hegel fundamenta o comportamento da liberdade sob a uma noção
de moralidade comum da vida em comunidade. Isso significa dizer que, mediante a definição
e apreensão deste conceito, o autor decodifica as bases do exercício da moral nas instâncias
do real, isto é, na ação do mundo concreto, planificado na realidade social que move as ações
humanas percebidas, num primeiro momento, por um atributo abstrato da ação do
pensamento - qual seja, a vontade livre. Este é, afinal, o objetivo deste capítulo: analisar este
percurso da moralidade (e com ela a eticidade) da filosofia social hegeliana.
Para iniciar esta reflexão, na primeira parte do livro, o filósofo trata da determinação
imediata da vontade em-si e para-si. Devido a este fator, ela, no mundo exterior, se encontra
na ordem do Direito Abstrato.

3.1. O Direito Abstrato

Ainda na Introdução do Princípios, no §33, Hegel determina as fases do desenvolvimento


da ideia da vontade livre em-si e para-si. A primeira delas consiste no fato de que esta vontade
autodeterminada é imediata1. É por conta deste atributo, consequentemente, que o domínio
do Direito Abstrato (ou formal) obtém seu estatuto de validez neste processo de efetivação
da liberdade concreta.

1
HEGEL, G.W.F, Princípios da Filosofia do Direito, p.35. São paulo: Martins Fontes, 2009.
O momento desta fase da vontade imediata, pois, gera uma dupla consequência: o primeiro,
de que o seu conceito é abstrato, portanto, oriundo do pensamento humano subjetivo; o
segundo de que sua existência empírica, como tal manifestação desse estágio da vontade, é
imediata2. Em outras palavras, a vontade imediata, no mundo externo, representa a figura
mais elementar do indivíduo singular3, isto é, da vontade do sujeito individual, encerrado em
si mesmo.
Estas duas características da vontade em-si e para-si imediata do Direito Abstrato, ademais,
para Hegel, gera o estatuto abstrato que engendra a personalidade do sujeito. É este elemento,
então, que constitui o aspecto formal e puro da vontade. Ademais, por conhecer a si mesmo
apenas por meio dessa relação abstrata e subjetiva com o real, a personalidade permite que o
sujeito encontre sua individualidade própria - e, com isso, seu caminho a liberdade.
Sobre esta determinação da personalidade, no §35, ele escreve:
“35 - Nesta vontade livre para, o universal, ao apresentar-se como formal, é
a simples relação, consciente de si embora sem conteúdo, com a sua
individualidade própria. Assim é o sujeito uma pessoa. Implica a noção de
personalidade que, não obstante eu ser tal indivíduo complementar
determinado e de todos os pontos de vista definido (no meu íntimo livre-
arbítrio, nos meus instintos, no meu desejo, bem como na mina extrínseca e
imediata existência), não deixo de ser uma relação simples comigo mesmo e
no finito me conheço como infinite universal e livre” (HEGEL, p. 39, 2009).

Esse encontro da personalidade consigo mesma pela vontade em-si e para-si na esfera do
Direito Abstrato, de acordo com Hegel, configura a base do jusnaturalismo do indivíduo
singular na modernidade. Neste sentido, este estágio da vontade livre do indivíduo, no mundo
empírico, traz o direito natural do sujeito que nele, por sua vez, forma sua Pessoa. Desse
modo, portanto, ele está dotado do poder de exercer a sua liberdade sem interferência dos
outros arbítrios, isto é, independente dos acontecimentos históricos. Com isso, ele cria as
condições para que a vontade singular encontre sua autoconsciência, isto é, sua universalidade
formal do espírito livre4.

2
Ibid, p.35.
3
No artigo Direito Abstrato de Hegel: um estudo introdutório (1ª parte), o filósofo Marcos Muller traz uma
consideração importante sobre o indivíduo singular no Direito Abstrato. Segundo ele, “O substrato histórico da
elaboração de pessoa é a figura jusnaturalista do indivíduo singular, originalmente portador de direitos subjetivos,
desvinculado, num primeiro momento, das relações intersubjetivas, sociais e políticas concretas...”
4
Com isso, a universalidade formal da direito abstrato apreende todos os estágios da vontade livre (quais sejam,
sua particularidade, singularidade e universalidade).
Ainda que o conceito de jusnaturalismo de Hegel seja oriundo do Direito Romano, o autor,
naturalmente, deseja se distanciar da sua concepção clássica, isto é, a de que segue de acordo
com as normas da ação ética e jurídica substancialmente orientada pela vida boa, ou seja,
levando uma vida virtuosa nas suas práticas sociais5. As contingências históricas e sociais
que regem a modernidade é a justificativa disso. É por conta do espírito deste tempo histórico,
aliás, que o direito abstrato jusnaturalista está desconectado dessas obrigações impostas pelo
mundo material que os antigos defendiam.
O direito abstrato (formal) na modernidade, na verdade, “compete antes uma esfera neutra
da preferência pessoal em que cada cidadão, considerado um homem privado, pode perseguir
de modo egoísta seus objetos de maximização de utilidade”6. Desse modo, os direitos naturais
são os seus direitos de liberdade que validam a individualidade da pessoa. São eles, assim,
que devem mover as ações humanas concretas.
Nesse sentido, o direito, por estar calcado na ideia da liberdade, gera a permissão jurídica
da intenção da vontade imediata, isto é, a objetividade da manifestação do seu substrato. Isso
significa dizer que sua ciência filosófica possui uma “existência imediata a si que dá a
liberdade de um modo também imediato”7. Em outra palavras, o direito, por interpelar a
realidade, é a entidade que reconhece o direito do agir da vontade imediata - movida por por
desejos, carências, instintos e volições -, ou seja, ele está contido na fundamentação da
essência da vontade livre.
Para Hegel, o direito abstrato está dividido em três modos. São elas: a propriedade (§§ 41
- 70), o contrato (§§ 72 - 80) e a injustiça (§§82 a 104)8. Por meio dessas formas, ademais, a
vontade livre, enquanto figura da personalidade portador de seu direito pessoal, dá uma
existência externa, isto é, produz o direto real da personalidade.
Naturalmente, então, esses três elementos do direito abstrato exprime os diferentes tipos
de relação da vontade com a pessoa singular. Na propriedade tem-se o entendimento de que,
por meio da reflexão sobre a pessoa e as coisas, a liberdade é essencialmente a relação da
pessoa particular consigo mesma. Isso significa inferir que, através dela, existe uma relação
imediata da vontade à coisa exterior de que ela se apropria ao objetivar nela a sua vontade

5
HABERMAS, J. Teoria e Práxis, p.146. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
6
Ibid, p.146.
7
HEGEL, G.W.F, Princípios da Filosofia do Direito, p.41. São paulo: Martins Fontes, 2009.
8
O exame mais detido de cada forma do direito abstrato na filosofia política de Hegel não será objeto de estudo
deste trabalho - ainda que exista uma quantidade significativa e preciosa de estudos, publicações, artigos e livros
sobre o tema.
racional9. As reflexões do autor sobre a posse, o uso e alienação da propriedade exemplifica
essa definição. Mais do que isso, ela comprova algo candente em sua filosofia, a saber, “a
existência é essencialmente ser para algo que é outro”10.
O contrato, por sua vez, reconhece estes proprietários. Através de relações contratuais -
isto é, da estipulação de dádivas, trocas e negócios entre proprietários mediante as exigências
contratuais movidas pela volição dos indivíduos -, a vontade singular se relaciona com outra
pessoa que detém uma posse. Nesse sentido, os momentos e nos tipos de contratos (troca de
uma coisa qualquer, venda ou compra e arrendamento), quando propostos, determinam uma
vontade comum, um mútuo consentimento da existência às outras vontade que desejam
reconhecer um ao outro, reciprocamente, enquanto proprietários. Desse modo, o contrato é
uma forma “universal” da propriedade que engendra as diferentes vontades singulares num
sentido absoluto.
Por fim, a injustiça é a manifestação da vontade como sendo diferenciada na relação
consigo próprio, ou seja, ela é a vontade particular se opõe ao seu ser em-si e para-si11. Em
outras palavras, a injustiça representa a diferenciação e oposição da vontade a si no seu
próprio interior. Esse momento ocorre pois, na vida regida pelo contrato, encontra-se um
antagonismo entre a universalidade abstrata em si do ordenamento jurídico e a particularidade
da vontade. Em decorrência disso, o uso do direito é, em última instância, contrário ao direito
em si. Há então, neste sentido, uma espécie de inversão dos seus valores. Desse modo, a
injustiça gera o crime, a impostura, o dano civil e a violência.
Tal descoberta, não obstante, mostrou a Hegel que, a oposição entre o universal e o
particular na injustiça, sobretudo nos §§ 102-103, quando o autor fala da punição e da
vingança, é gerado pela condição subjetiva do indivíduo em determinar as inclinações de sua
vontade. Este elemento, ademais, será fundamental para a construção da moral do sujeito.
Ora, desse modo, o direito abstrato, por expressar a universalidade formal da
autoconsciência do espírito livre, representado de modo imediato na realidade pelas três
formas descritas por Hegel, é a base e a condição necessária de todas as determinações
ulteriores - portanto, mais concretas - da vontade livre no espírito objetivo. Com isso, embora
seja pura, infinita e abstrata, a personalidade autodeterminada do direito abstrato é um estágio
primeiro para alcançar a plenitude da liberdade. Logo, ela é insuficiente para determinar o

9
MULLER, M. Direito Abstrato de Hegel: um estudo introdutório (1ª parte), p.171. Rio de Janeiro: Analytica,
Vol. 10, N. 1; 2006.
10
HEGEL, G.W.F, Princípios da Filosofia do Direito, p. 69. São paulo: Martins Fontes, 2009.
11
Ibid, p.42.
ethos do pensamento humano na História da vida social - não desconsiderando, porém, que
ela é determinante neste trajeto.
Para essa determinação da liberdade ocorrer, entretanto, será preciso analisar o elemento
mediador que permite alcançar a efetivação da vontade livre emancipada. Segundo Hegel, a
moralidade representa este momento de reconciliação com o espírito objetivo.

3.2 A Moralidade (Subjetiva e Objetiva)

O sistema da filosofia prática hegeliana, como é próprio da essência de toda história da


filosofia política, investiga a natureza da ação humana pela esfera da ética e da política. No
caso do filósofo, essa investigação visa o entendimento do Espírito Objetivo.
Isso significa dizer, em outras palavras, que a filosofia política tem como objeto de estudo
a ação humana no terreno do real, do mundo objetivo - permeado por relações sociais e, em
muitos casos, por relações de poder. O seguimento desta reflexão, ao decorrer do tempo
histórico, criou o espírito das leis, a essência e o modo de ação do Estado no mundo objetivo,
o princípio ético das instituições e as características das formas do exercício do poder nas
sociedades.
Nesse sentido, a filosofia social hegeliana está virada no seu tempo histórico, qual seja, a
Modernidade. Para Hegel, isso significa inferir que, ao sistematizar seu pensamento político,
o corolário de suas premissas apresenta que o mundo moderno é marcado pela centralidade
das instituições políticas e pela objetividade da norma jurídica.
Desse modo, a probidade da sua realidade é agenciada pelo respeito das leis12. É este o
conjunto de normas que determina os direitos do indivíduo, isto é, que possibilita a percepção
da vivência do ser humano mundo externo.
Essa realidade, assim, evidencia que o ser humano movido pela vontade racional - cuja
essência é a Razão, ou seja, a ação do Espírito realizado detentoras de direitos - tem o dever,
acima de tudo, de determinar a si. Em outros termos, isso expressa que a vontade do ser
humano é um agente moral13.
Ora, por ser racional, esse processo de determinação de si mesmo tem como conteúdo a
própria vontade. Devido a ocorrência da vontade racional buscar a universalidade, logo, o seu
conteúdo é de ordem universal. A vontade, portanto, deve conformar a razão universal. Para

12
LOSURDO, D. Hegel e a liberdade dos modernos, p. 325. São Paulo: Boitempo, 2019.
13
TAYLOR, C. Hegel - Sistema, Estrutura e Método, p.468. São Paulo: É realizações, 2014.
Hegel, este dever da vontade, detentoras de direitos pelo sufrágio das leis, constitui a esfera
da moralidade.
Este processo, de acordo com o filósofo no §33, é o segundo e o terceiro momento do
desenvolvimento da ideia da vontade livre em-si e para-si contidos no Princípios da Filosofia
do Direito. O procedimento da compreensão da moralidade, nesse sentido, se dá de duas
formas: na primeira, como moralidade subjetiva; na segunda, enquanto moralidade objetiva.
O surgimento da moralidade subjetiva como primeira forma da moralidade ocorre por uma
razão elementar: sua determinação, ao regressar a si mesma no mundo exterior, se reconhece
como individualidade subjetiva perante o universal14. Isso implica dizer que a figura da
Pessoa que reconhece sua personalidade na relação imediata com o mundo concreto na forma
do direito abstrato, na verdade, é um sujeito cuja subjetividade é universal. Ora, como a
demanda da moralidade é, pelo agente moral, o reconhecimento de que o pensamento está na
ordem da razão universal, logo, o imperativo da subjetividade é a realização da própria razão.
Para Hegel, esse processo surge no instante de constatação de que, no modo da injustiça do
direito abstrato, existe uma oposição entre o desenvolvimento universal e particular da
vontade do direito imediato. Essa diferenciação ocorre quando o autor analisa o crime e sua
forma de abolição: a vingança15. Ao constatar essa assimetria, Hegel, assim, almeja encontrar
uma solução que aspire com que a vontade particular e subjetiva, agora, seja apenas universal.
Segundo ele, o resultado desse movimento reside no conceito da moralidade subjetiva.
Ora, o entendimento da moralidade subjetiva, na verdade, é a compreensão do ponto de
vista moral da vontade. No §105 o autor justifica essa relação ao escrever que
“105 - O ponto de vista moral é o da vontade no momento em que deixa
de ser infinita em si para o ser para si. É este regresso da vontade a si bem como a sua
identidade que existe para si em face da exisTência em si imediaTa e das
determinações específicas que este nível se deSenvolvem que define a pessoa como
sujeito” (HEGEL, p.97, 2009).

O ponto de visto da moral, portanto, é constituído na subjetividade do indivíduo. O


motivo disso segundo o autor, é de que, na subjetividade, o conceito de vontade ganha sua
determinação. Isso denota de que a subjetividade dá uma existência ao seu entendimento,

14
HEGEL, G.W.F, Princípios da Filosofia do Direito, p. 35. São paulo: Martins Fontes, 2009.
15
No §102, Hegel explica que a vingança, por ser uma forma de abolição do crime desejada de modo particular,
gera uma ação cuja noção de justiça é movida por um interesse único, particularizado. Portanto, seu valor de
justiça, no domínio do direito, é contingente. Com isso, a vingança torna-se violência. Sua única solução seria,
então, a exigência de uma justiça isenta de todo interesse, que pune mas não se vinga.
ou seja, ele é um plano superior que define a liberdade de modo mais preciso. Isto é, a
subjetividade engendra sua ideia, sua reflexão a si mesma. Deste modo, é a subjetividade da
vontade que permite com que a liberdade possa ser real em ato e, por conseguinte, com que
possa validar a identidade nela mesma.
Ao colocar em ato a vontade subjetiva do sujeito, deve-se estipular sua autodeterminação.
Sua existência, com isso, tem de ser formada pelo direito da vontade subjetiva - que, por ser
imediatamente para si, abstrata e limitada, é o elemento formal por excelência da vontade.
Dessa forma, a identidade desta vontade alcança sua realização concreta.
Ainda assim, a realização concreta da vontade subjetiva na moralidade subjetiva precisa
de uma expressão no plano empírico. De acordo com Hegel, esta manifestação ocorre pela
ação16. Esta expressão, ademais, possui três especificações: ser consciente de que elas são
ações minhas quando passarem ao mundo exterior, ter uma relação essencial a um conceito
como algo obrigatório e, finalmente, por ligar a vontade do sujeito com de outrem.
A moralidade subjetiva, além disso, possui três aspectos. Hegel as divide em três seções.
São elas: o projeto e a responsabilidade (§§115 - 118), a intenção e o bem-estar (§§119-
128) e o bem e a certeza moral (§§129- 141). Na primeira seção, o projeto é uma categoria
da determinação imediata da ação moral. O seu sentido, desse modo, é gerado para estipular
um primeiro pensamento da determinação da ação moral.
A noção de projeto, com isso, siginifica que a ação moral faz um duplo movimento: o
primeiro de, pelo fato de ser pressuposta num mundo desenvolvido em si, a sua forma
imediata ser constituída de uma multiplicidade de circunstâncias formada por um conjunto
de ações de causa e efeito no real; o segundo, é que, por conta de seus atributos, a ação
moral, ao ser efetiva no mundo externo, necessita questionar sua responsabilidade nas
operações que a subjetividade incide no real. Por meio dessa laboração, a responsabilidade
orienta ação moral prática a seu caminho universal, ou seja, a produção da sua liberdade.
É por esse duplo comportamento, por conseguinte, que se conhece o conceito de projeto.
Em outras palavras, o projeto, na imediação do mundo que a vontade subjetiva determina,
é um dado gerado para orientar precisamente a ação moral da indeterminação subjetiva no
mundo. Devido a isso, então, ela é uma ação essencialmente política: ao responsabilizar-se,
a vontade subjetiva determina que a vontade comece a ser senhora de seu destino no terreno

16
No livro Política e Liberdade em Hegel, Denis Rosenfield traz uma definição precisa do conceito de ação moral.
Segundo ele, “a ação moral, a operação desenvolve-se em uma realidade que se forma, de modo imediato, graças
a uma diversidade de elementos cuja única relação que mantêm entre si parece ser a que se carateriza por uma
contingência exterior”.
das relações sociais, isto é, que sua ação que reside nas circunstâncias concretas da vida em
comunidade torna-se-á universal.
A intenção, por sua vez, é derivado do projeto e da responsabilidade. Para Hegel, a
intenção é uma espécie de validez da ação moral responsável que o projeto determina. A
razão disso, com efeito, é que, devido a sua própria natureza, a intenção é a disposição da
vontade subjetiva que deve compreender o aspecto universal de sua ação moral. Em outros
termos, a intenção está contida no conteúdo do projeto que busca, pelo sentimento da
responsabilidade, ser universal. Nesse sentido, portanto, a intenção apreende o aspecto
universal da efetividade prática17.
Ora, a intenção, dessa forma, está no espectro universal da ação moral. Contudo, devido
ao fato da vontade, no estágio da moralidade subjetiva, ser interior, é preciso definir qual é
o aspecto particular da vontade subjetiva que deseja se realizar. Para Hegel, o bem-estar é
quem conduz essa efetivação.
Em vista disso, o bem-estar é definido como o direito particular que orienta a ação moral
subjetiva que almeja, naturalmente, realizar seus interesses de valor subjetivo. Por residir
nesse grau da vontade, a finalidade do bem-estar, portanto, é satisfazer, mediante as
determinações particulares e a universalidade, o conteúdo da liberdade subjetiva18. Ou seja,
este direito da vontade subjetiva garante a realização determinada dos desejos, carências,
tendências, paixões, opiniões e fantasias do sujeito movido por seus atributos interiores.
A definição do bem-estar como direito da vontade particular, ademais, engendra o
processo de universalidade da vontade. Tal justificativa se dá pois a vontade subjetiva,
mediante seu conteúdo, atualiza a satisfação de seu bem particular. Sendo assim, cria uma
limitação da satisfação da vontade subjetiva. Em outras palavras, ela cria direito subjetivo,
ou melhor, um direito intersubjetivo do sujeito.
Neste sentido, a ação moral subjetiva constitui o direito da pessoa que, ao reconhecer a si
mesmo, forma um direito interpessoal que não pode contrariar o direito e, sobretudo, sua
manifestação objetiva no mundo. A satisfação dos interesses particulares, quando entra em
contato com outras vontades de direito similar, desse modo, devem ser orientadas por outros
dois aspectos da vontade subjetiva: o Bem e a certeza moral.
O Bem, como escreve Hegel, é a “Ideia como unidade do conceito unidade da vontade e
da vontade particular e a liberdade realizada, o final absoluto do mundo” (HEGEL, p. 114,

17
ROSENFIELD, D. Política e Liberdade em Hegel, p.118. Rio de Janeiro: editora Ática, 1995.
18
HEGEL, G.W.F, Princípios da Filosofia do Direito, p. 109. São paulo: Martins Fontes, 2009.
2009). Noutros termos: o Bem, como categoria, auxilia que o direito abstrato, o bem-estar e
a subjetividade do saber sejam formas da vontade que mantenham sua essência e, ao mesmo
tempo, ultrapasse para si sua manifestação primeira. Isso significa inferir que o Bem tem na
gênese a universalidade, ou seja, ela, além de validar a particularidade da ação moral, reside
no espectro do direito que formaliza a universalidade moral que a Ideia do direito possui.
Com isso, ele universaliza a particularidade do sujeito
Deste modo, o Bem é a objetivação da particularidade, ou seja, ele é um fim imanente
oriundo da ação particular do sujeito pois é ele que determina o movimento de
universalização da ação moral. Logo, Sua determinação é o fundamento da vontade
particular19. Ora, por ter esse substrato universal, portanto, o Bem é, para Hegel, é a
substância abstrata da liberdade. Sendo, assim o entendimento seu processo, ao final, leva a
Ideia moral: a realização da liberdade como fim último do mundo objetivo, de antemão, é
orientada por um imperativo subjetivo que estrutura a imediação do ser no real de maneira
universal, isto é, que vai além de sua própria consciência. É neste estágio, então, que reside
a tarefa e a força do Bem.
Dessarte, de acordo com Hegel, o sujeito forma sua consciência moral. O Bem, porquanto,
é a boa consciência que conhece a universalidade sua particularidade, isto é, ela incide de
modo racional na própria subjetividade. Entretanto, ao analisar esse movimento deste
aspecto da moralidade subjetiva, Hegel analisa sua antítese - oriunda do mesmo terreno do
Bem, embora sua finalidade seja inversa. Para o filósofo, este aspecto representa o mal.
Sendo assim, o mal, planificado pela subjetividade, é uma ação má que banaliza as ações
morais. A autodeterminação da consciência movida pela maldade, com isso, é contrária do
desejo da vontade moral. A interioridade da vontade, quando não conduzida pela boa
consciência, pode gerar uma ação moral má, isto é, ela própria, por uma inversão de valor
entre a universalidade a particularidade - no caso específico, uma ação particular que se
comporta de maneira universal - causa o abismamento da determinação da consciência
moral. O seu ponto de vista moral, perante ao Bem, portanto, é ilusório, é um simulacro da
satisfação pessoal do sujeito.
É mediante a constatação de que o Bem e o mal possuem a mesma fundamentação que
Hegel deseja inserir uma maneira que promova ao indivíduo uma certeza de sua ação moral.
Desse modo, a certeza moral da vontade subjetiva racionalizada deve, para realizar sua

19
ROSENFIELD, D. Política e Liberdade em Hegel, p.126. Rio de Janeiro: editora Ática, 1995.
liberdade, se distanciar da maldade, ou seja, saber que possui um conhecimento interior e
que define o seu conteúdo no interior de si mesmo - onde o entendimento da universalidade
sobre a particularidade medeia a ação moral individual no mundo.
Para isso não ocorrer, contudo, a consciência moral movida pelo Bem necessita, na sua
formação, de um complemento que valide sua ação e, com isso, se distancie da ação má. De
acordo com Hegel, este elemento é o mundo do externo regido por uma vida pública e suas
práticas que se realizam. O motivo disso é que, neste local, o Direito é existente em si. Nesse
sentido, o mundo externo, que é objetivo e é onde o direito reside e se autodetermina,
estabelece a ideia do Bem. Logo, é nesse âmbito que a moralidade poderá conformar sua
Razão universal e, desse modo, encontrar seu estatuto de verdade absoluta.
Ora, a formação objetiva da certeza moral na moralidade subjetiva é a ideia na sua
existência universal em-si e para-si. Por conseguinte, a ação moral universal, assim, repousa
no domínio da moralidade objetiva. É nessa realidade - coletiva, da vida em comunidade,
determinada por relações sociais e formas de comportamento práticos no mundo - que existe
uma substância que deduz a certeza da moralidade. Ela é, portanto, a liberdade.
A moralidade objetiva é a terceira e última parte do Princípios da Filosofia do Direito.
Nesse excerto, o autor apresenta os elementos basilares da finalidade do seu objeto de
estudo, a saber, a realização da liberdade concreta mediante uma realidade objetiva,
valorada nos dados do mundo externo que permeia a vida dos indivíduos. No §142, Hegel
deixa bem nítido ao escrever que
“142 - A moralidade objetiva é a ideia da liberdade enquanto vivente bem,
que na consciência de si em o seu saber e o seu querer e que, pela ação
desta consciência, tem a sua realidade. Tal ação tem o seu fundamento em
si e para si, e sua motora finalidade na existência moral objetiva. É o
conceito de liberdade que se tornou mundo real e adquiriu a natureza da
consciência de si” (HEGEL, p.141, 2009).

Desse modo, a moralidade objetiva é um saber cujo conteúdo é constituído por uma
substância concreta, dotada de um caráter racional que, por conseguinte, engendra a vontade
livre na realidade objetiva. Destarte, é na moralidade objetiva que o movimento de
concretização do Bem acontece.
Isso significa dizer, de outro modo, que a objetividade desse estágio da vontade expressa
e autodetermina a ação moral da vontade racional em sua totalidade. A consciência moral,
santuário interior da ação subjetiva, dessa forma, não caí na conduta ambígua do Bem. Na
verdade, a situação concreta do mundo objetivo diz o que Bem é e, por conseguinte, que a
liberdade pensada por Hegel existe no mundo objetivamente, isto é, que sua ação moral
ganhe um sentido - em outras palavras, na ação que percebe sua autorreflexão e interioridade
da própria consciência.
Ao afirmar isso, portanto, o filósofo sentencia que a moral da vontade livre só pode ser
conhecida nas relações sociais práticas do mundo objetivo. É através dessa correspondência,
então, que a moralidade do sujeito só pode ser conhecida na vida em comunidade, isto é,
por meio de uma vida ética determinada pelas leis e suas instituições da realidade objetiva.
Com isso, a moralidade objetiva determina os aspectos de uma eticidade, ou seja, do
padrão da vida ética que a comunidade, no transcorrer da história, cria e atualiza. Nela,
Hegel traz algumas considerações que, justamente, tentam remontar sua genealogia e
singularidades que servem de base para a moral concreta reconhecer a consciência moral e,
enfim, realize a liberdade.

3.3. A Eticidade

A moralidade objetiva, constatação da realidade objetiva para a vontade subjetiva, é


constituída por meio do espírito objetivo da sociedade que permite exercer a liberdade
concreta. A sua possibilidade de realização, porquanto, é concebida por meio das
instituições e práticas da sociedade. Isso ocorre, pois, tais elementos são formas que
perfazem a vida pública de dada sociedade no âmbito de sua vida coletiva20. Nesse sentido,
então, o espírito objetivo dessa moralidade é o Bem realizado. Tal percurso, porém, foi
orientada por meio das normas - vivenciadas apropriadamente - das instituições e práticas
da vida pública, isto é, de uma vida ética. O sistema que fundamenta o seu conteúdo,
ademais, é a Eticidade.
A Eticidade (Sittlhichkeit), portanto, é a definição da moralidade objetiva: a vida ética,
cuja essência é a Eticidade, é a vida social que constitui a liberdade substancial. Ora, no
momento que a pessoa se identifica com ela, logo, causa a realização efetiva da
subjetividade. Com isso, ela forma um comportamento geral, mantido ao longo da história,
que gera um costume ou, como escreve o autor, uma “segunda natureza” 21, ou seja: a
significação e realização da existência do Espírito na vida pública onde o Bem é realizado.

20
TAYLOR, C. Hegel - Sistema, Estrutura e Método, p.417. São Paulo: É realizações, 2014.

21
HEGEL, G.W.F, Princípios da Filosofia do Direito, p.147. São paulo: Martins Fontes, 2009.
O direito da satisfação da liberdade do indivíduo, com isso, está na realidade moral
objetiva. Para isso, é necessário conhecer a sua substância moral, isto é, entender a
consciência refletida de si ligada ao seu conceito22. A eticidade, por ser o conteúdo que
fundamenta o sistema das normas da vida pública, é este elemento. Isso significa dizer,
então, que a eticidade é o espírito real da vida comum.
Esse estatuto da Eticidade, por fim, valida a existência da vontade. Isto significa, noutros
termos, que a esfera da eticidade abrange um conjunto de ações intersubjetivas nas quais os
sujeitos podem encontrar tanto a realização individual quanto o reconhecimento recíproco
por meio da conexão desses dois elementos nas formas de interações sociais. Em síntese: os
sujeitos se auto-realizam em face da reconhecimento de outro23.
Para isso, a eticidade tornar-se-á objetivada mediante o movimento de suas formas. De
acordo com Hegel, existem três formas de vida ética, a saber: a família, a sociedade civil e
o Estado. Entendida por esta ordem, a eticidade, ao passar pela família e pela sociedade
civil, ascende sua plenitude na forma do Estado, ou seja, ela realiza a efetivação da
liberdade.
Na primeira seção, Hegel traz a primeira forma da eticidade, que é a família. Para o
filósofo, ela é “substancialidade imediata do espírito”24, isto é, a família se determina pela
sensibilidade de um único sentimento: o amor. A manifestação deste sentimento, desse
modo, é a disposição da consciência em-si e para-si enquanto membro de uma vida comum,
e não apenas como ser subjetivo movido por afetos.
Sendo assim, pode-se dizer que a família é a unidade imediata da eticidade: sua
possibilidade de conhecimento permite com que o indivíduo se reconheça enquanto ser
comunitário inserido num todo, ou seja, enquanto um membro presente na substância ética.
Destarte, isso denota que a família se manifesta do seguinte modo: ela é a formação de uma
unidade primeira da vida ética por meio da relação correspondente entre a ação moral
determinada a si reconhecida pelos membros da família.
Na medida em que ocorre essa articulação, a família, então, apresenta seu princípio de
diferenciação. Esse movimento é gerado pela abertura necessária da família, isto é, seu
processo de dissolução, ao decorrer do tempo, enquanto núcleo primeiro da eticidade.

22
Ibid, p.148.
23
HONNETH, A. Sofrimento de indeterminação: uma reatualização da Filosofia do direito de Hegel, p.110. São
Paulo: Esfera pública, 2007.
24
HEGEL, G.W.F, Princípios da Filosofia do Direito, p.149. São paulo: Martins Fontes, 2009.
Ora, tal fato ocorre pois, na medida que precisa a família precisa se autodeterminar, ela,
naturalmente, se dissolve: o crescimento das crianças - cujo tempo de vida as permitem,
pouco a pouco, a estruturar a formação de sua consciência e, por conseguinte, seus direitos
- é o dado da realidade, para Hegel, que prova isso.
Ao mesmo tempo, por ser induzida a dissolução, a diferenciação da família gera a
formação de novas formas de famílias. Dessa forma, a família apresenta um duplo
movimento (de dissolução e formação) que valida sua determinação na objetividade:
permitir o nascimento, a partir deste processo, da família. Para isso acontecer, escreve
Hegel, a família se divide em três aspectos: no casamento, nos bens familiares e, por fim,
na educação dos filhos e na própria dissolução da família.
O casamento é a primeira forma de vida ética devido a sua dupla fundamentação25: de um
lado - por conta de sua formação moral e religiosa -, para Hegel, o casamento é o elemento
da vida natural familiar. Dessa forma, o substrato de seu conteúdo reside apenas no espectro
dos assuntos familiares - que representa a totalidade da espécie e sua possibilidade de
propagação; por outro lado, escreve o filósofo, o casamento também é uma união natural
dos sexos. Esse processo é decorrido por conta da liberdade. Ela, pelo seu postulado, orienta
a escolha da(o) companheira(o) que amor consciente26 provém.
Diante desse cenário, o casamento é uma relação viva que cria valores morais e que, por
isso, gera uma unidade ética. O seu elemento objetivo, desta forma, é a consciência desta
unidade como um fim essencial, onde o amor, a confiança e a comunhão medeiam a
existência individual dos sujeitos nesta instituição. Por essas características o casamento é
a forma imediata da família.
Mas esta forma imediata, ao ser assegurada no casamento, necessita preservar seus
rendimentos e patrimônios para continuar sendo uma instituição sólida. Em outras palavras,
o casamento ocorre devido ao fato dos membros de uma união matrimonial necessitarem
assegurar suas propriedades e, por conseguinte, sua fortuna. Hegel, portanto, acredita que a
propriedade é imanente ao casamento: tanto um quanto o outro só existem através da relação
mútua entre elas.

25
Ibid, p.150.
26
O amor consciente é uma espécie de ligação espiritual que se distancia das contingências das paixões e desejos
momentâneos para, na verdade, preservar a efetivação da substância ética nesta instância da eticidade. Desse
modo, ela é uma antítese do livre arbítrio, da escolha pessoal: o amor consciente só existe mediante relações cuja
unidade matrimonial é imutável. O casamento. para Hegel, porquanto, é esta união efetivada.
Para Hegel, então, a fortuna da família é uma exigência e uma condição ao
desenvolvimento do casamento27. É nesse terreno que, mediante funções determinadas dos
indivíduos, o casamento é mantido. A soma de individualidades de uma relação matrimonial
orgânica, por isso, necessita ser repartida.
Neste sentido, para o filósofo, o homem é o chefe da família, seu principal membro: ele,
pelo trabalho de ajustar a providência econômica, na aquisição de bens materiais para
manter a fortuna é a pessoa jurídica e, ao mesmo tempo, o representante exterior da unidade
familiar. Desse modo, a figura do chefe da família - por enquanto, representante supremo
da substância ética - determina a existência de uma hierarquia familiar no casa.
O sentido do casamento, contudo, não esquece seu objetivo: alcançar sua própria
dissolução. O seu processo natural está na existência das crianças oriundas do casamento.
O surgimento delas, no interior da família, com isso, é a preparação para a dissolução e, por
conseguinte, a nova formação de uma unidade familiar. Dessa forma, por amor às suas
crianças, os pais devem lhes educar para a vida ética.
Existem duas razões para essa ação: na primeira, que os pais devem formar os sentimentos
imediatos e as convicções éticas da vida social de seus filhos; ora, esse processo formativo,
no fundo, além de fazer com que os filhos mantenham o seu patrimônio familiar, criam suas
condições de efetivação da liberdade28. Esta é a segunda razão. Nesta lógica, a família,
portanto, deve lhes ensinar esses juízos - afinal, no futuro breve, elas também serão membros
de uma nova família.
A educação das crianças, por conseguinte, está associada ao processo de dissolução da
família. Nos §§ 177-178 Hegel descreve esse processo embasado num único fator, de ordem
natural, que direciona a família a este caminho: o reconhecimento de que, ao alcançar a
idade adulta, as crianças passam a ser pessoas jurídicas capazes de formar uma nova família.
Isso é gerado tanto pelo fato de que, com a morte do pai, chefe da família, ele recebe sua
herança e, na medida em que atinge a maioridade, ele é uma personalidade livre detentora
de uma propriedade.
Ora, o surgimento de novas famílias, na medida que elas promovem novos casamentos,
educam seus filhos e preservam suas fortunas e transfere sua herança familiar, é a base do
segundo estágio da eticidade. Essas características, embora sejam pertencentes ao universo

27
HEGEL, G.W.F, Princípios da Filosofia do Direito, p.157. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
28
Em Política e liberdade em Hegel, Denis Rosenfield define que a educação dos filhos divide-se em dois
momentos. Uma é positiva (a introdução da vida ética imediata sob a forma do amor, da confiança e da
obediência); a outra negativa (a educação que tende à autonomia das crianças). Este movimento, ao final, orienta
a criança a criar uma nova unidade familiar.
da família, não deixaram de se relacionar extrinsecamente ao seu núcleo familiar. Neste
sentido, as existências das famílias vão além de seu modo natural, imediato e unitário: ela
está inserida, além disso, numa vida social externa a si, ou seja, ela faz parte de uma
multiplicidade de famílias de pessoas concretas independentes que, na vida em comum, se
auto-realizam pelo reconhecimento do outro. É neste plano, assim, que surge a sociedade
civil.
No §182 Hegel escreve o que vem a ser a sociedade civil. Diz ele
“182 - A pessoa concreta que é para si mesma um fim particular como
conjunto de carências e como conjunção de necessidade natural e de
vontade arbitrária constitui o primeiro princípio da sociedade civil. Mas a
pessoa particular está, por essência, em relação com a análoga
particularidade de outrem, de tal modo que cada uma se afirma e satisfaz
por meio da outra e é ao mesmo tempo obrigada a passar pela forma da
universalidade, que é o outro princípio” (HEGEL,p.168, 2009).

Esse conceito de sociedade civil significa duas coisas. A primeira, é que o comportamento
da sociedade civil está no sentido oposto ao fundamento da família. Ele não é, portanto, uma
unidade imediata, onde a individualidade do sujeito está dependente numa unidade familiar
que ele não escolheu. Na verdade, o ser humano da sociedade civil é a manifestação máxima
da consciência individual, ou seja, é o sujeito autodeterminado por laços exteriores a sua
interioridade. Deste modo, sua realização é determinada pelo fim egoísta que sustenta o
bem-estar, a existência jurídica e a própria aquisição da subsistência de todos.
O seu segundo significado consiste numa particularidade temporal: a sociedade civil é a
sociedade moderna entendida pela relação mútua entre direito, liberdade e vida econômica.
Neste sentido, o seu conceito é produto da economia burguesa, isto é, ela é fruto de um
sistema de relações de sujeitos economicamente ativos que, através da troca e da produção
visando lucro, movem a satisfação de seus desejos.
A sociedade civil, por intermédio esses dois elementos, é reconhecida por três momentos:
o seu sistema de carências, sua jurisdição e sua administração. É este conjunto de fatores
que dá sentido para que a sociedade civil seja uma forma da vida ética de matriz econômica,
civil e política.
A sua relação com a a leis da economia aparecem, em larga medida, por conta do
surgimento do sistema de carências que o desejo busca satisfazer de modo objetivo. Essa
satisfação se dá por dois motivos: o surgimento de coisas exteriores que são de propriedade
ou são produtos das carências ou vontade dos outros. Em outras palavras, as carências da
sociedade civil, quando realizada pelo interesse egoísta de cada um, efetua-se de modo
universal pois depende que essa ação seja recíproca para todos. Ora, por abordar esse
aspecto da universalidade, o fim egoísta cria um sistema de dependência universal recíproca
para toda vida comum.
Essa realização, entretanto, é mediada pela atividade laboral e pelo trabalho, isto é, pela
vida econômica. Para investigar melhor essa singularidade da vida ética, Hegel se volta para
as reflexões da economia política29. De acordo com o filósofo, este saber é uma ciência que
apresenta um diagnóstico preciso da essência da sociedade moderna pois, diante dele, a
sociedade civil compreende as instituições e suas práticas - envoltas pela produção,
distribuição e consumo de produtos reconhecidos nas variedades de vontades e desejos.
Logo, para Hegel, a economia política é capaz de determinar e fixar as determinações que
levam a efetivação de um conjunto de carências individuais de cada sujeito.
Com isso, a sociedade civil define as modalidade das carências (entendimento da
individualidade universal), do trabalho (ocupação na vida social que serve de meio para
realização das carências) e da produção de riqueza (sistema de interação, produzida pelo
trabalho, que contribui para a realização das carência de todos). Estes três elementos, como
não poderia deixar de ser, são substanciais para a construção e interpretação da condição do
sujeito da sociedade moderna.
A jurisprudência da sociedade civil, por sua vez, é a determinação civil, assegurada pelo
direito, do indivíduo. Essa garantia, com efeito, é determinada de três modos: no
reconhecimento do direito pessoal, na positividade da lei - expressão objetiva do direito - e
pela ação do tribunal. Estes três elementos, em certo sentido, então, formam uma teoria da
justiça da filosofia hegeliana cujo objetivo é que a justiça medeie as vontades particulares
representada pela propriedade, os sistema de carências e a efetivação do trabalho na vida
econômica em comunidade.
Esse pressuposto teórico é revelado nas colocações do autor sobre cada um destes pontos.
Esse percurso é gerado pela cultura que, para Hegel, é o domínio do direito relativo que dá
existência ao direito30, ou seja, o reconhecimento de que o direito é um algo - fruto do saber
e do querer - conhecido, reconhecido, querido universalmente e, por tais atributos, válido
na realidade objetiva. Isso implica, então, que o direito é produto da cultura. Logo, o direito

29
HEGEL, G.W.F, Princípios da Filosofia do Direito, p.174. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

30
HEGEL, G.W.F, Princípios da Filosofia do Direito, p.185. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
é o elemento do espírito objetivo que engendra o pensamento da consciência do indivíduo
na forma universal.
A entrega da consciência a dimensão social e política que o direito, pela sua determinação
de apreender a realidade objetiva, é representado, destarte, pela lei. Este é, segundo Hegel,
o instrumento que possibilita, pela sua universalidade, conhecer o direito pessoal: a lei
reconhece que os homens são iguais entre si. Isso implica dizer que a jurisdição vivida pela
cultura, na forma da lei da realidade objetiva, é um pressuposto que estabelece um patamar
de igualdade para a satisfação do sistema de carências das vontades particular.
Ora, esse movimento da lei que reconhece o direito pessoal do indivíduo, quando volta a
si mesmo na realidade objetiva, formaliza seu aspecto positivo. Em outros termos: a lei,
quando percebe sua existência, implica com que ela seja conhecida universalmente. Essa
correspondência do seu conceito quando virado a si, assim, aniquila a possibilidade de
deformação da totalidade conceitual do seu princípio positivo.
O corolário desta descoberta do positivismo da lei resulta num dado imanente a liberdade:
que as leis, assim como a vontade livre, só podem ser compreendidas e, a posteriori,
elaboradas, quando dão uma razão ao percurso da história. Ou seja: um código de leis
verdadeiros não é um conjunto jurídico de uma época. Na verdade, as leis é uma
interpretação consciente sobre os hábitos e costumes, construídos pela cultura, de uma
sociedade apreendida de modo universal31. A legislação positivista, portanto, é um conjunto
estável e seguro de pensamentos que pressupõe a determinação da liberdade a vida ética.
Quem evita com que o direito e o positivismo de suas leis não caiam em ambiguidade
conceituais e, ao mesmo tempo, não sejam violadas (como no crime e na vingança) é o
tribunal. Por ele ser administrado pela justiça do poder público - para Hegel, a unidade
detentora da realidade jurídica -, ademais, que o exercício do direito é o dever de ofício dos
tribunais: o seu poder de julgar, na figura do juiz, os conflitos internos da sociedade civil
burguesa que escapem da estabilidade das leis, é a forma da lei se reconciliar consigo
mesmo.
Com isso, o tribunal, segundo Hegel, é o terreno do direito que corrige os atos litigiosos
cometidos pelos membros da sociedade. Para isso ocorrer, com efeito, o juiz precisa ser
imparcial no julgamento e, ao mesmo tempo, demonstrar uma equidade na formulação de
sua sentença. Ambos fatores, estarem planificados numa noção de isonomia, assim,

31
ROSENFIELD, D. Política e Liberdade em Hegel, p.199. Rio de Janeiro: editora Ática, 1995.
determina o espírito público do julgamento. O tribunal, pela representação do juiz, com isso,
é uma forma de jurisdição que valida o princípio universal da lei.
Esta sucinta descrição do sistema administrativo da justiça proposto por Hegel, desse
modo, formaliza sua teoria da justiça. Ela funciona assim como a liberdade se determina:
em primeiro lugar, como uma disposição do pensamento abstrata - ainda que esteja no
espectro da realidade objetiva. Em segundo lugar, ela dirige sua instância de validez no
instante em que está expressa no cotidiano da vida ética, isto é, reconhecida no terreno do
real. A função do tribunal que, no julgamento, recorre a racionalidade das leis para formular
seu pensamento, é um exemplo disso.
Por fim, a sociedade civil é conhecida na administração pública e nas corporações que
necessitam da atuação do poder público para ganhar existência. Ambas formas da sociedade
burguesa pode ser vista como instâncias de autorização e regulação da realidade objetiva.
A administração pública é um poder público universal32. Sua responsabilidade, nesse
sentido, está na garantia de uma vida social e econômica regulada para a possibilidade de
exercício do bem comum.
O seu dever na vida social, em certo sentido, é buscar o bem-estar dos indivíduos em torno
das relações sociais da sociedade burguesa, do poder judiciário, dos costumes e da
Constituição. Noutros termos: a administração pública compõe as instituições públicas que
nasceram das atividades movidas pela vontade particular que, ao compreender-se como
universal, possibilita a construção de uma vida coletivo estável.
Esse princípio universal, quando voltado ao homem econômico, encontra a contradição
da sociedade civil burguesa, qual seja, o indivíduo consciente em seu grau máximo que, por
conta do mal uso da vontade (ou seja, enquanto livre-arbítrio), não permite com que sua
efetivação de fato ocorra.
Para resolver este impasse, a administração pública cria mecanismos de regulação: a
taxação de produtos na forma de impostos e exames de mercadores são duas formas com
que o poder público fiscalizam a atividade econômica dos sujeitos, escreve o filósofo. Essa
decisão, ao final, no intuito de não prejudicar a busca de sua satisfação, permitirá com que
o poder público regule a entrada de produtos aos consumidores.

32
HEGEL, G.W.F, Princípios da Filosofia do Direito, p.203. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
Mas além de regular as ações da indústria e do comércio, o poder público deve garantir
uma educação e uma saúde gratuita. Ao intencionar a garantia desses bens, a administração
pública reconhece outro problema da vida coletiva que deve ser resolvida: a pobreza.
Hegel, desse modo, insiste que são as instituições públicas que devem cuidar da
erradicação desta contradição social pois esse contingente de pessoas perderam “o sentido
do direito, da legalidade, da honra de existirem graças à sua própria atividade e ao próprio
trabalho” (HEGEL, p.208, 2009). Em outras palavras, a degeneração física e espiritual da
pobreza sequestrou a liberdade de uma massa de indivíduos.
Oriunda do excesso da riqueza de pessoas que acumulam fortuna sem trabalhar e, por
conseguinte, sem compreender sua mediação social, a pobreza é imposta enquanto
“substância ética” da realidade objetiva para uma plebe marginalizada, estratificada em
classes sociais, da vida ética. Cabe ao poder público, por meio da garantia de serviços e, ao
mesmo tempo, da regulação da atividade econômica livre, desse modo, superar esse tecido
social dilacerado pela contradição do acúmulo de riqueza sobre um trabalho social
fragmentado. Desta forma, enfim, a liberdade dos excluídos será efetivada33.
Essa harmonia da administração pública, ademais, permite com que a sociedade civil
burguesa busque novos consumidores fora de seu território. Para isso, ele recorre a outros
povos que, segundo o autor, são “inferiores” no que se refere ao seu desenvolvimento
industrial e agrícola. Neste sentido, Hegel defende que o poder público, para alargar suas
relações comerciais, utilize do instrumento da colonização por dois motivos34: de que parte
da população regresse a um novo território e, ao mesmo tempo, obtenha novas aplicações
para seu trabalho.
Em consonância com a administração pública está a corporação. Fruto da sociedade civil
burguesa industrial, esta forma da vida social, em síntese, é a formalização da vontade
particular do homem econômico que encarregou-se de reconhecer a si mesmo em torno da
determinação comum das particularidades da vontade.
A corporação, em vista disso, é uma espécie de autodescoberta da sociedade civil burguesa
no âmago da vida pública. Sua função consiste, assim, na organização e garantia do
exercício do trabalho social - por natureza, dividido em inúmeras funções e ramos,

33
Como está no §245 do Princípios “deste modo se mostra que, apesar de seu excesso de riqueza, não é a
sociedade civil suficientemente rica, isto é: na sua riqueza, não possui a sociedade civil bens suficientes para pagar
o tributo ao excesso de miséria e à sua consequente plebe”.
34
HEGEL, G.W.F, Princípios da Filosofia do Direito, p.211. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
caracterizado, portanto, por uma heterogeneidade de aptidões na vida social - dos indivíduos
na sociedade civil, sejam eles pertencentes a classe agrícola ou ao estado industrial.
Quem estabelece essa organização da prática de suas funções, ademais, não deixa de ser
os próprios membros da sociedade civil. Sendo vigiados pelo poder público, os
representantes da corporação têm a função de admitir seus membros em virtude da qualidade
objetiva da opinião e probidade que eles têm. Por outro lado, ele tem a tarefa de encarregar-
se da formação das aptidões dos indivíduos que pretendem fazer parte dela35.
Mediante estas funções, a corporação, para Hegel, é uma espécie de segunda família para
seus associados - forma da eticidade que a própria sociedade civil, ironicamente,
menospreza. Neste sentido, os integrantes da corporação, ávidos para serem membros
economicamente ativos na vida social, defenderão o seu trabalho social particular baseado
numa forma de vida ética cuja finalidade é o bem comum de seus membros, isto é, o
sentimento de pertencimento a um todo não orientado para fins egoístas, mas sim por um
viés solidário, baseado na alteridade comum.
Destarte, este ofício da corporação gera um elemento fundamental aos seus integrantes:
a honra. É este sentimento que, ao mesmo tempo que distancia-se da humilhação imposta
pela pobreza, reconhece, assegura e ergue a dignidade das atividades laborais humanas que,
ao decorrer da história, certas classes sociais que lucram sem trabalhar perderam.
A honra, desse modo, faz com que a corporação não caia na contingência da opinião
própria de um determinado indivíduo. Desta forma, a corporação, independente dos diversos
tipos de trabalho social existentes, universaliza o entendimento da função do sujeito
economicamente ativo.
A sociedade civil, fruto da família, então, permite com que a substância moral atinja sua
forma infinita mediante dois movimentos: na diferenciação infinita até a interior existência
para si da consciência de si e no conhecimento da forma universal, representado pelas leis e
instituições da realidade objetiva e real, da cultura36. Estes dois elementos, desse modo,
criam a possibilidade de efetivação da desejada liberdade.
A união entre significado da família - uma unidade substancial da particularidade subjetiva
universalmente objetivada - e a divisão das funções, sobretudo em face ao sentido da
corporação, da sociedade civil - ou seja, na união de membros da sociedade civil que,
naturalmente, são movidos por carências particulares -, de acordo com Hegel, gera a

35
Ibid, p. 212.
36
Ibid, p. 216.
realização do bem-estar ao indivíduo37. Neste sentido, a santidade do casamento e a honra
profissional são dois eixos da vida pública que reconhece o direito da vontade livre.
Entretanto, ambas formas da Eticidade são limitadas e finitas, isto é, elas são insuficientes,
ainda que estejam na realidade objetiva, em apresentar a sua verdade como fim universal
em-si e para-si na realidade absoluta. Logo, tanto a família quanto a sociedade civil não
conhecem o verdadeiro fundamento da liberdade. Elas são, na verdade, componentes deste
processo, ou seja, elas estão contidas numa ordem superior que engendra esta disposição do
pensamento em sua totalidade.
O domínio desta noção, que é a última forma da moralidade objetiva, é o Estado. É nela,
por fim, que Hegel chegará ao real sentido do pensamento humano mais inquietante de seu
tempo: a liberdade.

37
Ibid, p. 212.

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