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A Violência no Brasil. Causas e recomendações

ARTIGO ARTICLE
políticas para a sua prevenção

Violence in Brazil: causes and politic


recommendations to its prevention

Jean Claude Chesnais 1

Abstract This article is about the kind of vio- Resumo Este artigo trata da violência nos
lence that happens in Brazilian main urban principais centros urbanos do Brasil. Foi origi-
centers. It derived from a field research with nado de uma pesquisa de campo com visitas e
visits and interviews with different individuals entrevistas com diferentes indivíduos ligados,
linked, directly or indirectly, to the subject such direta ou indiretamente à questão, como fun-
as employees and representatives of public sec- cionários e representantes de setores públicos de
tions of several areas, researchers and special- várias áreas; pesquisadores e estudiosos do te-
ists, convicts and people involved in the drug ma; presidiários e pessoas ligadas ao narcotrá-
traffic, as well as community leaders. It presents fico, bem como líderes comunitários. Apresenta
a wide diagnosis of the main factors that make um amplo diagnóstico dos principais fatores
possible the growth of criminal violence in que possibilitam o crescimento da violência cri-
Brazil such as social and economic factors, minal no Brasil, ou seja, fatores sócio-econômi-
weakness and lack of confidence in the institu- cos, conjunturais e estruturais, a fraqueza e des-
tions and the difficulty of the state to avoid and crédito das instituições e a carência do Estado
prevent violence. The collected data allowed an para administrar a repressão e propiciar a pre-
analisis of the phenomenon in Brazilian reality, venção. Os dados coletados permitiram uma
compared with other international urban cen- análise do fenômeno na realidade brasileira
ters. The political recommendations, based on comparada com outros centros urbanos inter-
the observation of the evolution of other coun- nacionais. As recomendações políticas, basea-
tries, strongly point to the establishment of das na observação da evolução de outros países,
credibility of the state, starting from redistribu- são fortemente dirigidas ao restabelecimento da
tion of income; great investiment in social ar- credibilidade do Estado, a partir da redistribui-
eas, mainly health and education, and restruc- ção da renda; do grande investimento nas áreas
turing of their fundamental institutions as po- sociais, sobretudo de saúde e educação; e da
lice and school. reestruturação de suas instituições fundamen-
1 Instituto Nacional de Key words Violence; Criminality; Politic of tais, como a polícia e a escola.
Estudos Demográficos,
Universidade de Paris,
Prevention Palavras-chave Violência; Criminalidade; Po-
França. lítica de Prevenção
chesnais@ined.fr
Organizadora: Maria da
Conceição N. Monteiro
Tradutora: Ida Maria
Rebelo Pereira
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Jean Claude Chesnais

A escalada da violência criminal no Brasil Como qualquer visitante, para além do âm-
bito da nossa missão, ficamos chocados pela
No Brasil, a violência, sobretudo urbana, está obsessão com a insegurança que atinge a to-
no centro do dia a dia e ocupa as manchetes talidade dos habitantes das grandes cidades
dos jornais. Ela é assunto de especiais para a brasileiras. No centro de São Paulo, casas vi-
tv e, mais que tudo, assombra as consciências, giadas, cercadas por grades, protegidas por se-
de tal forma é ameaçadora, recorrente e gera- guranças, são igualmente sinais desta descon-
dora de um profundo sentimento de insegu- fiança das classes burguesas com relação às
rança. Essa evolução é sintoma de uma desin- classes ditas perigosas.
tegração social, de um mal-estar coletivo e de Tudo se passa como se os brancos tentas-
um desregramento das instituições públicas. sem reproduzir enclaves europeus, evitando
Assim como a Colômbia, lamentavelmen- o contato com descendentes de escravos ou
te conhecida pela carência de um Estado for- com os imigrantes, fugindo da miséria no seu
te e sobretudo pelas chacinas perpetradas pe- Nordeste natal. Muitos são os que ousam falar
los cartéis da droga (Medellin, Cali), entre os de um apartheid social pois, diante de tal se-
países de colonização européia, o Brasil é o gregação social, é inevitável lembrar daquela
mais atingido pela criminalidade assassina. O que existe em países com forte tensão entre
que se conhece é apenas a ponta do iceberg. negros e brancos, como os EUA, ou a África
A violência oculta atrás dos muros das ca- do Sul.
sas, a violência sexual, as rixas familiares e as A violência gera o medo, mas este gera
crianças espancadas só são conhecidas muito igualmente violência. Trata-se então de um
parcialmente, mesmo em caso de falecimento círculo vicioso que se instala, uma psicose co-
das vítimas; as circunstâncias das mortes são, letiva que é preciso romper a qualquer preço
então, esmagadas sob uma capa de silêncio. e cujos únicos beneficiados são certos lobbies
Além do mais, o controle pelo registro civil da segurança, como as firmas de vigilância, as
continua a ser falho, principalmente nas zo- milícias privadas, as companhias de seguros,
nas rurais mais pobres ou dentro de zonas ur- os esquadrões da morte, etc.
banas de instalação recente (subúrbios, fave- Assim, são atingidas a imagem e a reputa-
las e cortiços). O enterro oficial tem um custo ção internacionais do Brasil. Esse imenso país
com o qual as camadas mais desfavorecidas da de sonho e de riquezas fabulosas não conse-
população não podem arcar. gue “decolar” como prometido. Muitos res-
A situação atual no Brasil é, sem dúvida, ponsáveis estrangeiros que nele apostaram
atípica. As mortes violentas são a primeira cau- guardam da experiência uma certa amargura,
sa de falecimento entre os 5 e 45 anos. Essas tal é o desperdício, a corrupção e o corporati-
mortes prematuras, além de evitáveis, são alta- vismo que neutralizam a iniciativa e o esfor-
mente onerosas em termos de anos de vida ço de inovação.
perdidos. O homicídio intencional é, entre os Tendo em conta que a realidade ultrapassa
homens, a primeira causa de óbitos em termos os números oficiais, o número efetivo de víti-
de potencial de vida perdido. A situação no mas de homicídios é, hoje (1995), da ordem
Brasil é mais grave que nos Estados Unidos de 35.000 a 40.000 por ano. Na região metro-
(EUA) e mesmo que na Rússia, mergulhada politana de São Paulo (16 milhões de habitan-
no caos, numa deterioração e numa crimina- tes), somam-se mais de 60.000 mortes desde
lidade mafiosa indescritíveis desde a derroca- 1983, ou seja, mais baixas do que no exército
da do comunismo. americano no Vietnã (56.000 mortes, a maio-
Para estudar a especificidade brasileira, ria das quais em acidentes de transporte ou
contatamos interlocutores mais informados e retirada de minas e não em combate propria-
abertos, entrevistamos elementos dos mais va- mente dito). Uma tragédia que afeta centenas
riados meios (policiais, juizes, guardas peni- de milhares de pessoas.
tenciários, detentos, delinqüentes, médicos le- Essa situação só faz agravar-se a cada ano.
gistas, responsáveis políticos, especialistas, jor- Nessa mesma região de São Paulo, em meados
nalistas, diplomatas, empresários, trabalhado- dos anos 70, contavam-se 800 mortes por ho-
res sociais, etc.) e nos locais mais variados (es- micídio a cada ano. De 1989 para cá, esse nú-
colas, hospitais, cemitérios, delegacias de po- mero ultrapassa 6.500, ou seja, oito vezes mais.
lícia, escolas de tiro, penitenciárias, institutos Essa explosão da violência não está relaciona-
médico-legal, favelas, etc). da com o aumento da população, pois a taxa
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de homicídio foi multiplicada por seis entre Possíveis causas dessa explosão
1975 e 1989. da violência
Desde então, parece que a situação está
mais ou menos estabilizada, ainda que haja um As razões desse extraordinário recrudescimen-
agravamento previsto para 1995. Nos concen- to da violência no Brasil são difíceis de escla-
tramos, aqui, exclusivamente na mortalidade recer. Na realidade, há uma complexa conste-
por homicídio voluntário, excluindo qualquer lação de fatores em jogo e propõe-se aqui um
outra forma de violência; esta é, na verdade, a quadro analítico.
parte mais grave e também a melhor elucida-
da da criminalidade. Nessa área, o Brasil dis-
tingue-se radicalmente de outros países de co- Fatores sócio-econômicos
lonização européia; a taxa de homicídio aqui
é comparável à da Inglaterra na Idade Média. A pobreza e a fome. Entre as camadas mais po-
No Brasil, o número de óbitos por homi- bres da população, a subsistência é precária.
cídio, registrados como tal, era de 28.700, em Grande número de crimes são cometidos sob
1989, o que corresponde ao dobro do mesmo o império da necessidade. Esse tipo de crime
índice nos EUA. Essa cifra foi subestimada e desapareceu da Europa no século passado. A
um cálculo mais verossímil gira em torno de miséria conduz ao roubo e à prostituição. Uma
35.000 a 40.000. Nos EUA, onde os números cidade como Fortaleza, onde a taxa de empre-
são melhor conhecidos, essa cifra é bem me- go não acompanhou o crescimento demográ-
nor: 25.000, para uma população superior em fico, está contaminada pela prostituição in-
100 milhões (265, ao invés dos 165 milhões de fantil e pelo turismo sexual.
brasileiros). Os números brasileiros são, igual- O desemprego ou a ausência de renda le-
mente, superiores aos da Rússia (25.000, em vam à tentação da ilegalidade, visto ser fácil,
1993), com uma população equivalente. Nu- por vezes, conseguir ganhos astronômicos à
ma proporção de pelo menos 20 para cada margem da lei. As vantagens são grandes, con-
100.000 habitantes, a taxa de mortalidade por fidenciou-nos uma autoridade policial do bair-
homicídio é duas vezes maior no Brasil que ro mais pobre de São Paulo: “ser ladrão aqui é
nos EUA onde nunca ultrapassou o limiar de a melhor profissão. Sem necessidade de levan-
10, mesmo na época de Al Capone. tar cedo e deitar tarde, de se cansar nos trans-
Se considerarmos os grandes países da portes coletivos, de trabalhar duro. Pode-se jun-
América Latina – deixando de lado a Colôm- tar muito dinheiro rapidamente, comprar um
bia, onde a economia da droga ocupa um espa- carro último modelo, e sem pagar impostos...
ço desproporcional na atividade nacional e, Todos o respeitam pois a população admira os
em conseqüência, a guerra dos cartéis e a lu- esbanjadores, os emergentes, a ostentação e o
ta contra o crime alcançaram proporções sem consumismo”.
precedentes – as taxas no Brasil são superio- Há um aumento das desigualdades e, so-
res em um quarto às do México e correspon- bretudo, da percepção das mesmas, devido à
dem ao quádruplo das taxas argentinas. grande penetração da televisão. A televisão va-
O fenômeno é sobretudo urbano. Assim, no loriza objetos simbólicos e exalta o consumis-
Rio, a taxa é avaliada em cerca de 60 ou seja, três mo; ela induz a desejar roupas, equipamentos,
vezes a média nacional; em São Paulo, é de 45. carros, lindas garotas, etc. Essas coisas estão,
A comparação com as outras grandes metrópo- freqüentemente, fora de alcance, o que provo-
les do mundo é perturbadora. No Rio, a taxa ca uma frustração crescente, insuportável nu-
é semelhante à de Washington (70), cidade com ma sociedade polarizada pela coexistência de
forte predominância de negros e conhecida uma oligarquia riquíssima (São Paulo é, de-
pela insegurança e por seus bairros violentos. pois de Nova Iorque, a cidade com maior nú-
Cidades multiculturais, como Nova Iorque mero de jatos particulares) e de massas mise-
ou Los Angeles, apresentavam, em 1994, um ráveis.
índice de homicídios de 30, bem inferior ao A sociedade brasileira é uma das mais de-
da Grande São Paulo (45-50, em 1995), duas siguais, uma das mais estratificadas que exis-
vezes menor que o do Rio (60). O paralelo com tem. Aqui se encontra a mais extrema pobreza
Buenos Aires (11 milhões de habitantes) é ain- ao lado da mais fabulosa riqueza. Continua
da mais chocante já que lá esse índice é de ape- sendo o país dos privilégios pois a recessão
nas 6 para cada 100 mil habitantes. econômica diminuiu a mobilidade social. O
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excesso de riqueza ostentada é vivido por mui- da nova leva de nordestinos, desempregados
tos como uma provocação, daí a tentação do ou mendigos na maioria.
roubo e do dinheiro fácil. Os aluguéis, depois do Plano Real, atingi-
ram um nível fora do alcance da classe pobre
e mesmo da classe média. Apesar da solidarie-
Fatores institucionais: dade familiar e do dinamismo da “auto-cons-
A omissão do Estado na prevenção trução”, o número de desabrigados cresce.
e repressão da violência Essa população flutuante, desenraizada, é,
ao mesmo tempo, ameaçada e ameaçadora
A Prevenção além de ser facilmente manipulável pelos che-
fes da droga e do crime que dela se servem pa-
A escola: “Abrir uma escola é fechar uma ra o roubo, para a prostituição e para a venda
prisão”, escreveu Victor Hugo. O sistema esco- de drogas.
lar brasileiro é notoriamente deficitário e tem Os meninos de rua são presa fácil de cer-
se deteriorado a partir dos anos 80. A pré-es- tos indivíduos sem escrúpulos que, em troca
cola praticamente inexiste; a escola primária de “proteção”, de um substituto de paternida-
começa muito tarde, aos sete anos somente. de, os exploram em proveito próprio, perver-
As crianças ficam, com freqüência, entregues tendo-os e os expondo à morte.
à própria sorte até essa época, pois a mãe tam- A periferia da grande São Paulo é onde as
bém tem de procurar um salário para garan- populações são mais vulneráveis e desvalidas.
tir a subsistência, uma vez que a moradia e a Trata-se do cinturão de pobreza, povoado de
alimentação são muito caras. recém-chegados, vindos do Nordeste, empur-
O ensino público é um desastre: os profes- rados pela fome, semi-analfabetos, sem qua-
sores, mal pagos e desmotivados, não fazem lificação, dispersos numa cidade ameaçadora,
um bom trabalho de pedagogos. Um grande instalados de forma precária numa terra de
número de crianças só vai à escola para comer ninguém, onde os serviços públicos são defi-
pois lhes é assegurada uma refeição. A escola cientes ou francamente inexistentes.
não garante mais a transmissão dos conheci- A saúde pública: o setor sanitário deixou
mentos básicos. Essa instituição não soube se de ser prioridade. A prefeitura de São Paulo
adaptar ao ensino de massa, as aulas limitam- prefere a construção civil, as obras públicas
se a quatro horas por dia, vinte por semana; (pontes e viadutos) e os transportes ao inves-
no resto do tempo os jovens ficam na rua, na timento social. Nos hospitais há falta de equi-
casa de vizinhos ou diante da televisão. pamentos e remédios, as filas de espera au-
A droga já conseguiu infiltrar-se nas esco- mentam; o preço dos tratamentos torna-se
las públicas. Estima-se que em São Paulo, um exorbitante; o orçamento da saúde foi corta-
quarto dos jovens já são parcialmente tóxico- do e, às vezes, até mesmo o dinheiro destina-
dependentes pois começaram a fumar, a be- do à saúde é desviado por burocratas sem es-
ber ou a se drogar. crúpulos.
Somente o ensino privado escapa ao nau- São precisamente os bairros mais necessi-
frágio, mas o preço é proibitivo. No estado de tados, onde as doenças infecciosas e as pato-
São Paulo apenas um, em cada dez jovens, vai logias crônicas estão mais propagadas, que pa-
para a escola particular no primário. O corte gam a conta do desperdício. Esse sentimento
tem se acentuado entre o público e o priva- de vulnerabilidade biológica modifica a per-
do; a segregação escolar amplia a segregação cepção que se tem do próprio corpo e tende a
social e mesmo a classe média está perdendo diminuir o valor da vida humana gerando es-
a esperança de ascensão social para os seus sa atitude de indiferença diante do sofrimen-
filhos. to e da morte.
A moradia: ter um abrigo, um teto, confe- O aumento da mortalidade adulta mascu-
re um sentimento de segurança e dignidade. lina é um sinal alarmante que deveria incitar
Atualmente a crise de moradia é patente. Além os governantes à prudência. O exemplo de paí-
de oferta insuficiente e políticas prediais ina- ses da esfera soviética onde os orçamentos foram
dequadas (ocupação ilegal, expulsão, retoma- cortados a partir dos anos 60, mostrou a que
da pela prefeitura, aumento abusivo de pre- ponto a condição sanitária pode retroceder: na
ços), o custo de acesso à propriedade ultrapas- Rússia atual a esperança de vida para os homens
sa os recursos dos mais pobres, especialmente é inferior à da Índia.
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Certos gastos não podem ser reduzidos im- atribuída a quarta parte das mortes por homi-
punemente, eles fazem parte dos fundamen- cídio em São Paulo.
tos, isto é, dos alicerces que mantêm o equilí- A polícia civil tem, por sua vez, uma ima-
brio da sociedade na sua integralidade. gem social ainda mais sombria já que é invaria-
A saúde é condicionante da esperança, da velmente qualificada de corrupta e desacredi-
produtividade, do investimento e do desen- tada pela polícia militar. Se a violência e a cor-
volvimento. Não é por acaso que, já em 1980, rupção são inegáveis, considerando-se as con-
o Japão, rival dos EUA rumo à supremacia eco- dições de trabalho e dos meios onde são re-
nômica mundial, detinha o primeiro lugar em crutadas as forças da ordem, há que se evitar
longevidade média da população. toda generalização apressada pois a maioria
Os transportes públicos: comparado com do pessoal é honesta e dedicada.
o sistema metroviário de Paris, o metro pau- A existência de quatro polícias públicas,
lista é muito curto, enquanto a sua população mal coordenadas e, freqüentemente, rivais,
é dois terços maior e tem de percorrer o do- cria confusão. A polícia federal, a polícia ci-
bro das distâncias. O tempo gasto nos trans- vil, a polícia militar e a polícia municipal têm,
portes é maior, o serviço mais complexo e os em princípio, papéis complementares mas, na
preços, em termos relativos, cinco vezes mais realidade, mal definidos, o que atrapalha a efi-
caros. ciência da atuação assim que começa um ti-
Para o morador da periferia, trabalhar no roteio.
centro significa longas jornadas (levantar mui- Mesmo a justiça é lenta, ineficaz e inaces-
to cedo e deitar muito tarde) cujas horas pas- sível ao cidadão devido aos elevados honorá-
sadas no transporte esgotam o organismo e rios dos advogados. Quanto aos juizes pouco
desorganizam a vida familiar. familiarizados com regras de contabilidade,
Tal situação desencoraja o trabalho. É mais com as astúcias da informática ou dos crimes
fácil sobreviver com o trabalho informal (ven- de colarinho branco, são fáceis de enganar e
der cigarros, isqueiros e outros objetos de con- subornar.
trabando) ou com a delinqüência, que com As prisões representam um mundo ainda
um salário. O salário mínimo (130 reais) nem mais obscuro: em São Paulo, contam-se 62 mil
de longe cobre os gastos essenciais de um indi- detentos em penitenciárias e delegacias de po-
víduo – moradia, alimentação e transporte – lícia. Esses detentos vivem em condições de
e nem, tampouco, de uma família. promiscuidade inimagináveis – há, por vezes,
até 30 presos em uma cela de 25 m –, com ape-
A repressão nas três beliches – que não favorecem a ree-
ducação. As fugas são freqüentes, principal-
A polícia, a justiça e o sistema penitenciá- mente entre os traficantes de droga e crimi-
rio não são respeitados. Os salários e os meios nosos de alta periculosidade; é fácil comprar
são insuficientes, daí a facilidade com que os a cumplicidade de um guarda pois o preço de
funcionários são corrompidos. A polícia cuida uma fuga (6 mil dólares) representa para ele
preferencialmente dos assaltos a casas e a ban- um ano de salário.
cos ou de roubos de caminhões – onde os ris- Esse fracasso dos dispositivos de seguran-
cos financeiros são maiores –que dos atenta- ça pública gera o sucesso das polícias paralelas,
dos contra indivíduos, exceto, é claro, quan- mais eficazes, melhor remuneradas porém
do se trata do seqüestro de milionários. muito mais onerosas e, por isso, reservadas à
Um membro da polícia militar tem um sa- classe alta.
lário da ordem de apenas 600 dólares por mês
para uma tarefa ingrata, desprezada e perigo- O recuo da igreja católica
sa cujas conseqüências são uma alta taxa de
suicídios e de abandono da profissão. Muitos Detentora de grande influência nos meios
policiais têm um segundo emprego, nas horas rurais, no passado, a Igreja Católica encontra-
livres; alguns desenvolvem a prática de achacar se, desde então, dividida, enfraquecida e afas-
ou se deixam corromper pelos traficantes. A tada do povo. O vazio deixado por ela é preen-
sorte da polícia civil também não é melhor. chido por seitas cada vez mais numerosas, ri-
A polícia militar é considerada violenta, cas e poderosas. Essas seitas prometem a sal-
facilmente exposta ao ridículo e impune, pois vação e o paraíso aos ex-católicos dispersos e
é protegida por seus próprios tribunais; a ela é mal integrados na vida urbana; oferecem uma
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mensagem de sonho e misticismo, paralela a um século mais tarde, em 1995, subiu para 16
um temor pelo apocalipse próximo. milhões. Entre 1970 e 1995, o número de habi-
Com o fim do regime militar, a Igreja per- tantes passou de 8 para 16 milhões. Mesmo se,
deu o seu papel de defensora dos oprimidos e ao longo dos anos 80, o saldo migratório fi-
se afundou em conflitos internos – planeja- cou negativo e o número de emigrantes maior
mento familiar, luta pelo poder – que arrui- que o de imigrantes – desindustrialização, con-
naram a sua credibilidade. trole de entradas, especulação imobiliária – o
fluxo continua intenso. Por outro lado, a bai-
xa idade dessa pirâmide e a alta fecundidade
Fatores culturais das periferias garantem um avanço demográ-
fico contínuo.
O Brasil é o lugar dos paradoxos, onde se pre- Em muitos bairros da grande São Paulo a
sencia o choque de duas culturas: a cultura do taxa de crescimento da população ultrapassa
primeiro mundo, da Europa rica e branca, e a 4% ao ano e é, precisamente, nessas zonas que
cultura do terceiro mundo, pobre e negra. É a taxa de homicídio é mais elevada. É, efetiva-
certo que há miscigenação e que a separação mente, nas áreas de povoamento exógeno, on-
entre negros e brancos não é como nos EUA, de a população de migrantes tem grande difi-
mas existem claramente dois universos dife- culdade de encontrar trabalho e moradia, que
rentes e, socialmente, pouco integrados. As re- a polícia encontra as maiores dificuldades de
lações sexuais mistas não excluem a cisão so- controlar a escalada do narcotráfico e de ou-
cial nem a discriminação em matéria de casa- tros crimes. Ao se especializar em centro fi-
mento, emprego ou moradia. nanceiro e de serviços, e contar com tecnolo-
A sociedade brasileira é feita de uma cu- gia de ponta, São Paulo viu aumentar a exclu-
riosa mistura de latinidade e negritude, onde são das camadas menos qualificadas.
os contrastes e a discriminação social não tar- Entre 1950 e 1995, o Brasil, que tinha a po-
dam a se revelar por trás da informalidade, jo- pulação de uma potência média, passou a ter a
vialidade e cordialidade. Para escapar à sua população de um gigante demográfico: 53,4
condição, o negro tem de ser rico e isso torna- milhões, em 1950 para 161,8 milhões, em 1995.
se tanto mais difícil na medida em que aumen- Ou seja, os efetivos triplicaram em menos de
tam as barreiras entre os dois mundos e as di- meio século.
ferenças de níveis de vida e mentalidade se Ainda hoje, apesar de uma forte desacele-
aprofundam. Nas prisões e necrotérios, a po- ração, o ritmo de crescimento da população é
pulação é, em geral, negra ou mestiça; nas uni- superior à média mundial e, até 1980, ultra-
versidades, ela é 95% branca. passava o dos países do terceiro mundo. Esse
índice de crescimento ficou em torno de 3%
ao ano durante o período 1950-1970 (ao in-
A demografia urbana vés de 2,2% observado em outros países pou-
co desenvolvidos) e, mesmo que ele tenha caí-
A explosão demográfica entre os anos 1950- do recentemente (2% em 1980-1990) e ficado
1970, juntamente com a queda da mortalida- na média do mundo em desenvolvimento, sua
de infantil, traduz-se por uma pressão sobre velocidade continua difícil de gerir, pois se
as infra-estruturas e orçamentos, e por uma aplica a um conjunto muito maior e mais com-
competição feroz por emprego, agravados pe- plexo que na sociedade passada.
la recessão econômica dos anos 80. A noção de limiar crítico deve ser lembra-
Durante o período 1950-1970, a América da aqui, principalmente no tocante ao núme-
Latina tinha o crescimento demográfico mais ro de jovens adultos na faixa etária de 15-24
veloz do mundo. O produto dessa onda de nas- anos. Trata-se de uma população em busca de
cimentos está hoje na adolescência, idade mui- identidade, que não é mais criança embora não
to conturbada. Essa população luta para so- totalmente adulta. Essa população está em bus-
breviver e, ao procurar um lugar na socieda- ca de referências sentimentais, familiares, pro-
de, abandona o campo vindo desaguar nas fissionais, residenciais, etc.
grandes metrópoles. De que maneira, a sociedade brasileira, sa-
O caso da Grande São Paulo é um dos mais cudida pelos choques econômicos, poderia ab-
espetaculares da história urbana. Em 1895, sua sorver, suavemente, essa onda demográfica?
população era de apenas 200 mil habitantes; Essa sociedade está, na verdade, em plena tran-
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sição demográfica, isto é, na fase histórica pro- A globalização
visória de dilatação brusca de seu contingen-
te e sob influência da queda da mortalidade. O processo de globalização da economia ten-
Assim, no Brasil como um todo, a esperan- de a abolir a noção de fronteira. Dos dois la-
ça de vida, ao nascer, passou de 50 anos, no dos do Atlântico, criam-se grandes mercados
início dos anos 50 para 65 anos, em 1995. Tal (União Européia, Alena, Mercosul) e fala-se
progresso é produto, em larga escala, da redu- de supressão das fronteiras “internas”. Num
ção da mortalidade entre os jovens. A taxa de país como o Brasil, que faz fronteira com dez
mortalidade infantil, ou seja, o número de países e tem milhares de quilômetros para pro-
mortes em recém-nascidos e crianças de me- teger, essa evolução facilita a proliferação de
nos de um ano, baixou de 135% para 55%, em atividades ilegais e do crime organizado – rou-
cada mil nascimentos, entre 1950-1995. Ao bo de carros, narcotráfico, loteria, etc.
mesmo tempo, o risco de morte prematura, Com o fim das ditaduras militares e a der-
entre mulheres jovens, devido ao parto, caiu rocada do comunismo, os laços entre as diver-
para um terço. sas formas de crime foram reforçados. Milha-
Entretanto, essa explosão urbana, que ti- res de homens, saídos das instituições respon-
nha engendrado um crescimento descontro- sáveis pelo controle da ordem, habituados à
lado e anárquico das periferias – sobretudo em disciplina e ao manejo de armas, tiveram de
metrópoles, como Rio e São Paulo – atualmen- retornar à vida civil. Com freqüência, esses in-
te, está melhor controlada. A polarização do divíduos juntaram-se a organizações crimino-
espaço diminuiu e as correntes migratórias se sas com importantes ramificações internacio-
redirecionam para cidades com dimensões nais. Na seqüência, enormes estoques de ar-
mais humanas. mas, cada vez mais sofisticadas, entraram no
mercado provocando uma queda nos preços
e um maior acesso a armamento.
A influência dos meios de comunicação Paralelamente, a partir de meados dos anos
80, o narcotráfico alcançou uma amplitude
Os meios de comunicação e, em especial, a te- dramática na região dos Andes – Bolívia, Peru
levisão, tornaram-se um quarto poder, a se- e Colômbia – e, até mesmo o Brasil tornou-se
guir ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciá- um novo gigante da droga. Passou a ser não
rio. Não se pode negar que a televisão, hoje apenas país de trânsito para a cocaína, prove-
onipresente, forma as consciências, sobretu- niente dos países vizinhos e exportada para Eu-
do num país onde a escola é fraca e, onde as ropa e EUA, mas, também, local de consumo.
crianças passam, diante da telinha, a maior O desenvolvimento do narcotráfico, num
parte do tempo livre. contexto de crise sócio-econômica, é essencial
Ora, a televisão faz, a cada dia, a apologia para explicar o aumento das disputas e assas-
do dinheiro e da violência: os assassinos são sinatos sangrentos entre quadrilhas. Um cír-
apresentados como heróis dos tempos moder- culo vicioso se instala: roubo de automóveis
nos. Há um monopólio dos produtores e uma (para desmonte e venda das peças), assaltos a
ausência de controle dos consumidores, sub- bancos para a compra de alguns quilos de co-
metidos a uma enxurrada de imagens sangren- caína, bairros inteiros controlados por trafi-
tas. O império da mídia banaliza a violência. cantes que os transformam em mercado de
Ainda que a televisão desempenhe um pa- consumo da droga. Esse comércio é muito lu-
pel ambíguo – também é catártico –, as auto- crativo e profundamente devastador pois gera
ridades policiais concordam sobre a influên- um clima de guerra civil: rivalidade entre os
cia que têm os modelos, aprendidos em filmes chefes das bocas de fumo, tiroteios, blitz da
e novelas, no comportamento dos adolescen- polícia militar, acertos de conta entre policiais
tes. Muitos lamentam a ditadura da audiência corruptos de um lado e íntegros de outro,
e seus efeitos desastrosos sobre o diálogo em “vendettas” familiares, etc.
família. Numa cidade, como Fortaleza, onde a co-
caína está pouco presente, o crack ainda au-
sente e a qualidade da administração pública é
relativamente boa, a freqüência de homicídios
continua baixa. Nessa cidade, os assassinatos
estão ligados com freqüência a circunstâncias
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Jean Claude Chesnais

banais: brigas em conseqüência do álcool e nações. É também nesses países que a situação
violência doméstica. A maioria das vítimas é econômica se deteriora e que as moedas são
morta com faca e não com arma de fogo; o cri- fracas.
me permanece individual, artesanal. Em contrapartida, em países com forte dis-
Nas grandes metrópoles como Rio e São ciplina coletiva, como Alemanha, Suíça ou Ja-
Paulo, ao contrário, a droga gera lucros imen- pão, o homicídio é raro, a prosperidade bem
sos e mergulha centenas de milhares de jovens estabelecida e a moeda é forte, o que torna des-
na toxicodependência e no crime. necessário remunerar o capital com taxas de
A cocaína provoca perda da noção de es- juros abusivas para atrair ou impedir a fuga
paço, tempo e distância, além de provocar alu- de investimentos.
cinações visuais. O crack, ainda mais perigo- A violência se inscreve então num clima psi-
so, leva à dependência imediata e a uma ma- cológico coletivo, cujos significado e preço são
nia de perseguição geradora de pulsões agres- muito pesados. A instabilidade e o descrédito
sivas incontroláveis. Nos dependentes de crack, pagam-se caro, em dinheiro e em vidas huma-
a necessidade da droga leva ao roubo, à vio- nas, ainda mais na fase atual em que os capitais
lência, ao endividamento e à prostituição e, internacionais nunca estiveram tão voláteis.
em certos casos, à morte com Aids. Quanto à escola com sua vocação para
Os doentes são submetidos a um círculo transmitir conhecimentos de base: leitura, es-
vicioso de despersonalização total. O jovem, crita, cálculo, deve acrescentar o aprendizado
delinqüente ou menino de rua, vende pedras do civismo, e da tolerância. Essa mesma esco-
de crack nos sinais, recebe o dinheiro e o en- la deve, também, oferecer formações de qua-
trega ao patrão; mas se ele recusar-se a entre- lificação profissional, sobretudo em trabalhos
gar o dinheiro da venda ou se endividar por manuais (o número de trabalhadores manuais
ter se tornado também dependente, corre o não é satisfatório).
risco de ser eliminado. Num país jovem, o aprendizado da cida-
São Paulo é o mais atingido pelas drogas. dania é mais delicado que nas montanhas suí-
Segundo um dos responsáveis da delegacia de ças onde gerações vêm se sucedendo, há mais
entorpecentes, o número de viciados em crack de mil anos, nos mesmos vales, com condutas
chega a 150 mil. Se essa avaliação é correta, há bem regradas, definidas pela experiência e tra-
urgência de providências pois essas pessoas dição. O respeito a si mesmo e aos outros, e
estão condenadas à morte em pouco tempo. até o orgulho nacional, traduzem-se nos cos-
Segundo um responsável da polícia local, tumes, e no respeito à constituição, às leis e aos
a situação atingiu um ponto tal que, na parte regulamentos. Casos tão diferentes como os do
sul da Grande São Paulo, onde o desemprego Canadá e de Hong Kong são a prova disto.
e a miséria são maiores, a droga é a causa de
duas em cada três mortes, vítimas de arma de
fogo, na maioria. Uma visita ao Instituto Mé- Criação de um Conselho Superior
dico Legal mostra que essas pessoas são, ge- de Audiovisual
ralmente, mortas com perfuração do tórax por
uma bala calibre 38 – a arma mais comum en- A televisão exerce uma enorme influência so-
tre policiais e marginais – provocando hemor- bre a formação das mentalidades. Ora, esse
ragia generalizada. meio de comunicação está longe de exercer o
papel educativo que se poderia esperar dele,
exceto entre os cidadãos melhor formados, que
Recomendações políticas fazem um uso seletivo.
A televisão tem, é verdade, a imensa virtu-
O crescimento da violência reflete, em primei- de de unificar o território veiculando a mes-
ro lugar, a crise do Estado. Só nessa circuns- ma língua, a mesma mensagem e as mesmas
tância há deterioração do Estado-Nação, en- imagens sobre o espaço nacional. Mas ela tem
quanto representante do bem comum, repo- o defeito de impor aos mais vulneráveis e, com
sitório legítimo do direito e da força em no- freqüência, nas horas de maior audiência, um
me do respeito à lei. Exatamente como aconte- quadro fascinante mas sangrento; alguns so-
ce na Itália, na Rússia, na Colômbia, em Ugan- ciólogos chegam até a falar de “telemassacre”
da ou no Zaire, onde as máfias locais tomam quotidiano. Esse fato não é privilégio do Bra-
o poder e arruinam a credibilidade política das sil, é praticamente mundial.
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O estudo do conteúdo dos programas te- uma autoridade superior centralizada que en-
levisivos num país como a França (onde as carna o Estado, isto é, a coletividade como um
imagens são, todavia, menos sangrentas que todo. Essa transferência de legitimidade no
nos EUA) mostra que o telespectador vê vinte exercício da força, no direito a represálias, foi
vezes mais gângsteres do que crianças. Mesmo seguida de um recuo progressivo dos assassina-
os filmes cômicos estão repletos de atos de vio- tos e vinganças tradicionais.
lência. Não temos certeza de que o espetácu- Para encontrar, na história inglesa, uma ta-
lo da violência sirva de válvula de escape pa- xa de homicídios comparável à do Brasil atual,
ra a agressividade; as pesquisas criminológi- é preciso retroceder à Idade Média. A compa-
cas e a experiência policial levam, isto sim, a ração é pouco lisonjeira mas, ilustra a que pon-
pensar o contrário. to o clientelismo, o espírito mafioso e a cisão
O conteúdo dos livros escolares é conhe- de autoridade entre os chefes da droga cria-
cido, debatido, controlado e “educativo”. Por ram o caos e minaram os fundamentos do con-
que, então, o dos programas de televisão de- trato social no Brasil. O reinado das máfias
veria escapar à definição de certas normas e a constitui uma regressão, um retorno ao estado
um controle de qualidade? feudal e a própria negação da democracia, fun-
A televisão tem uma influência relativa no dada na legalidade de fato dos cidadãos dian-
Brasil, maior do que em outros países avança- te da vida.
dos onde a escola é precoce e para todos. Em A imagem do Estado deve ser mudada. O
nome de quais princípios, um punhado de Estado não é o polvo descrito por certos neo-
produtores de imagens pode impor suas nor- liberais. As economias mais competitivas e me-
mas na intimidade diária de milhões de lares? lhor preparadas para assumir a revolução tec-
Por que haveria um monopólio dos produto- nológica do século XXI são as de países com
res em relação à nação consumidora? Deve-se forte coesão e boa administração pública das
restabelecer o equilíbrio entre os interesses dos necessidades essenciais – de nada serve equipar
produtores – vender sensacionalismo – e dos os computadores se os problemas de base não
consumidores – divertir-se e instruir-se. No são resolvidos.
atual estado, os consumidores são passivos, A alta tecnologia só se implanta com su-
não têm voz; trata-se, então, de defender seus cesso onde os pré-requisitos de instrução, saú-
direitos como cidadãos. de e ordem pública estão assegurados. Um Es-
Nas condições atuais, é forçoso reconhe- tado incompleto é um Estado parcial; entre o
cer que, na falta de organização da opinião pú- Estado com funções reduzidas e o Estado ten-
blica, há uma ditadura de fato sobre as men- tacular e despótico das sociedades comunis-
talidades: a de um punhado de homens que tas, existe uma via intermediária: a do Estado
controlam as grandes redes de televisão. Esse ideal, definido por Locke (1690) há pelo menos
desequilíbrio entre os poderes é, não apenas, três séculos.
incompatível com o surgimento de uma de- O liberalismo não corresponde absoluta-
mocracia pluralista mas, pela importância ocu- mente à caricatura que lhe atribuem certos
pada pelas imagens de violência, gerador de pensadores neo-liberais. Por trás de privatiza-
medo, insegurança e perda de confiança. ções descabidas dos bens públicos, o que es-
ses pensadores pregam, na verdade, é o des-
mantelamento da própria estrutura que sus-
A reabilitação do Estado-nação tenta uma nação moderna.
A nação não é a república de proprietários
O Estado moderno, herdeiro da civilização que alguns extremistas liberais querem restau-
greco-romana, tem origem na Idade Média. rar. Ela se funda sobre a noção de cidadania e
Era a época em que, na Inglaterra, como na de igualdade de direitos no acesso aos bens pú-
França, os príncipes impunham regras de fun- blicos essenciais – instrução, saúde, segurança,
cionamento ao conjunto de territórios sob sua moradia e transporte.
guarda. O Estado existe para garantir o contrato
Os soberanos impõem grupos intermediá- social e reprimir o roubo; é ele o árbitro entre
rios especializados – tribunais, polícias – para os interesse particulares. A intervenção do Es-
resolver litígios entre indivíduos, famílias, al- tado deve, porém, limitar-se ao mínimo exi-
deias e clãs. A justiça passa, assim, de uma cé- gido para a gestão dos interesses comuns: co-
lula de base, como a família ou a aldeia, para meter crimes e delitos é infringir as leis que
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Jean Claude Chesnais

regem o direito de cada um sobre si mesmo e conjunto da profissão. Ao longo de nossas an-
sobre seus bens. danças em cidades tão diferentes como São
Esse retorno à concepção original de Esta- Paulo, Rio, Fortaleza e Belo Horizonte encon-
do Moderno se impõe a fim de restaurar a cre- tramos, nas delegacias e penitenciárias, ho-
dibilidade nos pilares da república: a estatís- mens notáveis, desinteressados, dedicados à
tica, a polícia, a justiça, a escola, o sistema de causa pública e com um aguçado senso do de-
saúde pública, de transportes coletivos, etc. ver de proteger a sociedade, ainda que ao cus-
to da própria vida. Testemunhamos o descon-
A estatística forto, a insegurança, a miséria e a extrema pre-
cariedade das condições em que trabalham.
A estatística não é apenas uma redução en- Em Belo Horizonte, por exemplo, onde o
fadonha – é, antes de tudo, um instrumento recrutamento e a formação psicológica da po-
de avaliação e auxílio nas decisões. Em maté- lícia são mais bem feitos, a violência é menos
ria de criminalidade, é graças a ela que se po- freqüente. A imagem da polícia, em sua natu-
de determinar áreas de risco. Ela permite, reza profunda, é que tem de ser mudada; ela
igualmente, identificar categorias de pessoas não deve ser vista como parasita mas como
perigosas ou em perigo e, então, hierarquizar instância intermediária da república entre os
as prioridades e instalar dispositivos de vigi- cidadãos, como defensora dos fracos contra
lância policial. A existência de zonas “pardas” os fortes, das pessoas honestas contra os mar-
que escapam a qualquer controle do Estado, ginais.
onde o crime acontece impunemente, é pre- Torna-se urgente restaurar a imagem da
judicial ao respeito pela coisa pública. função policial. Isso seria feito através de cam-
Postos de observação valiosos como o IB- panhas publicitárias mas, também, de um es-
GE ou o Seade, que fornecem aos governantes forço de revalorização das qualificações. A
os indicadores de que necessitam para orien- imagem a ser divulgada é a de uma polícia “ci-
tar suas escolhas, devem, certamente, ser rees- dadã”, a serviço do bem público.
truturados a fim de aumentar sua eficácia e Informação objetiva pode ser produzida
utilidade. Essa reestruturação não deve, entre- pelos grandes meios e, sobretudo, pela televi-
tanto, ser feita com cortes de pessoal e mate- são, denunciando, sim, os abusos da polícia
rial pois colocaria em perigo sua produtivida- mas mostrando, também, sua face oculta, mais
de. A solidez de conhecimentos é a base da discreta e desconhecida: a dedicação extrema
qualidade das escolhas dos dirigentes. O que de milhares de profissionais anônimos cujo
é um navegador sem bússola? papel é imprescindível para impedir uma “co-
lombianização” da sociedade brasileira.
A polícia A revalorização da profissão só se torna
exeqüível com a adequação das perspectivas
A polícia brasileira tem má fama e é alvo de carreira, ou seja, das funções e salários re-
de descrédito. Em todas as camadas da socie- lativos dos corpos policiais. Ao se saber rejei-
dade, inclusive nos meios policiais, ouvimos tada, desprezada e pouco instruída, a polícia
repetidamente que a polícia civil é corrupta e não se sente segura de si e adota um compor-
a militar violenta. Trata-se, é claro, de uma ge- tamento de desafio e provocação. Tudo me-
neralização grosseira e é preciso levar em con- lhoraria com a redução desse mal estar.
ta o ambiente de trabalho, a frustração profis- O medo é gerador de violência, o diálogo,
sional e os salários insuficientes para as neces- redutor. A conversa, a negociação e a diplo-
sidades de uma família. macia sempre foram substitutos ao uso da for-
Além disso, a corrupção, assim como a vio- ça. A idéia de uma “polícia cidadã”, com res-
lência, só atingem uma parte minoritária des- peitabilidade, integrada nos bairros, traba-
ses grupos profissionais. Entretanto, o mal lhando a serviço da comunidade local deve
existe inegavelmente e tem um efeito desas- abrir caminho.
troso, junto à opinião pública, para a imagem As carências funcionais e organizacionais
das forças da ordem. Esses defeitos têm razões da polícia pública levam à proliferação das
históricas e econômicas objetivas, difíceis de “polícias” paralelas, privadas. Em São Paulo
apagar a curto prazo. existe o triplo de vigilantes particulares (em
É certo que os desvios de alguns, ainda que bancos, companhias de seguro, imóveis, etc.)
numerosos, não devem manchar a imagem do que de policiais civis ou militares e essa polí-
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cia paralela, muito cara, só atende a uma mi- de base – como a saúde e a educação – carac-
noria da população. teriza crime contra o Estado.
Há, portanto, um sistema de segurança em A perseguição aos tecnocratas venais é in-
duplicidade, contrário à eqüidade e ao espíri- dispensável. Muitos hospitais são, na realida-
to republicano. Temos, de um lado, os happy de, verdadeiros depósitos de moribundos, sem
few, que dispõem de uma proteção segura e de chances de tratamento. O Brasil está relativa-
outro, a grande maioria da população. Essa mente mal colocado com relação à esperança
maioria é vítima de grande insegurança, com de vida e à sua progressão; é ultrapassado pelos
o sentimento de estar entregue à própria sor- Tigres Asiáticos que souberam implantar es-
te ou, mais exatamente, submetida às regras tratégias de desenvolvimento fundadas em cer-
cruéis dos grandes traficantes ou dos margi- tos princípios indispensáveis como investimen-
nais locais – passividade, respeito à hierarquia to humano – esforço de formação, saúde pú-
estabelecida e a lei do silêncio. blica, reforma agrária, sistema fiscal justo, etc.
A atual guerra entre as polícias é nefasta, No caso do Brasil, a redução de despesas
prejudicial a todos. A coordenação e, a seguir, com a saúde penaliza sobretudo os conjuntos
a fusão das polícias civil e militar deveria ser habitacionais mais vulneráveis, as áreas “par-
considerada. Tal reforma pode parecer utópi- das” da periferia e os morros. Ora, é precisa-
ca, considerando as resistências corporativas, mente nas áreas mais frágeis que se concen-
mas o início da coordenação das instâncias di- tra a maior parte dos homicídios. A precarie-
rigentes com resultados promissores, como no dade das comunicações, a insipiência dos ser-
caso de Fortaleza, mostra o caminho a seguir. viços de urgência – ambulâncias – e de trau-
Na luta contra o crime organizado, a refor- matologia, têm efeitos desastrosos sobre a
ma da polícia traria inúmeras vantagens: 1) mortalidade e o equilíbrio moral das comu-
redução dos custos; 2) aumento da eficiência; nidades afetadas.
3) modificações no recrutamento e na forma- Essas comunidades são as primeiras víti-
ção. Temos consciência de que não se pode evi- mas do corte orçamentário e da falência finan-
tar uma parte do recrutamento feita em áreas ceira no município de São Paulo. Elas se sen-
de criminalidade, para facilitar a infiltração, tem abandonadas, desprezadas e podem, em
mas isso deve ser feito com prudência. conseqüência disso, tornarem-se hostis, peri-
gosas e mesmo, manipuladas por líderes ca-
A saúde rismáticos irresponsáveis que as incitem ao
ódio, à violência e à revolução. Essa fase de ex-
É preciso devolver à saúde pública a prio- clusão não pode durar para sempre. Uma radi-
ridade no orçamento civil. O caso da União calização sub-reptícia já se manifesta, aqui e
Soviética, onde o orçamento destinado à saú- ali, em torno de alguns líderes negros.
de foi reduzido em meados dos anos 60 com Alguns cemitérios do sul de São Paulo lem-
a tomada do poder pelo lobby militar encabe- bram os cemitérios dos campos de batalha das
çado por Brejniev e a corrida armamentista, guerras civis européias do século XX. Nesses
deve servir de advertência. Esse país, que em cemitérios, os túmulos são, em sua maioria,
1965 tinha uma esperança de vida igual à do de homens jovens, assassinados, entre 15 e 30
Japão, constata, trinta anos mais tarde, uma anos.
queda de mais de 15 anos nessa taxa – poden- Essa maioria é composta por indivíduos
do chegar a vinte anos, entre os homens. que não tiveram na sociedade outra alternati-
O enxugamento do orçamento social im- va senão o trabalho informal – metade do to-
posto pela política de “apertar os cintos” e pe- tal de empregos, no país – ou a atividade ile-
la pressão das autoridades monetárias inter- gal, para não dizer o crime. Eles foram abati-
nacionais em nome do ajuste estrutural – con- dos por soldados da droga, esquadrões da mor-
trole da inflação e do déficit público – não de- te ou policiais; presos nesse infernal círculo
ve ser executado de maneira cega nem, muito do vício, eram, ao mesmo tempo, assassinos e
menos, dispensar o esforço de um controle fi- vítimas. Órfãos, crianças sem pai, jogados na
nanceiro pelo Tribunal de Contas, que zela pe- rua, analfabetos ou semi-analfabetos, eles ig-
la aplicação dos recursos votados. Em tempos noram as regras elementares do civismo; vi-
de austeridade orçamentária, como os atuais, veram, desde a mais tenra infância, num uni-
o desvio, a cada ano, de bilhões de dólares ini- verso brutal e impiedoso, onde o respeito e a
cialmente destinados a investimentos sociais hierarquia têm por base a violência e o ran-
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Jean Claude Chesnais

king do crime. Sempre estiveram mergulhados uma maior adaptabilidade, fruto da qualida-
em condições de precariedade, física e mate- de da formação de base, para enfrentar a de-
rial, extremas; como, para eles, a vida não tem sestabilização gerada pela intensa concorrên-
valor – a deles ou a dos outros – não temem a cia. Como reaproveitar milhões de ex-agricul-
morte; sabem que, nesse meio, muitos têm vi- tores, ex-operários e ex-empregados se eles
da curta. O crime, a Aids, as drogas ou o ál- não têm nem mesmo os rudimentos dos co-
cool vão eliminá-los no limiar da vida adulta. nhecimentos de base necessários?
O próprio sistema penitenciário deve ser Ora, o ensino público brasileiro é notório
repensado e readaptado às exigências, atuais pela deficiência e pelo despreparo com rela-
e futuras, caso contrário, será elevado o preço ção às exigências do futuro. Os professores,
pago pela sociedade brasileira. cujos salários são irrisórios, não têm forma-
A elevação acelerada do crime organizado ção contínua, não conseguiram se adaptar à
fomenta a formação de uma nova classe cri- mudança do ensino de elite para o ensino de
minal recrutada entre os marginais, formada massa e sua função cívica – ensino das leis, da
e aperfeiçoada pelo contato com criminosos ética e de valores em geral – tende a desapare-
profissionais nas celas das delegacias e, a se- cer. Isso acontece exatamente quando essa fun-
guir, nas grandes penitenciárias. Durante uma ção é mais necessária, devido à crise da famí-
entrevista, um criminoso lançou de maneira lia, da sociedade e ao caos intelectual e moral
brutal: “Na escola pública eu fiz o primário, na provocado pelo desregramento dos meios de
prisão preventiva, o secundário e, depois de vá- comunicação.
rias passagens por Carandiru, fiz o curso supe- A escola deve, então, redefinir prioridades
rior. Tenho todos os diplomas da escola do cri- políticas. A violência é fruto, mais da ignorân-
me, conheço minha profissão e sou respeitado”. cia, que da pobreza. Quais são as referências
do analfabeto numa sociedade de sinais, de
A educação símbolos e de códigos cada vez mais comple-
xos? Como pode um governo, que prega a en-
O proveito econômico da formação de ba- trada no terceiro milênio pelo advento das no-
se em termos de crescimento e desenvolvimen- vas tecnologias, conceber esse salto para a mo-
to já foi determinado e é, regularmente, enfa- dernidade sem um investimento maciço em
tizado pelo Banco Mundial. Na sociedade do qualificação? A sociedade do futuro vai exigir
século XXI, os trabalhadores analfabetos ou maior flexibilidade e adaptabilidade que a do
semi-analfabetos estarão cada vez mais defa- passado, o que requer uma sólida formação de
sados: a mecanização, a automatização, a in- base para o maior número possível.
formatização e a globalização os marginaliza-
rão e excluirão. Então, o papel da escola é pre- Uma redefinição do Estado
parar o futuro, formando e enquadrando os
efetivos futuros. Duas tentações extremas devem ser evita-
A educação não deve limitar-se apenas à das: a de tudo pelo Estado, que desabou com
transmissão de conhecimentos fundamentais: o comunismo e a de nada pelo Estado, mais
leitura, escrita, aptidão à abstração matemá- na moda, mas igualmente perniciosa.
tica, conhecimento de línguas estrangeiras, etc. O neo-liberalismo atual consiste em se ga-
Ela inclui, também, o aprendizado de regras bar das vantagens do Estado mínimo, isto é,
de comportamento em sociedade, do civismo, em destruir, em última estância, o Estado, con-
do respeito pelo outro, pelas instituições e pe- siderado como parasita, como um polvo bu-
las leis, o conhecimento dos direitos e deveres rocrático e, em conseqüência, desmantelar os
do cidadão, o incentivo à inovação e à vida as- serviços públicos de base – educação, seguran-
sociativa e política local. Essas matérias são, ça, saúde, etc. É uma via sedutora pois, é fla-
igualmente, dimensões essenciais da recupe- grante o fracasso do comunismo, fundado so-
ração nacional. bre a negação do setor privado. O retorno do
A perda de prioridade pelo setor da edu- cripto-comunismo em vários países da esfera
cação, a partir do início dos anos 80, diz res- soviética, depois de um período de pseudo-
peito, sem dúvida, à crise da sociedade e da abertura, retarda a transição e desqualifica os
economia brasileiras. O choque da globaliza- países envolvidos.
ção foi melhor tolerado pelos países mais so- Trata-se, então, de fundar novamente um
lidários e preparados mentalmente, graças a Estado ideal, de maneira a permitir o equilí-
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brio entre a liberdade – do Estado mínimo – na os bancos e endivida excessivamente as fi-
e a igualdade – do Estado máximo. A busca nanças públicas, levando a uma redução do
de eficácia não deve sufocar o imperativo de orçamento social. O desinvestimento social,
eqüidade. por sua vez, repercute sobre a violência, a cri-
A comparação das performances econômi- minalidade e, por isso, sobre os negócios.
cas nas últimas décadas não deixa dúvidas: o De acordo com a fórmula alemã, inaugu-
sucesso é dos novos países industriais (Coréia rada logo após a Segunda Guerra, o que falta
do Sul, Taiwan) e dos “tigres” de segunda gera- inventar é uma economia social de mercado,
ção (Tailândia, Indonésia). Todos esses países com compromisso sutil entre o Estado e as for-
têm um governo forte, com uma administra- ças de mercado.
ção pública robusta, eficaz, controlando a to- Há bens públicos que não deveriam, em
talidade do espaço nacional na realização de nenhuma hipótese, ser privatizados sob o ris-
suas funções vitais: a infra-estrutura – estra- co de romper os frágeis termos do pacto so-
das, transportes aéreo e ferroviário, rede pos- cial e de gerar a total perda de legitimidade das
tal, telecomunicações, audiovisual, captação instituições. O discurso, bem difundido entre
de recursos hídricos, construção de esgotos, certos intelectuais, sobre a “violência institu-
etc. – e a valorização do capital humano – sis- cional” encontraria então sua justificação ple-
tema de saúde, de ensino, de segurança. na e a ordem bárbara das máfias se imporia
Entre os inúmeros interlocutores – brasilei- sorrateiramente, pela fraqueza do Estado e o
ros e brasilianistas –, vindos dos mais diferen- desaparecimento do civismo, ou seja dos vín-
tes círculos, a maior parte ressaltou a impor- culos sociais.
tância de sair do imobilismo, ligado ao corpo-
rativismo secular, que só interessa a uns pou-
cos privilegiados e limita o impulso de inova- As reformas estruturais
ção que leva a reformas estruturais. O que está
estigmatizado é muito mais a falta de Estado – A integração nacional
ou sua inadequação – que o excesso. A palavra
de ordem seria, em suma: um melhor Estado. O Brasil é o país das misturas, a única na-
Um brasilianista de renome chegou mes- ção verdadeiramente universal, onde coexis-
mo a dizer que o Brasil precisava de uma te- tem todas as grandes civilizações do planeta,
rapia de choque para sair do terceiro mundo, mas é também, o país das desigualdades e dos
algo comparável ao esforço japonês que se se- extremos. As maiores fortunas vão de par com
guiu à derrota militar de 1945. Foi, com efeito, a mais abominável miséria.
a ocupação americana que ditou as reformas Essa realidade prejudica a imagem do país.
institucionais indispensáveis para fazer des- A nova doutrina internacional do desenvolvi-
lanchar a economia – constituição, reforma mento, proclamada em todas as cúpulas mun-
agrária, modificação do sistema de saúde, de diais – Cairo, Copenhague, Pequim – é uma
educação, de impostos, etc. doutrina que incorpora o social. Os mais emi-
É inútil perder tempo com querelas teóri- nentes economistas do Banco Mundial ten-
cas sobre a função do Estado, a experiência fa- dem a privilegiar, daqui para a frente, objetivos
la por si mesma, além do mais, a sociedade como o crescimento “sustentado” – isto é, com
brasileira tem problemas urgentes e concretos redistribuição da renda –, o desenvolvimento
a resolver. O investimento social – saúde, en- “humano”, a capacidade de eliminar a “pobre-
sino, segurança – é pré-requisito do investi- za de massa”.
mento econômico. Um desenvolvimento, muito desigual co-
A perda de credibilidade do Estado brasi- mo o que a aceleração da globalização tende
leiro é um círculo vicioso de onde se deve im- a suscitar em todo lado, a partir do início dos
perativamente sair ou o país ficará compro- anos 80, leva a reduzir e, mesmo, a eliminar a
metido numa espiral infernal e sem saída. coesão da sociedade. Os países considerados
A irresponsabilidade, a corrupção, o des- como modelos são os que souberam aliar efi-
crédito levam a déficits, a falências e a evasões cácia e eqüidade. Foi o caso, por exemplo, da
de capital que só podem ser corrigidos com a Indonésia dos anos 80 que conseguiu implan-
elevação maciça das taxas de juros: o Brasil tar uma política de preços e salários, se abrin-
tem, hoje, as taxas de juros mais elevadas e do ao estrangeiro ao mesmo tempo que se
atraentes do planeta. Mas esta situação arrui- apoiava num Estado forte.
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Jean Claude Chesnais

A responsabilização dos formadores de do álcool nas mortes violentas é amplamen-


de opinião e das associações locais te reconhecida, mas não a da droga.
Além disso, é preciso ter uma visão global
Os intelectuais, universitários, jornalistas e da toxicodependência. Pesquisas levadas a ca-
pesquisadores não são, em geral, comprometi- bo junto aos jovens mostram que os fenôme-
dos com estudo de campo; seus conhecimen- nos de consumo de substâncias tóxicas são in-
tos sobre o mundo do crime são parciais e, terdependentes, melhor dizendo, são com fre-
com freqüência tendenciosos, daí os perigo- qüência as mesmas pessoas fumantes-droga-
sos preconceitos que alimentam a desconfian- dos-alcoolátras, como se fosse uma síndrome
ça com relação aos representantes do Estado de autodestruição física.
– policiais, juízes, guardas penitenciários, etc. Ora, os toxicólogos sabem que a associa-
– cujo quotidiano é ignorado. ção álcool-droga produz perturbações graves
A formação de associações locais – espor- no funcionamento do organismo humano –
tivas, culturais, religiosas – nas áreas de alta alucinações, dormência, modificação do ritmo
insegurança deve ser encorajada pois facilita cardíaco, da respiração, da digestão, etc. Num
a vitalização da trama social e reduz a ociosi- país como o Brasil, o balanço exato da toxico-
dade dos jovens. Reunir iniciativas comuni- dependência, em termos, ao mesmo tempo, de
tárias vindas dos movimentos de mulheres, saúde pública e desequilíbrio da atividade eco-
médicos, professores, líderes “naturais”, jo- nômica – assalto a bancos, roubo de carros,
vens, empregadores, autoridades morais e re- crimes, delinqüência, corrupção, insegurança
ligiosas, pode constituir o equivalente dos co- – ainda está por fazer. E é, certamente, pesado.
mitês tradicionais de vigilância das civiliza- A luta contra a toxicodependência supõe,
ções clássicas; pode, sobretudo, exercer a dis- antes de mais nada, uma profunda vontade po-
suasão, um contrapeso eficaz face às gangues, lítica que se faça notar. Isso se efetivaria, por-
especialmente onde a polícia não dispõe de tanto, através de uma pressão dos meios de co-
meios suficientes. municação e da opinião pública.
A demanda de descentralização/munici- Ações de força como na Itália e na Colôm-
palização é grande, tanto em termos de redis- bia não devem ser excluídas. Mesmo o Exér-
tribuição dos poderes como de gestão das fi- cito teria um papel pois há perigo a vista:
nanças locais. Constatamos a força dessas as- ameaça contra a segurança interna e, freqüen-
sociações perto do Rio, em uma área da Bai- temente, com cumplicidade externa. Há redes
xada Fluminense, conhecida pelo nível de ex- de criminosos que é preciso desmantelar, ata-
trema violência. A população local se reúne, cando os chefes e neutralizando seus depósi-
se organiza e se constitui como grupo de pres- tos de armas e munição.
são, criando assim um contra-poder eficaz em
relação ao poder oficial e aos poderes parale-
los – narcotráfico – ao mesmo tempo. A revolução do ensino

A estocagem de dados, a informatização, a


A luta contra a toxicodependência centralização, as escutas telefônicas, a recons-
tituição de fluxos físicos, financeiros e bancá-
Em inúmeros países do ocidente, é hábito afir- rios não podem ser feitas sem um trabalho sé-
mar que o custo demográfico do consumo de rio de inteligência estratégica – campanha,
drogas é baixo: a morte por overdose é, na ver- detecção, identificação, sinalização e recons-
dade, rara, mas isso é ver apenas a ponta do tituição do organograma das redes de mafio-
iceberg. Muitas mortes em acidentes automo- sos. Nos anos 70, foi a reorganização do BKA
bilísticos, por suicídios e por homicídio, so- – Bundeskriminallamt – na Alemanha, que
bretudo, podem ser imputadas à droga. A de- possibilitou acabar com a onda de atentados
tecção de THC (tetrahidrocloreto) na urina terroristas organizados pela Facção Armada
das vítimas é prova disso. Na França, por Vermelha, sob as ordens de Moscou. Da mes-
exemplo, dos jovens vítimas de acidentes na ma forma, na Itália atual, a tomada do poder
via pública, um quarto são consumidores de pelos juizes, com o apoio da opinião pública,
maconha. O uso da droga cria um sentimen- permitiu desmantelar a máfia siciliana.
to de euforia e uma perda de consciência da O Brasil, como lugar de trânsito (e produ-
velocidade e das distâncias. A responsabilida- ção) da droga e de armas de fogo, tem de re-
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constituir igualmente as conexões com as redes A cooperação das polícias
estrangeiras e as ligações com outras máfias,
sobretudo os cartéis dos países vizinhos – Co- À globalização do crime deve-se responder
lômbia, Bolívia, Peru – ou mais distantes – Itá- com a globalização da luta contra o crime. O
lia, EUA, China, Rússia, Turquia, etc. crime organizado entrou na era “hight tech”
Sob essa ótica, uma colaboração com os – telefones celulares, armas automáticas; é a
serviços especializados da CIA, do Narcotics vez da polícia alfandegária e dos serviços de
Intelligence Consumers Committee, da Inter- informação fazerem o mesmo.
pol e do FNULAD (Serviço de Entorpecentes Os laços com as polícias dos países andi-
das Nações Unidas) é prioritária. Enfim, um nos – Colômbia, Bolívia e Peru – devem ser
registro nacional das armas de fogo deve ser incentivados e dirigidos de forma a harmoni-
implantado após uma revisão da legislação zar as práticas e partilhar informações. Mas, é
num sentido mais restritivo. sobretudo a cooperação com os EUA que deve
ser ativada a despeito da má vontade evidente
de certos líderes brasileiros, hostis, devido à
O endurecimento da legislação sobre sua corrupção, a operações como a teledetec-
as drogas e as armas de fogo ção de campos de droga e de aeroportos clan-
destinos na Amazônia.
Mantendo-se as tendências recentes, cedo ou Sob esse ponto de vista, uma vez que a vio-
tarde, o Brasil estará numa posição compará- lência tomou a dimensão de uma guerra civil
vel à dos EUA onde mais da metade das famí- latente, de uma “Ersatzkrieg”, nada impede de
lias estão armadas e um lobby poderoso será se buscar apoio no exército para fazer guerra às
constituído em favor da autodefesa e da livre drogas – neutralização dos bandos organiza-
propriedade de armas de fogo. dos, confisco dos depósitos de armas, contro-
A National Rifle Association é, juntamen- le e vigilância dos guetos, controle de docu-
te com o lobby dos caminhoneiros e do Auto- mentos, prisões, etc.).
móvel Clube, um dos lobbies mais poderosos
dos EUA. Ela se opõe ao “guns control” e cons-
titui o principal obstáculo na luta contra o cri- A revalorização das funções
me organizado. Não é raro encontrar-se, em do funcionalismo público
certos bairros perigosos de várias grandes ci-
dades, na própria entrada ou junto aos muros A imagem do pessoal dos serviços públicos de-
das escolas, jovens adolescentes de 12 a 15 anos ve ser mudada e a moda do “privado”, do di-
portando armas de fogo. nheiro fácil, que fez furor no ocidente nos anos
A regulamentação no Brasil deve evitar tal 80, já deu mostras de falência; seus custos são
descontrole, tanto mais que sua situação so- em termos de crescimento da pobreza, da cri-
cial – grau de desigualdade, hiper-urbaniza- minalidade e da ruptura dos laços sociais. O
ção, desemprego em massa, marginalização que está em causa é o risco de eliminação de
crescente dos jovens, etc. – é, potencialmente, uma classe média ambiciosa, motivada e con-
explosiva. O porte de arma deve ser estrita- fiante. A história já provou, entretanto, que a
mente proibido e a sua propriedade controla- prosperidade das nações está ligada a emer-
da mais severamente. gência dessa classe empreendedora.
Enfim, a legislação sobre a toxicodepen- Ora, o salário de um médico no setor pú-
dência tem de ser revista, não se pode punir da blico é da ordem de 10 mil dólares ao ano, o
mesma maneira a vítima – consumidor – e o de um detetive, 8 mil dólares, o de um profes-
assassino – traficante. A hierarquia das penas sor primário, apenas 6 mil dólares, enquanto
deve ser reconsiderada, o código penal revisa- que os preços são comparáveis aos dos países
do, em função da profissionalização do crime, ricos, da América do Norte ou da Europa oci-
sobretudo entre o sub-proletariado urbano. dental.
Grande número de funcionários são, en-
tão, levados a ter um segundo emprego, en-
quanto outros vendem seu silêncio, sua cum-
plicidade ou colaboração aos que dispõem de
dinheiro sujo. Essa defasagem em relação ao
setor privado é flagrante demais para não le-
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Jean Claude Chesnais

var ao abandono, à desmotivação e a uma ca de predomínio da consciência planetária


desqualificação dado o baixo nível do recru- através dos meios de comunicação e, mais pre-
tamento. cisamente, de algumas agências de imprensa.
Nesta época, um país como o Brasil, com tan-
tas qualidades, cometeria um grave erro se per-
Conclusões: A potencialização desse, mais uma vez, a sua chance, ao ceder aos
das capacidades brasileiras apelos da moda e esquecer que nenhuma na-
ção foi bem sucedida ao tentar sair do subde-
O Brasil tem uma imagem internacional ambí- senvolvimento num clima de anarquia. A atua-
gua, feita, ao mesmo tempo, de fascinação e lidade russa e a africana – Nigéria, Uganda, Zai-
de descrédito. O país é dotado de trunfos, na- re – nos faz lembrar disso a cada instante.
turais e humanos excepcionais, mas ele é mais As perspectivas de crescimento só se tor-
conhecido por sua jovialidade que por sua cre- nam realidade quando fundadas na solidez do
dibilidade. Estado, na estabilidade das instituições, em in-
A famosa fórmula assassina já é, há muito, vestimentos no futuro, e, assim, num ambien-
conhecida: “este país do futuro será sempre te de confiança a longo prazo. A estabilização
um país do futuro”. da moeda – em harmonia com uma reforma
É sabido que o Brasil pode, considerados fiscal – deveria restabelecer o otimismo dos
seus recursos, sua criatividade e seu peso de- investidores e contribuir para facilitar o retor-
mográfico, alcançar, num prazo de três a qua- no ao crescimento econômico.
tro décadas apenas, o quinto lugar mundial O crescimento, por sua vez, deveria permi-
em termos de potência econômica. Mas, para tir a criação de novos empregos e a elevação
isso, tem de acabar com a sua reputação de do nível de vida. Essa elevação do nível de vi-
eterno adolescente, incapaz de disciplinar suas da levaria a um aumento na entrada de recur-
pulsões. sos fiscais, a um saneamento das finanças pú-
O sucesso do esforço para o controle da in- blicas e a um restabelecimento das funções vi-
flação é, sob este ponto de vista, uma etapa es- tais do Estado. A evolução recente conduz a
sencial que deve ser consolidada. A restaura- um nítido impasse: o custo da segurança glo-
ção da sua credibilidade, entretanto, tem de ir bal – pública e privada – no Brasil, está ava-
mais além. É a noção do bem público e da liado pela soma astronômica de 28 bilhões de
perspectiva que deve ser posta como ponto de dólares, ao invés dos 5 bilhões previstos no or-
honra e almejada pelas novas elites. A corrup- çamento das forças armadas.
ção e os desvios de fundos públicos devem ser Os bancos, o comércio, as empresas de
sancionados de forma exemplar, ou seja, in- transporte e o cidadão comum gastam somas
tensamente divulgados pelos meios de comu- extraordinárias com investimentos em segu-
nicação. rança – vigilantes, equipamento – e com pla-
Por que há tão poucos de seus habitantes nos de seguro. O resultado desses investimen-
que se sentem orgulhosos de dizer que são bra- tos é duvidoso: agravamento da delinqüência
sileiros, enquanto americanos, alemães, japo- e da criminalidade.
neses, e etc., têm orgulho da nacionalidade que A restauração da autoridade do Estado per-
possuem? mitiria atenuar a realidade e a psicose de in-
Esse déficit na imagem internacional tem segurança o que deslocaria, progressivamen-
um preço muito elevado, incomensurável. É te, os gastos com segurança para investimen-
esse déficit que induz a uma volatilidade de tos produtivos.
capitais e faz subir os juros a índices surrea- O Estado é a encarnação da República, is-
listas. Esses índices asfixiam os bancos, arrui- to é, dos interesses superiores da nação; é o
nam as empresas e os indivíduos – endivida- principal responsável no processo de civiliza-
mento excessivo – comprimem os orçamen- ção dos costumes; é o protetor legítimo e o ár-
tos públicos e sociais provocando, portanto, a bitro entre os conflitos que dividem os cida-
decadência dos serviços públicos que estrutu- dão ou os grupos privados. Ao faltar com o
ram a sociedade – infra-estrutura, escola, saú- respeito ao Estado expomo-nos à desordem e
de, segurança, etc. ao risco de explosão social.
Restaurar a credibilidade brasileira – so- Nas sociedades urbanas avançadas, a exi-
bretudo através de sua moeda – é, portanto, a gência por segurança é cada vez mais acentua-
prioridade das prioridades. Vivemos uma épo- da. A busca, individual, de segurança é enor-
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me e, talvez, excessiva em relação às possibili-
dades reais.
A globalização só faz reforçar esse impe-
rativo de segurança. Isso se deve ao fato de que
os autores, na área financeira, vivem num uni-
verso sem fronteiras onde é decisiva a imagem,
veiculada pelos meios de comunicação, dos
países e das megalópoles gigantes. O retorno
a um clima de segurança tem, por isso, um va-
lor incalculável em termos econômicos e fi-
nanceiros.

Referência
Locke J 1690. Second Treatise of Government, livre 11.

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