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IRMÃ DE CRIAÇÃO

Parte1

O socorro

O relógio da parede da sala marcava exatamente vinte e uma horas


quando o socorro chegou. Levaram oito minutos para chegar à casa que ficava
a pouco menos de dois quilômetros da cidade, à Rua Hoban Road 1701. Não
poderiam ter levado mais que cinco minutos para esse percurso. A Região é
muito tranquila, valorizada e arborizada. A casa era uma construção mista de
dois pisos em estilo colonial do início do século XX. Possuía amplas janelas em
veneziana, quase sempre fechadas. Apenas uma folha da veneziana ficava
aberta esporadicamente e uma varanda que se estendia por toda a extensão
frontal. Deixaram a viatura na rua, pois o acesso à casa estava interrompido
devido obras na distribuição de gás. Passaram com a maca por uma rampa
improvisada e cruzaram os cinquenta metros de jardim. Um gramado muito
bem cuidado onde imperava uma magnólia branca e uma cerejeira florida,
como na cidade toda. As cerejeiras são um espetáculo à parte nessa época do
ano. A porta principal dava acesso à sala de estar, Um local de pouca luz
direta, pois havia três quadros na parede que Sam tratava com muito cuidado.
Eram duas telas, uma expressionista, o Grito, de Munch e outra surrealista,
Guernica, de Pablo Picasso. Havia outra do lado oposto, sob a lareira, o Mapa
do Inferno, de Botticelli, a qual causava um estranho encantamento. Nunca se
discutiu sobre a autenticidade delas, mas Sam não se importava com isso e
não estamos aqui para discutir isso. Toda mobília da sala mantinha um estilo
colonial, feitos em madeira pau Brasil. O sofá, também era de estrutura do
mesmo material com almofadas em veludo na cor vinho. O ambiente era
iluminado por dois castiçais de teto com cinco lâmpadas fracas em cada um
deles. A luz projetada da cozinha invadia o espaço pelo corredor dava um tom
avermelhado a metade do ambiente. Quando a lareira estava acesa, quase
sempre estava, as sombras se multiplicavam e seus reflexos davam movimento
às imagens nas telas. As duas diretamente e o Botticelli recebia flashes de luz
e sombra refletidos por um espelho de um metro e meio quadrado posto entre
as duas telas.

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Entraram pela sala, viraram o olhar para cima a esquerda, na escada e
seguiram a orientação de seguir para a cozinha.
As escadas que dá acesso ao piso superior ainda mantinha a sua
originalidade. Fora construída em mogno vermelho envernizado. O mesmo
material dos corrimãos. Subia por vinte degraus que depois se dividam para
dois lados com quinze degraus que acendiam ao mezanino superior cujo
guarda corpo, com um metro de altura, era do mesmo material. As escadarias
da residência eram reveladoras. Cada um de seus degraus dava a impressão
de um diferente nível de entendimento. Entendimento esse que separa o
mundo sensível do inteligível, uma ascensão que é capaz de produzir efeitos
concomitantes de angústia, medo e temor. Da mesma forma que une a terra ao
céu, Cristo à sua cruz.
Fora difícil os primeiros dias com Sam nessa casa.
O corredor entre a sala e a cozinha tinha quatro metros com uma porta
de cada lado onde ficavam uma biblioteca do lado direito e a sala de jantar, do
lado esquerdo. Era um corredor amplo, com dois metros de largura, com suas
paredes brancas amareladas e nenhuma decoração, a não ser uma pequena
cômoda, logo na entrada, onde ficavam as chaves e a medicação.
Os dois socorristas invadiram a cozinha. O rapaz era um negro com um
metro e oitenta, rosto muito bem definido, braços largos e olhar sereno, mas
extremamente objetivo, aparentava uns vinte e quatro anos. A moça era uma
jovem médica, que aparentava ser um pouco mais velha que seu assistente.
Tinha grandes olhos negros bem definidos, uma sobrancelha bem feita e
mantinha seu cabelo trançado e preso, mas que não impediam de perceber
que eram longos e lisos. Um pouco menor que o rapaz, era extremamente
prática em dar ordens. Fazia-o de tal forma que dificilmente alguém a
contestaria.
O rapaz correu os olhos rapidamente pelo local. Ao contrário do restante
da casa, esse era o espaço onde imperava a modernidade. Toda circundada
por granito marrom imperial e armários brancos, as torneiras tinham a cor ouro
polido e uma janela com grades para os fundos da casa. Ao lado dela uma
porta que dava acesso ao deck exterior. A casa era uma mistura de passado e
contemporaneidade. O limite da residência quase se confundia com Glover
Archbold Park. Do lado oposto ficavam a pia e um fogão de indução preto.

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Abaixo dele, um forno elétrico e, no final da mesma parede, um refrigerador
duplex branco.
No centro da cozinha, uma mesa em granito da mesma cor do restante.
Media um metro por dois com um prato giratório ao centro feito em vidro
marrom fumê. Seis cadeiras em madeira nobre e forradas com suede bege.
O lugar estava perfeitamente limpo e arejado, a porta e a janela estavam
abertas, Ainda era começo de primavera, embora o clima fosse ameno nesse
meio de estação, hoje o calor estava intenso.
Sam estava sentada na cadeira da ponta, como sempre o fizera. Desde
que veio para essa casa. A cabeça caída sobre a mesa com seus longos
cabelos lisos que caiam pela borda e faziam movimentos pendulares
descompassados, conforme a pouca brisa entrava. Seu braço direito estava
sobre a mesa, apoiando a cabeça e o esquerdo, solto, pendurado e imóvel. A
pequena mão entreaberta permitia perceber as unhas dos quatro dedos que
ainda tinha muito curtas e roídas, porém delicadas. É sinistra e ao perder o
dedo mínimo ainda menina, aprendeu a usar e escrever com a mão direita.
Suas pernas estavam trançadas numa elegância que era a peculiar em
Samantha. Os delicados pés, recobertos por uma pantufa violeta que ganhara
de uma brasileira que conheceu na faculdade. Sam era muito apegada a
quinquilharias. Vestia uma calça pantacourt bege em tecido de linho com
viscose tinha o comprimento entre o joelho e a canela, mais parecia uma
bermuda larga, mas com um shape mais solto. O cós prolongado com elástico
e babado embutido, cordão para amarração com acabamento em tassel quase
consumiam com seus um metro de cinquenta e nove e as pregas frontais e os
bolsos davam a impressão de que ela tinha bem mais que quarenta e cinco
quilos. O pouco corpo que ainda restava para ser coberto ficava sob uma
regata crepe básica branca que cobriam apenas seus pequenos seios,
deixando a mostra sua delicada e aveludada pele, mais branca que o normal,
em todos os vinte e dois anos.
Os pequenos e negros olhos de Sam estavam parados e suas pupilas
dilatadas e paradas, a longa sobrancelha cerrada sobre os olhos, a pele fria e
um pouco amarelada, não se percebia respiração, nem mesmo respondia a
chamados e estímulos.

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Sobre a mesa uma caixa de trifluoperazina vazia, uma taça de cristal
com água pela metade, uma caneta preta e um diário de capa dura na cor
cinza e um jornal com a manchete de trinta e um de março.
A dupla pôs Sam deitada no chão e a médica colocou a mão sobre o
pulso de Sam e buscou pela atividade cardíaca, imediatamente, a médica
afrouxou-lhe as roupas, o cordão da calça, elevou seu pescoço para
desobstruir as vias aéreas, cortou as alças da regata de Sam e abaixou-a,
deixando a mostra seus pequenos seios e bradou em tom enérgico.
— Desfibrilador
Enquanto o rapaz reparava o equipamento, ela se posicionou de frente
para Sam e encheu-lhe os pulmões de ar, num beijo longo e profundo. O rapaz
deu-lhe o aparelho já com gel nas pás e ela o regulou a 360 jaules. A médica
guardou que o rapaz se afastasse e quando ouviu um sinal sonoro, acionou o
aparelho. O fragilizado corpo de Sam quase saiu do chão.

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A caça

A névoa da manhã ainda não dissipara e o orvalho era forte. Ainda não
havia luz do sol por entre as árvores e os arbustos. A temperatura na mata era
de doze graus, alguns pequenos animais já se arriscavam a circular pela
floresta em busca de alimento. Duas barracas ainda estavam com seus zíperes
fechados, mas já tinha alguém na espreita. A fogueira fora apagada, só
restaram cinzas ainda quentes.
Um estampido seco ecoou pela mata adentro, não era possível
identificar de onde viera, pois se repetira uma quatro ou cinco vezes, como se a
ninfa Eco estivesse a repetir o sinal de mais uma tragédia. As aves revoaram e
os pequenos animais buscaram o primeiro refúgio que se ofereceu.
Depois, silêncio.
— Sami, venha aqui!
A porta de uma das barracas se abriu e uma pequena garotinha de cinco
anos saiu em disparada que mal completara quatro anos correndo em círculos.
Ainda vestida de pijama, foi alcançada por sua mãe que lhe puxou pelo
braço pra junto de si.
— Aonde você pensa que vai, mocinha? Vestida assim. Quer adoecer?
— Sami, venha logo! A voz repetiu e agora foi possível apontar a
direção.
A mulher vestiu-a com uma jaqueta de couro marrom forrada e com
capuz e uma calça impermeável.
A pequena saiu a galope em direção ao chamado.
— Não a deixe ir sozinha, disse a mulher.
A mulher, muito parecida com a menina ficou observando a filha
sumindo por entre os arbustos. Apenas usa feição parecia ser mais tranquila.
A menina correu na direção de pai e quando percebeu a morte, parou
estática e virou-se para mim. Parecia pedir por socorro. A espontaneidade
sumiu de sua face.
A insistência do pai trouxe-a de volta a realidade.
Insegura, ela caiu três vezes até encontrar o lugar onde estava o pai,
com as duas mãos agarradas a minha mão esquerda. Na outra, um pequeno
punhal que Sami deixara cair.

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O pai era um homem de meia idade, cabelos mais grisalhos que deveria
e encaracolados. Tinha uma expressão sisuda e as sobrancelhas largas e
longas, seus olhos claros davam uma pequena impressão de simpatia. Trajava
calça jeans índigo blue suja de lama e uma jaqueta verde camuflada com
capuz. Estava de joelhos de frente a sua presa.
— Veja como nossa família não precisa de um segundo tiro, Sami!
Mesmo você sendo menina, vai aprender como se faz.
A menina se aproximou da presa e quando estava a uns três metros
parou abruptamente.
Os olhos parados e abertos do alce capturado causou-lhe mais terror. O
corpo ainda quente soltava uma névoa de vapor e exalava um forte odor
característico do animal. Pesava em torno de quatrocentos quilos e media um
metro e setenta. Sua pelagem era escura e a galhada tinha secção cilíndrica e
formato de taça. Essa tinha um metro e quarenta de amplitude. O animal fizera
tanta força para sobreviver que defecou após ser alvejado.
Sami não tirava os olhos dos olhos do animal. Parecia vivo. Seus olhos
arregalados e parados deixavam escorrer lágrimas. Apresentava longas pernas
e um pescoço curto. Seu corpo todo tremia.
— Ele... Está com frio, papai.
— Esse não sentirá mais frio, Sami. Está morto. Essa tremedeira são
seus músculos.
— Estou com medo!
— Medo não existe em nossa família. Venha aqui tirar uma foto comigo.
Medo é coisa de mulher fraca.
A pequenina foi em direção ao pai com os olhos vidrados no animal.
Quando se aproximou, fechou os olhos. Nitidamente percebia nela o pânico.
Seu olhar era de quem me pedia por socorro.
O pai ordenou que abrisse os olhos para a foto e que segurasse no
chifre do animal. A menina abriu os olhos lentamente e quando tocou a chifre
do animal, este estremeceu inteiro.
Sami deu um pulo e gritou horrorizada. Seu grito ecoou diversas vezes
mata adentro.

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Hospital
III

— Ela voltou!
O rapaz assumiu a massagem cardíaca em Sam enquanto a médica
colocava o respiradouro.
Fora a terceira tentativa dos socorristas. Samantha urinou.
Foi colocada na maca e envolvida com uma manta térmica. A médica
acionou a central pelo rádio transmissor, informando os procedimentos que
deveriam ser preparados.
— Vá para o hospital.
A ambulância gastou agora cinco minutos para o retorno. Entre a
chagada à residência e o retorno ao hospital foram gastos trinta minutos. Trinta
minutos que deixaram Samantha tecnicamente sem vida.
A equipe médica já aguardava por ela. Foi encaminhada diretamente
para a unidade de tratamento intensivo. O chefe da equipe ia falando
procedimentos a serem executados e medicamentos a serem administrados.
Entraram na sala restrita.
A recepção de hospital e os corredores estavam tranquilos e vazios,
apenas duas pessoas aguardavam na recepção e um rapaz que fazia
curativos.
Na parede atrás de recepcionista uma figura na parede fazia o sinal de
silêncio e um crucifixo logo acima me fez retomar o Botticelli.
A morte é um desafio que atormenta e incomoda o homem e sua
pretensão de vida eterna. Aquele lugar representa a onipotência humana, como
Sísifo que ludibriou e encoleirou Tânato, provocando a ira de outros deuses.
Como poderia Hades ser um deus sem mortos? E Ares, como consumaria uma
batalha?
Esse lugar não atende aos deuses. O hospital público não é capaz de
mostrar a viagem no caos dos nove níveis do inferno. É o próprio inferno, onde
as pessoas moribundas pelos corredores e amontadas em macas
permanecessem até serem chamadas ao Hades, mas, ainda assim, não teriam
nenhuma moeda para pagar a travessia. Por isso ficam vagando nos

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corredores dos hospitais .A miséria é uma herança da humanidade para ela
mesma.
Sami entrou neste lugar e sairá, não sei até quando. Ser atendido em
oito minutos é algo que só uns poucos são capazes de comprar. Para a
maioria, o inferno tem muitas entradas. O hospital público é uma delas.
— A paciente voltou, avisou o médico. — De certo modo ela morreu,
mas a trouxemos de volta.
Samantha enganou a morte duas vezes.

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O acidente
IV
Sentei-me ao lado de Sami no banco de trás. Eu atrás de Richard e
Sami atrás de Susan. Já não usava mais cadeirinha.
Não via a hora de ir embora. Eu detestava esse programa anual. Para
Sami, era indiferente. Já com doze anos, ela ficou diferente desde sua primeira
experiência na floresta.
Levantei a cabeça devagar, sentia uma leve tontura. Talvez fosse o
calor, não sei. Não reconheci o lugar, mas a névoa era muito densa e tudo
estava quieto. Tentei me equilibrar apoiando nas pedras que estavam no meio
caminho. As pedras que geralmente são obstáculos que alteram ou prolongam
uma vida toda, hoje são minha muleta.
Olhei para os lados e não percebi a presença de ninguém. Comecei a
caminhar sem direção, só ouvia o estalar dos galhos secos que pisava. De
repente parei... Tive a sensação de que havia outros passos. Interpretei que
pudera ser a ninfa que me acompanhava. Desci a ladeira e cheguei a um
riacho, só me dei conta quando já estava dentro dele. Uma água rasa com
fundo de pedra que permitia que eu me espelhasse. Lavei o rosto e meus olhos
verdes estavam irritados. Parecia que não dormia há séculos. O cabelo todo
emaranhado, jogado de lado barba e bigode por fazer e a pele toda manchada
de sol, mais abaixo, um grupo de filhotes de alce tomavam água.
Mergulhei a cabeça em um lugar um pouco mais profundo. Abro os
olhos e uma linda imagem daquela que já foi pássaro e agora habita as águas
com suas lindas caudas escamadas.
Os longos cabelos longos espalhavam com tentáculos nas profundezas
e aquela sirena me beija. Foi um encantamento que veio acompanhado de uma
suave melodia de harpa tibetana. Eu me sentia completo. Seus cabelos se
entrelaçaram aos meus, sua boca a minha boca, seus braços aos meus.
Aquilo era longo, profundo e eterno. O som foi diminuindo à medida que eu
segurava o ar nos pulmões e, quando já não aguentava mais, resolvi abrir mão
do prazer.
A sirena estava toda enrolada a mim e me puxava para dentro daquela
água rasa. Não entendia, o desespero não permite lugar para a razão. Então
lutei.

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Uma voz estranha sussurrava
— Mata ele. Mata ele.
Debati-me e consegui me debater e escapar dela. Joguei a cabeça para
fora do rio e deixei o ar entrar queimando em meus pulmões. Porém, quando
abri os olhos, aquele gigantesco alce corria em minha direção.
Não tive tempo de correr. As pernas ainda estavam presas às águas e
não podia mergulhar.
—Mata. Mata, repetiu a voz.
O animal veio armando o chifre e peguei um pedaço de pau que
consegui e golpeei-o, uma, duas, três vezes.
— Mata. Mata. Mata.
Tudo começa a rodar e, de repente, silêncio...
— Olha o que você fez, dizia uma voz.
— Eu não fui ele.
Agora outra voz dialogava.
Abri os olhos e tinha sobre o meu colo o corpo de Samantha todo
ensanguentado. Na mão esquerda, o punhal. Ela estava, pálida, imóvel e fria.
Desvencilhei-me do punhal e abracei-a e tentei levantar. Virei os olhos
para o lado. O carro estava de ponta cabeça no fundo do riacho e a mãe de
Sam com o a cabeça mergulhada dentro da água, presa aos cabos que
prendiam o alce na carroceria. Tinhas as mãos cerradas e as unhas enterradas
na palma da mão. Morta.
Richard estava ao lado, sobre uma pedra com o chifre do alce
atravessado sob seu abdômen, seu olho ainda aberto, parado e fixo em mim.
Não vi o alce, então, tudo ficou escuro. Apaguei.

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O orfanato

Tentei abrir os olhos, mas o clarão queimava minha vista. Fui


acostumando os olhos ao ambiente até que consegui abri-los. O céu estava
muito limpo, poucas eram as nuvens percebidas. O vento era brando e
tranquilo. As árvores fechavam todo o entorno do lugar. Cerca de cinquenta
metros de onde eu estava, havia um muro de cerca viva com uns três metros
de altura e circundava todo o lugar, só era interrompido pela portaria, onde
havia uma guarita envidraçada.
A forma com que era cuidada a cerca viva me lembrava da história do
menino que foi até ao céu num pé de feijão.
Algum dia eu ainda irei para o céu, pensei.
Eu estava deitado na grama onde havia quinze mesas de concreto
acabadas com pastilhas coloridas. Na parte frontal da mesas havia um
playground construído em madeira de carvalho nas cores vermelho, branco e
azul. Atrás do outro lado do playground, uma cancha de basquete. As mesas
ficavam em um imenso gramado muito bem cortados. Todo dia, as dezoito e
trinta, pontualmente, os irrigadores eram acionados.
O lugar era habitado por mim e mais cinquenta meninos de até quinze
anos, que de alguma maneira foram parar neste lugar.
Cheguei aqui com oito anos. Em quatro anos, três famílias já me
levaram e me devolveram, dizendo que havia algo errado em minha
personalidade.
Não tenho recordação de como vim parar neste lugar. Só lembro-me de
um incêndio e uma mulher gritando por socorro.
Os meninos passavam o dia entre o jardim e a quadra. Acordávamos às
sete horas, arrumávamos as camas e o alojamento. Após o café, fazíamos a
leitura diária e deixavam-nos aqui até o almoço. Os meninos, a maioria, na
quadra e uns poucos preferiam o jardim. Eu prefiro o isolamento. Não gosto do
contato deles. Parecem idiotas demais. Tratam este lugar como um paraíso.
Não param nunca. As vozes me incomodam. Elas não saem da minha cabeça.
Peguei um comprimido que ficara sob a mesa junto de um pequeno copo
plástico com água. Coloquei-o na boca, mas ainda não tomei água. Deixei-o
soba língua, mudando-o de lado até que derretesse. Eu queria senti-lo. Queria

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saber seu sabor. Um gosto amargo começou a espalhar na minha boca que se
encheu de saliva. Engoli de uma vez só. Socorri-me do copo e ele se partiu.
Olhei para os lados, com a boca amarga e sedenta.
Fiz isso uma única vez, porem, era um ritual de todos os dias.
Tinha a nítida impressão que todos olhavam para mim. Todos me
olhavam. As vozes me revelavam.
— Tom, venha aqui !
Olhei de súbito em direção à porta da administração.
Levantei-me. Ajeitei as roupas e segui para a sala de visitas.
Entrei na sala cabisbaixo e em silêncio. Era recomendação da nossa
coordenadora Senhora Ann Margret.
— Estes é o senhor Richard Weilyn e sua esposa, a senhora Susan
Weilyn e a pequena Samantha. Vieram para te buscar para seu novo lar, Tom.
Como das outras vezes agradeci e fiquei observando aquela menininha
que me olhava sorrindo.
—Arrume suas coisas, disse a senhora Weilyn. Hoje você também
passa a ser um Weilyn.
— Sim senhora.
Pedi licença e fui para o dormitório fazer minha mala. Cabiam em uma
mochila. Eu já sabia a rotina.
Meia hora mais tarde, o portão se abriu e saímos. Olhei para trás e jurei
que nunca mais voltaria.

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Hospital

Eu estava parado defronte a recepção, observando o crucifixo, quando a


voz da recepcionista interrompeu minha viagem, trazendo de volta.
— Preenchi os dados da paciente. O senhor precisa responder umas
perguntas. São protocolares.
— Pois não, respondi ainda com o pensamento distante.
— Qual é seu parentesco com a paciente Samantha Weilyn.
— Irmão.
— E os pais?
— Somos somente Sam e eu. Nossos pais morreram.
— Sinto muito, disse a moça em tom respeitoso.
— Ela faz uso de alguma medicação?
— Não. Apenas analgésicos, esporadicamente.
— A equipe de resgate relatou que tinha uma caixa de medicamento
próximo a ela.
— São meus. Devo tê-los deixado sob a mesa.
— A paciente já teve fez isso outras vezes?
— Não. Nunca fez isso antes.
— Obrigada, senhor...
— Tom, Tom Weilyn, completei.
O médico permanecera ali na recepção e testemunhou minha entrevista
disse á recepcionista alguns encaminhamentos e, virando-se para mim disse
que Sam ficaria em observação pelos próximos dias. Pelo menos sete dias.
— O senhor já pode vê-la. Ela está sedada. Ficará assim por um bom
tempo ainda, disse o médico.
Deixei a recepção, passei pelo balcão de informações e parei em frente
a grande janela que dava para o estacionamento. Já era primeiro de abril. Bem
que tudo isso poderia não passar de uma mentira. O céu estava sem nuvens, a
lua cheia deixava a noite clara. Tudo estava deserto e vazio.
Fiquei ali contemplando a noite. Há quem diga que ela pertence aos
mortos. Sempre gostei dela. Talvez seja por isso que sou atraído pela
escuridão, pelo silêncio e isolamento. Percebo que são raros os momentos de
lucidez, onde posso refletir nos feitos e malfeitos. Não existe benfeitos. Nesses

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momentos lembro-me de certas leituras que vieram até mim através de Sam,
como a de uma escritora que diz estar procurando, tentando entender e dar a
alguém o que vive, mas não sabe a quem dar e não quer ficar com sei vivido.
Como ela, essa desorganização me amedronta.
O que eu vivo e vivi, não sei se servirá para alguém. Uma história
interrompida e fragmentada, que se alimenta de flashes ou de imagens
incompletas, de coisas que não sou capaz de dizer se são verdadeiras ou
construídas no trauma. Nem sei se tenho algum trauma ou se isso faz parte da
minha personalidade.
Em alguns momentos, sinto que não pertenço a este mundo. As pessoas
não significam nada, as coisas não tem importância alguma, até que me vem a
imagem de Sam. As vozes voltam e interrompem meu silêncio.
Segui em direção ao quarto em que Sam estava. Ficava no final do
longo corredor pouco iluminado. Segui lentamente e à medida que caminhava,
o quarto ficava mais distante.
Sam dormia tranquila, agora. Seu rosto ainda estava pálido, mas já tinha
algum sinal de melhora. Não estava sob nenhum tipo de aparelhos, apenas um
soro com medicação. As enfermeiras lhe puseram roupas do hospital. Eram
azuis claras com detalhes em branco. O braço direito estava solto, caído e ela
estava de cúbito frontal. Seus cabelos estavam embaraçados. Estava viva e
isso importava.
Ajeitei-lhe o braço ao lado do corpo com cuidado. Tinha receio de que
despertasse e não saberia o que dizer para ela.
Fiquei ali a observar sua fragilidade e dependência. Samantha sempre
fora dependente de terceiros. Desde o acidente com seus pais, Sam nunca
mais fora a mesma.
Sam se amparava em mim desde que fui adotado pelos Weilyn. Subia e
descia as escadas da casa pulando de dois em dois degraus, às vezes
arriscava três e, quando caía, rolava escada abaixo. Corríamos, jogávamos
bola dentro de casa para o desespero de Richard e seus quadros raros. Muitas
vezes ele disse que me devolveria para o abrigo se quebrasse um quadro dele.
Foram anos intensos, em que pese a dificuldade dos primeiros dias com Sam.
Um período em que as vozes se acalmaram. O envolvimento com Sam tomava
todo meu tempo. Eu tinha o hábito de descer asa escadas escorregando pelo

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corrimão e ela queria fazer igual. Trazia ela pela mão, mas queria ser
independente. Certa vez a vi tentando se equilibrar no guarda corpo do
mezanino. Disse que queria me imitar. Nunca mais subi no guarda corpo,
principalmente depois do acidente em que Sam ficou sem o dedo.
Meus pensamentos foram interrompidos um barulho fora do quarto.
Decidi sair antes que despertasse.
Na recepção um homem discutia com a atendente o fato de seu plano
de saúde não cobrir a emergência. Seu seguro hospitalar não abrange
internações hospitalares e cuidados em centros de enfermagem
especializados, apenas serviços preventivos.
O homem trouxe seu filho com a perna quebrada. Um atendimento que
pode custar sete mil e quinhentos dólares. Dependendo da complexidade do
atendimento necessário é possível uma pessoa ir à falência. Cerca de
cinquenta e nove milhões de americanos não possuem convenio médico.
Parece ser um numero inexpressivo, se comparado com outros países que
dispunham de atendimento público gratuito. Aqui, as coisas são diferentes e o
atendimento público é seletivo e complexo. É explicável o fato dos hospitais
ficarem vazios, uma vez que sua clientela é restrita, não cabe às pessoas
buscarem ajuda onde não lhes serão dada. Certa vez assisti a uma reportagem
sobre hospitais públicos no Brasil e vi pessoas amontoadas pelos corredores,
esperando uma luz que os curasse, mas estavam mais perto de Hades que da
cura. Se esse hospital se perece com a jornada pelo inferno que Virgílio propõe
a Dante, que só aceita por Beatriz. Neste aqui, até as portas do inferno estão
fechadas.
O Portal do Inferno não possui fechaduras, somente portal com um aviso
de advertência dizendo que uma vez dentro, deve-se abandonar toda a
esperança de rever o céu, pois de lá não se pode voltar. A alma só pode
escolher pelo céu ou inferno se estiver viva. Mortos não raciocinam. As vozes
voltaram.
Ás vezes temo em ficar no vestíbulo do inferno, sem conseguir
atravessar o rio.

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De volta pra casa
Saí sem ser notado em meio aquela confusão que se instalou no
hospital. Era três e trinta da manhã quando entrei dei partida no carro. A rua
estava deserta e limpa. Os sinais de trânsito estavam piscando no sinal
amarelo e eu seguia sem pressa de chegar. As luzes da iluminação pública
passavam por mim lentamente, uma após a outra em um movimento
sincronizado de seis lâmpadas e um sinal de trânsito piscando. Isso foi se
repetindo e ficando cada vez mais rápido. Também começaram a surgir muitas
vozes na minha cabeça. Tudo ia se intensificando, me agonizando, até que
tudo ficou claro, mas sem nenhuma imagem. Meus olhos ardiam, não via nada.
Fechei-os e ao abrir, um alce estava parado no meio da rua vindo em minha
direção. Pus o pé no freio, fechei os olhos e aguardei o impacto.
O carro ficou parado no meio da rua, abri os olhos, olhei pelo retrovisor,
desci do carro. Não havia nada além do silêncio.
— Impossível, gritei
Segui para casa sem entender o que acontecera. Aquele animal fez
voltar lembranças das quais pensara que já estivessem no esquecimento,
Richard, Susan, o alce, o abrigo. Já não bastava as vozes, agora vejo coisas?
O percurso de cinco minutos pareceu interminável. Ao entrar, fui direto
para a cozinha sem olhar para as paredes da sala, principalmente para o
Botticeli. As luzes da cozinha ficaram acesas. Peguei um copo com água e
sentei-me na mesma cadeira em que Sam estava. As imagens recentes ainda
estavam frescas e inexplicáveis. Tentava encontrar uma forma de esquecê-las,
de afastá-las de mim, mas eram presentes. A caixa de remédios ainda estava
ali, mas vazia. O diário de Sam também estava ali.
Quais serão os segredos de Sam, pensei. Que crime estaria eu
cometendo, se não há testemunhas para me delatar? A privacidade de alguém
pode ser invadida sem que haja razão ou permissão para isso?
Trouxe o diário para perto de mim e fiquei observando seus detalhes e
se teria nela algo sobre mim. Se tivesse, eu teria o direito de saber e só saberia
se a abrisse.

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VIII

O diário
Ao meu amigo oculto:
Olá amigo imaginário. Sei que você está aí em algum lugar, mas não
gosta de aparecer. Não tem problema, porque sei que está me ouvindo.
Tenho muitas coisas pra te contar, muitos segredos. Coisas sobre mim e
Tom. Acho que ele não se importaria se eu falasse sobre ele e o quanto eu
preciso dele. Afinal, ele é a coisa mais importante que existe e a melhor coisa
que meus pais deixaram para mim.
Tom sempre teve um jeito diferente e olhar para mim, algo que me
estranhava e que ainda não entendo. Nunca foi agressivo, mas não sorria com
facilidade. Sou fascinada por meu irmão. Suas atitudes são sempre formais e
discretas. Na verdade, ele já foi mais sorridente. Ficou assim depois do
acidente com nossos pais. Acho que a forma com que tudo aconteceu e o fato
de terem nos separado por cinco anos o deixou assim, principalmente por ter
que conviver sozinho nessa casa com a presença constante de papai e suas
coisas fúnebres de caça e a morbidez do resto da casa.
O senhor Weilyn era um aficionado por caçadas e aventuras nas matas
e nos obrigava a participar. Mamãe detestava, mas sempre foi submissa às
suas vontades. Nunca vi um afeto ou algo diferente partindo voluntariamente
dele para nenhum de nós. Tentou fazer de mim uma caçadora e jamais aceitou
o fato de eu ser menina e não compartilhar das mesmas preferencias que ele.
Eu sempre odiei a vida na mata, não suportava ver aqueles animais com seus
olhos opacos e distantes parados em mim. Isso me causava pânico. Jamais
esquecerei aquele alce com seu chifre enorme e indefeso perante a violência
de pessoas que tem o prazer em matar.
Também está vivo na memória o chifre do alce atravessado na barriga
de meu pai. Poderia ser uma vingança da natureza ou sei lá. Meu pai não me
deixou razões suficientes para sentir saudades. As crueldades que ele fez com
mamãe e com Tom não me permitem lembra-lo com rancor. O pouco que
aprendi com ele foi fazendo sempre o contrário do que fazia ou mandava.
Mamãe foi diferente. Sinto muita falta dela. Carrego um vazio dentro de
mim que não preenche, onde quer que eu esteja, todos os dias eu me pego

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lembrando de mamãe e do seu jeito meigo de me confortar, de proteger Tom
das ameaças do senhor Weilyn em mandá-lo de volta para o orfanato, quando
Tom ficava conversando sozinho. Mamãe me punha pra dormir e não saia do
quarto sem ter certeza de que eu dormira. Muitas vezes ela dormiu antes de
mim, pois era só ela para cuidar de nós três. Quando Tom tinha crises então,
ela se trancava com ele para que pai não ouvisse e o espancasse. Acho que
Tom começou a odiá-lo nesse tempo, não sei.
Tom veio para casa quando eu tinha ainda três anos. Apeguei-me a ele
ainda menina. Mamãe não podia mais ter filhos por complicações ocorridas no
meu nascimento. Tom representava o desejo de meu pai ter um filho homem,
que o acompanhasse em suas aventuras pelas florestas, mas Tom não era o
que ele imaginava, fugia das caçadas e ficava visivelmente atormentado
nesses eventos. Nas caçadas, ficava isolado em algum canto, andando de um
lado para outro, resmungando baixinho como se estivesse falando com
alguém. Mas sempre estava perto de mim.
Apesar do comportamento estranho, Tom sempre foi uma pessoa
espetacular e quando me afastaram dele eu queria morrer. Passei cinco longos
anos em um internato por decisão de testamento do senhor Weilyn.
Ficava imaginado como seria viver sozinha com Tom e as lembranças
da família.
Comecei a escrever cartas para ele, mas nunca as enviei. Apenas
guardei-as. Algumas eu destruí. Poderiam ser perigosas para mim e para ele.
Minha vida no internato era estudar e criar fantasias para quando
voltasse para casa. Assustava-me em pensar que poderia chegar e ver outra
mulher lá, ocupando o lugar de mamãe. Ocupando o meu lugar.
Nunca recebi visita de Tom até chegar aos dezesseis. Apesar de ele ter
minha guarda, ele preferiu não me tirar daquele lugar. Eu o odiei por isso. E
assim, encontrei uma forma de fazê-lo ver que eu existia. Só saí de lá aos
dezoito anos.

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IX
Solidão

Fechei o diário e tomei nas mãos a caixa de comprimidos vazia. Deixei-a


passando por entre os dedos, circundando a mão e, por um momento, pensei
que estava deixando Sam abandonada novamente. Não bastassem todos os
anos que ficara naquele internato, a perda dos pais, e o meu afastamento,
agora está sozinha no hospital e sem estar perto para quando acordar.
Por outro lado, tenho a sensação que estando longe de mim, ela estará
muito mais segura. Meus sentimentos pela minha irmã me deixam confuso e
atrapalhado.
Quando saiu daqui menina era minha parceirinha de travessuras.
Alguém que me permitiu descobrir um pouco de sanidade dentro de mim
mesmo e, principalmente, um pouco de afeto por alguém que não fosse eu
mesmo. Mas quando a tiraram senti ódio do mundo e as vozes voltaram a me
atormentar. Senti um desejo incomum em matar essas pessoas que a tiraram
de mim. Foram tempos difíceis de suportar até que ela voltou. E voltou mulher.
Descobri então que tinham realmente roubado algo de mim. Tiraram de
mim a infância de minha irmã e me devolveram uma meia irmã mulher.
A casa mostrava o silencio de todos os dias, mas hoje, alguma coisa
diferente nesse silêncio me atormentava. Parecia que tinha perdido a
cumplicidade até mesmo com os objetos da casa.
Deixei a caixa de remédio sobre a mesa, levantei e refiz o caminho de
todos os cômodos da casa. Não sabia bem o que procurava e, se procurava,
não estava encontrando. Parei na sala, de frente para a versão de Botticeli
para o inferno de Dante. Tem momentos que não sei se já não estou dentro
dele.
Amanhã é dia de São Patrício. A paz e o silêncio serão quebrados.

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