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MEMÓRIA E CONTEMPORANEIDADE:

A VOZ DOS BENZEDORES

Suzanne Mendes Valentini1

RESUMO: O texto a ser apresentado trata das primeiras impressões acerca da pesquisa “Memória e
contemporaneidade: a voz dos benzedores”. A mesma tem a intenção de discutir os conceitos de memória,
identidade, cultura e história oral, trazendo à tona o registro da oralidade dos benzedores e benzimentos, bem
como suas práticas e vivências, crenças e formas de sobrevivência na contemporaneidade. Visa ainda,
compreensão das transformações passadas por um modo de vida específico, suas ações cotidianas, os hábitos e
crenças que são praticados há muito tempo e como se situam hoje, frente à contemporaneidade. A necessidade
de pensar tais modos de vida na contemporaneidade é o eixo norteador que motivou tal pesquisa, com a
preocupação em refletir sobre os seus percursos e implicações. Urge também discutir as questões que estão
diretamente ligadas a tais pressupostos: a memória e a identidade.

PALAVRAS-CHAVE: Benzedores. Memória. Oralidade. Contemporaneidade

1. Introdução

A pesquisa que tem como título “Memória e contemporaneidade: a voz dos


benzedores” apresenta como intenção a discussão dos conceitos de memória, identidade,
cultura e história oral, trazendo à tona o registro da oralidade dos benzedores e benzimentos,
bem como suas práticas e vivências, crenças e formas de sobrevivência na
contemporaneidade.
Com base nesses registros, pretende-se estabelecer pontos de convergência entre a
pesquisa realizada junto aos benzedores e os conceitos estudados, tendo como pressuposto
perceber e compreender as transformações passadas por um modo de vida específico – nesse
caso, dos benzedores –, suas ações cotidianas, os hábitos e crenças que são praticados há
muito tempo e como se situam hoje, frente à contemporaneidade.
A necessidade de pensar tais modos de vida na contemporaneidade é o eixo
norteador que motivou tal pesquisa, com a preocupação em refletir sobre os seus percursos e
implicações. Urge também discutir as questões que estão diretamente ligadas a tais
pressupostos: a memória e a identidade. Em outras palavras, além da lembrança dos
benzedores, pergunta-se como se situam suas identidades na sociedade contemporânea.
Sobre o sujeito contemporâneo, situam-se as argumentações de Agamben (2009,
p. 63), quando se refere àquele que “mantém fixo o olhar no seu tempo para nele perceber não
as luzes, mas o escuro.[....] contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa
obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente.” Há que se
dizer sobre as dicotomias entre o sujeito contemporâneo e a contemporaneidade. As assertivas
frente ao modo de vida imposto na contemporaneidade têm produzido situações que
conduzem a uma corrida para um lugar que não se sabe bem qual é, quando as conquistas e
avanços se tornam imprescindíveis, independentemente da maneira como será efetivado, não
importando como serão as relações destes com o seu tempo e sua história.
O termo cunhado por Bauman (2003), “modernidade líquida”, torna-se
esclarecedor nessa discussão, sabendo que a palavra ‘líquida’, para a Física, traz a ideia da
não forma, do que modifica conforme o lugar onde está. Para a compreensão dessas
alterações, há que se considerar, segundo Bauman (2003), a passagem da sociedade de

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Doutoranda do PPGCL/UNISUL.
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produção para a sociedade de consumo, os processos de fragmentação da vida humana,


conduzindo para o crescimento de sociedades individualizadas. Desse modo de vida, resulta a
ideia de que vivemos em um tempo do esquecimento, pois, nessa ânsia ligada ao consumo,
pouco resta para lembrar o que já passou. Nesse sentido, aponta-se para um momento em que
há a supervalorização da novidade, do que surge como inovador, descartando-se o que já não
é mais novidade, que passa a configurar o campo do esquecimento ou da não valorização
simplesmente por não pertencer ao momento atual, ao agora, tratado aqui como
contemporaneidade. Um dos exemplos para esse esquecimento ou apagamento é da ordem do
científico, em que as curas utilizadas anteriormente são deixadas de lado ou que são renegadas
em prol de uma crença somente no que tiver comprovação baseada na cientificidade
contemporânea.
Para Costa e Fonseca (2007, p. 116),

[...] ser contemporâneo é afundar-se na rede, nos seus tempos diversos, investigar
estilos esquecidos e trazê-los à tona em sua estranheza rétro [...] para compor novas
variações sem apego a suas formas tradicionais. Assim, em vez de estar à frente do
seu tempo, o contemporâneo habita a conjunção dos diversos tempos que constroem
seu instante, buscando uma customização temporal a partir desta heterogeneidade
flexível e singular. Perambula-se mais pelas tramas virtuais da rede temporal,
complexificando as tendências de atualização.

Portanto, retomar as memórias das benzedeiras se justifica duplamente;


primeiramente em função da própria ideia de retomar, ressignificar, reconduzir ao tempo
presente essas histórias culturais e em seguida, pelo modelo vivenciado de contemporâneo e
suas implicações na coletividade.
Como recorte, esta pesquisa se situa na região do município de Caçador, tendo
como referência uma historicidade relacionada ao que pesquisadores chamam de “região do
Contestado.”2 A presença nessa região do que é reconhecido como um catolicismo caboclo,
resultou em maior atenção para alguns fatos e personagens ali recorrentes. Um deles, o fato da
peregrinação de monges em uma região de conflito amplamente pesquisado e conhecido
como Guerra do Contestado. Esse aspecto merece destaque no cenário, em função da
relevância que teve para a população local daquele tempo.
De acordo com pesquisadores como Mauricio Vinhas de Queiroz (1981), Osvaldo
Rodrigues Cabral (1960) e Marli Auras (1984), a existência destes sujeitos tem relevante
papel no imaginário e no cotidiano da população. Dos estudos sobre os monges do
Contestado, cita-se José Maria de Santo Agostinho e João Maria de Jesus. Conforme Auras
(1984, p.48), nesta época, existiram diversas pessoas “‘especialistas do sagrado’: curandeiros,
benzedores, puxadores de reza, capelães leigos, etc. Mas nenhum deles fora tão venerado
como João Maria”.
Os fatores que fizeram com que esses monges tivessem devoção por parte dos
caboclos, podem ser mencionados a partir da análise do contexto no qual estes estavam
inseridos, pois,

Na medida em que os ‘coronéis’ se associavam às novas forças históricas,


desnudando a estrutura de dominação, os marginalizados se apegam mais ao

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Caberá nesta pesquisa uma discussão pontuada em historiadores que abordam a região do Contestado, sabendo
que a região assim chamada esteve envolvida na Guerra do Contestado, durante os anos de 1912 a 1916. Neste
apontamento, é conveniente a discussão das influências religiosas que na época existiram. Ainda, explica-se esta
referência pelo fato de um tempo e lugar com poucas ou raras possibilidades de intervenções médicas, sendo os
benzedores o “alento” para os males pelos quais a população era acometida. Desse tempo surge a prática do
benzimento.
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discurso do monge, desenvolvendo-o e encontrando nesse discurso sua identidade


histórica. (AURAS, 1984, p. 46)

Em um tempo no qual a população estava desprovida de amparo de todas as


ordens, a presença dos monges trouxe alento para a mesma. O que existia nesse período era
um “catolicismo rústico” (Auras, 1984) que agregado com os conhecimentos empíricos de
habitantes da região, se dissemina com as gerações vindouras, especialmente as rezas e
benzimentos, sendo legitimados pela presença dos monges e suas peregrinações.
Dessa forma, as práticas de curas baseadas em conceitos empíricos não estavam
restritas aos monges. Conforme Queiroz (1981, p. 53), existia na região assim como em todo
o Brasil rural, um grande número de

[...] curandeiros, benzedores, mandraqueiras, entendidos, puxadores de reza,


adivinhos, penitentes, capelães leigos. Em outras palavras, abundavam os
especialistas para o controle sobrenatural mágico ou religioso, de diversas atividades
humanas ou de fenômenos da natureza. [...] Os benzedores entregavam-se
particularmente à cura de animais e utilizavam quase exclusivamente fórmulas
mágicas. Já as benzedeiras eram chamadas mais frequentemente para cuidar, por
processos semelhantes, de pessoas humanas.

Sobre o Monge João Maria, a sabedoria popular não faz distinção entre um ou
outro, conforme citado anteriormente, da existência de pelo menos dois Monges nesse período
da Guerra. Desta forma, a opção que será adotada aqui é a de tomar como base dos estudos
um homem, o Monge João Maria somente, pois assim este era e é conhecido pela população
que acreditou e acredita na sua passagem pelas terras do Contestado.
A discussão implícita é a da presença de um catolicismo caboclo, que pressupõe
uma crença e uma prática que atua no viés do catolicismo romanizado preconizado pela igreja
daquele tempo, especificamente, tendo seus desdobramentos a partir dos monges já citados,
proporcionando o alento da alma, através de orações, batizados e, em mesma medida, de
benzimentos. Estas práticas de fé e devoção se deram, principalmente, em virtude do
distanciamento geográfico dos indivíduos que habitavam essa região, bem como de um
conhecimento empírico das formas de cura, servindo a oração e a fé, igualmente para a alma e
para o corpo.
Com base nessa crença, tomada por muitos, como fanatismo, superstição ou
injúria, o fato é que estas práticas subvertiam a ordem e o poder clerical, desmistificando a
figura do sacerdote em detrimento de um homem “comum”, sem a “autorização”
institucionalizada para exercer tais práticas.
É nesse cenário que proliferam pela região, homens e mulheres que serão
intercessores de Deus na vida dos homens. Estes, tomados pelo que chamam de “dom”,
traduzido como poder divino, exercem nesse contexto as práticas de benzimento, promovendo
a cura de doenças do corpo, bem como de alento para a alma, através de orações, simpatias,
chás, garrafadas, entre outros métodos.
A população por sua vez, acreditando nessas interseções, passa a procurar estas
pessoas, os benzedores e benzedeiras, rezadores e rezadeiras, curandeiros e curandeiras,
atribuindo-lhes consideração e veneração, tendo em vista o sucesso de seus procedimentos.
É sabido que essas pessoas, com o “dom” da cura, resistiram ao tempo através de
seus sucessores, que, tendo os mesmos “dons” e demonstrando interesse na realização do
“bem”, receberam de seus antepassados, os ensinamentos das rezas e simpatias utilizadas nos
processos da cura pela fé, expressa em gestos e palavras.
Diante disso, o que passou a ser motivo de questionamentos foi além da
resistência, a dimensão de seus benzimentos em um mundo no qual se vivencia um grande
apelo ao tecnológico, ao pragmatismo e ao cientificismo. Em qual incidência esses
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benzedores e benzedeiras realizam, hoje, os procedimentos que através dos anos, tem sido
praticados? Com qual frequência são procurados? Quem os procura? Por quais motivos? Há,
ainda hoje, a mesma crença que existia há alguns anos atrás? Que sentido tem tudo isso?
Esses fatores foram os condutores para a busca de pessoas que realizam práticas
de benzimentos na região citada. Primeiramente, em conversas prévias e informais com
pessoas diversas da cidade de Caçador, buscou-se saber se estes tinham algum conhecimento
de benzedores. A partir desse levantamento inicial, ficou constatada realmente a existência e
atuação desses sujeitos e, em cada conversa iniciada, cada uma dessas pessoas já havia
buscado pelo menos uma vez pelos benzimentos. Após esse primeiro mapeamento, fez-se o
contato com os citados no levantamento para realizar a pesquisa de campo e ter a
oportunidade de obter um registro de seus modos de fazer do benzimento, bem como de suas
histórias de vida.
As conversas foram permeadas pela confiança dos entrevistados, que não
demonstraram restrição em fatos e situações questionadas, transcorrendo de maneira fluída e
aberta e colocando-se à disposição para futuras conversas.

3. Sobre o oral e a memória

Ao falarmos de registros da memória, muitas vezes o assunto fica resumido a


memórias oficiais, onde o ser comum e cotidiano, com suas riquezas de lembranças,
raramente é enfatizado. A pesquisa e documentação de memórias ligadas ao não oficial, ao
sujeito comum muitas vezes transparente à história, pode dar voz às personagens que estão à
margem da sociedade tida como ‘letrada e culta’, pelo fato de pertencerem a uma parcela da
população que, alheios à cientificidade, não são aceitos sem resistência pelas sociedades,
pensadas em sentido amplo. Tratar especificamente dos benzedores, nesta pesquisa, constitui-
se em uma possibilidade de trazer para o debate as memórias, dizeres e saberes de sujeitos
simples, sem rigores científicos, com a intenção de produzir reflexões acerca dos
conhecimentos que foram adquiridos com gerações anteriores e que estiveram presentes no
cotidiano da população, formando a cultura do lugar, sendo, talvez, a única forma de alívio
aos males pelos quais estes eram acometidos. Nessa perspectiva, o estudo suscita discussões
acerca da modernidade e seus desdobramentos socioculturais de manutenção e apagamento
das culturas locais.
Em Sharpe (1992, p.62), encontra-se a expressão ‘história vista de baixo’, como
elemento norteador para pensar os sujeitos da pesquisa, pois, para o autor,

A história vista de baixo ajuda a convencer aqueles de nós nascidos sem colheres de
prata em nossas bocas, de que temos um passado, de que viemos de algum lugar.
Mas também, com o passar dos anos, vai desempenhar um importante papel,
ajudando a corrigir e a ampliar aquela história política da corrente principal que é
ainda o cânone aceito nos estudos históricos britânicos.

O conhecimento acerca da cultura local enaltece a história de cada um. Mas é


preciso dar visibilidade a essa cultura: fazer com que a população possa perceber que os
conceitos de passado, memória, cultura, e outros, são constituidores do tempo presente. Com
isso, os recortes de pensamento acerca da memória local farão sentido aos indivíduos que
habitam os espaços, revelando-se que passado e presente estão em uma mesma esfera,
conjugados com o pensar, sentir e agir dos sujeitos.
Em algumas sociedades, a interpretação da memória se dá somente no âmbito do
passado e não se considera que é na articulação do passado com o presente que as memórias
farão sentido e, assim, podem passar a pertencer à coletividade, indo além do individual. Pelo
fato de um indivíduo contar suas memórias já se torna possível realizar essa articulação de
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passado com presente, pois assim se retira de sua individualidade algum fato e se faz a
conexão com o presente por meio do seu ouvinte3.
Nesta perspectiva, Benjamin (1987, p. 201) discorre sobre o narrador e sua relação
com memórias e experiências, dizendo que “O narrador retira da experiência o que ele conta:
sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à
experiência de seus ouvintes.”
Para falar ainda do ‘narrador’, Gagnebin (2009, p. 53-54), se refere a ele como

[...] a figura do trapeiro, [...] do catador de sucata e de lixo, este personagem das
grandes cidades modernas que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movido pela
pobreza, certamente, mas também pelo desejo de não deixar nada se perder. [...] esse
narrador sucateiro, não tem por alvo recolher grandes feitos. Deve muito mais
apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação [...]
algo com que a história oficial não sabe o que fazer.

Deixar falar os sujeitos que não são vistos pela história oficial é o elemento
norteador desta pesquisa, pois se entende que há em suas falas muito que se evidenciar e estes
pertencem a uma categoria que possui memórias e saberes peculiares. Suas histórias não
foram registradas, contudo, suas memórias estão latentes, necessitando serem reconhecidas
para reatar os fios das identidades coletivas no presente.
Para pensar como tais memórias poderão ser evidenciadas, Hall (2006) parte do
pressuposto de que a memória trabalha em processo dinâmico, no qual a reinterpretação das
culturas dar-se-á de maneira ampla, simultaneamente mantendo a identidade e se adaptando às
dinâmicas político-sociais de cada tempo e lugar. É através do passado e suas implicações que
se passa a refletir, compreender e interferir no presente. Nessa ótica, instala-se a compreensão
da memória, que tem como pressuposto a necessidade de ser recriada conferindo um sentido
ao presente.
Para Le Goff (1990, p.477), a memória é um “elemento essencial do que se
costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades
fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia.” Para tal busca,
é necessário que os indivíduos considerem que as lembranças são carregadas por eles e que,
no processo de interação com a sociedade e os grupos aos quais pertencem, estabelecerão o
contraponto para que tais lembranças ou memórias se efetivem. Portanto, o outro tem papel
fundamental no quesito da rememoração e da produção da memória. Esse papel diz respeito
ao fato de que é na coletividade que as interações acontecem, trazendo à tona o indivíduo e
sua identidade.
A memória é tratada por Halbwachs (1990, p. 26) com o termo ‘memória
coletiva’, pois

[...] nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros,
mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com
objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós.

Para esta pesquisa, o fator ‘memória’ possui significativo interesse, pois se trata
de um conceito ligado diretamente ao saber das benzedeiras, para a compreensão das relações
que são estabelecidas entre estas e as suas memórias, pois conforme Bosi (1994, p. 90),

A memória é a faculdade épica por excelência. Não se pode perder, no deserto dos
tempos, uma só gota da água irisada que, nômades, passamos do côncavo de uma

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Entende-se aqui o ouvinte como o que vai propor os sujeitos da pesquisa que contem suas histórias, podendo
ser entendido também como entrevistador, narrador ou outros termos recorrentes.
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para outra mão, a história deve reproduzir-se de geração a geração, gerar muitas
outras, cujos fios se cruzem, prolongando o original, puxados por outros dedos.

É dessa forma que a memória precisa ser pensada; não como um apelo ao
passado, simplesmente, mas como uma rede de relações que vão se estabelecer à luz do que
possa ser lembrado. Na instância das lembranças, é possível produzir novos significados,
proporcionando aos indivíduos a certeza de se reconhecer como sujeitos de sua própria
história.

2. Situação e possibilidades da pesquisa

A partir do contato e as conversas realizadas, alguns elementos tornam-se visíveis,


indicando perspectivas para os estudos que se iniciam e se repetem nas falas dos benzedores.
Quando se referem ao fato de não cobrar pelo benzimento, pode-se pensar sob a ótica do
simbólico, tendo como referência os estudos de Bourdieu. Os entrevistados citam o mesmo
procedimento, dizendo ainda, que o benzimento cobrado não “tem valor” (D.I.), entendendo
que se existir a relação do dinheiro pelo ato realizado, este não terá o efeito esperado, sendo
algo que diz respeito ao fazer o bem para as pessoas, não devendo este ser relacionado com
vistas ao mercado e a sua lógica, importando somente o fato de que estão ali, com o “dom”
recebido, para serem intercessores do divino. Esses benzedores dizem estar disponíveis e se
sentem felizes no ato de benzer, “benzo prá ajudá as pessoa, e fico feliz de dá certo... fazendo
o bem pelos outro... que a gente ajudando as pessoa, tá ajudando a gente mesmo, né...” (D.I.)
Outro ponto onde as falas se aproximam é a questão do “dom”. Esta, para os
benzedores, é a justificativa para suas intercessões, pois só podem exercer esta prática as
pessoas que possuem esse caráter. Sobre o “dom”, entende-se a partir das teorias de Marcel
Mauss, o fato de que se eles, os benzedores, receberam esse dom, que provem de Deus, tem
como obrigação para com o divino, usá-lo em benefício dos seus semelhantes, seja no alento
aos males do corpo ou da alma. Conforme narram os entrevistados:

Pois é, porque Deus não dexô prá fazê dinheiro no nome dele, né, então, a gente
benze na fé de Deus, né, em nome de Deus, né... (D.I.)
[...] a pessoa tem que fazê assim por amor a Jesus, por amor a Nossa Senhora, pelo
amor ao próximo né (D.O.)
[...] então, a gente faiz por amor isso aí né, já que Deus deu esse dom pra mim então
né... (D.O.)

O apagamento é outro aspecto da “tradição do benzer”, pois, conforme os


entrevistados, além de a pessoa que vai benzer possuir o “dom”, é preciso que os mais jovens
tenham o interesse pela prática do benzimento. Desta forma, nesse universo cujos sujeitos
possuem em torno de oitenta anos, se pensa no que já não mais poderá ser praticado, pois,
quando estes não existirem mais, quem dará continuidade às suas práticas? As respostas dos
entrevistados diante desse questionamento as ponderações dos mesmos se dá com uma certa
preocupação, conforme cita-se:

[...] tudo mundo diz, prá mim ensiná os otro, mas se a pessoa não tem o dom não
adianta, né, dizque tem que tê o dom, né.... ninguém se interessa, né... as minhas
menina já são de outra, não são católica... então são assim de outra igreja... e eu sô
católica. (D.I.)
[...]Quando for um tempo que eu veja que eu não vô durá, daí eu passo prá outro..
mais tem que sê da família... é, da família... é, quenem, a mãe passo prá mim, e eu
passo prá um dos filho, né ... aquele que quisé, porque não é tudo que gosta de... eu
digo, fazê o bem... que eu, eu vivo tão alegre! (S.F.)
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[...] ... porque eu disse, não vô vivê a vida intera, né, então eu gostaria que alguém
ficasse no meu lugar, porque tá terminado os os benzimento né, tá terminando isso
aí, eu sei que cada veiz o povo vai precisá mais de benzimento ... (D.O.)

Sobre a inserção de novas tecnologias nesse contexto, os benzedores citam a


possibilidade de realizarem suas orações até mesmo através do telefone. Nota-se aí uma
adaptação nas forma tradicionais de benzer, tomando como aliados ao modo de vida da
contemporaneidade, de acordo com o registro oral dos entrevistados:

[...] Que nem as veiz me ligam disisperado... “Dona Odete, eu tô com um problema
assim assim... pelo amor de Deus eu espero aqui no telefone, eu não posso í lá, a
senhora me benza pelo telefone...” eu faço a oração ali no telefone, diz que já ficam
aliviadas assim, parece que tira com a mão assim... (D.O.)
[...] as veiz também ligam, “Dona Irma, benza fulano de tal que tá que tá ... das
bicha”... eu benzo, até os vizinho ali as veiz, de noite... e dá certo, porque daí eles
ligam de novo, né... Que nem lá em Curitiba, lá em Florianópolis, pedem, tem os
pessoal conhecido que são daqui, né, pedem prá benzê lá uma criança... (D.I)

Ainda, o que permeia a prática do benzimento está pautado no gesto e na fala.


Nesse sentido, existe uma linguagem poética que apreende os benzidos e benzedores, haja
vista que se instala ali uma cumplicidade, remetendo a ideia de crença e fé, conforme diz a
benzedeira, “É a fé das pessoa que cura, a gente benze, a gente faiz a oração, faço as minhas
novena... então daí mais é a fé, é a fé que cura eles né, que a gente pede de coração por eles
né.” (D.O.)
Desta forma, pretende-se discutir e analisar a partir da voz dada aos entrevistados,
o que pensam e percebem dos seus modos de fazer/viver na contemporaneidade. O que ecoa
nessas vozes e de que maneira acontecem as imbricações entre a palavra proferida e o gesto
executado, elementos indissociados no ato do benzimento.

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