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FICHA TÉCNICA

Foto da Autora - Eduardo CoElho


Diagramação e Criação Gráfica - robson olivEira
Revisão Editorial - Jura arruda
Produção Executiva - aquElETrio agênCia CulTural

CONTATOS
andreasumepsicologia@gmail.com
www.facebook.com/andrea.sume

Dados Internacionais de
de Catalogação
Catalogação na Publicação (CIP)

S955p Sumé, Andréa


Por todas as nossas relações/ Andréa Sumé. — Joinville, SC:
Areia, 2017.
180p.

ISBN 978-85-68703-15-1.

1. Literatura. 2. Ficcção brasileira. 3. Contos Brasileiros. 4.


Magia I. Título.

CDD 869.3
CDU 82-31(81)

Ficha Catalográfica elaborada pela bibliotecária Rafaela Ghacham Desiderato


CRB 14/1437

Este livro foi publicado com o patrocínio do Município e Secretaria de Cultura e


Turismo por meio do Sistema Municipal de Desenvolvimento pela Cultura.

Patrocínio
ÍNDICE

Agradecimentos .................................................................11
Prefácio ................................................................................13
Primeiras Palavras .............................................................17
Semente ................................................................................19
Runas ................................................................................21
Senhoras................................................................................23
Quadris ................................................................................25
Olhar ................................................................................27
Pactos ................................................................................29
Presente ................................................................................31
Raiz ................................................................................32
A cor da minha alma .........................................................33
Cigarra ................................................................................34
Acordos ................................................................................37
Bússola ................................................................................39
Rede ................................................................................41
Ferida ................................................................................42
Mistério ................................................................................44
Corsário ................................................................................46
Filho ................................................................................48
Tambor ................................................................................51
Fio ................................................................................54
Fim ................................................................................56
Razão ................................................................................58
Giro ................................................................................60
Milagre ................................................................................62
Antes ................................................................................64
Leveza ................................................................................65
Moiras ................................................................................67
Baile ................................................................................69
Medicina................................................................................71
Eclipse ................................................................................73
Natureza ..............................................................................74
Recursos................................................................................75
Vazio ................................................................................77
Narciso ................................................................................79
Agora ................................................................................81
Lugares ................................................................................82
Espírito ................................................................................83
Sonhos ................................................................................84
Dogma ................................................................................86
Salto ................................................................................88
Limbo ................................................................................90
Pajé ................................................................................91
Foco ................................................................................92
Clã ................................................................................93
Pegada ................................................................................95
Drama ................................................................................97
Magia ................................................................................99
Amor ................................................................................100
Brincar ................................................................................102
Não ................................................................................103
Birra ................................................................................105
Reverência............................................................................106
Folhas ................................................................................108
Controle ................................................................................109
Heróis ................................................................................111
Feminina................................................................................113
Rezo ................................................................................115
Asas ................................................................................117
Perséfone...............................................................................118
Elementos..............................................................................120
Ciclos ................................................................................121
Rito ................................................................................123
Inquisidora...........................................................................125
Bruxa ................................................................................127
Ventre ................................................................................129
Vovós ................................................................................130
Elas ................................................................................133
Alma ................................................................................135
Mãe ................................................................................136
Deusas ................................................................................137
Inquisição.............................................................................139
Louca ................................................................................141
Mulher ................................................................................144
Família ................................................................................146
Gaia ................................................................................147
Toma ................................................................................149
Infinito ................................................................................150
Espelho ................................................................................152
Agradeça...............................................................................154
Afrodite ................................................................................156
Vento ................................................................................158
Cheia ................................................................................159
Lua ................................................................................161
Podar ................................................................................163
Soberana ..............................................................................164
Evocação de reconhecimento e pertencimento à Terra.....165
Deus e Deusa.......................................................................167
Beija-flor..............................................................................168
André Sumé........................................................................171
Agradeço à natureza onde vivo. À montanha, ao rio e à floresta
que acolhem minha família no colo fresco do amor.

Aos ancestrais, mãe e pai, avós e antigos que fazem no canto e


nas rezas a voz da presença.

Aos que são Filhos do Fogo e fizeram de uma pequena faísca de


intenção, um vulcão de coragem para a realização deste livro:
meu companheiro de 23 anos de jornada, Eduardo Coelho, e nossa
cria tão amada, Aruã . Saúdo a força de nosso elo. Carolina Luz,
irmã das Estrelas. Janete Áurea, irmã da Alma.

Ao divã, à sala de terapia, que tanto me ensina sobre o ato


sagrado de dar-se nascimento no mundo.

Aos círculos mágicos que tenho a honra de conduzir. Mulheres,


tambores e constelações de cura e beleza.

Ao Clã de Comadres, pelo sincero compartilhamento de nossas


emoções, onde o fio invisível da confiança tece a amizade visceral
que nos enlaça.

Aos vínculos fortes, sadios e ferozes que tomam a vida na direção


das correntezas do pertencimento.

Por todas as nossas relações.


PREFÁCIO

Vestido longo como raiz. Gargalhada farta feito trovoada. O pé


na terra, a mão na água, o ventre para o céu.

Andréa Sumé é daquelas mulheres que cura. Seja com um


sorriso, um olhar, um toque, uma fala. Quem já passou por suas mãos
curativas sabe o que sentiu, sabe a potência que é. E quando ela está
solta na natureza você não sabe o que é árvore e o que é Andréa. Um
tipo autêntico de representação de Gaia.

Ela acredita nas relações, seja de gente com gente, seja de gente
com a natureza. Ela acredita. Sua força vem da sua crença, vem da sua
raiz, vem de sua pesquisa com a ancestralidade.

Seu trabalho como psicóloga vai além: científico e intuitivo, tem


visão consciente do ser humano integrado à sua fonte original, e é essa
consciência que a coloca em plenitude e se derrama nas palavras desta
obra.

"Por Todas as Nossas Relações" é uma literatura que nos convida


a refletir sobre nossa existência e fazer as pazes com nossa divindade.
Uma conexão interna que cada leitor percorrerá dentro de si.
É obra de seio materno, primeira fonte de alimento que cala o
choro e mata a fome. Refresca a sede. Onde menina, mulher e anciã
encontram o caminho de retorno para casa.

As palavras aqui contidas servem como uma silenciosa oração


com os seres que nos protegem, uma canalização para um novo
despertar.

Te convido a essa viagem. Nos encontramos por aí, em alguma


página.

Karla Concá
Fundadora do primeiro grupo de mulheres palhaças do Brasil, As
Marias da Graça, Rio de Janeiro. Palhaça, atriz e diretora de
teatro. Ensina a arte da palhaçaria pelo mundo afora.
PRIMEIRAS PALAVRAS

M itakuye Oyasin é uma declaração dos índios


Lakota entoada em celebrações e cerimônias para
honrar todas as formas de vida compartilhadas na
Terra. A tradução dessa antiga expressão é um convite para uma nova
perspectiva de atuação como humanidade.

“PPor Todas as Nossas Relações” é uma afirmação que reconhece


todos os vínculos de interdependência que vão muito além dos nossos
laços de sangue ou elos familiares. Para as tribos das Américas, a
natureza é incluída como sendo também nossa família. “Os irmãos
maiores cuidam dos menores”, conta o pajé. Assim, a floresta, os bichos,
o sol e a lua, rios e mares cuidam de nós e nós cuidamos deles. Pai e
mãe cuidam do filho. Amigos que cuidam uns dos outros. Criamos laços
e inspiramos cuidado.

Uma mudança de paradigma acontece aqui quando nos sentimos


fazendo parte dessa teia única. Ética, valores e relacionamentos assumem
outro sentido diante desse significado.

Quando existe uma relação? Quando nos sentimos conectados.


Quando estamos em sintonia e dialogamos na emoção da existência.

Que possamos sentir uma fartura de conexões e assim crescer no


elo da vida que nos sustenta.

Por Todas as Nossas Relações.

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Semente

Ela olhava o verde com os olhos encostados na


montanha. a terra molhada da chuva que acabara de cair
também deixou úmida sua alma. Foi assim que a semente
plantada no centro de seu coração começou a nascer. ganhou
força e virou broto. rompeu o solo e amadureceu como
mulher-figueira. Por tantas vezes que rodou sua saia no passo
que enraíza a firmeza para viver. quantos vestidos de bainha
rasgada, encardidos de barro, que contam a história de todas
as mulheres que são natureza.
na beira do rio, a mulher se faz água. reza junto com o
canto sereno das senhoras. dissolve a vítima que mora dentro
dela e, assim, se faz dona do seu mundo. indo de encontro ao
mar de que somos, agora trajada de espírito inteiro, a mulher
cria condições de absorver suas gotas. assim ela se faz seu
próprio alimento.

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Finaliza acusações. Cessa culpa. Morre o medo. Mulher
íntima de si mesmo. que dá goles fartos na fonte do vale e
segue caminho por muito tempo sem sentir sede.

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Runas

de todos os dias em que a montanha amanhece tomada de


verdes e dourados, aquele dia, justo aquele dia, anunciava uma
fenda na estrutura arquetípica da psique da mulher selvagem.
odin, deus nórdico ancestral, resolveu voar para seus
sonhos na noite em que ela trouxe as runas para viver em sua
casa. Tomada de espanto ao cruzar a fenda que une o real e o
mítico, a selvagem mulher correu pela floresta do mundo de
dentro.
Protegida sob os olhos soberanos de odin e guiada pela
alma forjada na confiança do vento, a mulher desbravou as
fronteiras do tempo. Encontrou seu povo, sua terra, sua lenda.
o clã, o castelo, o barco, a plantação. Trouxe deste mundo um
fantasma perdido que não é responsável pelo medo. um
assombração com a memória da paz.

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as runas, que dormiram quietinhas no jardim de sua casa
em noite de lua minguar, acordaram felizes. Estavam de volta
ao colo daquela que sabia o sentido e orientava os significados.
Com a montanha tomada de verdes e dourados, as runas e a
mulher estavam juntas novamente.
de todos os dias, justo aquele dia.

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Senhoras

vez ou outra, elas batem na porta de casa e adentram o


quarto. não é sempre que a presença delas rasga o manto da
invisibilidade. Tenho que confessar que já descobri a senha
secreta do nosso encontro: quando o caldeirão guarda o fogo
da vela branca e existe um vaso de folhas frescas de
manjericão na mesa da sala (tenho certeza que elas vão mudar
a senha porque são arteiras).
vez ou outra, posso sentir a brisa da saia delas dançando
uma ciranda. ou jongo. Coco de roda ou maracatu. Esquecidas
por nós, a presença destas antigas senhoras do feminino, vez
ou outra, chegam e chamam. Elas percorrem o quarto da alma
com murmúrios, assovios e cantos. um silêncio
absolutamente oco toma conta da inquieta mente. Posso
sentir os limites bem contornados entre o medo e o abismo,

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onde as frequências cerebrais se alinham criando uma linha
reta, uma ponte, cuja travessia já conhece seu destino.
Cruzando as porteiras do self, deus, deusas, poesia,
música, insights, conexões. são muitos os territórios
percorridos quando entramos nesta fenda mágica em sintonia
com elas. da soma de muitos desses encontros, nasce a
intimidade com um psiquismo soterrado. Esse aspecto
selvagem da mulher que sabe dialogar com espíritos e
fantasmas de si mesma, que sabe ouvir a voz das vovós, suas
anciãs, as memórias perdidas no elo sua história.
assim, o invisível se torna visível e posso, nitidamente,
constatar que nós e elas somos apenas uma.
vez ou outra, de mãos dadas, danço com elas. Canto
junto delas. Posso niná-las no embalo do sonho que me guia.

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Quadris

revendo o baú das memórias, encontro o dia em que


minha mãe me ensinou a soltar os quadris. na cozinha, junto
com a massa que minha avó e ela preparavam de rosquinhas
de gergelim, junto ao aroma torrado e doce que embalam até
hoje a lembrança crocante do pedaço da minha infância,
encontro estas duas mulheres. Tomadas pela música árabe e
num transe que somente o feminino conhece, lá estavam elas
dançando na cozinha, com as mãos cheias de farinha, num
molejo onde os quadris parecem ondas e a voz emite sons
ancestrais na cortina do tempo. Mãe e avó, que sem se dar
conta estão neste momento fazendo um rito de passagem com
a pequena criança. Meu coração pulsando no ritmo do tambor,
aceita o convite de cruzar a linha. Eu estava lá, pertencia ao
ritual delas: “isso filha! Tem que soltar! quadril é para ser
solto!”. Foi assim que, neste dia, de menina me tornei um

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pouco mais mulher. aprendendo a soltura dos quadris.
dançando a iniciação do ventre. soltando a voz nos sons
desconhecidos e nos gritos de enrolar a língua típicos da
música árabe. olhando os movimentos de minha mãe e minha
avó.
hoje, toda vez que o quadril dança, elas dançam junto
comigo. uma herança. um legado. um elo. uma mulher.

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Olhar

Minha mãe fazia meus vestidos na máquina de costura.


Era mágico estar com ela criando o modelo e cortando o
molde. na loja do libanês da esquina, escolhemos tantos
tecidos que hoje voam pelas memórias coloridas da infância.
Entre um ponto e outro, tecemos muitas histórias, não na
palavra em si, mas no olhar. o olhar da criança contemplando
e admirando a mãe a cantar e criar: voz doce, olhar seguro,
coração valente.
o terço na casa das tias, entre o eco das vozes de tantas
senhoras, era a voz dela que rezava dentro de mim uma oração
de bênção e proteção. das lembranças do fogo, em volta do
fogão, milho, mandioca e feijão. Eu e ela, juntas no cuidado
das panelas: colher de pau, curau com canela. uma vez minha
mãe jurou que viu o fogo não me queimar, e foi nesse dia que

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ela teve a estranha certeza que um anjo guerreiro forjava
minha alma.
Filha de promessa eu sou. Foram cinco bebês perdidos
no labirinto da morte do ventre de minha mãe. assim, me
tornei a sétima filha. Primeiro, meu irmão. Mais cinco. depois
eu. desde histórias estranhas e fantásticas, até a crendice
popular, a sétima filha carrega uma marca: bruxa, curador. E
fui crescendo, me tornando modelo e molde do seu amor.
hoje, mulher que sou, entre as angústias e os dramas
naturais de uma existência com significado, encontro seu
olhar. nos varais que secam a roupa do tempo, seu olhar. na
inocência que insiste em não me abandonar, seu olhar. olhar
seguro. Coração valente. a mãe mora em nós eternamente.

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Pactos

Fui criada longe da terra. Meu pai contraiu a doença de


chagas, a do bicho barbeiro, ainda moço, quando morava na
roça. Ele me contava histórias de um tempo livre, descalço,
entre os pés de laranja e as plantações de milho. Mas depois
de adoecer, jurou que nossa família nunca teria um sítio. Ficou
de mal com a natureza e prometeu cuidar de nós longe das
paredes de pau a pique.
lembro-me de nossas férias perto do mar, onde meu pai
parecia ser outro homem, mais leve e feliz. na chácara dos
amigos da família, onde nos divertíamos entre os balanços e
as árvores, nas colheitas de milho na roça do tio, onde as
mulheres faziam cural com canela, um pai presente, festeiro
e amoroso.
afastada do verde, eu circulava pelas paredes frias do

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prédio, subia e descia correndo as escadas do primeiro ao
décimo-quinto andar como quem desbrava uma floresta.
Meus pés ansiavam pela terra. quando moça, na faculdade,
cuidei de conhecer muitos cantos naturais. Cachoeiras e mato
abrigavam minha alma já cansada da dureza da cidade. dias
de magia junto à tribo dos índios guaranis. na oca o eco de
quem sou. Então, muito tempo depois, rompi com o pacto que
meu pai celou com a natureza. Fui morar ao pé de uma
montanha, na certeza de que este era o único caminho para
me tornar inteira. subi a montanha com o mesmo entusiasmo
que subia as escadas do prédio na infância. Porém, agora, os
pés pelados encontravam o colo da Terra. o espírito enraizou.
Meus pés, sempre astutos, aprenderam a direção e se
tornaram os olhos do meu corpo.
desfiz o equívoco do meu pai e não permiti que a
maldição cavalgasse pelas gerações afora. sei que onde quer
que ele esteja, respira aliviado. o elo perdido com a natureza
foi restaurado. Por todas as nossas relações.

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Presente

aniversário de pai é dia sagrado. Mesmo morto, posso


dizer com segurança que nunca o perdi, porque quem perde
o pai fica perdido e vai embora para a morte junto com ele.
não perdi meu pai. Ele apenas morreu.
no dia de seu aniversário, cumpro um estranho ritual
onde juntos sentamos para pescar na beira do rio. Eu madura.
Ele velho.
são olhares, às vezes o choro, algumas risadas. o jogo das
reivindicações já passou há muito tempo. hoje, no nosso
relacionamento, ecoa a frase “Eu tomo tudo com amor”. Foi
um longo percurso para chegar até aqui. Muitos aniversários
em que o rio acolheu as tragédias naturais da relação entre
pai e filha. renunciamos opiniões e crescemos. Enfim,
liberdade. não desisti dele. achei meu pai e não o perco
jamais.
isso é presente.

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Raiz

nossos pés estão soltos, porque nossas raízes moram no


coração. Caminhamos por tantas direções, corremos por
tantas florestas, atravessamos rios, cruzamos fronteiras e no
entanto levamos as raízes plantadas no jardim do nosso
coração. Memórias, histórias, infância, ancestralidade. o som
da viola, os contos, a fala doce e bruta do pai e da mãe. o eco
das avós nos pontos de crochês, na dança dos quadris. as
raízes fincadas em nós. Por onde vamos levamos elas conosco.
são as raízes que alimentam o todo que somos. raíz sagrada,
bendita seja tua presença ancorada na Terra Pura do Eu sou.

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A cor da minha alma

Minha alma é meio índia. E no meio do meio ela é negra.


no fundo da alma um tecido multicolorido, um tecido ao
vento. ares distantes dos mouros que dançam em meu
coração.
sinto cheiro de fogo. Fogo queimando perfumes e
aromas. saias e longos vestidos, anéis e brincos de cigana. Eu
sou uma senhora que comanda a caravana na direção do
oriente. ouço um tambor bravio, um som forte e doce que
entorpece meus sentidos. a mente esvazia. a casa é de folhas.
Eu sou um homem velho que contempla o deserto da vida.
Cavalos, muitos cavalos galopando pela floresta. hoje é
dia em minha alma. o vento fresco e as botas apertadas
refazem o laço do passado. Caminho por muitos mundos e,
dentro da natureza que sou, tenho muitas cores, muitos
nomes, muitas idades. Eu sou a ancestralidade.

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Cigarra

aquela dor de ouvido persistente que esteve comigo


desde a infância foi curada por uma cigarra, a cantora toda
exótica da natureza que deixa seu corpo cascudo preso na
árvore quando faz a passagem. Ela mesma.
no primeiro ano em que mudei para a montanha onde
vivo, as dores de ouvido no mês de janeiro eram agudas. Como
de costume, saí no fim de tarde para caminhar, arrastando
comigo o antigo desconforto nos ouvidos que resolvia me
visitar sempre que a mente interferia demais nos assuntos do
coração. dando passos largos e firmes, olhando a floresta e
desfrutando da presença do rio, subitamente compreendi que
o canto forte e estridente das cigarras eram a causa daquela
crise de dor que estava aporrinhando meus sentidos.
Pois, no momento exato que me dou conta disso, vejo no

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alto de uma árvore uma cigarra. a danada voou até mim,
pousou no meu ombro e cantou alto.
o ouvido acordou. Entorpecida por tamanho vento
musical, dou milhões de voltas em espirais dentro daquele
turbilhão sonoro. sem nenhum medo, agora íntimas e tão
próximas que éramos, faço um pedido que somente a intuição
poderia guiar a ordem de tamanha conexão:
– Cigarra, leva minha dor de ouvido embora!
atendendo meu pedido ousado, a cigarra voou para
longe e, como num passe de mágica, levou a dor junto com o
pulsar de suas asas.
nunca mais!
anos sem dor de ouvido.
na intensidade dos insights que nenhuma lógica ou razão
sabe explicar como ou porquê, num lampejo de tempo que
galopa experiências passadas e emoções vividas, compreendi
naquele dia que de todos os sentidos, é o som, e sempre foi o
som, meu canal de entrada e saída para os despertares da
alma. E que as cigarras estavam ali, provocando a audição para
mais um chamado na escuta sintonizada do espírito.
acredito, não porque me contaram, mas porque vivi, que
os animais, assim como as pedras e as plantas, carregam
medicinas poderosas desconhecidas pela ciência do homem.

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o canto em tom alto da cigarra sana dores de ouvido e
estabelece conexão segura entre a mente e o coração. os
sábios guaranis já diziam que fora a cigarra a primeira a
entoar o som da cura.
Todo comecinho de janeiro, na passagem do ano em que
as cigarras cantam tão alto quanto o desejo dos nossos
corações por um ano verdadeiramente novo, tenho a estranha
certeza de ser amiga delas.

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Acordos

sim. Existem boas traições. a começar pelo filho que


rompe acordos secretos familiares e viola com ousadia
territórios nunca antes explorados. rasga o script construído
e escreve sua própria história.
dia desses, sonhei com o diabo. Ele, muito exaltado, com
olhos tenebrosos e soltando fogo pelas ventas me acusava aos
berros: “você! você rompeu todos os acordos. quebrou todos
os contratos!”
Traí o diabo. Passei a perna no capiroto. uma boa traição.
simbólico aos olhos do inconsciente que deve querer me dizer
algo muito profundo com essa poderosa imagem. alívio.
das boas traições, digo: é orgânico o ato de rasgar
acordos e desfazer o que estava construído para sanar a
história da linhagem da família. violar terras encobertas pela

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poeira do destino. quebrar a fidelidade na infância prometida.
acoplar a alma num corpo que anseia não somente existir.
Traímos o sistema de crenças e os valores morais toda
vez que não compactuamos mais com a cultura social vigente
e achamos outra maneira de seguir adiante. Mais autênticos
e confiantes. novas formas de viver no mundo e nos sentirmos
seguros. ações políticas, estratégias elaboradas e forjadas no
amor que nos traga a lembrança de quem somos.
dizem que deus é o amor. assim sendo, concluo aqui que
o diabo é o medo. E quantas vezes mais for preciso vamos trair
o diabo e nos unir com o que é pleno.

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Bússola

gaia é minha pátria. não sigo religião. guardo de


costume a tradição ancestral de rezar na beira do rio. Com o
cachimbo, do modo mais antigo, assoprando ervas
perfumadas, vou rezando as dores e cuspindo as más águas.
benzendo e sarando aquilo que conheço de minhas mágoas.
Procuro com certa angústia o norte que orienta a bússola
do coração. soterrada por duzentos anos de iluminismo, esse
antigo instrumento escondido nas cavernas do self aponta
para o caminho oposto que seguimos como nação: fronteiras,
capital. Petróleo e política. sintoma, síndromes e alívios
sintéticos.
Foi a razão e o excesso de pensamento que arrancou o
coração da humanidade. Preciso me decaptar simbolicamente,
cortar a cabeça da racionalização para achar minha bússola e

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escavar fundo todas as possibilidades de que sou feita.
sustentar novas atitudes, focar nos sentidos e compreender
os significados.
aqui existe um lugar real para minha humanidade. aqui,
onde existe ordem. aqui é natural o zelo e o amar. Minha
bússola, guiada novamente pelo faro da minha alma e
orientada ao norte do coração, encontra o caminho de volta
para gaia. uma pátria. uma tribo. uma nação.

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Rede

não consigo pensar em uma borboleta. Penso em borboletas.


Todas elas. um clã. uma folha? não. Milhares de árvores. a
floresta. Essa é a direção da unidade. um ser humano?
individualidade?
Caímos na imbatível ilusão de que estamos separados.
acreditamos tanto nesta individualidade que nos excluímos da
unidade e perdemos a referência do coletivo. E quando falamos
em coletivo pensamos em política, religião e as grandes estruturas
que governam o sistema. não. um equívoco devastador. Estamos
no centro de uma crise orgânica. Precisamos lembrar que
sabemos pulsar juntos e que funcionamos em rede. Como a
natureza, como as borboletas e a floresta. Porque somos vida.
simplesmente vida. diante da unidade e do todo, cabe uma
pergunta: sabemos viver como indivíduos?

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Ferida

no colo de alguma boa amiga, ela sentia a segurança e a


proteção. Como no colo da mãe, a infância embalava um doce
suspiro de amparo. houve amor sublime. houve vínculo,
cuidado e calma. no infantil momento de ser criança, mãe e
filha desfrutaram de um elo sagrado que se estendeu por toda
a vida. E foi exatamente assim que ela buscava transferir essa
experiência completa de amor para o colo das boas amigas.
Toda vez que o fluxo de amor foi interrompido pelas
durezas das couraças humanas, sentia o abandono. um
imenso portal solitário se abria nos pés da sua terra, e ela era
tragada pela fumaça espessa da tragédia que nunca vivera. a
solidão não era desenho de sua obra, já que não havia
experimentado essa pitada de tristeza ao lado de sua mãe. E
mesmo sentindo profunda intimidade com o silêncio, a

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solidão ainda era o nó na garganta. a faca no pescoço. um
drama existencial sem resposta.
absolutamente conectada com todas as teorias de
vanguarda que decifrasse o enigma solitário de viver, ela foi
amadurecendo e tornando-se íntima de uma solidão que se
tornou sua melhor amiga. ali, como no colo das boas amigas,
junto da solidão estava protegida. Como no embalo de mãe
que transmite o amparo, a solidão ganhou um lugar de honra
onde finalmente a escuta interna se completava.
ali, bem junto da grande amiga solitária, a mulher
encontrou a voz mansa de sua natureza. Foi aí, justo na
solidão, que ela finalmente completou a dança louca do ciclo
eterno que morre e nasce, concluindo em si mesma as
travessias que jamais ousara fazer no colo das boas amigas. o
sentido sagrado da solidão sanou a ferida secreta do abandono
e resgatou de dentro dela a segurança necessária para existir
no mundo sem se perder de si.

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Mistério

Existe um antigo ritual que caminha em segredo dentro


do coração da mulher selvagem. Fica oculto porque nem
mesmo ela sabe da magia e do fascínio, quando aquele
pequeno momento abre a porta e desbrava os portais de
dentro dela. Este ritual se faz na hora de deitar. quando ela
fecha os olhos e percorre os mundos psíquicos do mistério.
um pouco antes ainda, quando o mistério está quase no ponto
de cruzar a travessia do espanto, bem na curva sinuosa do
medo e da coragem. quando ela decide ouvir a voz, um sopro
em forma de palavras enroladas. Às vezes claras. o vento da
intuição que sabe. É nesta hora que o ritual secreto acontece.
neste momento estamos todas nós juntas, em roda. as que se
foram, as excluídas, as bem vividas, as perdidas, as
esclarecidas. amantes, donzelas, bruxas, mães, senhoras
velhas. neste breve minuto, nas esferas onde o invisível se faz

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tão presente, nos encontramos num mesmo espaço tempo,
pelo chamado das nossas intenções que nos une em torno de
um mesmo propósito. um elo ancestral na história do
feminino.
são rezas e orações. Pedidos de perdão, gratidão e
reverência. são mantos coloridos de proteção que caem nos
ombros de toda sua família e queridos. são deuses e deusas,
anjos, arcanjos e serafins que estão conosco neste
momento. Cada uma de nós pode criar a imagem arquetípica
que quiser deste instante soberano. Templos, florestas, em
volta da fogueira ou na beira do mar. o círculo e as mulheres
estão ali, praticando cura e galopando pelas oitavas superiores
do espírito. E mesmo que a mulher não faça conscientemente
este ritual, ele acontece pela força ancestral de um tempo em
que todas nós, desde sempre, praticamos a proteção e o am-
paro. o cuidar e o cuidado. Por nós e por todos. Por mim e pelo
outro. um círculo sem fim de generosidade e amor está
ali. vivo e pulsando. É real. E ele se faz na hora de dormir.

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Corsário

Pescador do meu coração. Com cuidado afrouxa os


emaranhados da linha que me prende. nossa relação é o lugar
onde a vida e a morte se faz presente. de ciclo em ciclo renasce
ganhando mais força. Com minhas mãos, eu também usurpei
seu coração e fiz dele meu tambor. E nós, um de posse do
coração do outro, seguimos com o poder daqueles
desbravadores que procuram e acham o seu próprio tesouro.
sim, somos corsários. nossa música já dizia. João bosco
é feiticeiro arretado que soube falar da nossa magia. somos
essa sagrada alquimia porque com você eu não fujo de mim.
Comigo não é possível escapar de quem você é. não estamos
perdidos num labirinto louco chamado Matrix. soubemos
encontrar caminhos e nos protegermos do perigo.
guardo contigo meu maior segredo, aquele que somente

46
o lençol e a cama conhece. a floresta e a pedra. de dia.
Preferimos o dia. somos do sol e do rio. de noite, a lua guarda
a fogueira, nossa eterna companheira. do fogo, nosso bisavô
ancestral, são os cantos de pé no chão, com batuque e
rebolado solto onde nos sentimos totalmente tomados pelo
ato de viver.
dizem que isso se chama amor. Prefiro chamar de amar,
já que aqui as profundezas do mar se faz presente e me remete
ao dia em que você me pescou. Eu, toda embolada nos meus
dramas, feito mulher esqueleto, fisgada pela linha do desejo.
Com uma sublime paciência, você continua calmamente
a desenrolar os fios que dão o nó em volta de quem sou.
incansável atitude que confere a maestria de reconhecer em
mim quem é você. Como todo pescador carrega em si o
sentido do isolamento e da solidão, nossa relação atou a
costura do significado de um homem que captura uma mulher
profunda para conhecer com ela seu próprio mundo.
você é o pescador de coragem. não desiste de mim
porque cria a condição de estar intimamente conectado com
você. nossos corações são tropicais. “Mesmo que eu mande
mensagens por todo o mar.” amar. “rosas partindo o ar” e nós
a nos amarmos. na vida e na morte. amar.

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Filho

desde pequeno ele dizia que são Jorge morava no seu


quarto. E foi, de fato, ele quem trouxe o santo guerreiro para
morar dentro de casa.
não me lembro exatamente quando foi que ele deu seus
primeiros passos e me chamou de mãe. Mas me lembro com
precisão do cheiro dos caixinhos encaracolados. o cabelo de
anjo e o olhar de alegria. ali a vida se fez pura. inocente. E
vivemos a inocência junto dele. Pai e mãe totalmente
entregues ao ato de ser família.
Meu ventre recebeu a semente num tempo onde a aldeia
e as iniciações xamânicas ocupavam todos os espaços da alma.
a fogueira dos saberes ancestrais foi acesa no coração do casal
que procurava direção. um motivo mais natural que
orientasse o sentido. a barriga cresceu trazendo todo o

48
significado e, assim, nos tornamos um tanto mais completos
no mundo. Éramos índios novamente.
Corredores de luzes douradas chegaram junto com o seu
nascimento. Ele nasceu em casa. de parto realmente natural,
seguindo o fluxo da natureza. não foi na água. Foi na terra e
no fogo. assim como o lugar de onde sua alma veio. Porque
ele é forjado na firmeza que sustenta o espírito do entusiasmo.
a tradução de seu nome diz muito: calmo, tranquilo,
pacífico formoso. devo confessar que em alguns aspectos ele
é exatamente o oposto. Mas a essência do lugar de onde veio
mantém um sopro doce e fresco já que “espirito da
montanha” é uma das muitas traduções do seu nome
indígena. não tenho dúvida que foi também por esse que
construímos nossa oca no pé da serra.
Esse menino ama o verde. É amigo dos animais e salta as
pedras do rio com a segurança de quem conhece sua casa. a
natureza é sua morada. É nesse colo selvagem que ele foi
educado, recebendo as lições do retorno e praticando a
observação que integra respeito e cuidado.
Posso chamar ele de filho, mas também sei que nosso
encontro é antigo. nos perdemos em outra vida e hoje nosso
reencontro é uma cura para todas as marcas do abandono.
nascemos como família novamente e isso atou o laço sagrado
do vículo pertetuando o desejo de sermos melhores. uma

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viagem xamânica de retorno ao caminho de volta para casa
onde meu filho é personagem e escritor dessa jornada.

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Tambor

o tambor é medicina. a medicina do tambor é uma


antiga receita, passada de geração para geração. um remédio
que todas as tribos, do norte ao sul de gaia, utilizam seguindo
o mesmo ritual: tocar tambor, dançar e cantar em volta da
fogueira reunidos em nome de um propósito. Tomar uma dose
deste poderoso bálsamo refaz a flora das emoções, acelera o
metabolismo espiritual e aumenta a imunidade do corpo.
o sentimento de pertencimento vem com o benefício
desta prática, humanizando nossos vínculos e relacionamentos.
os resultados do vigor deste antigo antídoto é sentido
imediatamente pelos quatro cantos do espírito: fortaleço o
corpo com o vigor da dança que firma os passos na terra. solto
o que está preso pelas amarras da respiração com o fluxo da
voz que sai pelo ar da boca. giro em volta do fogo ativando

51
meu campo vibratório e transmutando padrões da
ancestralidade. suor salgado, lágrimas e saliva que faz no
encontro das águas uma mistura alquímica.
ao som de suas batidas sintonizo com meu ritmo.
Certifico minhas ansiedades e limitações, caso esteja fora do
tempo da cadência da música. ajustar esse ritmo com a voz e
com a dança é exercício de afinação do corpo com a alma.
sim, tambor é remédio. não tem contra indicação, ativa
os estados naturais de consciência e saímos da roda com a
incrível sensação de que algo mágico aconteceu. E de fato
aconteceu. retornamos para um lugar sagrado onde nos
sentimos profundamente compactuados com as forças da vida
que unem todos nós.
Estar em roda, tocando tambor é um ato mágico que une
os mundos físico e espiritual. É uma decisão sagrada de tomar
o coração nas próprias mãos e tocar junto dele os compassos
do ritmo e do tempo. Entoar cantigas que traduzam o mistério
e o sentimento.
quando afino minha alma com o pulsar de sua sintonia,
posso confirmar que pertenço a algo muito maior. sou capturada
pelo sentido do clã, e sinto toda a natureza seguramente minha
aliada. Tambor não me deixa esquecer que estou alinhada com
a Terra e profundamente conectada com o Céu. aqui e agora. no
meu centro. Em casa. no coração de quem sou.

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o tambor marca o pulsar do coração. E para afinar o
pulsar de um coração com pulsar do coração da Terra, o ritmo
deve ser construído em roda, como já diziam os índios, no
pulsar de outros corações que criam juntos um único som
acentuado com um mesmo fluxo respiratório. É uma prática
muito ancestral nos reunirmos neste propósito. Porque sentir
o coração da Terra e pulsar junto com ele nos devolve a
lembrança de que somos todos um.
uma lembrança que não se percebe com a mente, mas
com o corpo. sentimos fisicamente essa doce lembrança.
Medos se vão. Couraças se quebram. uma limpeza natural que
acontece na presença do fogo, nas palavras cantadas que
entoamos. nos pés pelados que firmam o passo e transferem
poder.
o tambor forjou minha alma e acalmou todos os meus
sentidos de abandono. através do seu som faço um retorno ao
útero sagrado da Terra e vivo o embalo de estar novamente
no ventre. É minha medicina potente.

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Fio

um fio tênue que une o silêncio ao eco da voz que mora


na mata. um fio invisível que costura sem linha, sem nó nem
laço, e que sensivelmente une o que está solto ao imaginário.
deste fio, e somente com ele, o destino encontra mais um
ponto a ser atado.
não havia fio com agulha que desse jeito naquele buraco.
Todas as vezes que decidiu remendar o tecido já gasto de tanto
rasgo, ela se feria novamente na angustia da costura que
insistia em não sair conforme o planejado.
qual é o sentido em não conseguir finalizar o reparo?
será que existe ainda algum fio solto esperando para ser
capturado?
o vento soprava forte e a chuva naquela noite fez
transbordar o rio perto de sua casa. Foi nesta hora que uma

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lembrança quase morta nos corredores do tempo emergiu de
sua memória e foi resgatado do esquecimento. Essa lembrança
trouxe aquele fio solto que não foi capaz de recuperar o tecido
devastado, mas foi responsável por dar mais um ponto na
costura enviesada de sua jornada.
isso basta. Ela aceitou os mistérios de sua trama e decidiu
que o desejo de reparar-se era quase uma transgressão
totalmente imatura do processo voraz que lhe acompanhava.
Foi assim que, naquela úmida noite de verão, ela
finalmente encontrou a paz que sonhara. não foi um estado
de paz permanente. Mas foi o suficiente.

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Fim

Fez um sopro de quietude na floresta. Consolamos a alma


com abraços e afagos, molhamos o corpo no rio e nos
despedimos do desejo de partir. o luto ancorou em nós uma
força de viver e realizar que potencializa todo o amor que
nasce do espírito. Transcendemos as fronteiras do tempo e
agradecemos com o coração comovido o elo sagrado que nos
une.
a vela no caldeirão e a fumaça do tabaco fez voar os rezos
de paz e bem por todas as direções. Caminho com dúvidas que
borbulham e com certezas que se dissolvem. as águas que
lavaram todas as pedras de que somos feito trouxe também a
lembrança de quem jamais esqueceremos.
são perdas doídas onde a morte reafirma o compromisso
com a vida. E assim seguimos adiante transcendendo um

56
sentido limitante. naquele dia, onde a trilha ficou escura e a
dor gritou, eu pude capturar mais um punhado de amor.
Peneirei nas águas doces do rio uma pedra preciosa que
trouxe de volta a riqueza que precisava. lágrimas.

57
Razão

Estamos cheios de razão. É verdade. Todos nós temos


boas razões. razão o suficiente para acreditar nisso ou
naquilo. razão para nossas reinvindicações. razão para os
argumentos na corda bamba do certo e do errado. razão para
a defesa e as acusações. sim, todos nós temos razão. o fato é
que a senhora razão funciona muito bem neste pequeno e
limitado universo, restrito aos comandos da moral, da religião
e da cultura. no campo dos relacionamentos, a razão perde a
força.
Podemos observar algo muito maior acontecendo dentro
dos processos fenomenológicos humanos onde existe uma
outra ordem que atravessa a razão. nesta travessia, sem bons
nem maus, além do certo e do errado, existe algo de
profundamente espiritual. É a natureza da humanidade.

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“imagine que tudo faça sentido”, disse o professor. Por
algum instante pude tocar na essência do campo das relações.
E de lá veio o eco que reverbera até agora no aqui da alma:
onde a razão domina, não existe espaço para um
relacionamento.

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Giro

É num tempo sem tempo que navegamos pelas esferas


em espirais do espírito. Tempo de menina que corre e brinca,
onde o corpo é o único guia. Curiosa e sapeca, ela atravessa o
desafio da vida com alegria. Tempo de mulher madura. a
razão e o intelecto transferem à jovem moça astúcia.
dominando o indomável, nas ilusões que somente a mente
pode criar, a mulher madura cria um quantidade de
experiências significativas que dão identidade ao ato de
existir. ate que chega ela. Tempo de mulher mais velha.
aquela desbravadora de mundos. Entre o visível e o invisível,
a mulher percorre sua história e resignifica seus mitos.
visionária de imagens arquetípicas e receptiva ao mundo
espiritual, ela é senhora de si mesmo. Finaliza acusações.
acaba o medo. É nesse exato tempo que a mulher faz um giro
completo na espiral sagrada e cria condições de ser menina

60
novamente. Ela está pronta para a escuta sensível do corpo.
Madura, sábia e jovem, ela integra todos os aspectos de sua
psique e retorna a um lugar autêntico onde o abismo e
confiança caminham em sintonia. na dança cíclica do ventre
que reconhece a magia, ela capturou profunda intimidade
consigo. Está pronta para cavalgar pelas esferas do espírito.

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Milagre

quem abandona o jogo das acusações está disposto a


viver uma nova realidade. quando o castigo e a vingança
absolvem-se da alma, todos nós nos reconhecemos como
traidores e traídos. um profundo processo de reconciliação
consigo e com todo o sistema de relações se estabelece,
potencializando um campo de atividade novo e ao mesmo
tempo totalmente familiar.
não mais compactuados com culpas e tradições, a
doença se despede do corpo e sentimos paz. É assim que
alcançamos um milagre totalmente humano e transformamos
o ato de existir em sentido para viver. quando as acusações
abrem o entendimento além da moral, encontramos um lugar
de alívio. aqui todos pertencemos.
se nos negamos a esse entendimento, podemos sentir o

62
efeito disso em nós: injustiça, desigualdade, dor. Como
sociedade já colhemos a dureza da pobreza dessas relações.
um novo tempo para uma nova humanidade começa
com a finalização do jogo de acusações entre nós. Estamos
dispostos a absolver todos os que condenamos?

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Antes

antes que a vida passe, antes que a noite termine, antes


que eu me deite, antes que o sol nasça e eu diga bom dia. antes
que por mais uma lua eu me esqueça da terra que nutre, do
vento que acalenta, da água da fonte e do fogo que queima.
antes, bem antes. antes que eu perca o sono tentando
lembrar os meus sonhos, antes que a vida dê gargalhadas da
ignorância. antes. bem antes. ou agora ou num instante.
antes que a morte venha se despir ou nasça uma nova
semente, ou antes de parir mais um sorriso contente.
antes. bem antes. ou depois, e de agora por diante: que
a consciência me beije. Me tome a boca. Faça amor comigo.
Enlace meus sentidos. Cante e fale no pé do meu ouvido. só
eu e ela.
antes de perder o folêgo que une a vida e o morrer,
simplesmente saber quem sou e ser.

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Leveza

Em noite de lua minguar, depois de deixar folhas de


alecrim no caldeirão que repousa com seis rosas brancas, uma
viagem ao mundo dos sonhos, cruzou em disparada o campo
que divide as fronteiras do real e do imaginário: eu estava na
presença de uma velha feiticeira. sentadas na rede de um
quintal cheio de ervas perfumadas, a sábia mulher
compartilhou comigo algumas orientações. não é segredo,
porém, aqui não ouso revelar. Mas no momento exato em que
ela faz sua fala final, um pássaro, um pássaro muito grande dá
um mergulho no lago ao lado onde a rede nos embalava.
vimos o pássaro emergir de seu poderoso mergulho soltando
um belíssimo som e deixando três penas nas cores de suas
asas: rosa, preto e branco. Com gratidão, recolho as finas e
longas penas, que deviam medir por volta de três metros. a
feiticeira, com eufórica alegria, faz o desenho do

65
encantamento com a voz e o pronuncia: leva o mal. Traz o
bem. nutre o coração da mulher que asas tem.
Por muitas vezes ela repete o encanto e me circula com
ramos de guiné e arruda. Foi assim, em noite de lua minguar,
que acordei com uma sensação indescritível de leveza. a
leveza típica de quem agora aprendeu a voar.

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Moiras

Por mais uma vez cantar em roda. Pilar ervas cheirosas.


Mulheres bordadas de histórias. no círculo sagrado onde o
feminino se reúne mais uma vez para elaborar o universo das
emoções e compreender sua existencia no mundo, cá estou
eu novamente conduzindo essas mulheres na travessia do
encontro.
atenta, escuto as vozes que expressam a verdade íntima
do espírito. a voz de uma é a voz de todas. Cada fala, um
ponto. de ponto a ponto, uma trama. assim, costuramos
juntas um tecido invisível, feito de palavras e intenções, e
conferimos esta poderosa costura aos cuidados das Moiras,
sábias senhoras tecelãs do destino. de saia, gaia veste o tecido
de nossa consciência.
as Moiras passaram ali, justo naquela hora, para nos

67
lembrar que por todo o tempo costuramos a bainha de nossas
intenções na saia encantada de gaia. Elas nos pedem que
criemos maior sintonia com o tecido de nossos padrões
psicológicos e afrouxemos as amarras da resistência.
desfazendo o nó apertado e dando um laço no que ampara e
acalenta, seguimos o ato libertador de revolucionar nossa
senda.
de todos os cantos que uniram nossas vozes no embalo
criativo da música que se formou, de todas as ervas cheirosas
que pilamos juntas e aguçaram o sentido da beleza de nossos
ciclos, foram as Moiras, que com a magia de sua costura,
trançaram em nós o bordado do amor.

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Baile

Passeando pelos campos da infância encontrei a bruxa,


a fada e a feiticeira. Colocamos a mesa e preparamos juntas
no caldeirão um chá de folhas de cidreira, erva-doce e
manjericão.
sentadas em roda a desfrutar de um diálogo
profundamente enriquecedor para minha menina sempre tão
curiosa e travessa, foi a bruxa, essa mulher ancestralmente
velha, que entoou sua fala de poder. Pronunciou um
encantamento cuja frase não ouso repetir aqui. É segredo.
Mas a fada, toda serelepe, pegou o encanto e fez dele uma
espiral. rodopiou com sua varinha nove vezes em volta do
círculo espiralando as palavras da bruxa transformada em
música. o encanto que virou canto, agora tocou nossos
corações. Eram vozes de mulheres cantando no pulsar da cura.

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Essa é a cena que traz ao centro da nossa roda a feiticeira.
Mulher tão bela, médica antiga, curandeira das feridas da
alma. Ela pega minha menina pelas mãos e juntas dançamos
no ritmo do amadurecer.
num baile de saias onde a cintura circula a esfera da
Terra inteira, a menina, pulsando em ritmo novo, acordou do
sono profundo e se fez um tanto mais mulher. satisfeitas, a
bruxa, a fada e a feiticeira encontram lugar na alma da menina
e acabou-se o esquecimento. Empoderada de si mesmo, pela
estrada afora, ela não teme mais a floresta.

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Medicina

Cada um carrega dentro de si uma medicina. um


remédio de poder. Trabalhamos por toda a vida para
transformar a dose certa deste remédio em potência que nos
cure. se abandonamos o remédio ou caminhamos sem a
consciência dele, podemos extrair doses homeopáticas de
veneno. soltamos o veneno quando nos sentimos atacados,
agredidos ou com medo.
Portanto a elaboração de sua medicina, essa poção sagrada
que cada um traz com o entendimento da sua individualidade
e sua relação com o mundo, esse remédio de poder que está em
alquimia dentro de nós, ele solta cheiros, odores ocultos da
alma. borbulha, caminha do sólido ao líquido para o gasoso. as
emoções são os nossos perfumes em notas altas, cítricas ou
florais. E cada perfume, cada emoção fala de nossa medicina.

71
do veneno ao remédio, do amargo para o doce, do sutil
ao espesso, a elaboração de nossa medicina é um caminho de
volta para a essência. sem bula, nosso destino mais auspicioso
é curar o ego da sombra de si mesmo.

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Eclipse

o eclipse desenhou no céu um alinhamento na alma.


Chegou um tempo novo. Mas para que de fato surja o novo
preciso romper o ovo.
Encapsulada em mim mesmo, a tarefa de quebrar a casca
e dar-me nascimento é um tanto corajosa. Cresci o suficiente
para não mais suportar aquele limite restrito de território.
Posso sentir o desejo visceral arrebendando as paredes duras
que cercam esse limite. É assim que desconstruo meus muros
e tomo minha força como aliada.
Então, naturalmente, e com todas as dores previsíveis e
improváveis desse transito de momentos, rompo o hímen do
medo e desvirgino o imaculado. Espaços interiores de
tamanha potência nascem de mim querendo colo. acordam
com fome. querem viver.

73
Natureza

Posso sentir muito medo quando estou na natureza.


Posso me sentir ameaçado. Posso me sentir livre com os pés
pelados que caminham no mato. Posso ter cautela e respeitar
o limite.
o fato é que me sinto diferente quando estou na natureza
porque na natureza não existe julgamento. natureza não me
julga. natureza não me condena. natureza não me exclui. a
natureza é território fertil. Em silêncio, a natureza permite
que eu mostre quem sou.
não somente eu vejo a natureza. natureza não é um
objeto, ela é viva, enxerga, sente e me vê. E não resta dúvida
diante dela.

74
Recursos

sustentabilidade é o bom manejo dos recursos naturais.


da fauna e da flora de nossa natureza interior, nossa psique
reconhece seus recursos naturais quando conhece o que jorra
com facilidade em nós. aquilo que é farto. vasto. aquilo que
doamos ao mundo sem sacrifício é nosso verdadeiro ofício.
Fertilizando a terra sagrada no caminho do viver, cabe a nós
plantar, cabe a nós regar e cuidar.
não permita a extinção de seus recursos naturais. o bom
manejo exige prática. Exerça. Esse é o seu poder.
Em tempos de tantas crises de valores constato que a
grande tragédia humana se trata da extinção de seus recursos
naturais. Perdemos a sintonia com o princípio da fertilidade.
a Terra, nosso planeta, nossa casa, é um reflexo exato do que
estamos fazendo como humanidade. gerenciamos mal nossos

75
recursos. Esgotamos, poluimos, exterminamos. Precisamos
aprender com urgência a reciclar o lixo de nossa natureza, do
contrário, os traços psicopatas de nossa personalidade
humana vão assassinar a vida. Cada um de nós como semente
deste pedaço de chão chamado Terra tem missão junto com
ela. Fertilize. não corrompa sua natureza. atenção aos
cuidados de manejo. Construa a partir de seus recursos
naturais.

76
Vazio

Em nossa estrutura psicológica existe um círculo vazio.


Como um buraco negro que contém todo o desconhecido que
nos habita. Em volta do círculo vazio, uma trama firme nos
protege. são os vínculos e as relações.
quando algo se rompe nas relações, seja por expectativa,
frustração, separação ou dramas, uma fenda na trama se abre
e somos arremessados ao vazio. o contato com esse lugar
misterioso traz a angústia.
Conforme vamos experimentando o vazio que nos
pertence, aprendemos a caminhar por ele. o desconhecido
mistério que nos habita, aos poucos, e com cuidado, vai se
revelando. Criamos assim uma relação com o vazio.
o vazio não é mais limitado somente pela angústia. vazio
é lugar amplo. Encontramos o gozo. o silêncio. a calma. a

77
alma. as relações e os vínculos não precisam mais ocupar o
lugar de proteção. Porque já não sentimos mais medo.

78
Narciso

narciso está preso em seu reflexo. Ele não vê além dele


mesmo. não transcende à própria imagem e fica
contemplando sua face porque está aprisionado em si mesmo.
neste drama psicológico, não se trata apenas de vaidade
ou orgulho, porque nosso reflexo não é somente beleza. Mas
quando também não conseguimos ir além de nossa dor,
feridas e abandono. Ficamos também presos no trauma.
as experiências da infância caminham aqui, juntas de
narciso. seguimos contemplando a imagem de nós mesmos
no reflexo do grande espelho do mundo: os relacionamentos.
repetimos, repetimos, repetimos padrões de relações o
quanto for necessário, até que narciso decida morrer. livre
de narciso, a alma dança. Encontra seu movimento autêntico.
um portal nos arredores da psique espera para ser cruzado.

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lembra que o tempo não pertence a narciso. o tempo é de
nossa autoria. narciso espera ansioso por seu destino: a morte.
a morte psicológica necessária que nos dê vida.

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Agora

não está lá. nem antes, nem depois. Está aqui.


Exatamente agora. Toda tua história. neste espaço, neste
tempo. nas tuas mãos. nos teus passos, nas tuas palavras, no
que te move, no que te paralisa. nem passado, nem futuro.
Existir não é aqui, não foi e nem será.
Cada gota de segundo contém tudo que somos. uma gota
de água contém bilhões de anos. isso é tremendamente
assustador e maravilhoso. que magia é essa que existe e
estamos cegos? a grande hora. aqui e agora.

81
Lugares

não damos conta de ocupar todos os lugares. Então,


escolhemos alguns lugares que nos caibam. que não sejam
nem justos, nem largos demais. solto. leve. Elegante.
acinturado. Cós baixo. os lugares que são nossos porque cabe
tudo o que somos.
Cada lugar que decido tomar para mim no palco da vida,
me revela. diz quem sou, quais são os pactos que assino, com
o que compactuo, as forças de ordem que me guiam.
olho e sinto o meu lugar. nele deve caber tudo aquilo que sou.
se não cair elegante, se por algum motivo estiver justo demais, devo
repensar meu lugar. Caso exista conforto, e muito mais do que isso,
devo me sentir profundamente bela, aí sim, posso dizer que estou
bem ancorada no lugar fértil que decido viver.

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Espírito

Entre idas e vindas, retornos e progressos, recessos e


avanços, o espírito vai ganhando força e conquistando seu
território.
Pertence ao espírito a natureza da liberdade. Persona,
máscaras, tronos e reinos do ego são devastados na presença
dele. o espírito fica oculto quando nos tornamos reféns das
máscaras sociais, das prisões emocionais da família, dos jogos
de poder nas relações. dominação, fúria e amor são temas do
espírito. o sagrado e selvagem mundo da qual emergimos nos
convoca.
Pede passagem a nobreza do espírito. Pede passagem a
revolução do espírito. Pede passagem a confiança no espírito.

83
Sonhos

Toda noite, enquanto dormimos, reconhecemos um


território perdido. retornarmos a um poderoso lugar
chamado self onde o Eu é revelado. são os sonhos que
transferem as imagens do inconsciente para a consciência.
Como caçadores de um tesouro escondido, sonho a
sonho vamos cavando mais fundo a terra do universo que nos
habita e desbravando o território de quem somos.
Cada sonho da noite é um capítulo que continua na noite
seguinte. não se encerra, nem mesmo quando acordamos. Em
especial, os sonhos sonhados mais próximos do começo da
manhã tem um signicado mítico de profunda valia. É como
achar uma pedra preciosa na natureza. nas escavações do
reino de que somos, entre dragões, águias e montanhas, rios
e mares sem fim de que somos feito, cada sonho é um bálsamo

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de cura, uma mensagem vinda do profundo mundo ao qual
pertencemos.

85
Dogma

quem muito julga, muito será julgado. a fogueira da


inquisição está aí, viva, bem dentro de nós. Moldados numa
cultura cristã de culpa e pecado, o dedo da inquisição não se
cansa de acusar e banir : olhar o outro e puni-lo, olhar para si
e buscar o erro.
Então exerço um fabuloso poder sobre mim mesmo:
cuido para não acusar. abandono as condenações, expulso
todas as pessoas de dentro mim, livro-me de todas elas e fico
somente comigo.
na festa da alma que está livre dos dogmas da religião,
pecado e culpa perdem o sentido e se desfaz o nó do deus
castrador. a fogueira do respeito se acende e sou capaz de
participar do espetáculo da vida criando um tecido de tramas
firmes que sustente o amor.

86
um respiro doce e profundo vem ao meu encontro neste
momento. É o meu caminho, a minha estrada. Eu com meu
ritmo. a vida assim me dará de troco mais generosidade e
abertura. liberto todos e encontro a mim.

87
Salto

a Consciência estava toda animada, dando pulinhos de


alegria. Caminhava e corria, subia morros, toda eufórica e
serelepe. Feito criança contente descobrindo territorios e
explorando espaços, quando chegou na presença de um
imenso buraco. uma placa avisava: “aqui mora Essência”.
Pausa, temor e cautela. olhar o desconhecido foi um
espanto para ela. Continuar nos campos seguros de seu
mundo já não lhe parecia mais tão confortavel.
depois de muitas reflexões, reavaliações, choros,
angústias e sussurros, a Consciência decidiu saltar. o salto da
Consciência foi um vôo, e ela nem mesmo imaginava que sabia
voar. E ela nem mesmo imaginava que sabia voar. Tinha asas,
mas não as via. Para sua surpresa ela investigou cada pedaço
do imenso buraco e viu que se tratava de um poderoso lugar.

88
um lugar fértil, onde cada imagem, cada palavra, cada gesto,
ação ou intenção nascia daquilo que ela criava. não era um
lugar pronto como os outros lugares que ela havia visitado.
Era um lugar para ser construido, parido a partir dela mesma.
Consciência encontrou Essência. E juntas inventaram
mundos. Edificaram soluções. Castelos inesperados,
fantásticas formas de olhar. amar. Compartilhar. Casadas,
foram felizes.

89
Limbo

Enquanto não assumimos nossa própria história, ficamos


na sombra do outro. À margem de nós mesmos, permanecemos
dentro de padrões familiares, encapsulados numa esfera que
limita o convívio íntimo com o self. uma região emocional
chamada limbo, onde não estamos nem aqui e nem lá. nem
vivos, nem mortos. a missão da vida parece estar distante da
alma.
retomar o sentido, a direção e dar signicado à experiência
de viver. Coragem para se fazer boas perguntas e plantar os
pés no território da consciência. adeus ao limbo. aqui e agora
chamando. É tempo de me reinventar.

90
Pajé

É sempre bom lembrar da medicina dos antigos. Pajés


esquecidos no tempo que, hora ou outra, batem na porta do
coração e cantam a lembrança. Entoam a voz da sabedoria,
pegam-nos pela mão e nos conduzem para a floresta do
mundo de dentro. Pajés vivos na memória ancestral de todos
nós.
novamente ouço o ensinamento:
“Perceba como está seu coração. Pesado ou leve?
Claro ou escuro? Agitado ou calmo? Magoado ou livre?
Aberto ou fechado? Por todas as nossas relações, que assim
se faça um novo tempo. E nunca, jamais, em tempo algum,
se esqueça de ouvir o pulsar de seu coração e cantar sua
própria música.”.
assim disse o pajé.

91
Foco

o foco da minha atenção. observo. Percebo o foco. dou


zoom e vejo mais de perto. defino a imagem. a cena. Passado
ou futuro? aqui ou lá? onde? que pedaço da minha alma fala
comigo tendo em vista esse foco?
autorizo-me a enxergar meu foco além das barreiras de
um sistema de crenças e valores que empobrecem o espírito.
o foco da minha atenção ganha novos horizontes a partir dos
limites restritos que reconheço que tenho. não posso mais
negar as incompetências que sei que carrego comigo.
dou zoom no foco daquilo que mais me angustia. É desse
lugar que ganho prosperidade mental e abundância criativa.

92
Clã

quando olho uma pessoa, não vejo somente uma pessoa.


Posso ver também o pai e a mãe. as avós. bisavôs. Tataravós.
os filhos e os netos.
Teu sorriso não é apenas teu. Teu sorriso vem sendo
moldado por todos os integrantes do teu clã. Cada linha do
teu rosto conta a história não somente tua, mas de toda tua
linhagem. o brilho dos teus olhos, tua forma de andar,
emoções e desejos. o peso e a leveza de ser quem você é está
sendo compartilhado por toda tua ancestralidade e gerações
futuras.
É assustador pensar que não somos apenas nossos?
seria assustador pensar em uma folha centrada apenas
em si. quando olho uma folha posso ver a árvore inteira. Para
os olhos treinados, uma folha é o suficiente para saber como

93
vão as raízes. assim como a folha pertence à árvore, nós
pertencemos a nossa família de origem. não me assusto com
tamanha verdade. Tomo a força dela. desbravo o mistério das
gerações e sei, a ancestralidade está em mim.
inspiro amor para todas as gerações. Compartilho a dor
de todas as gerações. Transfiro amor para todas as gerações.
nosso destino está sendo compartilhado através das gerações.

94
Pegada

Com o que estou engajada e quais são os compromissos


que assumo aqui na Terra? o que me centra, onde me conecto,
onde distribuo minha energia? de que forma crio o ato de
existir? quais são as cenas do meu drama e as paisagens
internas que cultivo? das raízes e das asas de quem sou, como
escolho me mover no mundo? qual a pegada que resta do meu
passo?
olho a pegada, verdadeiramente olho. olho em sintonia
não apenas com o Eu. olho em sintonia também com o nós.
refino o olhar na direção de quem habita uma casa comum.
nós e a natureza, o eu e o outro. separações patológicas.
sintoma de um corpo emocional doente que já criamos.
Estamos agora, todos nós, como células de um mesmo corpo que
somos, em tratamento. Cada célula sanada traz a ajuda sublime.

95
Tribos antigas, esquecidas por nós na oca da aldeia nos
contam: somos música. Cada um tem missão de afinar seu
instrumento. Cada um de nós desenvolve um ritmo, e a
precisão do ritmo constroi a música que sou. Para ser música,
primeiro ritmo. Para ser humano, primeiro amor.
qual a pegada que resta do meu passo?
Como afinar o instrumento que sou e construir uma
bonita música que ajude a afinar a Terra?
um mar de possibilidades.

96
Drama

as situações que se repetem do decorrer do percurso da


minha vida são um convite para checar como está minha
maturidade. onde já cresci e onde ainda preciso crescer. a
cena do drama que mais uma vez insiste em vir me visitar.
Como suportar o drama de viver?
Experimento meus dramas em espirais e sei que cada
volta na espiral vou escalando em oitavas superiores. a cada
cena vivida do drama tenho condições de pensar, sentir e
responder de outra forma porque já não sou mais a mesma.
Cresci. amadureci. a guerra já não é mais necessária porque
a paz diante do drama tomou o seu lugar. ou não. quem sabe?
a paz está numa curva, bem perto da próxima rua.
Conheço o endereço e fui lá buscá-la. a paz estava sem roupa,
despida da moral, insuportável para minhas crenças e valores.

97
Ela sorriu e me disse para retornar num outro momento.
aceito. só me resta sair só comigo. Mais uma vez vou repetir
o drama e, talvez, em outro momento, minha condição
permita caminhar ao lado da paz.

98
Magia

Magia é o poder de se comunicar com os quatro elementos.


Converso com o ar: como estou respirando? Converso
com a água: como estou me sentindo? Converso com o fogo:
como está meu entusiasmo? Converso com a terra: como está
meu corpo e minhas ações no mundo?
Cultivo esses diálogos e olho a natureza como uma
extensão de mim mesma. É assim que me torno um mago e
crio um laço consistente com a natureza mágica que pertenço.

99
Amor

na realidade, não nos conhecemos. não sabemos quem


somos. Estamos desenvolvendo maior vínculo e intimidade
conosco a cada dia. não estamos prontos. Estamos nos
construindo. o que se manifesta no mundo físico é a expressão
de um mundo oculto que caminha em segredo comigo.
Coragem para ver, sabedoria para ouvir e competência para
transformar.
será que somos o ato de amar? Porque é natural que o
amor aconteça. É da natureza do amor dominar. quem não
resiste a companhia do amor simplesmente ama porque é
bom amar. sabemos amar? Posso me conhecer e saber um
pouco mais de quem sou nesse exercício visceral de dar e
tomar o amor.
o amor é mesquinho quando não queremos dar porque

100
acreditamos que o outro é quem deve fazê-lo. “você me deve,
eu mereço” é a mesnsagem oculta. assinamos secretamamente
com o outro uma dívida e interrompemos o fluxo do amor.
Cortamos um elo sagrado e criamos distâncias que separam.
Em dívida, seguimos na jornada da vida achando que algo nos
falta.
sim, de fato, algo nos falta. nos falta dar todo amor que
nos cabe. É assim que um amor generoso nasce no peito.
grandioso. dando o melhor de nós para si e para o outro.
o amor é misterioso. vou respeitar o mistério do amor e
tentar não desvendá-lo. não vou invadi-lo com minhas
milhões de perguntas. Porque somos todos infinitos, e é no
infinito onde mora toda a vida. vou saciar minha sede de amar
vivendo meus relacionamentos e dar todo o infinito que posso
de mim.

101
Brincar

somos adultos, mas não desistimos de brincar.


brincamos de casinha cuidando do nosso lar. brincamos de
boneca ninando nossos filhos. brincamos de carrinho
dirigindo na cidade. brincamos de índio nos relacionando com
a natureza. brincamos de voar tocando um instrumento e
dançando. brincamos de polícia elaborando julgamentos.
brincamos de inventores construindo nosso tempo.
Continuamos brincando para elaborar nosso mundo de
dentro. que a brincadeira madura conserve a alegria e o
entusiasmo de uma criança. vou brincar.

102
Não

dizer não, mostra o meu limite. quando digo não,


reconheço até onde tenho condições de ir. Posso estar em paz
com o meu limite. Tranquilamente digo não, gerando pouco
ou nenhum conflito. Posso estar em guerra com o meu limite.
agressivamente digo não, tensionando o conflito. são
espelhos de mim que criam diálogos comigo.
Escuto a voz dizer não e a reconheço como sendo minha?
ou será minha mãe que grita? ou ainda alguma voz
desconhecida que me habita? sim, sou infinita. quanto maior
a liberdade de me reconhecer como infinita, mais tenho
condições para amar e construir um não decente. a altura do
meu amar que transcenda um desvio carente. É assim que
escapo das grades do abandono e digo não de forma coerente.
Preciso aprender a ser quem sou. ir além dos limitantes

103
“nãos” que me prendem. vou buscar a voz do pai e da mãe
que dizem não por mim e soltar a corrente. uma grande
travessia. alforria.

104
Birra

Constantes emoções perturbadoras, pensamentos


repetitivos e crenças limitantes são como uma criança
fazendo birra na mente. Em verdade estão pedindo atenção,
colo e cuidado. não vou me identificar com esta birra infantil,
mas tambem não vou ignorá-la. Ela quer ser vista, quer ser
notada, porque quer crescer. uma atitude adulta e madura me
diz que com total aceitação eu observo o que quer crescer
dentro de mim. observo o que quer minha atenção, meu colo
e meu cuidado e quais são as birras que insistem em gritar
comigo.
vou pegar minha criança birrenta pela mão e ensiná-la
sobre temas importantes. não vou dar aula, sem caderno, nem
apostila, nada de reprimi-la ou castrá-la. vai ser no quintal de
casa e vou bagunçar junto a ela. ouvir seu choro e sua birra.
Porque é ela quem vai me educar.

105
Reverência

bruxas praticam reverência aos ancestrais. sabem


interagir com o campo dos relacionamentos honrando os que
aqui já estiveram. Curvam-se diante dos mistérios. submetem-
se às leis ocultas e seguem a ordem invisível do fluxo do
amor. bruxas estão em sintonia com sua linhagem de
pertencimento fundamentada nos elementos.
na linhagem da Terra, os ancestrais dos ossos são aqueles
que habitavam a terra que hoje habitamos. reverenciá-los
confere proteção à casa, à cidade e ao espaço que desfrutamos.
na linhagem da Água, os ancestrais de sangue são os
antepassados familiares. Pai, mãe, avós e a longa linha que
precede quem somos. reverenciá-los traz a cura das feridas de
infância, desbloqueia padrões sistêmicos e estabelece vínculo
de segurança com o mundo.

106
na linhagem do Fogo, os ancestrais das escolhas são
aqueles que cuidaram de nós quando nossos pais não puderam
estar presentes. amigos, professores, tios e vizinhos que nos
ensinaram modelos e nos transferiram amor. reverenciá-los
amplia nosso círculo de relações, dando lugar ao cuidado
generoso entre o eu e o outro.
na linhagem do ar, os ancestrais da voz são aqueles
cujas histórias inspiram de bravura nossas vidas. orientam
com seus exemplos nossos passos. sua voz ecoa em nós e
reverenciá-los é um grito que convoca criatividade e ousadia.
na linhagem do Espírito, os ancestrais da magia. anjos,
guardiões e guias. aqueles que deram início a qualquer
tradição filosófica que apreciamos ou seguimos. uma
reverência a eles mostra intenção de fortalecimento espiritual
e proteção psíquica.
atravesso pontes e cruzo mundos quando minha bruxa
me toma pela mão. lá é onde, aqui é ontem, será agora. Foi é
tempo que não existe.
a bruxa sabe. E honra.

107
Folhas

outono se achega no peito fresquinho. o vento macio


encontra terra que bebeu água. são folhas de pitanga, amora,
laranja e limão que busquei no quintal para macerar no pilão
da alma. Mirra, espada de são jorge, folhas que tem nome, que
são mato e fazem floresta na natureza do amor.
o banho de ervas está quase pronto e vai regar o jardim
do coração. não peço muito, mas agradeço bastante. Canto a
reza que honra essa velha Preta, aquela que se curva na saia
encantada de gaia e protege o terreiro do planeta. Tempo de
acolher nos ombros o xale do outono e lembrar que o banho
morno com cheiro de ervas é memória viva de um tempo em
que os ciclos da Terra não se perdiam de nós.

108
Controle

onde mora a direção que sustenta o sentido de quem


somos? das sete direções sagradas que orientam o grande
comandante chamado alma, são nossas histórias, rotas e
trajetórias que definem o campo do desconhecido que
queremos cruzar. até um limite, somos capazes de definir
nosso território. orientamos a existência dando um
significado que suporte a dimensão de quem se é. depois, não
orientamos mais. Porque somos orientados. não conduzimos
mais. Porque somos conduzidos.
É como caminhar por terra firme e encontrar um
poderoso rio: se estamos dispostos vamos nos atirar a um
fluxo muito maior da qual não temos controle. uma travessia
necessária para quem quer ser tomado pelo ato de viver. ou,
a margem de quem somos, seguimos desconfiados, sob o

109
efeito de hipóteses e especulações do que existe do lado de lá.
ser orientado pela alma exige infinito. vastidão. Estou
disposta a sustentar meu olhar nesta direção?

110
Heróis

imersos no triângulo do drama, agressores, vítimas e


heróis desfrutam de seus papéis sociais e familiares. ao
elaborar uma persona que dê conta de existir e viver,
seguimos deixando pegadas na casa-mãe que habitamos.
a ferida humana, mais exposta do que nunca. nada
subjetiva e totalmente materializada. seu nome é gaia, um
lugar devastado pela ferida emocional da humanidade.
vou cometer o mais lindo ato e abandonar toda a
vitimização que me consome. vou me responsabilizar por
minhas escolhas e decidir cada passo como sendo um
posicionamento político e espiritual, dando um significado real
em nome de uma nação humana consciente. uma vida valente.
será que estamos maduros o suficiente? será que vamos
dar conta de superar tantos traumas e bloqueios e manifestar
nossa cura?

111
se já estamos imersos no triângulo do drama, que
sejamos heróis, porque de agressores e vítimas o mundo já
está cheio.

112
Tempo

gosto quando o tempo descansa no meu colo e junto


sorrio no embalo da rede. quando o tempo se torna meu filho
e tenho a estranha certeza de poder cuidá-lo.
gosto do abraço apertado do tempo, aquele abraço de pai
que confia ao mundo os passos de quem educou.
gosto também quando o tempo se perde na esquina,
numa xícara de café, na padaria, onde as confusões do dia-a-
dia são bebidas e degustadas. E depois, o tempo me acha
andando na rua, me puxa pela orelha e pede que me esconda
da chuva.
um tempo que também sabe ser mãe.
E quando o tempo te sufoca e pede por mais espaço...
quando o tempo parece ser justo demais e não se

113
completa a escuta da alma... um tempo perdido.
aprendi que o tempo é rei. E dele sou a rainha.
Juntos governamos um pequeno povoado que leva o meu
nome.
Tudo o que cabe no tempo de ser quem sou é uma
escolha minha. o tempo é de nossa autoria.
E no tempo residem todas as soluções.
vou pedir ao tempo que encontre meu destino.
vou deitar na rede e escutar o que o tempo trouxe desta
vez para conversar comigo. um tempo companheiro e amigo,
que fala manso e suave.

114
Rezo

as sete direções da Paz é um rezo xamânico, um convite


ao encontro com o todo de que somos feito.
Para cima, estou em paz com meus antepassados e com
as forças do espírito. Protetores e guias. o mundo invisível
caminha junto comigo e não há espaço para negar o grande
mistério que percorre as trilhas que seguimos.
Para baixo, estou em paz com a terra onde piso. Cuido
do lugar onde habito. reconheço rios e mares, plantas e
bichos com irmandade. Protejo e reverencio toda a vida em
sua diversidade.
Para frente, estou em paz com o que vejo. o passado de
minha história e todas as minhas memórias são experiências
fundamentais que potencializaram o que sou hoje. reconheço
o significado de minha condição humana e aceito transformar,
no aqui e agora, minha trajetória.

115
Para trás, a paz com o que ainda não enxergamos. o
futuro tempo por vir.
Medos e angústias encontram lugar sereno na confiança
do existir. refletir e agir por aqueles que aqui ainda não
estiveram. adiante de nossos netos. Transferir o legado e
compartilhar o mesmo chão chamado gaia.
Para os lados, a paz nas relações reflete o espelho de
nossas sombras. Para a esquerda, a paz com os familiares. Para
a direita, a paz com amigos e vizinhos. Estabelecer conexão
uns com os outros, elaborar soluções de amor e celebrar a
sintonia que nos une.
Para dentro, a paz com nossa natureza interior. o campo
alquímico das emoções, a floresta do mundo de dentro.
reconhecer em cada canto sagrado da alma, silêncio, grito e
eco. a voz que cala e fala. Escuta e conversa num diálogo único
que somente o encontro com nós mesmos tem ouvidos para
capturar tamanha frequência.
Como humanidade, desejo que sejamos capazes.
a paz nas sete direções é meta. a seta.

116
Asas

Entre idas e vindas, desvios e retornos, o faro selvagem


da natureza arquetípica da mulher sempre vai levá-la ao
ponto da retomada de suas asas. não há como escapar desta
senda feminina. demore o tempo que for, nos enlaces e
desenlaces naturais do percurso da vida, seguimos
sintonizadas com este faro à procura de nossas asas.
aguçá-lo é uma escolha. um faro embotado provoca
dores e mutilações na alma da mulher. aguçar o faro selvagem
exige de mim doses homeopáticas de renúncias combinadas
com doses cavalares de presença e intenção. Colheradas de
amor próprio, pitadas de doçura e bravura, ervas que
temperem o gosto e tragam de volta o gozo natural de ser
quem sou.
nossas asas nos esperam enquanto nos preparamos.
Tomá-las é uma honra. domá-las é uma arte.

117
Perséfone

É dela os territórios do mundo avernal. Perséfone é


raptada pelo inconsciente, capturada por forças arquetípicas
que vão muito além de seu entendimento. Padrões, crenças
famliares, segredos ocultos. da mulher mal compreendida
pelo tumulto de suas emoções, até a mulher que não consegue
desfazer a vitimização, é Perséfone quem persegue a psique
da mulher. sua senda não estará encerrada até que a mulher
reconheça a necessidade de completar sua descida até o
submundo. Com Perséfone nasce a força dos místicos, a
profunda conexão com o inconsciente ancestral de sua família
de origem e o desejo visceral de finalizar antigas maldições.
Ela, eternamente jovem, deve criar condições para transpor
toda a fragilidade de seu ego e amadurecer seu vínculo com
os campos intuitivos da psique. Perséfone mora no coração
selvagem de todas nós.

118
Escuto o chamado de Perséfone toda vez que sou raptada
por forças maiores que vão muito além de meu entendimento.
Convoco sua força e peço permissão para entrar em
corredores escuros onde moram os fantasmas perdidos da
inconsciência. É ali que as soluções esquecidas encontram o
caminho de volta até mim mesma. retorno do nosso encontro,
que pode levar dias ou horas, com a incrível certeza de que
sou capaz de reunir todos os pedaços que estão fragmentados
em mim.
não resisto mais ao nosso encontro. Já não sinto medo
de me confrontar com sua face tão negada. sou eu quem bate
na sua porta e ela nem precisa mais ter o trabalho de vir me
buscar. Poupo-lhe a viagem, porque assumi a travessia.

119
Elementos

Mulheres do fogo, do entusiasmo, da paixão, da bravura.


Mulheres da água, molhadas e macias. Úmidas de emoção.
Mulheres do ar, frescas ideias, pensamentos e palavras.
Mulheres da terra, de fibra e sementes. de plantar e colher,
germinar e brotar, florescer.
quando a mulher caminha com a Terra, ela é firme e
segura. quando a mulher caminha com a Água, ela é solta e
fluida. quando a mulher caminha com o Fogo, ela é brilhante
e espontânea. quando a mulher caminha com o ar, ela é
criativa e inovadora. Mulheres que caminham com os
elementos não estão divididas. são inteiras. Porque a
lembrança do aspecto selvagem não as abandonou.

120
Ciclos

o corpo da mulher vive as quatro estações do ano em


vinte e oito dias.
nossos óvulos vão amadurecendo e nos tornamos
primavera. Florescemos com a alegria e o entusiasmo do
arquétipo da donzela. Estamos prontas para expressar ao
mundo o poder de nosso potencial criativo.
na ovulação somos o verão. o calor da fertilidade nos
guia para o arquétipo da mãe onde nossa energia acolhedora
e receptiva se faz presente.
antes de menstruar somos outono. a despedida dos
óvulos que não foram fecundados, assim como as folhas
caindo da árvore, se inicia. a descida sagrada ao mundo
oculto, onde o arquétipo da feiticeira nos toma pela mão.

121
na menstruação somos o inverno. o arquétipo da bruxa
vem nos abraçar com recolhimento e reflexões. aqui
morremos junto com nossos óvulos e sangramos em
sabedoria.
E novamente visitamos a primavera e florescemos.
somos verão e irradiamos. no outono soltamos e voltamos ao
inverno com a chegada de nosso sangue. um ciclo belíssimo
de morte vida e renascimento nos embala junto com o
desenho da lua que segue no céu.
gaia, nossa comandante chamada Mãe Terra, leva
trezentos e sessenta e cinco dias para concluir o mesmo ciclo.
a conclusão de que somos um corpo acelerado de gaia é no
mínimo um instigante mistério, ou uma descoberta
avassalodora, de que caminhamos juntas com os ciclos da
Terra. não estamos separadas dela. regeneramos e
transmutamos na senda do feminino que reconhece em si o
corpo da natureza.

122
Rito

o nascimento da vida é um rito de passagem que


pertence à mulher. Tão próxima da vida e da morte, a
natureza selvagem do feminino sabe que ser mulher é ser
aquela que dá passagem à vida de um mundo para outro.
dos nove meses no ventre ao colo da mãe, da gestação
de uma ideia para a criação do novo. das prisões, calabouços
e labirintos emocionais para a liberdade.
a travessia neste rito é vivida por nós sempre que a alma
pede para passar de um lugar para outro. Estamos grávidas
todos os dias e podemos dar à luz sempre que possível.
Então vamos criar condições para que este parto diário
seja humanizado. sem agressões ou violações aos princípios
básicos da natureza feminina. a mulher selvagem confia no
seu corpo. Confia na necessidade de seus uivos, e dá passagem

123
sempre que a intuição pede. Ela segue seu faro e ouve o
silêncio. Canta sua música e dança no seu ritmo.
o sagrado mistério da fêmea se trata em aprender a lidar
com esta poderosa energia: dar passagem aos processos
criativos e emocionais que nos habitam.
a estagnação nos diz que interrompemos o fluxo e
fechamos a passagem para algo fundamental em nosso
psiquismo. abortos e mutilações do feminino acontecem
nesta fase onde o medo e a culpa capturam o campo selvagem
da mulher.
o que te pede passagem? Entre uma contração e outra
vamos aprendendo a afrouxar as resistências. o trabalho aqui
é parir a si mesma.

124
Inquisidora

a inquisidora existe dentro de nós. uma parte da nossa


persona que critica, acusa, pune a si mesma e ao outro. Esta
porção de mulher ferida forjada nos conceitos de culpa e
pecado que manipula instrumentos de tortura mental para
ter sob seu domínio a alma selvagem da mulher.
Muitas vezes, nos apresentamos ao mundo com um
discurso de liberdade e igualdade e quando menos esperamos,
eis que surge no fundo de nós uma voz cortante que não nos
permite agir conforme nosso discurso livre. somos podadas
por nossos padrões castradores. Fomos pega pela inquisidora.
Ela nos acorrenta em nome de deus, em nome da família, da
moral e dos bons costumes.
Este é um tema mítico feminino, um drama psicológico
onde a inquisidora persegue a bruxa que existe em nós. Falo

125
da bruxa como uma parte sadia da persona. aquela parte que
com frequência tem uma boa orientação para dar. a sábia
mulher que nos ajuda a escapar para a floresta, a nossa guia
interior que está em paz com a solidão e o silêncio. sabe ouvir
e decodificar as mensagens ocultas da alma. Pronuncia
encantamentos.
o desejo da inquisidora é queimar a bruxa. aniquilar o
selvagem que habita a alma da mulher. a inquisidora quer o
poder e o domínio desta alma selvagem para conter a mulher
no cativeiro das convenções.
um rito de passagem aguarda a mulher que decide
romper com os emaranhados da inquisidora e abraçar com
sinceridade sua bruxa. uma jornada xamânica de morte e
renascimento. um ato numinoso, uma travessia necessária.
quem ainda não fez, vai sentir com vigor e paixão a
necessidade deste rito.
um capítulo da nossa história, que teremos a honra de
contar para nossos netos e filhos, um legado que deixamos
para todas as mulheres do nosso clã. o plano aqui é capturar
a inquisidora das mordaças que ferem a linhagem do
feminino. É uma missão ousada, admito. Porém, esta é uma
causa nobre para as bravas mulheres que ousam correr pela
floresta do mundo de dentro. Em liberdade. Em harmonia. não
apenas por si. Mas por todas.

126
Bruxa

a bruxa adormecida está no ponto do despertar.


revirando-se no berço da floresta, agitando suas folhas
no caldeirão da sabedoria, dona da natureza selvagem e
sagrada que nos habita, o eco da bruxa no coração da mulher
escuta o grito para disparar mais uma cavalgada. um galope
forte e intenso da qual nenhuma de nós pode fugir.
do que não mais podemos fugir?
Essa é a pergunta que a bruxa nos convida a responder.
Com esse poder a ela concedido, o território da bruxa na
psique feminina nos fala do alcance de nossa liberdade. Caso a
mulher não escute sua voz será dela sua refém. não ousando
cruzar os limites do medo, prisioneira das fronteiras do ego, a
bruxa se torna a vilã guardiã das portas do cárcere. Mas é ela,
justo ela, que tem a chave que abre as portas deste cárcere.

127
a bruxa é a mulher que não pode morrer. Ela vive por
gerações a fio. das tataravós, das bisavós, das avós, de mãe
para filha, a bruxa vai perseguindo a linhagem da família das
mulheres. voando de uma geração para outra, compreender
a bruxa é acender o fogo sagrado que transmuta padrões
sistêmicos e reforma toda a estrutura celular da saúde
psicológica da mulher.
a bruxa, quando maldita, conduz ao caminho da loucura.
a bruxa, quando bendita, conduz ao caminho da cura. não
ouse bani-la. atreva-se a conhecê-la.
do que não mais podemos fugir? Pergunte a ela. nos
arredores das matas virgens do self, a bruxa deseja voar em
sua companhia.

128
Ventre

são muitos os ventres de onde viemos, não somente o


ventre da mãe. o ventre das avós, o ventre das bisavós, o
ventre das mais antigas mulheres da nossa linhagem. Todos
os ventres estão incluídos em nós. a história das gerações
escrita no ventre de cada uma das mulheres.
um útero sagrado é convocado a partir desta
compreensão, onde meu ventre guarda os registro da
linhagem do feminino. Permito aqui que uma outra
comunicação aconteça, um fio de sangue no elo dos rios
menstruais que sangram a memória do útero das mulheres do
meu clã. Posso ouvir a voz delas na cor, no aroma e na textura
do meu sangue. um rio caudaloso vermelho que atravessa
gerações e encontra meu ventre.

129
Vovós

Todas as vovós estão hoje sentadas em círculo. são as


anciãs que vieram conversar comigo. a voz delas é a voz da
sabedoria e da compaixão. uma voz rouca destemida que
compactua com a alma e firma contratos nos laços do amor.
Elas são ferozes porque aconselham o ego e orientam a
direção do fluxo.
uma poderosa mulher mítica é sintonizada na presença
de nosso encontro. aquela que Tudo sabe canta no céu da
consciência entoando o som do mundo de dentro. sua figura
é terrivelmente inquietante pois reúne nela qualidades tanto
de velha como de donzela. Tão pouco sei explicar onde estou,
em que tempo. não sei ao certo se é sonho ou se estou numa
fenda percorrendo mitos que rondam os abismos de mim
mesma. Mas o fato é que ela pede silencio. um silêncio nada

130
castrador, onde meu corpo movimenta uma dança enfeitiçada
que serpenteia os braços. no transe das respirações,
enlouquecida com as possibilidades que percebo fazerem
parte de mim, nessa dança intensa onde o corpo cala a mente,
posso nitidamente me apropriar daquilo que estava vago e
quase morto. agora, exposta a uma lucidez que não me
pertencia, posso criar as condições que desejava para refazer
algo profundamente reparador.
aquela que Tudo sabe não desiste de buscar nos
caminhos do meu espírito aquilo que está certa de que vai
encontrar. não sei o que ela tanto busca, mas pouco importa
diante da confiança do nosso elo.
Ela acende a fogueira e canta junto das vozes roucas das
vovós. um canto que percorre toda a minha coluna e explode
a visão do entendimento. distribuindo perfumes e galhos de
limoeiro, ela limpa minha mente espiralando os galhos ao
redor de minha cabeça e pinga uma gota do perfume entre as
sobrancelhas. sinto-me pronta para ocupar meu lugar e
sentar em roda diante delas. ouço com clareza. uma clareza
que refloresta imediatamente minha natureza devastada.
sim, agora me lembro. Foi um pedido de ajuda que fui
buscar neste encontro. um pedido velado que nem mesmo eu,
ao certo, recordo. Elas transferiram seus ensinamentos de
amor e compaixão através de rezos cantados e assoprados, ao

131
som de tambores e chocalhos, no círculo mágico onde o
infinito foi nosso convidado.
sei que as vozes delas são minhas e que minha voz é
delas. É neste pacto de ajuda e respeito que caminhamos
juntas. Por algum motivo, seja por necessidade ou desejo,
nosso encontro pelos corredores do espírito sintoniza um
aprimoramento para a alma.
Calma.

132
Elas

sobre feiticeiras, magas e bruxas:


as feiticeiras maceram ervas. Criam poções, perfumes,
remédios, unguentos. Cuidam do plano físico e são as sábias
da floresta. aquelas conhecedoras dos mistérios da terra.
Magas gostam dos livros e são iniciadas em uma tradição
ou conhecimento. Estudam a cura e governam o plano mental.
são guardiãs das chaves psíquicas e orientam o ritual. Tem
uma forte relação com a palavra e a escrita e estão ocupadas
em transferir os saberes de uma geração para a outra.
são as bruxas que se comunicam com o reino astral e
criam uma ponte entre o mundo visível e o mundo invisível.
Firmam pactos e desfazem acordos. Caminham com o natural
e o sobrenatural. guardiãs do plano espiritual, sabem
manipular a energia a favor de si, da comunidade ou da família.

133
Todas elas vivem em nós. Por vezes, soterradas pelos
fragmentos da história, nossa responsabilidade é trazê-las
novamente para conviver na alquimia de nosso dia-a-dia. E
que essas antigas senhoras do feminino possam cumprir seu
ofício de vínculo no elo selvagem que nos une. não mais
esquecidas. agora incluídas. Elas somos nós.

134
Alma

a alma selvagem não somente grita. a alma selvagem


também silencia. recua e volta para o ninho. repousa na
segurança da morada. sem ansiar absolutamente nada, a alma
selvagem cresce. nutrida de amor por si mesmo, seu destino
é a liberdade. longe das tagarelices do ego, distante da prisão
da mente, a alma selvagem encontra sua floresta mais
abundante: o repouso no silêncio.
deita no colo do silêncio, alma querida. Escuta o vento.
ouve as batidas do tambor - coração no pulsar da Terra. reúne
tuas forças e encontra todos os elementos. Tua hora é agora.

135
Mãe

Todas as mulheres são uma extensão da nossa mãe. Com


cada mulher que compartilhamos profunda amizade, temos
a oportunidade de extender o elo emocional que nos une a
nossa mãe. Cruzando as fronteiras da resistência e os limites
que aprisionaram o amor, o ato de amar uma mulher como
amiga transfere o vínculo do pertencimento aos cuidados da
relação entre as mulheres.
amar é uma linha tão infinita que não se parte. o amor
não se divide. Ele segue o caminho da totalidade.
assim, as amigas carregam o poder da mãe, e nós somos
a continuação da mãe para nossas grandes amigas.
o espírito da intimidade é alicerce que nutre, sustenta e
ancora.

136
Deusas

Existe uma grande mulher em todas nós. uma verdadeira


deusa encarnada pronta para a liberdade e o amor. Exercer
esse dom feminino requer consciência. Porque o olhar da
deusa abençoa. bendiz cada passo, em si e no outro. bendição.
a maldição, o maldizer, ela já aprendeu e já deixou para
trás. não amaldiçoa mais. bendiz cada parte do seu corpo,
bendiz seu caminho. bendiz o caminho do outro. não se
amaldiçoa mais.
a deusa me disse, eu ouvi na caverna do silêncio a
música que cantou meu coração: “Muito poder chama aquela
que Tudo ama”. Foi assim que ela me ensinou. no som do
tambor.
Ela me contou que maldizer é dizer mal de si e do outro.
É condenar-se, acusar-se. vingar em si as dores do mundo.
não se trata de um ato mágico, não é simples abandonar a

137
maldição. Exige um profundo vínculo consigo, e desse vínculo
nasce o elo com o sagrado, e do sagrado surge a deusa. É
dessas profundezas interiores que nascemos como deusas
encarnadas no corpo de mulher.
sim, é real e elas existem. Eu conheço um bando delas.
graças à deusa!

138
Inquisição

o período da inquisição é uma marca que fere o elo


feminino. Mulheres foram afastadas da natureza. distantes da
lua e da floresta, suas ervas de cura e poções, distantes do clã
que rezava os cantos da honra aos ancestrais. separadas da
dança, da fogueira, do caldeirão, amaldiçoadas pelo medo.
uma ferida histórica no corpo emocional da mulher.
Muito tempo se passou e no decorrer deste tempo muitas
de nós ouvimos o chamado para romper com o que ficou mal
dito. Feridas antigas sendo sanadas. gerações de mães, avós,
tataravós, toda a linhagem de mulheres que vieram antes de
nós e estão conosco hoje porque somos a continuação delas.
Curandeiras, rezadeiras e parteiras. Mulheres do campo, da
roça, índias da terra. o poder do feminino está sendo
retomado. desatamos o nó do passado no laço da presença. o
clã de mulheres jamais foi esquecido por nossos corações.
retornamos ao círculo que partilha as dores e as alegrais. o

139
renascimento da vida. saias coloridas. vestidas de autonomia.
o elo do ventre. a lua e a floresta vivas novamente dentro da
gente.

140
Louca

raios e trovões. Tempestades. Terremotos e tsunamis.


assim é a natureza da louca dentro de mim. sua passagem
transforma o cenário. do caos necessário ao caos perturbador,
a louca é impiedosa e voraz. não é boa, nem é má. Com sua
fúria destroi tudo aquilo que não se sustenta mais.
na segurança do ninho onde me sinto protegida pelo
inquietante desejo de conhecê-la, posso olhar nos olhos dela
e domar o medo. Fitar essa minha parte ferida e enfurecida.
Ela é aquela que temo. aquela que não gostaria de ver.
no entanto, essa parte esquecida nos porões da psique
está ali para ser incluída e integrada. quando reconheço essa
natureza que está banida clã da consciência, a louca torna-se
aliada. amiga. são surtos de criatividade, alegria contagiante,
amor e gozo, sentido e liberdade que experimento no diálogo

141
com ela. a natureza da sábia mulher é dar ouvidos e as mãos
para a louca e inclui-la na sua personalidade.
a louca tem um poderoso antídoto: a cura pela loucura.
aquela loucura sadia que me faz escapar de uma gaiola
criando soluções criativas. Mas a louca também pode me
enlouquecer, caso não seja ouvida por resistência do meu ser.
a transformação da louca interior em uma mulher
serena e amadurecida, à vontade com o selvagem, é o destino
de toda mulher que deseja correr consigo. Pertence ao destino
da louca criar intimidade com os fantasmas que assombram
a alma e libertá-los da maldição de gerações de esquecimento.
Porém é necessário que esse mergulho não me afogue. É uma
linha tênue. visitar a louca e fazer amizade com ela demanda
ajuda e cuidado. do contrário, saio ferida, afogada no mar de
minhas emoções. uma travessia de ousadia e bravura, onde
criaturas míticas e forças desconhecidas são envocadas para
salvar minha psique. não há como escaper, um dia a louca vem
me pegar.
a louca é uma mulher sábia. Ela vive dentro mim e
precisa ser reconhecida. não pode ficar esquecida no
calabouço do inconsciente ou presa na masmorra do
esquecimento. a louca traz a chave que abre a ultima porta, o
fio que repara a trama. sem ela, nunca serei inteira. Fico pela
metade.

142
na psique feminina podemos imediatamente reconhecer
a louca olhando para nossas mães. Todas nós sabemos. Cada
mãe com suas feridas que feriram suas filhas. Cada uma com
sua forma de amar e doer. da mãe boazinha demais até a mãe
gelada e fria, ou a mãe que solta fogo pelas ventas e queima
tudo à sua frente, a mãe doente. Cada mãe nos conta onde está
nossa louca e qual a direção que devemos encarar para
encontrá-la.
Preciso criar coragem para contemplar minha louca e
me tornar consciente de nossos laços psicológicos. Então a
louca viverá para sempre na sua forma mais curativa: na
função sublime de criar uma vida autêntica, rica em gozo e
liberdade. busco minha louca toda vez que paro de temer a
mim mesma.

143
Mulher

quando eu nasci mulher, fui parida do ventre de muitas


mulheres. Caminhei por minhas marcas de dor e glória. no
mundo presente da minha infância, desbravei as aventuras e
medos da adolescência. segui para o colo da mãe que embala
e realiza sonhos. Engravidei de mim mesma. ansiei chegar até
a sábia anciã, ouvi sua voz, respirei suas ervas. voltei a ser
curandeira.
quando eu nasci mulher, a morte veio me buscar. não
resisti. Eu fui. numa oca de chão batido o fogo da cura se
acendeu. Morri ali. a sagrada Mãe Terra regenerou minhas
raízes mais antigas. Transmutou os males, dissolveu nós e
refez laços. hoje, trago comigo a força da minha avó, da
bisavó, da tataravó, de todas elas, as ancestrais mulheres
guardiãs da natureza.

144
quando eu nasci mulher, nasci em círculo. numa roda.
no acalento do sopro das minhas irmãs que nasceram e
morreram junto comigo. num parto coletivo. do mesmo
ventre soberano, foi a deusa quem nos pariu. a montanha e o
rio guardam memórias do compartilhar da nossa intimidade.
renascidas, o amor ainda mais maduro vem nos coroar.
que nenhuma parte se distancie de nós, nunca mais. uma
dança em ciranda, de mãos dadas com gaia, para sempre.
Fecundada está nossa consciência.

145
Família

Existe uma família muito antiga, à qual todos nós


pertencemos. um clã, uma aldeia única que nos enlaça
enquanto participamos da vida. Mãe Terra, Pai Céu, avô sol,
avó lua. Estou no colo desses familiares e deles sou filho
pequeno.
natureza, bicho, pedra, semente. Tudo que respira e cresce
é o mesmo que gente. Enquanto nossa família ancestral for
negada e excluída, a humanidade cumprirá o destino de sentir
solidão, fazer guerras e construir políticas tão loucas como nós.
Cheirar uma flor é também ser cheirada por ela, olhar a
montanha é também ser vista por ela. a flor me cheira, a
montanha me vê, o rio me nada, a fruta também me come, e no
final estamos todos vivos, somos vida. viver.
Crescem os vínculos daqueles que incluem todas as formas
de vida em suas relações. Mãe Terra, nos ensina a amar.

146
Gaia

gaia é uma grande barriga, parideira sem fim da vida.


grávida em tempo integral, de seu ventre nasce toda a
diversidade que conhecemos. Planta, floresta, bicho, rio, mar,
humano. Comunidades inteiras que se organizam e
compartilham o viver junto dela.
gaia nos une. no corpo de gaia não existe somente o eu.
Existe nós. Em gaia somos uma massa única. uma matéria.
Estou em gaia. sou gaia e junto dela aprofundo minhas
raízes. ramifico no solo sagrado deste chão minha semente.
quero colher meu fruto e ser dessa terra uma filha potente.
gaia chama: não se parta, permaneça inteiro. as árvores
somos nós, as águas somos nós, a terra somos nós. não existe
parte, não existe um pedaço. Tudo está inteiro. dentro de nós,
a vida pulsa o eco de toda a natureza e não nos basta sermos

147
apenas humanos. Preciso ser gaia para me reconhecer
unificada comigo mesma.

148
Toma

Toma tua água. Toma teu fogo. Toma teu ar. Tua terra.
Mexe no caldeirão sagrado da vida tuas intenções.
Pitadas de entusiasmo, punhado de emoção, o sopro da
criação, a consistência da consciência. Mexe até dar o ponto.
Conselho: depois de mexer bastante tem que descansar.
repousar para pegar bem o gosto. Está feito. agora é só
degustar de ti mesmo.

149
Infinito

do ponto de vista da Terra, dia e noite são reais. do ponto


de vista do universo, dia e noite não existem. da vista do
ponto redondo azul, a Terra está estática, sem movimento
algum. no entanto, nosso planeta gira em ritmo veloz.
lá do alto do céu, já nem mais enxergamos os humanos,
nem os animais. somos um único corpo chamado Terra. E lá,
do universo, nem mais enxergamos a Terra, tudo se dissolve
na imensidão. ainda que sejamos organismos pequenininhos
vivendo num corpo bem grande de nome gaia, somos infinito.
Porque o infinito pulsa em tudo que respira vida.
Essa é a imagem do infinito. É uma imagem poderosa que
carrego comigo. a paisagem mais selvagem que vive na
imensidão de mim.
Cultivo essa paisagem e faço dela minha referência. É

150
assim que me sinto mais ancorada e não me esqueço que esse
infinito está vivo em mim. Porque o infinito pulsa em tudo
que respira vida. sim, somos infinito, mesmo sendo
microorganismos bem pequeninhos vivendo num corpo bem
grande chamado Terra.

151
Espelho

Contemplar a montanha para ser contemplada por ela.


respirar a montanha para ser inspirada por ela. silenciar com
a montanha para escutar o silencio dela.
o mundo exterior reflete o mundo interior. Para os olhos
de quem não se cansa de contemplar, o reflexo distorcido vai
ficando cada vez mais nítido. um reflexo que de tão exato se
torna espelho. Porque o que vemos é um reflexo de quem
somos.
Então, olho no espelho. o que vejo?
uma floresta inteira que cresce silenciosamente dentro
de mim neste momento. Exatamente como na natureza. a
natureza é selvagem e divina. assim como nós. nada nos
difere da natureza. quanto mais me igualo a ela, mais próximo
chego do fundamento. E quando dou as mãos para a natureza

152
me sinto rica e prospera. Porque o desenho da natureza é
abundância e prosperidade. Fartura e amor. assim como nós.
a natureza é parte do que me forma. Meu caráter foi
sustentado com seus ensinamentos. É na consistência do
vínculo com a natureza que amadureço. Como mulher, cresço.
Plantas, pedras, água e fogo. ventos e tempestades.
Cobra, cigarra, macaco, tatu. Árvores e floresta. vejo a
natureza e sei que ela também me vê. rompemos o manto da
invisibilidade há muito tempo. demos nascimento uma à
outra.
relação forte. É nela que encontro meu norte. sentido.
direção.

153
Agradeça

Clareou o dia da gratidão. o frio desta manhã que trincou


as geladas couraças do medo. neste dia, a alma amanheceu
querendo flutuar. um repouso. um voo afinado no canto do
pássaro.
Entre nuvens e silêncio, a alma disse sem palavras, não
fez mímica e nem precisou chamar a atenção. Ela e eu, juntas
por algum motivo, unidas naquela hora. sem separar o que é
de dentro e o que está fora. um breve diálogo daqueles em
que todo o resto faz sentido.
o dia da gratidão é o dia em que alma foi ouvida. sem
pontos finais ou interrogações, a alma exclamou alívio.
suspiro. um colo para niná-la. no embalo deste delicioso
afago, alma e moça compartilham da mesma natureza.
Essência.

154
agradecer é agradar a alma que desfruta no oceano de
calma. Como suportar tamanha grandeza? agradeça.

155
Afrodite

Por toda a noite, foi o vento quem soprou a dança das


folhas na mata. o ar em movimento fez bailar a floresta
inteira. a lua minguou bonita e as estrelas sorriam para quem
se atinasse a contemplar o céu. vênus reinava como uma
imperatriz coroando o topo da montanha.
Foi no exato momento que capturei vênus com os olhos,
que pude perceber a presença silenciosa de afrodite.
imediatamente soltei as amarras que prendem a angústia e,
junto com o sopro forte da natureza, tomei um longo e farto
banho de vento. “Faz bem para lavar a alma e varrer as folhas
secas da casa de dentro”, disse uma voz lúcida do Eu.
numa cachoeira vigorosa de sopros e arrepios, o vento
varreu o espírito com sua vassoura mágica e cumpriu a função
de espalhar sementes de mim por todas as direções. afrodite,

156
bem quietinha, assoprou sua bênção final e vênus se pôs no
limite do horizonte. atrás do monte, afrodite disfarçada de
estrela teve seu descanso.
aqui na Terra, um suspiro. Mais um vento. E pronto.
silêncio.

157
Vento

Medicina do vento: todas as vezes que um vento forte


soprar no céu, peço para que esta poderosa força da natureza
espalhe sementes de mim por todas as direções. Crio meu
encantamento, uma cadência de palavras ritmadas que dê
sentido ao gesto. abro o coração e pronuncio minha intenção.
lanço agora ao vento sementes de amor e gratidão.
Espalho pelos cantos da alma do mundo toda a generosidade
que me sobra. Consciência da semente é saber se entregar ao
vento e confiar na direção. brotar na terra e me tornar raiz.

158
Cheia

quando a lua está cheia no céu, também fico cheia


daquilo que que está emergente em mim. Emoções, conflitos,
prazer e angústias saltam do mundo de dentro e ficam visíveis
aos olhos do coração.
Tempo de lua cheia é um tempo de me ver inteira. num
círculo, sentado em roda comigo, posso convocar cada parte
que sou. Cada máscara, cada faceta. dialogar e compartilhar
opiniões com cada pedaço de mim.
E de todos os semicírculos de que sou feita, como a lua, vou
minguar, enovar e crescer. desse jogo de luz e sombra que não
para de brincar na natureza novamente vou minguar, enovar e
crescer junto com seu brilho, num ciclo eterno que não vai parar
de existir enquanto a vida permanecer. E lá estará ela, cheia de
si, para lembrar toda a potencia que tenho. Estar inteiro.

159
vou aprender com a lua cheia e fazer como ela faz. vou
mostrar ao céu da consciência toda a beleza e clareza que está
ancorado nas terras selvagens do Eu. reunido com todas as
partes que tenho, a lua cheia me faz lembrar que eu sou um
reflexo de seu espelho.

160
Lua

não basta ser noite de lua cheia. Preciso me encher de


lua. Trazer a lua de fora para morar dentro. Cuidar dela, niná-
la e sonhá-la.
Em noites de lua cheia, a mulher que caminha com os
ciclos da natureza sabe que são tempos do arquétipo da mãe
falar conosco. Parir, engravidar ou nascer.
a intuição nos orienta a ouvir perguntas que chegam das
imensidões do self, ecoando no campo da consciência: de quê
me engravidei? o que desejo parir? quem vai nascer? É a
mente que está grávida do coração.
são sementinhas de vontades, bebês com caras coragem,
e um desejo danado de ver tudo se realizar. Prosperar. É assim
que o céu e a terra se casam no mundo de dentro e fazem
amor com nossos sonhos. É na lua cheia que esse casamento
sagrado acontece.

161
um dia, o sonho desenhado no céu da mente chega na
terra que enraíza. dores do parto, contrações, nascimento.
Cuidado e atenção. Está andando com as próprias pernas.
Passo firme. Confiança no caminho.
nestas noites de lua cheia, senti a própria vovó lua me
ninar. Embalou sua calma no colo sereno de que sou e fez
nascer em mim mais um punhado de amor. Compaixão pela
nossa humanidade. Compaixão pela fome do espírito.
Compaixão pelo rio que não pode mais correr. a água que
morreu, a floresta que sumiu. Compaixão. aquela ensinada
pelo buda na lua de seu nascimento.
quando a cheia lua vem morar dentro de mim, quando o
céu da noite clara toca a natureza interior, a mulher completa
sua senda e está enluarada.
do poder da lua não trago mistérios, pois foi a própria
lua quem me revelou que para enluarar preciso me esvaziar
de mim e encher-me dela.

162
Podar

Toda vez que a lua mingua, finda um processo de


angústia em nós. a foice desenhada no céu, em forma de lua,
revela seu poder. hora de podar. ganhar mais força para viver.

163
Soberana

lua cheia de amor. generosa senhora. guardiã das


mudanças. soberana mãe que comanda as águas e navega no
coração da sábia selvagem mulher. rios e mares de toda nossa
emoção. Peço à grande Mãe que corrija os fluxos, ajuste a rota,
proteção e coragem para a grande travessia, cada passo
sagrado no ato de existir. ninada no colo do seu brilho,
nascida no ventre desse dia. Cheia de poder. Cheia de vigor.
Cheia para dar e receber amor.

164
Evocação de reconhecimento e
pertencimento à Terra.

grande Mãe Terra, eu te reconheço em mim. reconheço


tuas mãos em mim, teus pés em mim, tuas raizes em mim.
grande Mãe Terra, eu te reconheço em mim. reconheço
tua força, tua coragem, reconheço teu sorriso e tuas lágrimas
em mim.
grande Mãe Terra, vontade divina da natureza em tudo
que vive e pulsa, eu te reconheço em mim. reconheço tuas
águas, teu fogo, tua terra e teu vento em mim.
grande Mãe, como tua filha que sou, reconheço que és a
minha ancestral mais viva e a mais próxima, e reconheço que
nosso vínculo depende unicamente do meu despertar. aceita
meu pedido de perdão, grande Mãe, porque até esse momento
eu estava desatenta. desperta em mim tua força para que eu

165
possa reconhecer e honrar a vida e assim servi a ti para o bem
maior.
honro tuas águas, honro tuas montanhas, honro tuas
árvores e tuas folhas. honro teus frutos e tuas flores e sei que
toda essa natureza existe em mim, dentro de mim, e que em
nenhum momento estivemos separadas.
Moro no teu colo, no teu corpo e nele eu pertenço.

166
Deus e Deusa

Pai nosso que está no céu. Mãe nossa que está na Terra.
bendito seja teu fruto saboroso e generoso que degusto
diariamente na água que bebo, no alimento que degusto, no
sol que aquece, na noite que aquieta, no amor que
compartilho. bendita seja a consciência, teu fruto mais
maduro e potente.
deus Pai Todo Poderoso. deusa Mãe Toda Poderosa.
orienta, guia, acolhe e auxilia. que a magia do amor se
manifeste no aqui e agora deste minuto que se inicia. que a
confiança embale o meu dia, agora e sempre. amém.

167
Beija-flor

Este é um momento em que as plantas e as ervas do


jardim entraram definitivamente em casa. Como um estranho
ritual que venho seguindo a alguns meses, colho as belas
plantinhas por aí na vizinhança: são flores de hortências,
rosinhas, galhos de limão, lavanda, artemísia, manjericão.
arruda, alecrim e guiné, e tantos outros matos e belezas
naturais que disparam nos olhos do coração a incrível
convicção de estar diante de afrodite. ou artemis. baba Yaga.
nossa senhora.
não posso deixar de dizer que antes de colhê-las, eu as
saúdo. Elas também me saúdam. um pacto fraterno de
amizade vem se firmando entre nós. Chupo seu orvalho ainda
fresco nas pétalas e nas folhas. devo confessar que é nesse
exato momento que me sinto transformada em beija-flor.

168
dissolvo minha forma humana e resgato o vínculo com outras
formas de vida. É assim que venho me sentindo natureza.
Pois bem, levo as plantas para casa e com elas faço
pequenos vasos em vidros de água. arranjos florais com ervas
perfumadas espalhados na cozinha, na sala e nos quartos. as
folhas e galhos que sobram vão para o caldeirão. Ficam lá
secando e depois são usadas em chás, banhos, benzimentos.
ou vão para as fogueiras que com frequência acendemos no
quintal. nada se perde. o fluxo da alquimia não pode ser
interrompido. isso é Magia. nada demais. somente beleza.
livre dos credos e das cruzes que pregam as religiões,
honrando os ritos sagrados que nos tornam melhores e
humanos, deixo aqui meu testemunho, firmado e confirmado
que a natureza somos nós e nós somos a natureza. Favoreça
este círculo.

169
Andréa Sumé

Nascida e criada no interior de São Paulo, foi ainda


menina que achou na poesia e no universo das palavras
seu mais querido brinquedo.

Do encontro com o budismo tibetano até as iniciações


xamânicas, da formação em psicologia e suas diversas
abordagens até as constelações familiares, sua trajetória
como mulher percorre um vasto caminho espiritual.

Filha da natureza e guardiã dos saberes ancestrais,


trabalha ao redor do fogo, de pés no chão, em círculo,
reunindo homens e mulheres no resgate de sua essência
orgânica e original. Costura os antigos ritos com a
ciência da consciência, devolvendo nossa humanidade
mais integrada aos valores fundamentais da alma.

Na sala de terapia, assume o compromisso com a


psicologia sistêmica. São dezoito anos de estudo e prática
clínica, atendendo jovens e casais, adultos e famílias.

Semeadora de um tempo novo, deixou os grandes centros


urbanos em busca de um ritmo mais autêntico entre a
cidade e a floresta. Hoje mora no sul do Brasil e encontrou
na montanha onde vive o tesouro da presença.

171
172
Arrisco.Rabisco.

Solto as palavras e concluo aqui


um breve infinito. 173

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