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Paul B.

Preciado - Intervenção na 49ª Jornada da Escola Da Causa Freudiana (17/11/19)

Bom dia, queridas damas, queridos cavalheiros, da Escola de psicanálise da França,


damas e cavalheiros da Escola da Causa Freudiana, e não sei se vale a pena que se diga
também bom dia a todos aqueles que não são nem damas nem cavalheiros, porque creio
que não há entre vocês alguém que haja renunciado legal e publicamente à diferença
sexual e que tenha sido aceito como psicanalista (...), depois de haver conseguido
exitosamente o passe. Falo aqui de um psicanalista trans ou não binário que tenha sido
admitido entre vocês. Se existe, permitam-me enviar a esse mutante, imediatamente, a
saudação mais calorosa.
[Fala em espanhol] Também quero saudar aqui a todos os psicanalistas hispanofalantes
da América Latina e da Espanha. Senhoras, senhores, e sobretudo todos os outros, aqueles
que não são senhoras, nem senhores.
[Retorno à fala em francês] Em 1917, Franz Kafka escreveu Um relatório para uma
Academia. O narrador do texto é um macaco que, depois de ter aprendido as linguagens
humanas, se apresenta frente a uma Academia das mais altas autoridades científicas para
explicar-lhes o que a evolução humana havia representado para ele.
O macaco, que se chama Pedro Vermelho, conta como foi capturado por uma expedição
de caça organizada pelo circo Hagenbeck, como foi em seguida transportado a Europa e
como logo conseguiu converter-se em um homem. Pedro Vermelho conta como aprendeu
as linguagens humanas e como, para fazê-lo, e entrar na sociedade da Europa de seu
tempo, teve que esquecer sua vida de macaco e tornar-se alcóolatra.
Mas o mais interessante, no monólogo de Pedro Vermelho, é que Kafka não apresenta
sua história de humanização como uma história de liberação, mas sim como uma crítica
do humanismo europeu.
Uma vez capturados, os macacos, dizem que não havia outra opção, mas que, ou bem
morriam em uma jaula, ou bem viviam passando à jaula da subjetividade humana; e é, a
partir desta nova jaula da humanidade, que se dirige à Academia científica.
Como o macaco Pedro Vermelho se dirigiu à Academia de científicos, me dirijo hoje a
vocês, acadêmicos de psicanálise, desde minha jaula de homem transexual. Meu corpo,
marcado pelo discurso médico e jurídico como transexual, caracterizado na maior parte
de vossos diagnósticos psicanalíticos como sujeito de metamorfose impossível, segundo
vosso colega Pierre-Henri Castel; estando, segundo a maior parte de suas teorias, mais
além da neurose, na borda ou inclusive no interior da psicose; tendo, segundo vocês, uma
incapacidade de resolver corretamente um complexo de Édipo, ou havendo sucumbido à
inveja do pênis. Me dirijo a vocês, como um macaco humano de uma nova era.
Eu, enquanto corpo trans, enquanto corpo não binário, ao que nem a medicina, nem o
direito, nem a psicanálise, nem a psiquiatria reconhecem o direito de falar nem a
possibilidade de produzir um discurso uniforme de conhecimento sobre eu mesmo;
aprendi como Pedro Vermelho, a linguagem do patriarcado colonial, vossa língua. Estou
aqui para dirigir-me a vocês.
Dirão que recorro a um conto kafkiano para começar a falar-lhes, mas vosso colóquio me
parece mais próximo da época do autor de “A metamorfose” que da nossa.
Vocês organizam um encontro para falar das mulheres na psicanálise em 2019 como se
todavia estivéssemos em 1917, e como se esse tipo particular de animal, que vocês
chamam de forma condescendente e naturalizada “mulher”, não tivesse sempre um
reconhecimento pleno enquanto sujeito político; como se ela fosse um anexo ou uma nota
em pé de página, uma criatura estranha e exótica entre as flores, sobre a qual há que pensar
de tanto em tanto, em um colóquio em mesa redonda. Pois bem, haveria que organizar
um encontro sobre homens brancos heterossexuais e burgueses, em psicanálise.
O discurso psicanalítico gira em torno do poder discursivo e político desse tipo de animal
necropolítico que vocês tendem a confundir com o humano universal, e que é, ao menos
até o presente, o sujeito da enunciação central no discurso das instituições psicanalíticas
da modernidade colonial.
Não tenho, já verão, grande coisa que dizer sobre as mulheres em psicanálise, mas que eu
também sou, como Pedro Vermelho, um fugitivo, que eu também fui, um dia, uma mulher
em psicanálise; que me atribuíram um sexo feminino, e como o macaco mutante, também
saí dessa jaula apertada, talvez para entrar em outra jaula; mas ao menos, dessa vez, por
meus próprios pés.
Falo-lhes, hoje, desde essa jaula elegida e desenhada, do homem trans, do corpo de gênero
não binário. Uma jaula política que é, em todo caso, melhor que a dos homens ou das
mulheres, porque ao menos reconhece seu estatuto de jaula.
Queria transmitir-lhes hoje ao menos três ideias, se vocês me permitem. Com a estranha
liberdade de falar-lhes desde uma posição discursiva impossível; pois enquanto está em
trânsito, enquanto corpo de gênero não binário, mutante de uma humanidade binária e
colonial que vocês representam, consagrei toda minha vida a estudar os diferentes tipos
de jaulas onde os humanos se prendem.
Em primeiro lugar, gostaria de dizer-lhes que o regime da diferença sexual, com o qual
trabalha a psicanálise, não é nem uma natureza nem uma ordem simbólica, mas uma
epistemologia política do corpo, e, como tal, é histórica e mutável.
Em segundo lugar, queria informar-lhes, no caso de que não o saibam, que esta
epistemologia binária e hierárquica está em crise a partir de 1940. Não somente por causa
da resposta exercida pelos movimentos políticas de minorias dissidentes, mas também
pela aparição de novos dados morfológicos, cromossômicos e bioquímicos, que tornam
impossível a atribuição sexual binária.
Em terceiro lugar, gostaria de dizer-lhes que, agitada por estas profundas mudanças, a
epistemologia da diferença sexual está em mutação, e vai ceder lugar, provavelmente
durante os próximos dez ou vinte anos, a uma nova epistemologia.
O movimento trans-feminista, queer, de denúncia da violência hétero-patriarcal, mas
também as novas práticas de filiação, de relação amorosa, de identificação de gênero, do
desejo, da sexualidade, da nomeação, não são mais que indícios dessa mutação.
De cara com essa transformação epistemológica em curso vocês tenderão a dizer,
senhoras e senhores psicanalistas da França, da América Latina, da Europa, do mundo. O
que vão ter que dizer é o que vão fazer: Onde vão se localizar? Em que jaula querem
estar/ser [être] presos? Como vão jogar suas cartas discursivas e clínicas, em um processo
tão importante como este?
E mais, lhes peço alguns minutos de atenção, se vocês podem ainda, escutar ainda, o
gênero não binário, e conceder-lhe um potencial de razão e de verdade.
Em primeiro lugar, senhoras e senhores e outros, o regime da diferença sexual que vocês
conhecem e consideram como universal, e quase metafísico, sobre os que se apoiam e se
articulam em todas as teorias psicanalíticas, não é uma realidade empírica nem uma
ordem simbólica fundadora do inconsciente. Não é mais uma epistemologia do vivente,
uma cartografia anatômica, uma economia política do corpo e uma gestão coletiva desta
energia reprodutiva.
Se trata de uma epistemologia histórica que se constrói em relação a uma taxonomia
racial, tanto como do desenvolvimento mercantil e colonial europeu, e que se cristaliza
na segunda metade do século XIX.
Esta epistemologia, longe de ser a representação de uma realidade, é uma máquina
performativa que produz e legitima uma ordem política e econômica específica: o
patriarcado hétero-colonial. Antes do século XIX, o corpo e a subjetividade feminina não
eram reconhecidos como sujeitos políticos. A mulher e as mulheres não existiam nem
anatomicamente, nem politicamente, como subjetividade soberana antes do século XIX.
No regime patriarcal, anterior ao século XIX, somente o corpo masculino e a sexualidade
masculina eram reconhecidos como soberanos. O corpo feminino e a sexualidade eram
subalternos, dependentes e minoritários.
É interessante pensar que a psicanálise freudiana, como teoria do aparato psíquico, como
prática clínica, aparece precisamente no momento onde se cristalizam as noções centrais
da epistemologia da diferença sexual: o homem e a mulher definidos como
anatomicamente diferentes e complementares por sua potência reprodutiva, como figuras
potencialmente paternais e maternais, respectivamente, na instituição familiar, colonial,
burguesa; mas também a heterossexualidade e a homossexualidade pensadas como
normal e patológica, respectivamente.
A psicanálise, vista desde o ângulo da história do corpo abjeto, da história do monstro da
sexualidade normativa, e a ciência do inconsciente, patriarcal e colonial. Lhes peço, por
favor, não tentar negar a complexidade... perdão, a cumplicidade... e a complexidade, as
duas, se vocês querem... a complexidade, assim como a cumplicidade, da psicanálise com
a epistemologia da diferença sexual heteronormativa. Lhes ofereço a possibilidade de
uma terapia política de vossa instituição. [aplausos]
Obrigado.
Mas esse processo não pode fazer-se sem uma análise exaustiva destes pressupostos. Não
os refoulent pas, não os neguem, não os reprimam, não os desloquem. Não me digam que
a diferença sexual não é crucial na experiência da estrutura do aparato psíquico em
psicanálise.
Todo o edifício freudiano está pensado a partir da posição da masculinidade patriarcal do
corpo masculino, heterossexual, entendido como um pênis eréctil, penetrante e
ejaculatório. É por isso que as mulheres em psicanálise, esses animais estranhos entre as
flores, com útero reprodutor e clitóris, são sempre e, todavia, um problema. É por isso
que vocês têm a necessidade, todavia, no início do século XIX, de uma jornada para falar
das mulheres em psicanálise. [aplausos]
Mas não me digam que a instituição psicanalítica não tem considerado, e não considera
ainda, a homossexualidade como um desvio em relação à norma. Do contrário, como
explicar que até faz muito pouco tempo não haviam psicanalistas podendo publicamente
identificar-se como homossexuais? Lhes pergunto: quantos de vocês se definem hoje,
inclusive aqui mesmo, nesta Escola da Causa Freudiana, publicamente, como psicanalista
homossexual? [silêncio... seguido de aplausos]
Eu não forço a revelação de posições subjetivas privadas [risos]... de qualquer maneira,
vejo que vocês não o fazem [risos], talvez não sirva, não sirva para nada.
O que lhes peço é o reconhecimento de uma posição de enunciação política, em um
regime de poder hétero-patriarcal e colonial.
Contrariamente a o que pensa a psicanálise, não creio que a heterossexualidade seja uma
prática sexual ou uma identidade sexual. Penso que é sim um regime político que tem
reduzido a totalidade do corpo humano, vivente, e sua energia psíquica, a um potencial
reprodutivo; uma posição de poder discursiva e institucional.
Os psicanalistas são epistemologicamente e politicamente ainda binários e
heterossexuais, até que o contrário seja dito ou denunciado. E temos tido hoje aqui uma
prova.
Eu não peço aos psicanalistas homossexuais para sair do armário – inclusive se pensa que
isso te faria bem [risos] -; são os psicanalistas heterossexuais em vocês, a totalidade desta
sala, os que devem sair urgentemente do armário da norma.
A psicanálise freudiana começou a funcionar desde finais do século XIX, como uma
tecnologia de gestão do aparato psíquico, encerrada na epistemologia patriarcal, colonial,
da diferença sexual. Não há tentativa na psicanálise freudiana de superar esta
epistemologia, mas sim de inventar uma tecnologia, um conjunto de práticas discursivas
e terapêuticas que permitam normalizar as posições de homens e mulheres, e suas
identificações sexuais e coloniais dominantes (...).
Nesta epistemologia hegemônica os sujeitos patriarcais, coloniais, modernos, utilizam a
maior parte de sua energia psíquica para produzir solidariedade normativa. Angústia,
alucinação, melancolia, depressão, dissociação, opacidade, repetição, não são mais que
os custos gerados para a manutenção desta epistemologia normativa. A psicologia não é
uma crítica desta epistemologia dominante, mas sim a terapia necessária para que o
sujeito patriarcal-colonial continue funcionando, apesar dos custos psíquicos enormes da
violência indescritível deste regime. Mas esta epistemologia da diferença sexual, com a
qual a psicanálise freudiana trabalha, mais além da crítica, lhes digo, tem entrado em crise
depois da segunda guerra mundial. E pode ser – não estou seguro disso – se vocês são
totalmente conscientes que esta epistemologia da diferença sexual, com a qual vocês
continuam trabalhando, está hoje em crise. Está em uma profunda crise desde os anos 40.
A politização de subjetividades, de corpos considerados como abjetos nesta
epistemologia, a organização de movimentos de luta pela soberania reprodutiva e política
do corpo das mulheres e pela des-patologização da homossexualidade, como também a
invenção de novas técnicas de representação de estruturas bioquímicas da vida, vai
conduzir a uma situação sem precedentes depois dos anos 40. Os discursos médicos e
psiquiátricos parecem ter cada vez mais dificuldades, desde os anos 40 do último século,
para enfrentar a aparição de corpos nos quais não se pode imediatamente atribuir um sexo
feminino ou masculino no nascimento.
Com as novas técnicas cromossômicas e endocrinológicas, e a expansão da medicalização
do parto, cada vez mais bebês, antes chamados hermafroditas, aparecem. De cara para
estes bebês, a comunidade científica-médica inventou uma nova taxonomia. O psiquiatra
de crianças John Money, trabalhando na Universidade John Hopkins de Nova Iorque,
deixa de lado a noção moderna de sexo, como realidade anatômica, e inventa a noção de
gênero, para falar da possibilidade de produzir tecnicamente a diferença sexual. As
noções de intersexualidade, transexualidade, aparecem também entre 1947 e 1960. Pela
primeira vez, a medicina e a psiquiatria realizam com esforço a existência de uma
multiplicidade de corpos e de posições sexuais mais além do binário. Mas, no lugar de
mudar a epistemologia, a instituição médica, psiquiátrica, psicológica, decide modificar
os corpos, normalizar a sexualidade, retificar as identificações.
Queria compartir, hoje, com vocês, a hipótese segundo a qual toda a psicanálise lacaniana,
que nasce precisamente depois dos anos 40, sua re-leitura de Freud, seu rodeio pela
linguística, é já uma primeira resposta a essa crise da epistemologia da diferença sexual.
Creio que é possível dizer que Lacan tentou, como John Money, des-naturalizar a
diferença sexual; mas, como John Money, terminou por produzir um meta-sistema que é
quase mais rígido que a noção moderna de sexo e diferença anatômica. No caso de John
Money este meta-sistema introduz a gramática do gênero, pensada como construção
social e endocrinológica. Em Lacan, este meta-sistema – e vocês sabem muito melhor que
eu – não é tampouco anatômico, mas sim aquele do inconsciente estruturado como
linguagem, mas, como no caso de John Money, se trata de um sistema de diferenças que
não escapa – desafortunadamente – ao binarismo sexual e a genealogia patriarcal do
nome.
Minha hipótese é que Lacan não conseguiu des-fazer-se do binarismo sexual, por conta
de sua filiação/apego político ao patriarcado heterossexual. Essa des-naturalização está
conceitualmente em marcha; ele mesmo, não estava pronto.
A partir de 1960, com a comercialização da pílula anticoncepcional, depois com a des-
patologização da homossexualidade, a epistemologia da diferença sexual entra no
processo de questionamento e de mutação incontrolável. Hoje sabemos que um bebê a
cada quatrocentos é identificado como intersexual. Não pode ser reconhecido nos gêneros
ordinários. No curso dos último vinte anos, as crianças que têm sido operadas ou tratadas
como intersexual, tem se organizado para pedir o fim da mutilação genital e os processos
de reatribuição forçada. Ao mesmo tempo, que cada vez mais corpos começam a
identificar-se como não-binários. De modo diferente nos Estados Unidos, mas também
na Argentina, como vocês sabem, ou na Austrália, se reconhece hoje os gêneros não
binários como uma possibilidade política.
Tenho o prazer também de contar a vocês que tem apenas umas semanas, minha amiga e
colega, Judith Butler, se inscreveu no registro de estado civil da Califórnia como pessoa
de gênero não binário. As identificações de heterossexualidade, homossexualidade,
pensadas em relação com a capacidade reprodutiva dos corpos de sexo oposto, parecem
cada vez mais obsoletas, de cara com a multiplicidade de técnicas de gestão da procriação
assistida. Não somente a pílula anticoncepcional ou a pílula do dia seguinte, mas também
a paternidade transexual, (...), gestação por outro, externalização do útero, etc.
A epistemologia da diferença sexual está em plena mutação. Assistimos a um processo
de transformação na ordem da anatomia política e sexual, comparável àquele que levou a
passagem da epistemologia geocêntrica à epistemologia heliocêntrica copernicana entre
1510 e 1730.
Nos próximos anos, deveremos elaborar coletivamente uma epistemologia capaz de dar
conta da multiplicidade de viventes, que não reduza os corpos a sua força reprodutora
heterossexual, e que não legitime a violência hétero-patriarcal e colonial.
Quando falo de uma nova epistemologia me refiro a começar um processo de ampliação
radical do horizonte democrático, para reconhecer como sujeitos políticos todo corpo
humano vivo, sem que a atribuição sexual ou de gênero seja a condição de possibilidade
deste reconhecimento, social ou político.
Vivemos um momento – gostaria transmitir-lhes isso hoje – de uma importância histórica
sem precedentes. A violência epistemológica da diferença sexual posta em questão pelo
movimento feminista, homossexual, intersexual, transexual, queer, e apoiado igualmente
pela confrontação de novos dados científicos, está em trânsito de mudar. Estes processos
de mudança deste paradigma científico e político conduzirão ao reconhecimento,
enquanto sujeitos políticos soberanos, de todo um conjunto de corpos que até agora
haviam sido marcados como politicamente subalternos.
Neste contexto de transição epistêmica, honoráveis membros da academia de psicanálise
da França, e da École de la Cause Freudienne, vocês têm uma enorme responsabilidade.
Vocês têm... e têm que saber... de que lado querem colocar-se. Se querem permanecer do
lado deste discurso patriarcal e colonial, e re-afirmar a universalidade da diferença sexual
e da reprodução sexual, heterossexual; ou entrar, conosco, os mutantes deste mundo, em
um processo crítico de invenção de outras formas de subjetividade política. [aplausos]
Vocês não podem recorrer – já termino... vocês não podem recorrer a cada vez aos textos
de Freud e de Lacan como se estes tivessem um valor universal, não situado
historicamente; como se este texto não tivesse sido escrito no interior deste epistemologia
patriarcal da diferença sexual. Fazer de Freud e de Lacan a lei é também absurdo, como
pedir a Galileu que retornasse aos textos de Ptolomeo ou a Einstein para seguir pensando
desde a física de Aristóteles.
Hoje os corpos, outras vezes excluídos do regime da diferença sexual, falam e produzem
um saber sobre eles mesmos. Os movimentos transfeministas, me too, nem uma a menos,
operam uma transformação crucial.
Vocês não podem seguir falando do complexo de Édipo ou do Nome-do-Pai em uma
sociedade onde as mulheres são objeto de feminicídios, onde as vítimas da violência
patriarcal se expressam por denunciar a seus pais, maridos, chefes, namorados; onde as
mulheres denunciam a política institucionalizada de violação; ou onde milhões de corpos
descem às ruas para denunciar agressões homofóbicas, e as mortes, quase cotidianas, de
mulheres trans, assim como as formas institucionalizadas de racismo.
Não podem mais seguir afirmando a universalidade da diferença sexual e a estabilidade
das identificações heterossexuais e homossexuais em uma sociedade onde é legal mudar
de sexo, onde podemos identificar-nos, como pessoas de gênero não binárias; em uma
sociedade onde há já milhões de crianças nascidas de famílias não heterossexuais e não
binárias.
Continuar praticando a psicanálise, utilizando a noção de diferença sexual e com
instrumentos críticos como o complexo de Édipo seria hoje tão aberrante como pretender
continuar navegando no universo com um mapa geocêntrico ptolemaico ou controlar as
mudanças climáticas, ou afirmar que a Terra é plana. [aplausos]
Hoje... – sim, já sei, já termino -...; hoje meus queridos amigos psicanalistas, é mais
importante escutar os corpos excluídos pelo regime patriarcal colonial, que reler Freud e
Lacan. Não se refugiem nos pais da psicanálise. Vossa obrigação política é cuidar das
crianças, não a de legitimar a violência dos pais.
É chegado o momento de colocar o divã na praça e de coletivizar a palavra, de politizar
o inconsciente.
Nos enfrentamos com uma nova aliança necropolítica do patriarcado colonial e de novas
tecnologias farmacopornográficas. Sem dúvida nenhuma, já estamos enfrentando uma
nova farmacolonização crescente, (...), uma mercantilização da indústria do cuidado.
[Sussurros... o chamam: “Paul”]
Sim, penso que é necessário que pare.
[Risos, aplausos]
A última coisa. Creio que a tarefa que nos resta por fazer é começar um processo de des-
patriarcalização, des-heterossexualização e de-colonização da psicanálise. [Aplausos] (...)
uma psicanálise mutante ao redor desta mutação de paradigma. Talvez somente este
processo de transformação, por mais terrível e desmantelador que pareça, mereça hoje,
de novo, chamar-se psicanálise.

Intervenção na Jornada n. 49 da Escola da Causa Freudiana - 17 de novembro de 2019

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