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Aquisição da Linguagem


Maria Cristina Figueiredo Silva
com revisão técnica de Ruth E. Vas-
concellos Lopes
Período

Florianópolis - 2010
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Ficha Catalográfica
S586l Silva, Maria Cristina Figueiredo
Aquisição da Linguagem / Maria Cristina Figueiredo e Silva, UFSC,
UAB.— Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2010.

156p.
ISBN 978-85-61482-24-4

1. Aquisição da Linguagem. 2. Linguagem – Estudo e ensino.


3. Educação infantil. 4. Cognição em crianças. I. Aquisição da Linguagem

CDU 801

Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitária da


Universidade Federal de Santa Catarina.
Sumário
Unidade A - O fascinante problema da fala e do
começar a falar.................................................................................... 9
1  Introdução: a fala do bicho homem e a fala dos outros bichos...11
2  Certas características do cérebro humano..........................................21
3  Como aprendemos a falar?.......................................................................33
3.1 As crianças aprendem por imitação?..........................................................33
3.2 As crianças aprendem por estímulo-e-resposta?...................................36
3.3 As crianças formulam regras!.........................................................................40
4  Conclusões .....................................................................................................45

Unidade B - A universalidade do processo.............................47


5  A universalidade do processo..................................................................49
6  A sequencialidade do processo: estágios de aquisição..................53
7  O argumento da pobreza do estímulo. ................................................63
8  O papel do input no modelo P&P...........................................................71
9  Conclusões......................................................................................................81

Unidade C - Um problema específico: aquisição das


interrogativas no PB........................................................................85
10  O que é uma sentença interrogativa?................................................87
11  Características do português brasileiro (PB) adulto. .....................91
11.1 A construção com inversão verbo-sujeito..............................................92
11.2 A construção com (é) que................................................................... 97
11.3 A construção com WH in situ ...................................................................100
11.4 Resumo do capítulo.....................................................................................103
12  O que se observa na aquisição do português brasileiro........... 105
12.1 Com respeito à inversão VS........................................................................106
13  Conclusões. ............................................................................................... 113
Unidade D - Aquisição e aprendizagem: algumas
observações sobre alfabetização............................................ 119
14  Fala e escrita.............................................................................................. 121
15  Certas noções básicas que todo professor de língua
deve ter............................................................................................................... 127
15.1 Noções de fonologia....................................................................................131
15.2 Noções de morfologia.................................................................................137
15.3 Noções de história da língua e mudança linguística........................138
16  Um pouco mais sobre língua escrita e mudança linguística... 143
17  Conclusões. ............................................................................................... 153

Bibliografia básica para estudos.............................................. 154

Bibliografia consultada............................................................... 155


Apresentação

E
ste material foi desenvolvido para o seu estudo individual durante a
disciplina Aquisição da Linguagem, do curso Letras-Português, mo-
dalidade a distância.

A espinha dorsal da disciplina está desenhada no sumário. Começaremos exa-


minando algumas propriedades distintivas das línguas humanas em compara-
ção com os sistemas de comunicação dos animais, certas características físicas
do cérebro humano e finalmente discutiremos certas abordagens conhecidas
para a aquisição da linguagem: a aquisição por imitação e a aquisição por es-
tímulo-e-resposta; mostraremos neste ponto que a linguagem infantil possui
características tais que nenhuma dessas abordagens pode explicar, e que é mais
adequado atribuir à criança a capacidade de formular regras (inconsciente-
mente, é claro!) e aplicá-las nos dados da língua que ela está aprendendo.

Por conta dessa capacidade infantil, vamos fazer uma longa defesa da hipótese
inatista da linguagem, que supõe que a criança está dotada geneticamente de
um aparato que lhe permite aprender uma língua humana. Essa é a aborda-
gem defendida por Noam Chomsky e seus seguidores, e o segundo capítulo
apresentará uma série de argumentos em defesa dela. É preciso esclarecer que,
embora Chomsky afirme que as línguas humanas são parte do código genético
humano, parece evidente que as línguas não são só genética, porque se assim
fosse não se esperaria que existissem diferentes línguas. Além disso, é fato que,
se falamos português com a criança, é português que ela aprende, não chinês.
Portanto, é inegável, na aquisição da linguagem, o papel do input (isto é, da
língua que a criança ouve à sua volta e que lhe é dirigida), e devemos por isso
examinar atentamente quais são suas características e como interage com o
aparato genético na aquisição.

É por isso que o terceiro capítulo se propõe a analisar a aquisição de uma es-
trutura específica do português brasileiro, que é a formação interrogativa. De-
vemos começar olhando como são as interrogativas que os adultos falantes de
português usam, e que análise teríamos para elas. O passo seguinte é ver como
as crianças traduzem esses padrões adultos na sua própria fala. O arcabouço
teórico usado aqui, tanto para a análise das construções adultas quanto das
construções infantis, é a gramática gerativa, que você teve a oportunidade de
aprender na disciplina de Sintaxe.
No último capítulo, falaremos brevemente da relação entre aquisição e apren-
dizagem abordando principalmente um problema de grande interesse para os
educadores: a alfabetização. Veremos as hipóteses que o aprendiz de língua faz
dependendo também da variedade do português brasileiro que ele fala. Essa
discussão será seguida por outra sobre certas diferenças entre o português
brasileiro e o português que a criança aprende na escola. Esta também será
uma discussão breve, mas certamente abrirá novos horizontes no seu entendi-
mento, provável presente ou futuro professor.

Para que toda essa discussão não fique excessivamente teórica, você deverá
examinar o corpus de uma criança adquirindo português brasileiro, que será
disponibilizado via rede para todos os alunos. Esta atividade será parte im-
portante da sua nota, mas sobretudo será parte fundamental da sua formação:
você verá que coisa surpreendente é examinar os dados de produção infantil a
partir de um ano e oito meses até aproximadamente quatro anos.

Se você já esqueceu o conteúdo da disciplina de Sintaxe, é hora de ir procurar


o seu material de estudo para recordar certos conceitos que serão úteis aqui.
Tenha-o por perto! Essa observação vale também para o material de Fonética
e Fonologia do Português. Além disso, a bibliografia que estamos tomando
como básica deve ser lida – se o seu polo não dispõe de todos os textos, nós
vamos disponibilizá-los para você em extensão .pdf e assim não haverá motivo
para você não ler. Lembre: no ensino a distância, o que o professor não está
falando ali na sua frente é exatamente o que você deve ir lendo, para cobrir essa
falta. É verdade que as videoaulas ajudarão bastante, e os monitores também
estarão à disposição para ajudar no que for preciso, mas você deve ler – e disso
não há como fugir! Por agora, você pode começar a folhear este material pra
ter uma ideia de que tipo de problema a aquisição da linguagem na primeira
infância coloca para as teorias linguísticas.

Bom trabalho!

Maria Cristina Figueiredo Silva


Unidade A
O fascinante problema da fala e do
começar a falar
Introdução: A Fala do Bicho Homem e a Fala dos Outros Bichos Capítulo 01
1 Introdução: a fala do bicho
homem e a fala dos outros
bichos
Nosso objetivo neste primeiro capítulo é entender que propriedades dife-
renciam as línguas humanas das linguagens dos demais animais. Lyons (1987)
não fala de propriedades distintivas das línguas humanas, mas, segundo ele,
para um sistema ter a flexibilidade e a versatilidade que as línguas humanas
têm, é preciso que ele tenha, em alto grau, as seguintes características: arbi-
trariedade, dualidade, descontinuidade e produtividade (que é a criatividade
regida por regras, uma noção que será crucial para o nosso estudo). Veremos
que as línguas humanas têm ainda a propriedade da recursividade e são inde-
pendentes de estímulo (outra faceta da criatividade linguística humana). Essas
características das línguas humanas serão comparadas com as que se encon-
tram nas linguagens dos animais.

É uma observação já antiga a de que apenas o bicho homem fala.


Claro, existem alguns animais capazes de articular sons muito parecidos
com os dos seres humanos, como faz o papagaio, mas isso não é exata-
mente falar...

Distinguir a fala de uma pessoa da fala de um papagaio é muito


fácil: a primeira coisa que podemos observar para fazer a distinção é que
as pessoas falam com pertinência, ou seja, a fala delas é adequada se-
mântica e pragmaticamente ao contexto – por exemplo, se uma pessoa
está chegando de manhã no trabalho não se espera que ela diga “tchau”
ou “boa-noite”. Se ela fizer isso, todo mundo vai olhar para ela como se
ela estivesse doente, sem dormir, com algum problema, né? O papagaio,
por sua vez, pode perfeitamente falar “boa-noite” ao meio-dia, e nin-
guém acha isso estranho. Na verdade, nós achamos muito engraçado
é quando o papagaio fala com pertinência. Portanto, no quesito “falar
com pertinência” o papagaio só emplaca por acaso! E é por isso mesmo
que podemos afirmar que, quando o papagaio repete algum enunciado
em língua humana, ele não está se comunicando, porque o que ele fala
não faz nenhum sentido para ele, embora possa fazer para nós.

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Aquisição da Linguagem

No entanto, mesmo sem ter a capacidade de falar como nós fa-


lamos, muitos animais têm sistemas sofisticados para se comunicar com
seus pares, como é o caso das abelhas, que por meio de uma dança são
capazes de informar a que distância da colmeia e em que direção fica
a fonte para a extração de pólen. Aqui estamos falando de comunica-
ção vera e própria, porque as outras abelhas entendem o que a abelha
dançarina está informando. No entanto, por mais sofisticado que seja o
sistema de comunicação das abelhas, tudo que ele é capaz de fazer é isso:
indicar direção e distância do alimento. A abelha não poderá insuflar
suas companheiras contra a abelha rainha, por exemplo, utilizando-se
dele.

Se a fala humana fosse apenas um sistema de comunicação, não ha-


veria como (nem por que) distingui-la da linguagem de outros animais...
Mas ela é muito mais do que um sistema de comunicação, porque nós
podemos fazer muito mais coisas com a linguagem do que simplesmen-
te comunicar alguma informação para outros seres; nós podemos jurar,
xingar, perguntar, adular, ameaçar, ensimesmar, falar do que existe e do
que não existe, de tempos idos ou que ainda não chegaram, fazer poe-
sia e muito mais! Tudo isso só é possível justamente porque as línguas
humanas têm propriedades de uma tal natureza e em um grau tal que
distinguem claramente qualquer enunciado humano da linguagem de
qualquer outro animal. Que propriedades são essas?

Segundo Lyons (1987), nós podemos fazer tudo isso com os siste-
mas linguísticos humanos porque eles são flexíveis e versáteis. E a
flexibilidade e a versatilidade observadas nas línguas humanas se
devem à presença em alto grau de basicamente quatro proprieda-
des: a arbitrariedade, a dualidade, a descontinuidade e a produtivi-
dade. Vamos examinar cada uma dessas propriedades comparando
as línguas humanas com as linguagens dos animais.

Desde Saussure, todos sabem que o signo linguístico é arbitrá-


rio. O que isso quer dizer exatamente? Quer dizer que a relação que se
estabelece entre o som de certa palavra, por exemplo, e o seu significado

12
Introdução: A Fala do Bicho Homem e a Fala dos Outros Bichos Capítulo 01
é fruto de convenção entre os falantes. Não há nada no som da palavra
amor que faça pensar no significado que ela tem, porque amor partilha
uma boa parte dos seus sons com mordaça e nem por isso os significa-
dos delas se parecem, não é verdade? Claro, existem casos em que há
uma relação necessária entre o som e o significado da palavra – com to-
das as onomatopeias, do tipo coaxar (do sapo) ou miar (do gato) – mas
comparativamente são poucos os exemplos, e o fato de existir variação
do que são as “vozes” animais entre as línguas mostra que mesmo aí tem
um tanto de arbitrariedade na relação: o cachorro late [au-au] em por-
tuguês, mas [wau-wau] em japonês! Para a grande maioria das palavras
(primitivas), não é possível prever, dado o som da palavra, qual será o
seu significado.

Mas como essa propriedade ajuda na flexibilidade e versatili-


dade das línguas? Observe que, sendo arbitrária a relação entre sons
e significados, nenhum grupo de sons está restrito a só poder ter um
certo tipo de significado, ou seja, a única restrição que pesará sobre a
combinação dos sons serão as próprias leis internas que regem os sons
(por exemplo, não combinar cinco consoantes seguidas) e não alguma
outra necessidade exterior ao próprio sistema sonoro. E essa liberdade é
preciosa!

O que podemos nos perguntar agora é: as linguagens dos ani-


mais possuem a propriedade da arbitrariedade? Em que grau? Vamos
examinar a linguagem das abelhas. Como se sabe, a abelha utiliza uma
dança, executada numa das paredes da colmeia, para indicar às outras a
localização e a qualidade de uma fonte de alimento. São três os padrões
de dança, e o critério que determina a escolha de um dos padrões é a
distância da fonte com relação à colmeia: é escolhido o padrão em círcu-
lo quando a fonte se encontra perto da colmeia, a não mais de 6 metros;
o padrão de dança em oito é escolhido quando a fonte dista entre 6 e 18
metros da colmeia; e o padrão em “círculo cortado” é escolhido quando
a fonte está localizada a mais de 18 metros da colmeia. Neste caso, a
informação precisa da distância se dá pela velocidade com que a abelha
executa o padrão: quanto mais lenta a dança, mais distante a fonte de
alimento, como mostra a figura a seguir:

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Aquisição da Linguagem

1 km
1 s=

Figura 1.1: Dança em “círculo cortado”, em que a distância é expressa pela velocidade com que

a abelha executa o padrão. Fonte: <http://en.wikipediaz.org/wiki/Waggle_dance>. Acesso em: 1 jan.

2010.

A direção escolhida pela abelha para desenhar esses padrões na pa-


rede da colmeia é tal que o ângulo que faz com a vertical revela a dire-
ção com relação ao sol em que as abelhas devem voar para encontrar a
fonte de alimento, como vemos na figura a seguir. Além da distância, a
informação sobre a qualidade da fonte também faz parte da dança e se
revela pela quantidade de vezes e vivacidade com que a abelha realiza o
padrão.

comida

sol

comida
90º

90º 45º 45º

colmeia

Figura 1.2: Relação entre o ângulo em que a dança é feita, na colmeia (hive), e a posição do

sol (sun) para indicação da fonte de pólen (food). Fonte: <http://users.rcn.com/jkimball.ma.ultranet/

BiologyPages/B/BeeDances.html.> Acesso em: 1 jan. 2010.

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Introdução: A Fala do Bicho Homem e a Fala dos Outros Bichos Capítulo 01
Podemos perguntar agora: essas formas dos signos e os seus signi-
ficados mantêm entre si uma relação arbitrária ou não arbitrária? Apa-
rentemente, a relação é arbitrária, não é mesmo? Não há nada em dan-
çar em oito ou dançar em círculo que faça pensar em distância menor
ou maior, mesmo porque a dança em círculo está envolvida tanto na
expressão da menor quanto da maior distância. Também vivacidade ou
quantidade de vezes que se repete o padrão não têm nenhuma relação
necessária com a qualidade da fonte de comida.

No entanto, o fato de a dança ser mais lenta quando a distância é


maior é uma decorrência direta das leis da física, correto? Vai demorar
mais tempo pra chegar à fonte, esse é o ponto. Esse seria então um as-
pecto não arbitrário do sistema das abelhas... Porém, o fato de existirem
partes consideráveis do sistema de comunicação das abelhas que são
arbitrárias já nos faz considerar a arbitrariedade como uma propriedade
talvez necessária, mas seguramente não suficiente para definir o caráter
especial das línguas humanas.

A segunda propriedade detectada por Lyons (1987, p. 32) em alto


grau nas línguas humanas é a dualidade, isto é, o fato de elas possuírem
dois níveis de estrutura, organizados de modo que os elementos de um
nível inferior se combinam e fornecem as unidades do nível superior.
Os estruturalistas chamavam a esta propriedade “dupla articulação da
linguagem”. No caso das línguas humanas, vemos que os sons ou, mais
precisamente, os fonemas (elementos do nível fonológico) se combinam
segundo certas regras e produzem unidades de um nível mais alto, que
são os morfemas. Este último nível (também chamado “primeira arti-
culação”) é mais alto porque ele tem uma característica distinta do nível
anterior: as unidades do nível morfológico possuem significado, mas
os elementos do nível fonológico (também chamado “segunda articula-
ção”) não possuem. É evidente a contribuição da dualidade para a flexi-
bilidade das línguas: com um pequeno número de elementos, 30 ou 40
fonemas, e algumas regras de combinação, formamos alguns milhares
de unidades maiores – os morfemas e as palavras. Pense, por exemplo,
nos fonemas /a/, /r/ e /m/. Quantas palavras você consegue fazer com
eles? Dadas as regras de combinação do português, que não permitem
formar uma sílaba só com /r/ e /m/, nós podemos pensar imediatamen-

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Aquisição da Linguagem

te em algumas combinações, considerando também as que não incluem


todos os três fonemas e as que repetem algum deles: mar, ar, má, rama,
mama, ama, amar, etc. Deu pra ver agora a vantagem?

As linguagens animais possuem essa propriedade? Bom, que to-


das elas possuem as unidades significativas, não há dúvida. No entanto,
não é claro que essas unidades são formadas por elementos, que pos-
sam ser recombinados em outras unidades. Por exemplo, quando exa-
minamos a linguagem dos pássaros, notamos a presença de dois tipos
de enunciados distintos, os chamamentos e os cantos; os chamamentos
parecem poder veicular mensagens com significados do tipo “perigo”
ou “comida”, e os cantos parecem mais ligados à demarcação territorial
e conquista da fêmea. No entanto, não parece ser possível mostrar que
esses chamamentos ou cantos tenham algum tipo de estrutura interna,
isto é, sejam compostos de unidades menores que, recombinadas em
outros cantos ou chamamentos, possam veicular algum outro tipo de
significado.

A descontinuidade, uma característica desses elementos se-


cundários sobre os quais acabamos de falar, é a terceira propriedade
que vamos examinar. A ideia aqui é muito simples: como você apren-
deu na disciplina Fonética e Fonologia do Português, a diferença entre
Para rever este tema, reto- pata e bata se deve ao traço [+/-sonoro] da consoante inicial: /p/ é uma
me: SEARA, Izabel Christi- consoante [-sonora] (isto é, que não exibe vibração das cordas vocais),
ne. Fonética e fonologia do
português. Florianópolis: enquanto /b/ é uma consoante [+sonora] (isto é, produzida com vibra-
LLV/CCE/UFSC, 2008. ção das cordas vocais). Ora, é perfeitamente possível imaginarmos uma
máquina que vai simulando o batimento gradual das cordas vocais de
modo a produzir sons que são intermediários entre /b/ e /p/. Vamos
supor que a máquina começa com /p/ e vai aos poucos implementando
a vibração das cordas vocais de modo a obter /b/. O que acontece é que
inicialmente de fato ouvimos /p/ ali e, a certo ponto, passamos a identi-
ficar aquele som como /b/. Pode ser que a gente faça críticas à qualidade
daqueles /p/s que estávamos ouvindo e também dos /b/s que passamos a
ouvir, mas o fato concreto é que nós percebemos ou /p/ ou /b/, não outra
coisa. Nossa percepção é categorial: é tudo ou nada!

Talvez a vantagem da propriedade da descontinuidade das lín-


guas humanas não seja imediatamente visível para você, mas ela é real.

16
Introdução: A Fala do Bicho Homem e a Fala dos Outros Bichos Capítulo 01
Em princípio, seria possível que diferenças mínimas na forma corres-
pondessem a diferenças mínimas de significado (apesar da arbitrarieda-
de do signo linguístico). Contudo, não é isso o que normalmente ocorre:
a diferença de significado entre pata e bata não é necessariamente maior
ou menor do que a de qualquer outro par de palavras escolhidas aleato-
riamente. E, numa situação de comunicação específica, a probabilidade
de ocorrência de uma dessas palavras é muito maior do que da outra, o
que faz com que, mesmo em condições de comunicação muito degra-
dadas, é bastante provável que a mensagem ainda possa ser fielmente
passada. Viu agora qual é a vantagem?

Por outro lado, nos sistemas de comunicação animal, a variação


contínua (que é o contrário da descontinuidade) é bastante normal: por
exemplo, sabe-se que, quando o pintarroxo está usando seu canto para
demarcação de território, um canto mais forte e com mais contrastes
marca maior decisão do pássaro em defender aquele espaço e ali cons-
truir seu ninho – ou seja, a variação de intensidade do canto correspon-
de diretamente à variação na importância que o pássaro dá ao lugar.

Finalmente, a quarta propriedade que Lyons (1987) atribui às


línguas humanas é a produtividade, isto é, a possibilidade de construção
e interpretação de novos sinais. Esta, sim, parece ser uma propriedade
que distingue a fala humana dos sistemas de comunicação dos outros
animais de maneira cabal, porque qualquer pessoa é capaz de mon-
tar enunciados novos com base em elementos (e regras de combina-
ção) conhecidos e também compreender sinais assim construídos. Por
exemplo, se você aprende (numa língua estrangeira, digamos) as frases
“a menina gosta de chocolate” e “o jacaré toma sorvete”, não será sur-
preendente ter a ideia de dizer “o jacaré gosta de chocolate” e “a menina
toma sorvete”, certo? Mas os animais nunca parecem ter essa ideia! O
papagaio, por exemplo, pode saber muitas frases, mas ele jamais tenta
recombinar parte dos elementos de uma delas com parte dos elementos
de outra! A verdade é que ele não é capaz de reconhecer subpartes na-
quele todo. Tampouco, quando os animais usam a própria linguagem,
parece ser possível para eles combinar partes de seus enunciados e obter
outro enunciado que veicule uma mensagem diferente. Esse combinar e
recombinar elementos é parte fundamental da propriedade da produti-

17
Aquisição da Linguagem

vidade, que se liga diretamente ao conceito de criatividade regida por


regras.

Vamos frisar bem: “criatividade” neste contexto não tem o mes-


mo sentido que essa palavra tem no uso cotidiano, em que normalmen-
te a associamos com capacidade artística. Aqui estamos falando de uma
propriedade da fala de qualquer ser humano, mesmo daquele sem quais-
quer dotes artísticos – mas estamos falando apenas dos seres humanos,
só deles... Criatividade aqui quer dizer que nós não temos um estoque
mental de sentenças que repetimos cada vez que precisamos falar de
certo assunto. Ao contrário, as sentenças que usamos a cada instante são
absolutamente novas, no sentido de que aquelas formas específicas nós
construímos no momento mesmo em que falamos e possivelmente não
serão repetidas mais em nenhuma circunstância. Reflita um momento
e você verá que só em circunstâncias muito específicas repetimos uma
frase (quando queremos deixar claro como foi mesmo que alguém falou
certa coisa) e que, no geral, se contarmos dez vezes uma estória, prova-
velmente serão usados dez conjuntos de estruturas gramaticais distintas
para expressar aquele mesmo conteúdo.

É certo que alguns sistemas de comunicação animal também são


capazes de produzir mensagens novas, como é o caso das abelhas, mas
essas novas mensagens estarão sempre restritas a dizer fundamental-
mente a mesma coisa: dada a posição do sol e a posição da colmeia,
onde está a fonte da comida. O grau de complexidade deles não se as-
semelha nem de longe ao das línguas humanas: as abelhas não podem
segmentar o discurso em unidades menores e recombiná-las segundo
certas regras, mas apenas reiterar certos padrões um número indefinido
Você deve se lembrar da
disciplina de Sintaxe que de vezes, só isso.
DP é o Determiner Phrase,
isto é, o sintagma deter- Nós também podemos reiterar certos padrões, às vezes de forma
minante, que tem como muito trivial, simplesmente repetindo algum constituinte da sentença,
núcleo um determinan-
te (como os artigos, os como nas sentenças eu gosto muito de sorvete e eu gosto muito muito de
demonstrativos, etc.) que sorvete. No entanto, mais do que reiterar padrões, as línguas humanas
seleciona como com-
plemento um sintagma possuem outra propriedade que se chama recursividade e que permi-
nominal. Para relembrar te, por exemplo, que adicionemos mais um elemento numa estrutura
este e outros termos, veja:
MIOTO, Carlos. Sintaxe do coordenada: a uma sentença como o João e a Maria saíram podemos
português. Florianópolis: adicionar mais um elemento ao DP sujeito e obter o João, a Maria e o
LLV/CCE/UFSC, 2009.

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Introdução: A Fala do Bicho Homem e a Fala dos Outros Bichos Capítulo 01
Pedro saíram. Este já é um tipo de operação mais sofisticado, porque não
se trata simplesmente de repetir um padrão, mas de aplicar uma regra
várias vezes, certo? Observe que a regra que nos permite fazer coorde-
nações exige que o elemento a ser coordenado seja do mesmo tipo dos
que estão ali, aos quais ele vai se coordenar, e assim podemos encaixar
outro nome próprio ali, mas não um verbo, por exemplo: * o João, a
Maria e beijar saíram.

O fato de ser possível aplicarmos algumas regras recursivamente


é que permite que encaixemos estruturas dentro de outras estruturas do
mesmo tipo, como no caso da sentença [a Maria acha que o Paulo saiu],
que pode vir a ser parte da sentença a Ana disse que [a Maria acha que
o Paulo saiu]. Dá pra ver claramente a diferença com respeito ao que as
abelhas fazem, né? Crucialmente, as abelhas não podem fazer fofoca,
mas nós podemos: o Pedro falou que a Ana disse que a Maria acha...

Ademais, o que se observa no geral nas mensagens animais é


que há um conjunto fixo de mensagens que podem ser transmitidas,
normalmente desencadeadas por fatores externos, como algum tipo de
perigo, uma fonte de alimento ou um período de acasalamento. Ao con-
trário, a linguagem humana é independente de estímulos, uma caracte-
rística que se liga também diretamente ao conceito de criatividade.

Vamos insistir nesse ponto, que constitui um diferencial entre as


línguas humanas e as linguagens animais: o que quer dizer exatamente
que a linguagem humana é independente de estímulos? Quer dizer que
a forma de um dado enunciado que produzimos em certa situação não é
predizível pela situação na qual ele é proferido (embora o seu conteúdo
possa ser parcialmente previsível em inúmeras circunstâncias). Assim,
se entra um pássaro voando na sala, alguém pode gritar “que horror!”,
outra pessoa pode falar “que gracinha!” e outra ainda pode dizer “por
que deixaram a janela aberta?”. O que não há é a garantia de que al-
guém produzirá a palavra “pássaro”, ou seja, as línguas humanas não
funcionam como a linguagem dos animais, esta, sim, resposta direta a
estímulos exteriores. Dito de outra forma: dado um estímulo de certa
natureza, a forma da resposta dos outros bichos será automática, mas a
nossa não.

É importante frisar que a criatividade humana é regida por re-

19
Aquisição da Linguagem

gras, o que quer dizer que os enunciados produzidos em qualquer língua


humana possuem estrutura gramatical; é exatamente esta propriedade
que permite também a incrível diversidade dos conteúdos das mensa-
gens humanas, ao contrário do que se vê nas mensagens dos animais,
em número limitado e com conteúdo fixo. A criatividade regida por re-
gras é, por isso, outra maneira de falar de produtividade como definida
por Lyons (1987).

É claro que o fato de não existirem linguagens animais com es-


sas mesmas propriedades (ou em mesmo grau) das línguas humanas
não exclui, em princípio, a possibilidade de que os animais possam vir a
aprender uma língua humana. Os estudiosos do comportamento animal
também já se perguntaram se, para além de terem linguagens mais ou
menos sofisticadas, alguns animais seriam capazes de adquirir alguma
língua humana. Os chimpanzés, por exemplo, tomaram parte em vários
experimentos como potencialmente capazes de aprender alguma língua
natural humana, em particular as línguas de sinais, dada a destreza ma-
nual que esses animais mostram – e uma certa dificuldade para a articu-
lação de sons que esses primatas também exibem, diga-se de passagem,
um ponto ao qual voltaremos logo a seguir.

O interessante é que já foram feitos vários experimentos e todos


parecem chegar à mesma conclusão: os chimpanzés aprendem a usar si-
nais para se comunicar com os seus instrutores humanos, mas bem pou-
cos de seus enunciados são espontâneos; na maioria das interações, é o
instrutor que “puxa conversa”, e a resposta dos primatas mais da meta-
de das vezes repete pelo menos parcialmente o enunciado do instrutor.
Ora, esse tipo de comportamento é muito diferente do da criança: ela é
espontânea nas suas interações com os adultos e repete cada vez menos
as palavras do adulto. Além disso, a criança não tem um “instrutor”: os
adultos falam normalmente com ela ou à volta dela, e ela desenvolve
uma gramática compatível com aqueles dados (e com muitos outros que
pertencem à língua, na verdade). E, acima de tudo, a criança é capaz de
expressar pensamentos inusitados fazendo uso de mecanismos linguís-
ticos sofisticados; por exemplo, quando vai tomar o leite, que está muito
quente, e o adulto lhe diz: “Tá quente!”, ela, aos três anos e onze meses,
responde: “Então diquenta!”. Voltaremos a esta questão em breve.

20
Certas Características do Cérebro Humano Capítulo 02
2 Certas características do
cérebro humano
Neste capítulo, vamos examinar mais de perto o cérebro humano, que
parece ser dotado de regiões específicas responsáveis pelas diferentes atividades
humanas, incluindo a linguagem. Ao que tudo indica, é o hemisfério esquerdo
do cérebro que controla a linguagem. Veremos ainda que, embora nossa produ-
ção linguística deva esperar alguns desenvolvimentos biológicos iniciais, nossa
percepção da linguagem desde o nascimento é incrivelmente acurada e deve se
efetivar dentro de certo período, pois do contrário não poderá mais ser adquiri-
da com o nível de perfeição com que os humanos típicos a adquirem.

Sem dúvida, a parte do corpo humano mais misteriosa para nós


ainda é o cérebro. Uma das razões do mistério é que notamos no corpo
humano uma organização que podemos chamar de modular: o coração
faz uma coisa diferente da que o rim faz, tendo seus próprios princípios
de funcionamento – o coração bate, o rim não! – ou seu próprio tipo
celular diferente das células que observamos no estômago, por exem-
plo. Os órgãos interagem, mas são autônomos. No cérebro, por outro
lado, o que se observa é uma constituição aparentemente uniforme: sob
a caixa craniana, se reúnem cerca de 10 bilhões de neurônios (também
chamados em seu conjunto de massa cinzenta), formando a superfície
do cérebro, que é o córtex. Por baixo dele temos a massa branca, cons-
tituída por bilhões de fibras que ligam os neurônios entre si. Aparente-
mente, não há aqui nenhum tipo de modularização como a que vemos
no corpo.

Mas nem tudo é tão diferente no cérebro: por exemplo, ele exibe
dois hemisférios, algo que também vemos no corpo, onde temos alguns
órgãos em pares (os rins, os pulmões), assim como alguns membros (os
pés, as mãos, os olhos...). A coisa surpreendente, no entanto, é que esses
hemisférios não são simétricos como os órgãos do resto do corpo em
geral são: o pulmão direito faz a mesma coisa que o pulmão esquerdo,
assim como o pé direito faz fundamentalmente a mesma coisa que o pé
esquerdo (ainda que um deles possa ser mais esperto do que o outro).

21
Aquisição da Linguagem

No caso do cérebro, não é uma questão de esperteza, mas de divisão de


tarefas, chamada tecnicamente de lateralização: tudo leva a crer que o
lado esquerdo do cérebro é especializado em atividades, como o pensa-
mento matemático e a linguagem, enquanto o lado direito se dedica à
percepção de formas e do espaço, por exemplo. A estória é mais interes-
sante ainda: com respeito aos sons que ouvimos, o lado direito é o lado
do cérebro que processa a música, enquanto o lado esquerdo é quem
processa os sons da linguagem!

Assim, contrariamente às aparências, é possível dizer que o cére-


bro tem regiões especializadas para realizar certas tarefas. Essa hipóte-
se, conhecida como hipótese localista, remonta à segunda metade do
século XIX, período em que também foi pela primeira vez relaciona-
da a linguagem com o hemisfério esquerdo. Distúrbios de linguagem
causados por alguma lesão física, fruto de tumor ou câncer, acidente
cardiovascular, traumatismo craniano, etc., são chamados de afasia. Um
médico chamado Paul Broca descobriu que lesões na parte frontal do
hemisfério esquerdo causavam certos tipos de perturbações no pacien-
te: embora aparentemente compreendesse o que lhe era dito, a sua fala
tinha forma telegráfica, com omissão de elementos gramaticais, como
preposições e conjunções, e exibia dificuldades de cunho fonológico
(ainda que os órgãos fonadores não tivessem sofrido nenhum dano).
Esse tipo de problema de fala ficou conhecido como afasia de Broca (ou
agramatismo), e a região do cérebro que parece controlar esses aspec-
tos da linguagem é chamada zona de Broca. Outro médico, chamado
Karl Wernicke, também no século XIX, descobriu que lesões na parte
posterior do lóbulo temporal esquerdo do cérebro causavam outro tipo
de deficiência: embora seus pacientes falassem sem qualquer problema
de articulação e de construção sintática das sentenças, seus enunciados
eram no geral desprovidos de sentido, e os pacientes também tinham
graves problemas de compreensão. Assim, aparentemente lesões nessa
parte do hemisfério esquerdo, conhecida hoje por zona de Wernicke, são
responsáveis por esse tipo de problema semântico na linguagem, conhe-
cido como afasia de Wernicke.

Desde a metade do século XIX, quando Broca e Wernicke apresen-


taram seus trabalhos, até agora, muita pesquisa já se desenvolveu nessa

22
Certas Características do Cérebro Humano Capítulo 02
área. É preciso salientar que as lesões nunca são exatamente na mesma
área, muitas vezes são extensas ou múltiplas, de modo que o quadro de
sintomas também pode ser muito mais vasto, o que quer dizer que o
conhecimento que temos construído nesse campo é menos definitivo
do que gostaríamos. Um problema ainda mais sério, no caso das afasias,
é que não é sempre claro se o que se perdeu foi a base neuronal onde se
aloja de alguma forma o conhecimento ou se o que está perdido são as
conexões entre os conhecimentos...

Seja como for, para o nosso modesto propósito aqui, que é o de


mostrar que a linguagem tem suporte material em certas áreas do cére-
bro, essas observações gerais sobre o fenômeno bastam. No entanto, é
conveniente chamar a atenção para uma coisa bem importante: vamos
imaginar que os neurologistas conseguissem fornecer uma caracteriza-
ção cabal em termos de tipo celular e processos físico-químicos envolvi-
dos na linguagem; ainda assim teríamos que decidir que estatuto teriam
conceitos, como “sentença”, “grupo nominal”, “concordância”, “verbo”,
que parecem ser necessários para a caracterização dos fenômenos gra-
maticais. Será que esses conceitos também fazem parte da base física do
cérebro? Hum, é difícil imaginar que uma rede de neurônios específica
só deixa passarem por ali informações sobre concordância, né? Pode ser
que esse seja o caso, mas não parece que é assim que funciona a estória...
Por isso, é inescapável a referência a outro conceito, o de mente, que se-
ria o conjunto dos sistemas cognitivos, responsável pelas propriedades
abstratas que o cérebro enquanto sistema físico exibe, e onde se aloja-
riam também conceitos abstratos, como o de representação, tão caro ao
estudo dos sistemas simbólicos em geral. No último capítulo, discuti-
remos um pouco o que é um sistema simbólico e o conceito mesmo de
representação. Por agora, basta frisar que, por essas razões, seguiremos
Chomsky em toda a sua obra e usaremos daqui para frente o termo téc-
nico cérebro/mente.

Nós temos aprendido bastante também sobre a relação entre o cé-


rebro/mente e a linguagem humana observando o desenvolvimento das
crianças e suas habilidades linguísticas desde o nascimento: embora a
criança só manifeste alguma produção linguística em torno dos seis
meses de vida, certas capacidades perceptivas com respeito às línguas

23
Aquisição da Linguagem

humanas podem ser notadas com poucos dias de vida.

Segundo Guasti (2002), pesquisas têm mostrado que bebês de qua-


tro dias de vida podem distinguir sua língua materna de uma língua
estrangeira. Também é possível mostrar que crianças com alguns meses
de vida são capazes de reconhecer contrastes fonêmicos que existem nas
línguas do mundo, embora não existam na sua língua materna – por
exemplo, criancinhas japonesas podem distinguir entre /r/ e /l/, uma
coisa que os adultos japoneses não conseguem fazer, já que esse contras-
te fonêmico não existe no japonês.

Como é que os pesquisadores descobriram essa capacidade infan-


til? Ah, eles têm métodos especiais para fazer isso. Um desses métodos
consiste em colocar na chupeta do bebê um sensor capaz de enviar a um
computador informações acerca da velocidade de sucção do bebê. O
que os pesquisadores perceberam é que, quando o bebê está quietinho
no berço, ele chupa a chupeta numa certa velocidade (isto é, com certa
taxa de sucção). No entanto, tão logo acontece alguma coisa diferente
no ambiente (começa a tocar uma música, por exemplo), a taxa de suc-
ção do bebê aumenta. Se por algum tempo a mesma música continua
tocando, o bebê vai se desinteressando, e a taxa de sucção cai (tecnica-
mente, essa é a fase de habituação). Se acontece de mudarmos a música,
novamente o bebê se interessa e volta a aumentar a sua velocidade de
sucção. Muito criativo esse método, não é mesmo? E os resultados dele
são bem confiáveis!

Claro, os pesquisadores sempre fazem a pesquisa com um grupo


de controle ao lado do grupo testado para saber se a modificação feita
no ambiente é mesmo a razão da mudança da velocidade de sucção.
Um desses experimentos, feito por Jacques Mehler e seus colaboradores
MEHLER, J. et al. A pre- em 1988 e reportado por Guasti (2002, p. 27), fez bebês aprendizes de
cursor of language acqui-
francês escutarem enunciados do russo. Passada a fase de habituação
sition in young infants.
Cognition, v. 29, p. 144- (isto é, quando a taxa de sucção dos bebês caiu), uma parte dos be-
178, 1988.
bês começou a ouvir enunciados em francês, enquanto a outra parte (o
grupo de controle) continuou ouvindo enunciados em russo. Ora, o que
se verificou foi que a taxa de sucção dos bebês que continuaram ouvindo
russo não mudou, enquanto que a taxa de sucção dos que começaram
a ouvir francês subiu, o que mostra que os bebês foram capazes de dis-

24
Certas Características do Cérebro Humano Capítulo 02
tinguir as duas línguas – os pesquisadores tiveram o cuidado de pedir a
um mesmo falante, um bilíngue perfeito, para gravar os textos nas duas
línguas.

Você deve estar pensando: claro, o bebê que vai ser falante de
francês já ouviu um monte de francês quando ele estava na barriga da
mãe, é por isso que ele reconhece a língua. No entanto, note que dentro
do útero materno o bebê está mergulhado no líquido amniótico e ouve
tão bem quanto nós ouvimos o que diz o alto-falante do clube quando
estamos com a cabeça dentro d’água na piscina – um monte de barulho.
Além do mais, os pesquisadores mostraram que os bebês podem distin-
guir entre línguas que não são conhecidas, desde que elas pertençam a
grupos com propriedades rítmicas diferentes (como o russo e o francês,
mas não o holandês e o inglês, por exemplo).

O que é mais surpreendente, no entanto, é que a incrível habilidade


que os recém-nascidos mostram para distinguir línguas e contrastes
fonêmicos dentro de uma mesma língua (seja ela sua língua ma-
terna ou não) desaparece em poucos meses. Assim, o bebê japonês
que distinguia /l/ e /r/ aos seis meses, aos doze não é mais capaz de
fazê-lo. Isso sugere que a experiência crescente com o que será a
sua língua materna na verdade funciona como um guia para uma
seleção, dentro do inventário de sons humanos possíveis, daqueles
que serão relevantes para a criança falar a sua língua materna. Por-
tanto, muito ao contrário do que poderia parecer, a criança quando
entra em contato com uma língua específica está na verdade aban-
donando a potencialidade de falar todas as línguas do mundo para
ficar com uma única língua: aquela que ela ouve ao seu redor! Note
bem quão surpreendente é o que estamos falando: “aprender uma
língua” quer dizer “desaprender todas as outras” para poder construir
o conhecimento específico sobre a fonologia de uma língua e poder
assim acessar o conhecimento sobre o léxico!

É possível que a nossa capacidade de percepção, embora inegav-


elmente parte do nosso cérebro/mente, não seja específica para apren-
dermos uma língua natural. Todavia, é inegável que fazemos uso dela

25
Aquisição da Linguagem

para desenvolvermos nossas habilidades linguísticas. E, ao lado dessa


capacidade, temos outra, essa, sim, bem específica às nossas produções
linguísticas, que começam na verdade bem mais tarde, não antes dos
seis meses, quando o bebê começa a balbuciar. Segundo Guasti (2002),
até mais ou menos quatro meses, o aparato vocal do bebê é muito pare-
cido com o do chimpanzé (e esse é o problema de articulação que ele
tem do qual falamos antes): a laringe é mais alta, a garganta é menor, o
trato vocal é mais estreito; além disso, a língua tem um formato difer-
ente do formato adulto humano. A partir dos quatro meses, o aparato
vocal infantil começa a sofrer uma mudança que só vai se completar em
torno dos três anos, uma mudança que parece ser importante para que
a criança venha a falar.

Língua
Cavidade Nasal
Epiglote

(a)

Laringe
(b)

Figura 2.1: Aparato vocal humano infantil e adulto

Contudo, como nota Guasti (2002, p. 47), não devemos dar im-
portância excessiva à maturação do aparato vocal em si, porque crianças
surdas começam mais ou menos na mesma idade a balbuciar com as
mãos (claro! A língua que elas podem adquirir é uma língua de sinais!),
o que mostra que, por trás do balbucio, está em jogo mais do que a ca-

26
Certas Características do Cérebro Humano Capítulo 02
pacidade de articular sons (ou o domínio motor). E é isso o que muitos
pesquisadores têm tentado mostrar: nos primeiros meses de vida, o
cérebro humano sofre o processo que temos chamado lateralização, ou
seja, cada um dos hemisférios passa a se dedicar a um conjunto de fun-
ções, e é apenas quando parte considerável desse processo já ocorreu ou
está em marcha é que a linguagem pode começar a se desenvolver.

E a linguagem não só pode como deve se desenvolver nesse pe-


ríodo inicial da vida humana. Uma observação importante é a de
que existe o que se convencionou chamar “período crítico” para a
aquisição da primeira língua, que é o início da puberdade; até esse
momento, a criança deve ter contato com falantes de alguma língua
natural, sob pena de não mais ser possível adquirir uma língua com
a perfeição com que a adquirem crianças expostas a uma língua hu-
mana antes desse momento.

A maior evidência para essa hipótese do período crítico vem de


casos dramáticos reportados na literatura de crianças isoladas sem
qualquer contato social ou linguístico. Costa e Santos (2003) repor-
tam um desses casos, relatado por Curtiss (1977); a menina Genie até
os doze anos permaneceu afastada de qualquer interação linguística. CURTISS, S. Genie: a
Quando resgatada dessas condições, a menina foi assistida por médicos psycholinguistic study of
a modern-day ‘wild child’.
e linguistas, que tentaram ensiná-la a falar. Genie chegou a um estágio New York: Academic Press,
em que conseguia se comunicar, mas falar fluentemente nunca foi pos- 1977.

sível para ela. Por quê?

Segundo Menuzzi (2001), o estudo de Lenneberg (1967) é uma ten-


tativa de responder a essa pergunta. Para Lenneberg, se está correta a LENNEBERG, E. Biological
hipótese inatista de Chomsky (1965) de que temos um órgão mental es- fondations of language.
New York: John Wiley &
pecífico para a (aquisição da) linguagem – vamos chamar esse órgão de Sons, 1967.
gramática universal (GU) – então devemos ver nesse órgão os mesmos
tipos de processos biológicos (como maturação, recuperação em caso de
acidentes, etc.) que vemos em outros órgãos.

Trabalhando com casos de afasia traumática, a pesquisa de Len-


neberg se centrou nos padrões de recuperação da fala, que são basica-
mente três: se a lesão ocorre em crianças no período inicial da apren-

27
Aquisição da Linguagem

dizagem (até os dois ou três anos), o que se vê na recuperação é a criança


reiniciar do começo o processo de aquisição, fazendo o caminho mais
rapidamente e atingindo proficiência ótima em pouco tempo; se a lesão
ocorreu em crianças entre mais ou menos os quatro anos até o início da
puberdade, o que se observa é a restauração do sistema (e não o seu re-
início), sendo a recuperação completa, mas bem mais lenta, podendo se
estender por anos. Contudo, se a lesão ocorreu no final da puberdade ou
já na fase adulta, a restauração do sistema é bastante restrita, podendo
deixar sequelas irrecuperáveis. Para Lenneberg, esses padrões podem
ser explicados pela hipótese de que o período crítico para a aquisição da
linguagem vai dos dois anos até o início da puberdade, período em que
a GU está plenamente ativa.

A esses marcos temporais de padrões de recuperação, Len-


neberg (1967) identifica correlatos observáveis no desenvolvimento
físico do cérebro. Considerando fatores, como o peso do cérebro, a
densidade neuronal, o coeficiente de células cinzentas, a composição
química e a potência das ondas eletrofisiológicas do cérebro, é possível
fazer a seguinte associação: entre o nascimento e os dois ou três anos de
idade, o crescimento do cérebro é acelerado (passa de cerca de 30% de
seus valores adultos para cerca de 70-80% desses valores); a partir dos
três ou quatro anos até o início da puberdade, o crescimento do cérebro
progride, mas muito mais lentamente, atingindo cerca de 95% do valor
adulto, em torno dos doze ou treze
120 anos, progredindo pouco durante a
puberdade, quando atinge seu valor
Normal
100 adulto final. São esses dados que se
Atrasado
veem no gráfico a seguir.
(porcentagem dos valores do adulto)

80 Linguagem estabelecida

Juntar palavras
60 Habilidade de andar
Habilidade de sentar
Maturação do cérebro

40

20
Gráfico 2.1: Análise de maturação do

0 cérebro
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
Idade cronológica

28
Certas Características do Cérebro Humano Capítulo 02
Os resultados de Lenneberg (1967) já foram contestados, no sen-
tido de que parece haver vários períodos críticos, dependendo da habili-
dade que está em discussão – por exemplo, como vimos anteriormente,
a perda da capacidade de distinção de contrastes fonológicos parece
acontecer muito cedo. Contudo, eles apontam um fato importantíssimo:
o desenvolvimento da linguagem como um todo ocorre par a par com
o desenvolvimento do cérebro e, quando o crescimento do cérebro esta-
ciona, o mecanismo de aquisição da linguagem também estaciona, não
permitindo mais a aquisição de um língua com a mesma rapidez, facili-
dade e perfeição com que a primeira língua foi aprendida. Isso tem des-
dobramentos sérios na aquisição da língua de sinais por crianças surdas.
Estudos como o de Newport (1990) <link> NEWPORT, E. Maturational
constraints on language learning. Cognitive Science, v. 14, p. 11-28, 1990.
<link>, citados por Avram (2003), mostram que, quanto mais tarde se
dá a exposição à língua de sinais, menos nativo é o domínio e o uso dessa
língua pela criança surda, o que parece confirmar a abordagem geral de
Lenneberg. Pesquisas que estão em curso nessas áreas nos ajudarão no
futuro a entender melhor a relação entre cérebro/mente e linguagem.

Nesta nossa discussão, é preciso acrescentar ainda uma observação


sobre uma conexão feita normalmente no senso comum entre inte-
ligência e linguagem. É comum pensarmos que uma pessoa que fala
bem é muito inteligente e também que uma pessoa muito inteligente
deve necessariamente falar bem; ao contrário, as pessoas que não fa-
lam bem nos parecem imediatamente pouco inteligentes e tendemos
a pensar que alguém com sérios problemas mentais, por exemplo, terá
algum tipo de dificuldade com a linguagem. A ligação entre essas duas
coisas, no entanto, está longe de ser direta.

Temos casos curiosos de pessoas com problemas cognitivos graves


que falam bem e, por outro lado, casos de pessoas perfeitamente nor- YAMADA, J. Laura: a case
for the modularity of
mais sob o ponto de vista cognitivo que têm sérias limitações linguísti-
language. Cambridge, MA:
cas. Avram (2003) reporta o estudo de Yamada (1990) sobre uma jovem MIT Press, 1990.
mulher chamada Laura, com QI abaixo de 40, que não sabe contar, não
consegue dizer as horas, nem amarrar os sapatos; em sua produção lin-
guística, contudo, aparecem sentenças complexas, como orações relati-

29
Aquisição da Linguagem

vas (o bolo que a Maria fez) e complementos infinitivais (eu quero sair),
sentenças com encaixamento múltiplo (a Maria disse que o Pedro pensa
que...) ou passivas (o bolo foi feito por mim). Ela emprega corretamente
tempos verbais e marcas de concordância, advérbios temporais, etc. É
verdade que a sua produção supera em muito a sua compreensão, já que
em situação de teste Laura não parece ser capaz de compreender muitas
das estruturas produzidas. Este caso nos sugere que o conhecimento de
certas áreas da gramática (a fonologia, a morfologia e a sintaxe) é separa-
do do conhecimento de outras áreas (como a semântica e a pragmática)
e que eles podem se relacionar de maneiras bem diferentes com outras
habilidades não linguísticas. Na verdade, aqui temos alguma evidência
para a dissociação entre linguagem e outras habilidades cognitivas.

Por outro lado, são conhecidos casos em que os indivíduos


mostram pontuação apropriada para a idade em testes de inteligência
não verbais (QI de 85 ou mais), não têm problemas neurológicos de
nenhuma espécie nem problemas de surdez, mas apresentam severos
déficits especificamente na habilidade linguística. Gopnik (1990), tam-
GOPNIK, M. Feature bém reportada por Avram (2003), estuda o caso de uma família de 30
blindness: a case study. pessoas, das quais 16 mostram o mesmo tipo de déficit linguístico. Fun-
Language Acquisition, v. 1,
p. 139-164, 1990. damentalmente, o problema reside no manejo de regras morfofonêmi-
cas e, portanto, em inglês aparecerão na distribuição da morfologia de
passado (-ed nos verbos regulares), na concordância verbo-sujeito (-s
na terceira pessoa do singular do presente do indicativo), no uso do
morfema de plural e também no uso de aspecto gramatical. Novamente,
estamos frente a evidências de que a linguagem está dissociada de out-
ras habilidades cognitivas.

Finalmente, uma última palavra sobre o assunto que iniciou este


capítulo e que está diretamente conectado com o parágrafo precedente:
a modularidade do cérebro/mente. Vimos que, embora o cérebro apar-
entemente não exiba módulos como o resto do corpo, o fato de haver
lateralização e especialização dos hemisférios cerebrais e, dentro do
mesmo hemisfério, de regiões que processam diferentes tipos de infor-
mação, incluindo aquelas ligadas à linguagem, sugere que a organiza-
ção do cérebro/mente também é modular. Se a linguagem é um módulo
dentro do cérebro/mente, é de se esperar que o seu funcionamento seja

30
Certas Características do Cérebro Humano Capítulo 02
autônomo com respeito aos outros sistemas cognitivos e sensoriais – de
crenças, desejos, etc. Podemos pensar ainda que a organização interna
da própria linguagem é modular – à semelhança do que vemos no cora-
ção, por exemplo, que é um módulo no corpo, organizado internamente
em módulos: o ventrículo direito, o aurículo esquerdo, etc. A importân-
cia dessa observação ficará mais clara à medida que for progredindo o
nosso estudo sobre a aquisição da linguagem na perspectiva inatista.

31
Como Aprendemos a Falar? Capítulo 03
3 Como aprendemos a falar?
Neste capítulo, vamos analisar as várias hipóteses do senso comum sobre
a aquisição da linguagem. A mais popular entende que as crianças aprendem
por imitação dos adultos, já que afinal elas aprendem a falar a língua que os
adultos falam em torno delas. Também é comum pensarmos que os adultos
podem, por algum mecanismo de castigo e recompensa, fazer com que a aquisi-
ção da linguagem se desenvolva melhor nas crianças. No entanto, veremos que
há um conjunto de fatos observáveis na aquisição que mostram que as crian-
ças, no que tange à gramática, não estão nem imitando nem sendo estimuladas
de alguma maneira a atingir certo conhecimento, mas estão formulando regras
e aplicando-as.

Vamos examinar agora detidamente várias hipóteses sobre como a


criança chega a adquirir uma língua perfeitamente, sem instrução espe-
cífica e numa velocidade espantosa. Entre os dois e os quatro anos, no
espaço de dois anos, portanto, ela se torna falante proficiente de qual-
quer língua, uma coisa que nós, em qualquer idade depois de adultos,
não conseguimos nem com muita dedicação!

É importante discutirmos as teorias que fazem parte do senso co-


mum para vermos que, apesar de aparentemente muito simples e razo-
áveis, essas teorias não dão conta de certos aspectos muito interessantes
da fala das crianças em fase de aquisição.

3.1 As crianças aprendem por imitação?


Para explicar a aquisição da linguagem, a teoria mais popular (e
que tem amparo científico em teorias como o comportamentalismo)
talvez seja a da imitação. As crianças aprendem imitando o que os adul-
tos dizem. O maior argumento para essa hipótese é o fato de a criança
aprender russo se os adultos ao seu lado falam russo, mas aprender por-
tuguês se os adultos que a rodeiam falam português.

É preciso, antes de mais nada, fazer uma observação sobre o que é


uma língua. Tendemos a pensar que o vocabulário é o centro da língua,

33
Aquisição da Linguagem

porque para fins comunicativos é verdade que devemos ser capazes de


nomear as coisas, por exemplo. Mas é verdade também que, sem saber,
por exemplo, quais são os princípios que norteiam a ordem das palavras
numa língua, não é possível alguém se fazer compreender nela, mesmo
conhecendo seus itens lexicais. Imagine que você aprende em japonês
as palavras relativas a “o menino”, “ver” e “a menina”. Como é que você
diz em japonês que “o menino viu a menina”? Sem saber pelo menos
os rudimentos da gramática, isto é, a ordem que a língua escolhe para
ordenar seus constituintes (sem falar em como é que essa língua faz para
veicular a ideia de tempo passado!), sabendo apenas os itens lexicais,
não é claro que você vai conseguir dizer o que você quer dizer – em
particular, copiar a ordem do português pode resultar em algo incom-
preensível ou pode veicular o sentido exatamente oposto, ou seja, o de
que foi a menina que viu o menino. Portanto, aprender uma língua é
muito mais (mas muito mais mesmo!) do que saber simplesmente as
palavras da língua, ainda que essa seja uma parte importante da estória,
sobretudo quando falamos do aspecto comunicativo.

Isto posto, podemos voltar à nossa discussão sobre a criança apren-


der a falar por imitação. Que as palavras devem ser imitadas, disso não
há dúvida, porque, como já discutimos, o signo linguístico é arbitrário
e, portanto, não há como fazer uma previsão do que uma palavra signi-
ficará com base simplesmente nas suas propriedades sonoras. Alguém
que já fala a língua deve nos dizer qual é a convenção adotada ali. To-
davia, observe que se a criança imitar com perfeição a sequência sonora
globalização não quer dizer que ela efetivamente incorporou essa pala-
vra no seu léxico, porque se ela ainda não tem a construção conceitual
que permite usar essa palavra adequadamente, esta palavra ainda não é
parte da sua língua, certo?

Mas o que dizer sobre a gramática da língua? É razoável dizer que


a criança aprende a gramática tentando repetir o que ela ouve o adulto
falar?

Vários fatos mostram que esse não deve ser o caso. Primeiramente,
segundo Guasti (2002), diversos pesquisadores já fizeram um levanta-
mento cuidadoso do tipo de estrutura gramatical que os pais usam com
as crianças, e os resultados mostram que majoritariamente as sentenças

34
Como Aprendemos a Falar? Capítulo 03
dos pais ou são ordens (vá pegar o seu casaco!) ou são perguntas (o que
que você quer?), e apenas 25% das sentenças usadas por eles são declara-
tivas simples; porém, os primeiros enunciados das crianças são em sua
grande maioria declarativas simples.

Em segundo lugar, é notável, mesmo para quem não é pesquisador


em aquisição da linguagem, que as crianças, praticamente a partir do
momento que começam a colocar duas palavras juntas, fazem combi-
nações que não se encontram necessariamente nos enunciados proferi-
dos anteriormente pelos adultos. Dito de outro modo, a criança é desde
muito cedo criativa nos seus enunciados, produzindo sentenças novas
que ela nunca ouviu antes e, portanto, ela não pode estar copiando do
adulto.

Ainda mais interessante é a observação de que a criança produz


frases que definitivamente não se encontram na fala do adulto. Por
exemplo, todas as crianças aprendendo português a certo ponto produ-
zem sentenças como eu não sabo ou eu fazi isso sozinha, que são formas
inexistentes no português brasileiro adulto. Podemos alegar que esses
“erros” infantis são tentativas frustradas de produzir as formas corretas.
Isso é verdade para certo tipo de “erro” infantil: por exemplo, crianças
até certa idade têm dificuldade de produzir sons como /pr/ e assim as
crianças pequenas produzem a palavra prato como produzem a palavra
pato. No entanto, esse não é o caso com as formas sabo e fazi, já que não
há nenhuma dificuldade fonológica especial na produção de sei e fiz,
formas que, aliás, é comum a criança ter produzido meses antes de co-
meçar a produzir as formas inexistentes na fala adulta. Mais pra frente,
vamos discutir longamente esse problema morfológico.

Assim, se é verdade que os dados linguísticos primários são neces-

A hipótese da imitação como uma explicação plausível para a aqui-


sição da linguagem esbarra em uma dificuldade insuperável, que
nós podemos formular da seguinte maneira, de acordo com Raposo
(1992): o sistema linguístico que a criança vai ter no final do processo
de aquisição, capaz de dar juízos de gramaticalidade sobre senten-
ças da sua língua ou dizer que interpretações uma sentença pode

35
Aquisição da Linguagem

ou não ter nessa língua, que é afinal o conhecimento que temos da


gramática da nossa língua materna como adultos, é qualitativa e
quantitativamente muito mais complexo do que o sistema simples
que caracteriza os dados primários a partir dos quais o sistema final
foi adquirido. Por exemplo, todos nós sabemos que não é possível
usar a forma ‘cê como objeto de um verbo (*ele vê ‘cê todo dia de
manhã), mas apenas em posição sujeito (cê vê ele todo dia de ma-
nhã), e ninguém nunca nos instruiu sobre isso. Note bem: a criança
só tem acesso a dados positivos, isto é, a sentenças gramaticais da
língua (como a frase bem formada anteriormente), mas chega a sa-
ber quais são as impossibilidades gramaticais nessa língua (como a
sentença malformada anteriormente). Você vê o abismo que tem aí
no meio?

sários, parece claro também que eles não são suficientes e que algum
tipo de mecanismo de outra ordem é necessário para responder por esse
“pulo do gato” que a criança dá, segundo a hipótese inatista. Voltaremos
a esse ponto mais adiante.

3.2 As crianças aprendem por estímulo-e-


resposta?
Outra hipótese que já foi aventada para explicar a aquisição da lin-
guagem pelas crianças é a hipótese comportamentalista (ou behavioris-
ta), que foi formulada especificamente para o aprendizado de línguas
no livro Verbal behavior, de B. F. Skinner, publicado no final da década
SKINNER, B. F. Verbal beha- de 50 do século XX. Grosso modo, segundo essa perspectiva, a criança
vior. New York: Appleton-
Century-Crofts, 1957. Você aprenderia sua língua materna porque seria estimulada positivamen-
aprenderá mais sobre as te quando produzisse enunciados corretos e negativamente quando os
pesquisas de Skinner na
disciplina Psicologia Edu- enunciados contivessem algum erro. O pressuposto por trás dessa hi-
cacional. pótese é de que os pais ou outros adultos que cuidam da criança estão
sistematicamente monitorando a fala dela e sempre premiando os seus
acertos ou corrigindo os seus erros, quando eles ocorrem.

O que se observa, todavia, nos diálogos entre pais e crianças é que,

36
Como Aprendemos a Falar? Capítulo 03
quando o adulto explicitamente corrige a forma do enunciado infantil,
poucas vezes a criança lhe dá atenção, no sentido de efetuar a correção
do que está errado na sua produção. Aparentemente, ela não percebe
exatamente qual é o erro. E a verdade é que o adulto poucas vezes cor-
rige a forma do que a criança diz; normalmente, ele corrige o conteúdo.
Assim, se a criança diz uma frase como ninguém não gosta de mim, o
adulto intervém dizendo: não é verdade, meu amor, todo mundo gosta de
você. O fato de não ser possível esse tipo de dupla negação no português
passa despercebido. Além do mais, a criança normalmente é premiada
quando diz a verdade e é punida quando mente, por exemplo, indepen-
dentemente da qualidade gramatical das suas asserções. O adulto está
mais preocupado em educar do que em ensinar língua.

Adicione-se ainda que não só os erros gramaticais que a criança faz


não são todos corrigidos como também é comum que eles sejam vistos
com encanto pelos pais, que inclusive adotam aquela maneira de pro-
nunciar uma palavra ou de falar certa frase em outras interações. Ora, se
a criança estivesse na dependência da correção para chegar a formular
sentenças gramaticais em sua língua materna, com este tipo de inter-
venção dos adultos ela não chegaria jamais a saber que a sua formulação
contém algum erro. E mesmo quando o adulto corrige uma frase apre-
sentando uma reformulação dela, a criança não chega a saber a razão do
erro, o que elimina o valor de aprendizagem de qualquer correção desse
tipo que eventualmente possa ser feita.

É notável também a dificuldade que a hipótese comportamentalista


teria para lidar com o fato de a criança ser capaz de produzir senten-
ças inteiramente novas para as quais ela não recebeu, portanto, nenhum
tipo de reforço. Evidentemente, os defensores dessa hipótese, incluin-
do o próprio Skinner, atribuem essa capacidade a mecanismos gerais
da inteligência humana, como a analogia. Uma generalização de cunho
analógico permitiria que a criança construísse sentenças nunca ouvidas
nem ditas com base naquelas ouvidas e ditas e para as quais ela recebeu
reforço positivo.

Não é muito claro que propriedades esse mecanismo de genera-


lização analógica tem que ter para permitir que, a partir unicamente de
informações positivas, a criança construa um conhecimento negativo,

37
Aquisição da Linguagem

isto é, um conhecimento sobre o que não é possível na língua. Raposo


(1992, p. 41-43) apresenta uma discussão de alguns exemplos do por-
tuguês (europeu) que mostra bem qual é o problema. Considere as sen-
tenças em (1) a seguir, que exibem a forma se em duas de suas funções:

(1)

a) Nesta penitenciária, os presos agridem-se frequentemente.

b) Nesta penitenciária, agridem-se os presos frequentemente.

A sentença (1a) tem primariamente a interpretação anafórica re-


cíproca para se – isto é, para cada par {x, y} do conjunto de presos, x
agride y (a interpretação reflexiva, segundo a qual cada membro x do
conjunto de presos agride x é pragmaticamente menos plausível...); nes-
se caso, a forma se cumpre o papel gramatical de objeto do verbo. A
sentença (1b), por outro lado, tem a interpretação de que um conjunto
indeterminado de pessoas (que pode mesmo ser uma só pessoa) agride
os presos, caso em que a forma se corresponde ao sujeito da oração e é
similar a uma oração como nesta penitenciária alguém agride os presos
frequentemente.

Mais marginalmente, a sentença (1a) pode significar também que


alguém agride os presos, desde que se entenda que assim como nesta
penitenciária, os presos também está topicalizado, sendo a interpretação,
portanto, próxima a algo como nesta penitenciária, os presos, eles são
agredidos frequentemente. Todavia, (1a) não pode ter a interpretação em
(2), isto é, a forma se não pode ter interpretação indeterminada corres-
pondendo ao objeto, ainda que pragmaticamente essa interpretação seja
possível:

(2)

Nesta penitenciária os presos agridem pessoas (indeterminadas)


frequentemente.

Isso quer dizer, segundo Raposo (1992), que a gramática do por-


tuguês permite a interpretação indeterminada para a forma se quando
ela se refere ao sujeito da sentença, mas não quando se refere ao obje-
to. Contudo, essa impossibilidade não é facilmente explicável se temos
em mãos um mecanismo de generalização por analogia, já que a língua

38
Como Aprendemos a Falar? Capítulo 03
disponibiliza o par de sentenças em (3), e seria razoável a criança, com
base na semelhança entre (3a) e (4a), construir por analogia o par em
(3b) e (4b):

(3)

a) Nesta penitenciária, alguém agride os presos frequentemente.

b) Nesta penitenciária, os presos agridem alguém frequentemente.

(4)

a) Nesta penitenciária, agridem-se os presos frequentemente.

b) # Nesta penitenciária, os presos agridem-se frequentemente.


Estamos usando o símbo-
Se existe uma analogia em termos de significado da forma se com lo # para dizer que a sen-
interpretação indeterminada e do assim chamado pronome indefinido tença é possível, mas não
com a interpretação que
alguém, e se as crianças adquirem conhecimento sobre a distribuição estamos querendo atribuir
de alguém antes de adquirirem esse conhecimento com respeito ao se a ela nesse contexto.
indeterminado (uma suposição razoável para a hipótese comportamen-
talista, que entende a maior frequência de aparecimento de uma forma
como determinante para a aprendizagem precoce dessa forma), então a
generalização analógica deveria levar a criança a aceitar (4b) como uma
possibilidade da gramática, um erro que as crianças jamais cometem.

Para além da generalização com base em analogia, os comporta-


mentalistas, segundo Crain e Lillo-Martin (1999), também entendem
que os falantes aprendem a construir as sentenças gramaticais de sua
língua porque eles adquirem o hábito de colocar palavras e grupos de
palavras em sequência. Por meio da experiência, aprendemos quais pa-
lavras podem começar uma sentença, quais palavras podem seguir-se a
essas primeiras e assim por diante. Por exemplo, é nosso hábito construir
uma sentença começando por um determinante definido como a, por
exemplo, seguido de um nome feminino como menina, por exemplo,
que por sua vez pode ser seguido por um verbo. Sob esse prisma, a sen-
tença é vista como o encadeamento de palavras, de modo que uma pala-
vra funciona como estímulo para a palavra seguinte e assim por diante.
Observe que, definido o encadeamento deste modo, supostamente não

39
Aquisição da Linguagem

há relação entre palavras que não são vizinhas.

É possível evidentemente ajustar esse mecanismo para que uma


palavra seja o estímulo para as duas seguintes ou mesmo para as cinco
seguintes. No entanto, mesmo se for esse o caso, não será nada simples
explicar a concordância do sujeito com o verbo principal numa senten-
ça como os palhaços que o Pedro contratou para animar a festa do filho
dele não vieram. O ponto é um só: a sintaxe das sentenças não funciona
com base na ordem linear estrita, mas com base na organização hie-
rárquica que as palavras ou grupos de palavras mantêm entre si. Por
isso, o número de palavras é completamente irrelevante para a sintaxe.
Falando de uma forma um pouco mais técnica, as relações entre os ter-
mos constituintes de uma sentença exibem dependência da estrutura em
que se encontram, e este é um fato que deve ser levado em conta pelas
nossas hipóteses linguísticas, se é que nós queremos ter qualquer chance
de encontrar uma explicação real para o funcionamento da linguagem
humana.

3.3 As crianças formulam regras!


Quando discutimos a hipótese da imitação, mostramos que as
crianças produzem formas e sentenças que não podem ter sido imitadas
da fala adulta porque os adultos simplesmente não usam aquelas formas.
Os exemplos que examinamos foram certas conjugações verbais, como
eu não sabo e eu fazi isso sozinha. Embora seja perfeitamente possível
pensar que a criança está inventando qualquer coisa porque não lembra
a forma correta do verbo a ser colocado naquela frase, um exame deta-
lhado das produções infantis mostra que, como supõem Costa e Santos
(2003), dentre outros tantos pesquisadores, a criança na verdade está
formulando uma regra de conjugação verbal.

Você deve se lembrar (da disciplina de Morfologia) de como Ca-


mara Jr. (1970) analisa o verbo do português, não? A fórmula geral do
verbo para ele é algo como (5):

(5)

Raiz verbal + vogal temática + sufixo modo-temporal + sufixo nú-

40
Como Aprendemos a Falar? Capítulo 03
mero-pessoal

Para este autor, a primeira pessoa do presente do indicativo de


qualquer verbo no “padrão geral” (que é o nome que Camara Jr. dá ao
que a gramática tradicional chama de “verbos regulares”) pode receber
a análise em (6) a seguir:

(6)

a) cant-a-Ø-o = canto
b) vend-e-Ø-o = vendo
c) abr-i-Ø-o = abro

O morfema responsável pela expressão do tempo e do modo é Ø,


isto é, o morfema zero. Além disso, ocorre nessas formas um fenômeno
geral da fonologia do português, que é o apagamento da vogal átona
quando à forma que a contém como vogal final é acrescentada outra vo-
gal (átona ou tônica). Assim, a vogal temática é apagada e resta apenas a
vogal que marca a primeira pessoa do singular, -o aqui.

Observe agora que a mesma descrição pode ser dada para a forma
sabo:

(7)

sab-e-Ø-o = sabo

Portanto, o que ocorre é que a criança atribui a mesma estrutura


morfológica para o verbo saber e realiza aí as mesmas operações que são
realizadas com os verbos ditos regulares, nada mais. O problema está no
fato de que este não é um verbo regular...

O mesmo acontece com a formação de fazi na linguagem infantil.


Trata-se aqui da primeira pessoa do pretérito perfeito do verbo fazer. O
padrão geral do pretérito perfeito é descrito por Camara Jr. (1970) do
seguinte modo:

(8)

a) cant-e-Ø-i = cantei
b) vend-i-Ø-i = vendi
c) abr-i-Ø-i = abri

41
Aquisição da Linguagem

Para este estudioso, no caso da primeira conjugação, temos a reali-


zação do alomorfe -e- para a vogal temática, que não desaparece porque
ela é agora tônica, razão da ditongação com o -i que é o alomorfe de
primeira pessoa do singular neste contexto gramatical (novamente é o
morfema zero que veicula a informação de tempo e modo); por outro
lado, há neutralização da diferença entre a segunda e a terceira conjuga-
ções, com a vogal temática realizando-se sempre como -i-, que se funde
com a marca de primeira pessoa do singular nesse contexto gramatical.

Observe agora a descrição da forma fazi, de primeira pessoa do


singular do pretérito perfeito do modo indicativo do verbo de segunda
conjugação fazer:

(9)

faz-i- Ø-i = fazi

Como se pode ver, a criança atribui ao verbo uma análise rigorosa-


mente idêntica à que se atribui aos verbos dos padrões gerais da língua.
Novamente, o problema é que este não é um verbo regular...

Várias são as conclusões que podemos tirar daqui: a primeira delas é


que essa análise não pode ter sido aprendida, porque possivelmente
os pais, salvo se fossem professores de português com conhecimen-
to de linguística, não saberiam como instruir a criança nesse senti-
do. A segunda conclusão é que, se crianças pequenas, entre dois e
quatro anos de idade, são capazes de fazer análises morfológicas
complexas como esta que acabamos de apresentar, ainda que de
forma completamente inconsciente, e se esta análise não pode ter
sido aprendida, a criança tem esse conhecimento dado biologica-
mente. Dito de outro modo, a criança parece estar equipada desde
o nascimento com a capacidade de depreender uma regra geral e
aplicar essa regra em todos os contextos que satisfazem a descrição
estrutural pertinente (verbo de segunda conjugação, primeira pes-
soa do singular, etc.).

Claro, tem um problema aqui, que é o fato de a criança ainda não


ter percebido que existem outros padrões verbais, os “padrões es-

42
Como Aprendemos a Falar? Capítulo 03
peciais”, como quer Camara Jr., que não se sujeitam exatamente ao
mesmo tipo de regra. Por isso, dizemos que a criança supergenerali-
za o uso da regra majoritária até perceber que existem outras regras
para os padrões especiais. Mas estes são padrões minoritários que
muitos adultos também não dominam...

Na próxima unidade, vamos trabalhar com a ideia esboçada de que


a criança possui a capacidade de formular regras e aplicá-las em novos
contextos gramaticais. Na verdade, vamos construir uma argumentação
sólida para a hipótese de que o ser humano nasce equipado com um
mecanismo que lhe permite adquirir qualquer língua numa velocidade
espantosa, perfeitamente e sem nenhuma instrução específica.

43
Conclusões Capítulo 04
4 Conclusões
Nesta primeira unidade, começamos comparando as línguas huma-
nas e as linguagens animais, observando certo número de propriedades
para poder responder em que exatamente as línguas humanas diferem
das linguagens de seus companheiros de planeta. Fizemos a inspeção
de algumas propriedades conhecidas do cérebro/mente humano para
tentar determinar o que ele tem de especial que nos permite falar uma
língua com o grau de complexidade que as línguas humanas em geral
mostram.

Examinamos depois como as diferentes hipóteses sobre a aquisi-


ção da linguagem respondem ou não pelas características exibidas pela
aquisição de uma língua por uma criança. Vimos que a abordagem que
supõe imitação, apesar de ser simples e aparentemente responder pela
questão da aquisição do vocabulário, não dá conta de propriedades im-
portantes da fala infantil, principalmente o fato de a criança falar coisas
que os adultos decididamente não falam, como as formas fazi ou sabo
para os verbos fazer e saber, respectivamente.

Há quem defenda também que as crianças aprendem por algum


mecanismo de estímulo-e-resposta, pelo qual a criança é premiada
quando acerta a construção linguística e é corrigida quando erra. Vi-
mos, no entanto, que as crianças não são sistematicamente corrigidas
e, quando são, parecem surdas às correções; os adultos, por seu turno,
perdem pouco tempo com a forma que a criança usa, centrando sua
atenção no conteúdo do que a criança fala.

Mesmo em suas versões mais sofisticadas, a hipótese do estímulo-


e-resposta não dá conta de uma propriedade muito saliente da fala das
crianças, que é o fato de elas produzirem enunciados completamente
novos e não apenas aqueles para os quais elas receberam algum tipo de
reforço. Essa característica da fala humana escapa a qualquer explicação
que leve em conta apenas a ordem linear das palavras usadas em uma
frase, porque uma propriedade crucial das regras que estão por trás dos
enunciados linguísticos humanos é elas fazerem referência à estrutura
hierárquica do enunciado.

45
Aquisição da Linguagem

Finalmente, analisando detidamente alguns “erros” morfológicos


infantis, vimos que neles aparece o uso perfeito de certas regras mor-
fológicas presentes no português adulto, ainda que o lugar de aplica-
ção das regras esteja equivocado – as crianças estão supergeneralizando
a aplicação da regra, isto é, estão pensando que ela é usada em mais
contextos gramaticais do que efetivamente é o caso na língua adulta.
Essa observação dá lastro para a hipótese de que o bicho homem nasceu
equipado geneticamente com um mecanismo que lhe auxilia na tarefa
de aquisição da linguagem, na verdade selecionando, dentre as gramá-
ticas de todas as línguas do mundo, a gramática daquela que será sua
língua materna.

Na próxima unidade, vamos apresentar uma série de argumentos


para a defesa dessa hipótese, conhecida como hipótese inatista.

Leia mais!
Para dirimir suas dúvidas sobre as propriedades que as línguas humanas
têm em alto grau frente às linguagens dos animais, você pode ler Lyons
(1987), no capítulo 1 – em particular na seção 1.5 – onde você encontra-
rá toda essa discussão detalhada.
Já em Menuzzi (2001) você encontrará a discussão de Lenneberg (1967)
detalhada e uma aplicação da hipótese do período crítico à aquisição de
uma segunda língua.
Finalmente, Raposo (1992) apresenta no capítulo1, entre outras coisas,
mais exemplos de que a ideia de analogia dos behavioristas fornece re-
sultados equivocados quando aplicada à aquisição da linguagem.

46
Unidade B
A universalidade do processo
Uma defesa consistente da abordagem inatista Capítulo 05
5 A universalidade do processo
Neste capítulo, mostraremos que, durante a aquisição da linguagem, não
apenas certos fenômenos aparecem num mesmo período de aquisição em todas
as crianças aprendendo uma mesma língua, como os mesmos fenômenos são
observáveis em crianças aprendendo línguas diferentes, fato que apenas a hipó-
tese inatista pode explicar naturalmente. Também será realçada a uniformida-
de do estágio final alcançado por todas as crianças em todas as línguas, que é a
competência adulta para lidar com os fatos da língua materna.

Na primeira unidade deste nosso estudo, mostramos que as lín-


guas humanas têm propriedades tais e num tal grau que não é possível
confundir as línguas naturais com os sistemas de comunicação animal,
que ou não apresentam as mesmas propriedades ou são mais modestos
no grau em que as apresentam. Vimos também que é bastante possível
que essas propriedades estejam enraizadas em certas qualidades par-
cialmente físicas, que caracterizam o aparato cerebral/mental e corpo-
ral humano quando atingimos a idade de aquisição da linguagem, uma
faixa etária em que na verdade a aquisição da primeira língua deve se
efetivar, sob pena de não ser mais possível adquirir uma língua com a
perfeição com que os seres humanos típicos o fazem.

Além disso, vimos que a aquisição da linguagem pela criança apre-


senta certas características que dificilmente conseguiríamos explicar em
sua totalidade por hipóteses, como as da imitação ou do estímulo-e-
resposta. Uma dessas características é o fato de a criança produzir por
certo tempo formas verbais como fazi ou sabo, que não fazem parte do
input da criança, independentemente do grau de instrução dos pais ou
da variedade do português brasileiro a que a criança está exposta – re-
pare que em geral o tipo de dado ao qual a criança tem acesso é muito
variado mesmo para crianças falantes da mesma língua, mas nesse pon-
to não apresenta diferenças!

Já vimos também que essas formas verbais são exatamente as que


seriam esperadas se o verbo em questão fosse um verbo regular, o que
sugere que as crianças em torno dos três anos já sabem (inconsciente-

49
Aquisição da Linguagem

mente, é claro) como funciona a morfologia verbal regular do português


– dito mais tecnicamente, o componente computacional da gramática
está em condições de lidar com regras que manipulam símbolos. Obser-
ve o quanto isso é intrigante: todas as crianças aprendendo português,
em torno dos três anos, são capazes de fazer (inconscientemente) uma
análise morfológica sofisticada de modo a poder conjugar quaisquer
verbos, que elas tomam por regulares. Como isso é possível?

É mais surpreendente ainda notarmos que crianças mais ou menos


da mesma idade aprendendo outras línguas que também apresentam
morfologia verbal regular e irregular fazem o mesmo tipo de superge-
neralização. Por exemplo, segundo Guasti (2002), crianças aprendendo
inglês produzem formas como goed (quando o passado de go é went) ou
bringed (quando o passado de bring é brought). Para explicar essa “in-
crível coincidência” de fenômenos não só dentro da mesma língua, mas
entre línguas, uma hipótese bastante plausível é de que todas as crian-
ças, independentemente de onde vivem, de alguma maneira já “nasçam
sabendo” certas características dos sistemas flexionais das línguas do
mundo. O input ao qual a criança está exposta só vai mesmo lhe for-
necer as formas concretas para que ela aplique sobre elas os princípios
que regem as construções linguísticas. Essa é uma maneira de conceber
a hipótese inatista.

Mas nós devemos melhorar essa concepção, porque os fenômenos


são na verdade mais abrangentes do que estamos vendo até aqui: o fato
mesmo de toda criança estar predisposta a aprender uma língua (que é,
em última análise, o fato responsável pela universalidade da linguagem)
e o fato sempre surpreendente de o sistema gramatical final de todas
as crianças convergir para o sistema gramatical dos adultos falantes da
mesma língua (ou, dito de outro modo, ser qualitativamente idêntico
entre os indivíduos) só podem ser explicados se o homem for dotado de
um órgão mental com mecanismos destinados exclusivamente à aquisi-
ção da linguagem.

Costa e Santos (2003) comparam a nossa capacidade de vir a falar


uma língua com a nossa capacidade de vir a andar: parece natural pen-
sar que todos nascemos equipados com um aparato físico e cognitivo
para aprender a andar. Não é imediatamente após o nascimento que a

50
Uma defesa consistente da abordagem inatista Capítulo 05
A razão pela qual este mecanismo deve ser específico é que, como
já vimos, mecanismos gerais da inteligência, como a capacidade
de fazer analogias, não podem ser usados na aquisição, sob pena
de a criança fazer analogias possíveis logicamente, mas incorretas
linguisticamente. Adicionalmente, a habilidade de falar uma lín-
gua funciona de maneira diferente de outras habilidades cogniti-
vas: tocar piano ou fazer contas exigem instrução específica, treino,
dependem de motivação individual, e o estado final atingido varia
enormemente de um indivíduo para outro. Por outro lado, a habi-
lidade para adquirir uma língua se assemelha muitíssimo a outros
processos biológicos, que são inatos no ser humano.

criança pode andar; uma série de mudanças físicas vai se processando


(a coluna vai se enrijecendo, por exemplo), de modo a permitir que a
criança ande. É possível que a criança precise ver os adultos andando
para tentar essa proeza, mas o fato concreto é que o adulto não ensina
a criança a andar no sentido estrito do termo, em particular porque a
criança só vai andar no momento em que o seu aparato biológico lhe
permitir. Antes disso, inclusive o treino é inócuo ou impossível. É claro
que certas crianças andam antes que outras, mas o “estado final” atingi-
do, isto é, o andar, é absolutamente uniforme para toda a espécie – ainda
que cada um tenha lá o seu estilo, como se vê também na linguagem.
Ainda voltaremos a esta comparação.

51
A sequencialidade do processo: estágios de aquisição Capítulo 06
6 A sequencialidade do
processo: estágios de
aquisição
Vamos agora apresentar os estágios de aquisição da linguagem que são
observáveis em todas as línguas do mundo. Começando pelo balbucio, as
crianças passam por uma fase de enunciados de uma só palavra, depois por
uma fase em que elas juntam duas palavras e formam assim suas primeiras
sentenças e, a partir de então, formam sentenças maiores e mais complexas.
O léxico também cresce exponencialmente durante o segundo ano de vida da
criança.

Os adultos que rodeiam uma criança ficam encantados quando ela


começa a manifestar-se linguisticamente. Não que os bebês não se comu-
niquem desde o nascimento – o choro é a primeira forma de comuni-
cação, mas tem uma mensagem fixa, algo como “não estou gostando de
alguma coisa por aqui” e na verdade funciona muito como as linguagens
dos animais: é capaz de falar sobre o aqui e o agora, em geral sobre neces-
sidades corporais, como fome e sono, e é só.

Vimos na Unidade A que as capacidades linguísticas de percepção e


reconhecimento das crianças recém-nascidas são excepcionais. No entan-
to, qualquer traço de produção linguística deve esperar pelo menos até em
torno dos quatro meses por conta de certos desenvolvimentos biológicos
que devem ocorrer. Assim, nesses primeiros meses de vida, a criança não
faz muito mais do que emitir sons diversos, que podem até ser semelhan-
tes aos sons linguísticos (em particular aos sons vocálicos), mas ainda não
são língua, porque não possuem as propriedades das línguas humanas.

Em torno dos seis meses a criança começa a balbuciar. Ainda que o


balbucio seja desprovido de significado, ele já é considerado uma forma
de produção linguística porque: (i) antes de mais nada, não é expressão
de nenhuma necessidade ditada pela situação, portanto é independente
de estímulo, uma característica das línguas humanas que examinamos na
primeira unidade; (ii) já mostra organização silábica – a criança repete
sílabas, inicialmente iguais, como ba-ba, mas aos poucos elas vão se dife-

53
Aquisição da Linguagem

renciando, resultando em coisas como o famigerado gu-gu-da-da; e (iii)


finalmente, como nota Guasti (2002), o balbucio parece lançar mão de
um subconjunto dos sons possíveis usados pelas línguas humanas.

Em torno dos oito a dez meses, período em que declina a sensibilida-


de da criança a contrastes fonêmicos de outras línguas, o conjunto de sons
usados no balbucio já é (um subconjunto d)o da língua alvo e, segundo
Costa e Santos (2003), um adulto pode reconhecer, ouvindo bebês bal-
buciarem “em diferentes línguas”, qual é o bebê que está balbuciando na
sua língua materna, seja pela estrutura silábica e pelos fonemas utilizados,
seja pela entoação e pelo ritmo do balbucio. Nessa fase, observam Crain e
Lillo-Martin (1999), bebês surdos param de balbuciar vocalmente – eles
balbuciam manualmente se os pais lhe dão input em língua de sinais.

Quando a criança completa um ano de idade, é normal que, ao lado


do balbucio, comecem a surgir as primeiras palavras, que têm uma estru-
tura fonológica muito simples – formato V ou CV – mas normalmente
essas consoantes e vogais são uma aproximação dos segmentos originais
da palavra, dependendo um pouco de quais são eles e de qual o inventário
de sons que a criança já tem. No entanto, esse é o momento em que uma
mesma sequência sonora começa a ser usada para fazer referência sempre
ao mesmo objeto, ou seja, os sons começam a ter significado (identificado
com a referência no caso de objetos concretos).

Como bem notam Costa e Santos (2003), não é nada trivial desco-
brir como cortar a corrente da fala de modo a obter uma palavra. Se você
observar a tela do Praat, que apresentamos a seguir, você verá que não há
pausas entre as palavras da frase (o único espaço
em branco é dado pela ausência de batimentos
das pregas vocais na realização de [k], que é uma
consoante surda) e, portanto, a criança não pode
contar com a pausa para auxiliá-la na segmenta-
ção do fluxo da fala em palavras:

Figura 6.1: Forma de onda, pulsos, espectrograma e curva

do contorno de pitch da sentença A menina quebrou a jarra

54
A sequencialidade do processo: estágios de aquisição Capítulo 06
E o problema continua se a criança conseguir isolar uma palavra
na frase, porque descobrir o que ela significa é bem complicado se não
temos o resto do léxico à disposição. Imagine que alguém diz pra você:
“Quer comer erraiolo?”. Bom, você pode não ter ideia do que é erraiolo,
mas você vai poder supor que deve ser algum tipo de coisa comestível,
porque você entende o resto da frase, certo? Mas você não poderia fazer
essa suposição se não soubesse o significado das palavras quer e comer!
A questão é que, mesmo que seja possível prever, pela situação, o con-
teúdo do que está sendo dito, a forma não é previsível, pois existem mil
maneiras de formular a mesma ideia. Deu pra perceber qual é o tama-
nho do problema que a criança tem que resolver?

É isso: quanto mais você sabe, mais condições de saber mais você tem.
E quanto menos você sabe, mais complicado é saber alguma coisa...
Assim, é uma proeza, nessa fase, a criança reconhecer palavras no in-
terior de uma sentença! E, por isso mesmo, se as crianças nessa idade
produzem algo em torno de dez palavras, não é sem motivo: dá um
trabalhão danado descobrir cada uma delas!

O grosso das palavras produzidas pelas crianças nessa fase são no-
mes. É verdade que alguns advérbios, como mais ou não, também estão
presentes e que certos adjetivos, como grande e bonito, também podem
estar pela saliência que têm no input; porém, o crescimento do vocabu-
lário da criança, que aos 18 meses já é de cerca de 50 palavras, será na
direção dos nomes, que em geral se constituem, segundo Costa e Santos
(2003), em palavras básicas – nem hiperônimos, nem hipônimos. Por-
tanto, é possível ver a criança usando a palavra passarinho para se referir
a qualquer pássaro, mas não animal (para fazer referência a um pássaro)
nem pardal ou bem-te-vi.

Em torno de um ano e meio também é o momento em que a crian-


ça começa a colocar duas palavras juntas, numa tentativa de começar
a construir sentenças. Num primeiro momento, parece que são apenas
duas palavras juntas mesmo, cada uma com o seu acento e contorno
entoacional individual e com possibilidade de pausa entre elas; é só num
segundo momento, já perto dos dois anos, que estas duas palavras ga-

55
Aquisição da Linguagem

nham um contorno entoacional descendente único, sem pausa. Com o


aumento gradativo do repertório fonológico, a forma das palavras vai se
aproximando da dos adultos.

Não é muito fácil identificar estrutura gramatical nessas primeiras


produções sentenciais infantis. Se são formadas de uma só palavra, não
há estrutura a identificar; mas mesmo quando são formadas por duas
palavras, na verdade muitas são as estruturas possíveis – meia mamãe é
uma combinação compatível com várias situações no mundo, e a crian-
ça usa em todas elas a mesma “frase”: quando a mãe está colocando uma
meia em si mesma e a criança está olhando, quando a criança tirou a
própria meia e está querendo que a mãe recoloque a meia nela, quando
vê a meia da mãe no varal secando. Na fala adulta, diferentes constru-
ções poderiam ser utilizadas para veicular esses significados, e as dife-
rentes relações entre as palavras poderiam ser marcadas por diferentes
elementos funcionais, como preposições, complementizadores, etc. Mas
é muito interessante observar que, se é verdade que existem muitas pos-
sibilidades de relações, também é verdade que muitas outras não são
permitidas, o que transparece não só na ausência de produção da crian-
ça de uma certa sequência para expressar certas relações como também
no fato de que, quando testada, a criança nunca escolhe compreender
aquela sequência de uma certa maneira – por exemplo, ela não escolhe
jamais a coordenação meia e mamãe.

Essa primeira fase de enunciados infantis se caracteriza pela au-


sência de morfemas ou palavras gramaticais, como marcas de flexão de
número ou de tempo, preposições e complementizadores, o que leva
muitos estudiosos a chamarem esse estágio infantil de “fase telegráfi-
ca”. Há também poucos pronomes. Contudo, isso não quer dizer que a
criança escolha aleatoriamente que formas verbais usar, por exemplo,
pois é bastante sistemático em português o uso da terceira pessoa do
singular do presente do indicativo, em detrimento do infinitivo ou outra
forma não marcada.

Em torno dos dois anos, vemos consolidarem-se os enunciados


de duas palavras e a criança começar a expandir mais seus enunciados.
Neste momento, já é possível ver a criança produzindo sentenças com
a ordem de palavras da gramática alvo – como mamãe senta sofá. Mui-

56
A sequencialidade do processo: estágios de aquisição Capítulo 06
tos estudiosos pensam que a partir deste momento é mais interessante
falar das fases da criança lançando mão de uma medida da extensão do
seu enunciado (MLU, do inglês Mean Lenght of Utterance), que conta
o número de palavras ou de morfemas que a criança produz. Aqui não
utilizaremos esse método e continuaremos a falar de idades, ainda que,
sabemos todos, as idades estão sempre sujeitas a diferenças individuais
e são sempre aproximadas, como ocorre com o nascimento dos dentes,
os primeiros passos, etc.

É preciso dizer que, principalmente entre os 18 e os 24 meses de


vida, a velocidade de crescimento do vocabulário da criança é impres-
sionante. A certo ponto, a criança produz novas palavras todo dia, o
que faz com que aos dois anos a criança já domine um vocabulário de
cerca de 400 palavras, vocabulário esse formado predominantemente
por palavras com conteúdo referencial, porque nas produções infantis
da maioria das crianças nessa fase ainda estão ausentes palavras grama-
ticais, como determinantes ou preposições.

O fato de a criança não produzir formas exclusivamente grama-


ticais não quer dizer que a criança não entenda o que essas formas fa-
zem na sentença do adulto. Em um experimento reportado por Costa e
Santos (2003), uma pesquisadora norte-americana, Roberta Golinkoff,
pediu a uma criança de um ano e sete meses, adquirindo o inglês como
língua materna, que mostrasse num livro de figuras a imagem de um
cachorro. O pedido foi formulado de diferentes maneiras: uma delas
continha o determinante definido padrão do inglês – “find the dog for
me” (encontre o cachorro para mim); outra não continha determinante
algum – “find dog for me”; as outras continham ou uma palavra que não
existe – “find gub dog for me” – ou uma palavra que existe mas não é um
determinante, é uma forma verbal, como em – “find was dog for me”.

O resultado desse experimento é muito interessante: a criança de-


sempenha melhor a tarefa quando o determinante definido está presen-
te. O segundo melhor resultado é quando o determinante está ausente,
e os piores resultados são quando o determinante aparece realizado por
outra palavra, real ou não. Isso quer dizer que a criança, apesar de não
realizar o determinante, é sensível de algum modo à informação que
está presente ali, caso contrário a palavra ali presente não deveria atra-

57
Aquisição da Linguagem

palhar (ou ajudar) a criança na realização da tarefa proposta.

As formas gramaticais, contudo, não estarão ausentes por muito


tempo. No período que vai dos dois anos e meio até mais ou menos
os três anos, vemos o surgimento das primeiras palavras gramaticais,
como os pronomes, e também de morfemas gramaticais, como certas
flexões verbais (o gerúndio, como em bincando, ou o passado, como
em miau papô tudo, por exemplo), razão pela qual mais apropriado
que fazer referência a palavras gramaticais é falar do surgimento de
categorias funcionais na fala da criança.

E é assim que de repente a fala da criança toma as feições de uma


fala adulta. O repertório fonológico da criança já contém praticamente
todos os sons da língua alvo (mesmo que ela ainda tenha dificuldades
com certos tipos silábicos, como sílabas pesadas do tipo mar, prato ou
triste) e o vocabulário da criança atinge a marca de aproximadamente
900 palavras.

Essa é a época conhecida como de “grandes generalizações”, por-


que é quando a criança começa a produzir formas, como fazi ou sabo,
no domínio verbal, e formas, como pãos, no domínio nominal. Isso
mostra que a criança também domina a formação de plural regular do
português, e que daí inferiu uma regra a ser aplicada a todos os con-
textos possíveis – e não possíveis também, como mostram os exem-
plos anteriores.

A partir dos três anos e meio, vemos o aparecimento de auxiliares


É preciso fazer uma ressal- e de mais preposições, já que as primeiras, as preposições locativas,
va aqui: a entrada dos au-
xiliares é bem marcada em já haviam aparecido um pouco antes. Vemos também a produção das
inglês, uma língua para a primeiras interrogativas verdadeiras da criança, com o constituinte
qual temos vasta pesquisa
no campo da aquisição interrogativo deslocado para frente da sentença – construções como
das categorias funcionais; onde tá o cavalinho? – mesmo que a criança aqui ainda não produza
para o português, os estu-
dos são mais incipientes uma das formas interrogativas adultas, aquela com a inserção de que:
e, portanto, os resultados onde que tá o cavalinho? O vocabulário continua crescendo e já possui
aqui são mais indicativos
de uma direção de aquisi- cerca de 1200 palavras.
ção do que propriamente
das categorias em si. Frases complexas como diz que sim ou a bola que eu tinha come-
çam a ser possíveis entre os três anos e meio e os quatro anos, isto é, os
princípios responsáveis pela formação de estruturas completivas e rela-

58
A sequencialidade do processo: estágios de aquisição Capítulo 06
tivas já estão dominados o que cria em nós a impressão de que estamos
Essa é na verdade uma
frente a um falante absolutamente competente, embora certos padrões simplificação do padrão
de supergeneralização ainda estejam presentes, sobretudo na morfolo- de aparecimento das
estruturas no português:
gia verbal. Com um vocabulário de cerca de 1500 palavras a criança já vemos primeiramente
pode falar praticamente tudo o que ela quer: expressar desejos, falar de surgirem construções de
finalidade (é pra mim fazer)
coisas abstratas... e as sentenças infinitivas
complemento de querer
E é preciso dizer que ela quer muito falar. Nesse seu quarto ano de (eu quero sair); a seguir,
vida, é notório o desejo que a criança tem de conversar e, em particular, surgem as completivas
com complementizador
é muito conhecido o seu desejo de saber o porquê das coisas. Algumas realizado (a mamãe disse
questões são razoáveis e revelam mesmo a curiosidade da criança de que eu posso). As orações
relativas parecem seguir
saber como o mundo funciona – por que o carro liga? Por que o portão curso próprio. Conferir em
fecha sozinho? Por que vamos almoçar na casa da vovó? – mas outras Grolla (2000).
questões definitivamente são descabidas – por que está sol? – e revelam
simplesmente a vontade de prender a atenção do adulto ou de “jogar
conversa fora”.

Entre os quatro e os cinco anos, vemos o vocabulário se alargar


para quase 2000 palavras e vemos também o aumento de todos os ti-
pos de orações subordinadas, em particular as orações temporais. É o
momento também em que detectamos o início de certas habilidades
metalinguísticas, como definir palavras (o que quer dizer “vão”?) e fazer
autocorreções (é um figorí... não, é um frigorífico).

A partir dos cinco anos o quadro não se modifica mais radical-


mente. A fonologia da língua já está perfeitamente adquirida, assim
como o cerne da gramática da língua alvo, porque agora as estruturas
podem ser muito complexas, ainda que não necessariamente maiores.
As supergeneralizações desaparecem por completo, dando lugar às for-
mas irregulares existentes na língua. O vocabulário é o campo que sem- Observa-se, no entanto,
que formas, como po-
pre vai se expandir, por toda a vida, mas isso ocorre agora em um ritmo nhava e cabeu, podem
bem menos acentuado. continuar aparecendo
na língua da criança se a
variedade de PB que os
É preciso ainda fazer uma observação a respeito da proficiência adultos ao seu redor falam
linguística das crianças de cinco anos, que dissemos assemelhar-se à do comporta essas formas.
adulto; na verdade, há um campo em que a distância ainda é grande:
nessa idade, a criança tem muita dificuldade de entender qualquer tipo
de linguagem figurada. Assim, uma sentença como nem que chova ca-
nivete aberto será interpretada literalmente, como se fosse possível ca-

59
Aquisição da Linguagem

nivetes abertos caírem do céu. É verdade que este é um problema da


pragmática (talvez abrangendo a questão da formação de conceitos e a
capacidade de abstração), mas ele tem dimensão propriamente gramati-
cal nas expressões idiomáticas: bater as botas só poderá ter o significado
literal para a criança, o que tem implicações para o tipo de manipulação
sintática que a expressão aceita. Por isso, se dissermos que o Fulano ba-
teu as botas, não será difícil ouvir da criança a seguinte pergunta: que
botas que ele bateu?

Para finalizar, vamos colocar em relevo os pontos fundamentais des-


sa nossa discussão: a sequência de fases que acabamos de examinar
são observáveis não só em crianças que estão adquirindo uma mes-
ma língua como também em crianças adquirindo línguas diferentes,
o que seria completamente inexplicável se a criança estivesse imi-
tando os adultos ou aprendendo por estímulo-e-resposta, porque,
se ela estivesse imitando e/ou sendo premiada pelos acertos, o que
se esperaria é encontrar uma diversidade de estruturas muito maior
na produção infantil, já que ela imitaria o que está à sua volta – e
nós sabemos que as variedades do português (brasileiro) são bem
diferentes entre si, isso para não falar da diferença entre línguas dis-
tintas! É claro que se observa de qualquer modo alguma variação
individual: no mundo todo, parece haver crianças mais precoces e
outras menos, de modo que as idades que são sugeridas na litera-
tura são idades médias para observarmos os fenômenos; não há
nada de absoluto nelas. No entanto, uma coisa é certa: se a criança
é capaz de produzir, por exemplo, uma estrutura com subordinação
(como a mamãe disse que eu vou na festa), ela sabe produzir uma
estrutura raiz (como eu vou na festa). Pode acontecer de, por uma
razão ou outra, não termos visto a sua primeira fase, mas é inegável
que ela domina esse conhecimento, do mesmo modo que a criança
que sabe andar deve saber engatinhar, mesmo que não a tenhamos
jamais visto andando de quatro pela casa.

60
A sequencialidade do processo: estágios de aquisição Capítulo 06
Voltemos à comparação entre vir a falar uma língua e vir a andar.
Segundo Costa e Santos (2003), para que a criança desenvolva a habi-
lidade de andar, também são necessárias várias fases: ao nascimento,
o bebê é “todo molinho” e não é possível fazer nada com ele a não ser
deixá-lo deitado. Alguns meses depois, o pescoço do bebê endurece e ele
passa a reger a cabeça. Mais um tempo se passa e ele já consegue pegar
os pés e pode virar-se quando deitado. Pronto: está feito o primeiro con-
junto de passos para que ele venha a sentar. A seguir, ele consegue cair e
sentar novamente, aprendendo a usar a mão para segurar o tronco, pas-
so importante para que ele aprenda a engatinhar e, posteriormente, para
se segurar nos objetos e começar a dar seus primeiros passos. Finalmen-
te, a criança consegue ir se soltando das coisas nas quais se agarra para
andar; primeiro só dá alguns passinhos, mas logo já consegue mais e
mais passos e, quando você vê, ela já está correndo pela casa.

Exatamente como é possível que alguma fase da aquisição nos


escape – por exemplo, a criança ontem estava falando apenas palavras
isoladas e hoje aparece com uma frase inteira –, também é possível que
não vejamos o bebê engatinhar: ontem ele estava sentado e hoje ele já
está agarrado às coisas, em pé. O essencial é que certos tipos de conhe-
cimento pressupõem conhecimentos anteriores, tanto no caso de andar
quanto no caso de falar.

Se a linguagem é parte de um programa genético comum a toda


a espécie, não é surpreendente que o desenvolvimento da linguagem
seja universal e que tenha as características que tem, como fases co-
muns a todas as crianças. O fato mesmo de que todas as crianças fazem
erros, como a supergeneralização, mostra não só que as crianças estão
equipadas para detectar regras no input como também para produzir
novas formas linguísticas com base nessas regras detectadas. Mas seria
possível que o input em si fornecesse essas regras de algum modo?

61
O argumento da pobreza do estímulo Capítulo 07
7 O argumento da pobreza do
estímulo
Neste capítulo, vamos examinar o que é talvez o argumento mais famoso
em prol da hipótese inatista: o argumento da pobreza do estímulo, também co-
nhecido como “problema lógico da aquisição” ou “problema de Platão”. Vamos
apresentar o problema e discutir em que sentidos o input (isto é, o conjunto de
dados primários oferecidos à criança) é pobre ou degradado. O ponto central
é que há uma diferença qualitativa considerável entre o que os fenômenos da
língua que configuram nosso input podem mostrar e a caracterização última
daquilo que é nosso conhecimento linguístico.

Nos diálogos de Platão, argumenta-se que existem conhecimentos


que não podem ter sido adquiridos via experiência. No Menon, Sócra-
tes tenta demonstrar que um escravo tem conhecimentos sofisticados
de geometria, mesmo sem ter tido acesso jamais a qualquer instrução
formal sobre a matéria. Como então o escravo domina esses concei-
tos? Em linguística, o problema que se coloca é similar: como a criança
sabe princípios que regem a sua língua se eles não lhe foram ensinados
formalmente e se não estão à disposição nos dados aos quais ela tem
acesso?

Talvez seja necessário começar a discussão por esta última afirma-


ção: certos conhecimentos não estão disponíveis nos dados aos quais
a criança tem acesso. Como assim? Que conhecimentos são esses? Em
princípio, pode-se pensar que os dados linguísticos primários (isto é,
o input da criança, todo o conjunto de elocuções que a criança ouve,
seja ou não dirigido especificamente a ela) contêm tudo o que é possível
conter, não é verdade? Não é possível que, falando por anos ao lado de
uma criança, nós não tenhamos dado a ela exemplos de tudo o que a
língua pode ser!

Na verdade, é possível sim. O input é pobre a começar por esse sen-


tido mais trivial do termo, de não conter necessariamente toda a infor-
mação que poderia em princípio conter. É claro que certas informações
estão exibidas à exaustão: o fato de a ordem do sintagma nominal ser

63
Aquisição da Linguagem

[determinante + nome] está super bem exemplificado no input, desde a


primeira frase que a mãe falou quando o bebê nasceu: “o nome dele vai
ser...”. No entanto, observe que certas estruturas mais especializadas não
estão necessariamente presentes no input, mesmo se a mãe falasse 24
horas por dia com o bebê, sem parar.

Vamos pegar um exemplo concreto. Todo mundo lembra o que é


uma sentença relativa? São as famigeradas “orações subordinadas adje-
tivas” da gramática tradicional. Nós chamamos essas sentenças de “rela-
tivas” porque elas fazem uso de um pronome relativo que tem a respon-
sabilidade de representar, na sentença subordinada, o constituinte que
está na oração principal, mas é partilhado semanticamente pelas duas
orações. Não ficou claro? Um exemplo vai ajudar a esclarecer tudo:

(1)

a) O João conhece a menina [que o Pedro namora ___].

b) O João conhece a menina [que ___ viajou ontem].

c) O João conhece a menina [pra quem o Pedro deu um presente


___].

As sentenças em (1) são exemplos de relativas que têm o seu nú-


cleo ou cabeça (a menina) na sentença matriz, onde o DP é o objeto do
verbo; na sentença encaixada, temos um pronome relativo, que é idênti-
co em forma ao complementizador em (1a,b), mas tem forma diferente
dele em (1c), parecendo-se aí mais com um sintagma WH. Observe que
na frase subordinada o DP relativizado (retomado pelo pronome relati-
vo) pode ter várias funções gramaticais: ele é complemento DP do verbo
em (1a), é sujeito da sentença encaixada em (1b) e é complemento PP do
verbo bitransitivo em (1c).

Do mesmo modo que a cabeça da relativa pode ser o complemento


DP do verbo da oração matriz, também pode ser o sujeito dessa senten-
ça, como vemos em (2):

(2)

a) A menina [que o Pedro namora ___ ] conhece o João.

64
O argumento da pobreza do estímulo Capítulo 07
b) A menina [que ___ viajou ontem] conhece o João.

c) A menina [pra quem o Pedro deu um presente ___ ] conhece


o João.

Ora, não é difícil vermos que a cabeça da relativa pode ocupar a


rigor qualquer posição sintática na sentença matriz (sujeito, objeto DP,
objeto PP...) e que o pronome relativo pode se relacionar também com
qualquer posição da sentença encaixada, não? Muito bem. Como garan-
tir que a criança tem acesso a toda a tipologia de combinações possíveis
de posições matrizes e encaixadas? Será que nós ouvimos alguma vez na
nossa infância uma sentença relativa que tivesse a cabeça ocupando a
posição de complemento PP na frase matriz, mas fosse o complemento
de um nome na sentença encaixada? Seria alguma coisa como a minha
vizinha gostava da praça da qual eu tinha uma baita visão lá da minha
janela. Será? Pode ser que sim, pode ser que não. Não há como garantir,
certo?

Esse é o primeiro sentido no qual o input é pobre: ele não é comple-


to, ou não há como garantir que ele seja completo. No entanto, qualquer
um de nós, falantes nativos de português (brasileiro), sabemos como
montar qualquer sentença relativa. Como nós construímos esse conhe-
cimento? Não deve ter sido só ouvindo essas sentenças no input!

O input além de pobre (no sentido de não ser completo) é degrada-


do, no sentido de conter inúmeras imperfeições, típicas da situação de
fala. É comum gaguejarmos, começarmos uma estrutura, lá no meio de-
sistirmos dela e mudarmos de rota, continuando de uma forma comple-
tamente diversa. É comum tossirmos de repente no meio do enunciado,
pararmos de falar no meio da frase porque o barulho está muito grande,
tropeçarmos em alguma palavra. Adicionalmente, o input não é orga-
nizado para a criança como num curso de língua estrangeira. Quando
aprendemos língua estrangeira em uma escola, a primeira lição só nos
apresenta alguns verbos, todos no presente do indicativo. Somente al-
gumas lições mais tarde é que temos acesso aos verbos no passado, por
exemplo. Para a criança aprendiz de primeira língua, por outro lado,
não há organização desse tipo: usamos todos os tempos e modos verbais
de qualquer verbo segundo a necessidade do que vamos falar, sem a
preocupação de não “dificultar” a nossa fala.

65
Aquisição da Linguagem

É verdade que existe uma forma de falar com os bebês que é


“simplificadora” e, portanto, supostamente “organizadora” do input. É
o chamado “paiês”, também conhecido por “manhês” ou ainda “mama-
nhês”, uma tradução do inglês motherese, que tem características bem
especiais:

a) a fala é acompanhada de sorriso, o que já muda parcialmente a


posição dos órgãos fonadores da boca;

b) o tom é mais agudo; a entoação e o acento (lexical e frasal) são


mais marcados;

c) os enunciados são constituídos em geral apenas de sentenças


matrizes, com pouca ou nenhuma subordinação;

d) usa-se em geral a terceira pessoa do singular para falar com a


criança – o nenê quer água? –, não o pronome de segunda pes-
soa – você (ou tu) quer água?;

e) as palavras adquirem uma forma especial: reduplicamos uma


das sílabas da palavra existente (em geral, a sílaba tônica: pepe-
ta por chupeta, dedera por mamadeira) ou criamos palavras via
reduplicação de sílabas diferentes das sílabas da palavra origi-
nal (nana(r), papa(r), xixi, cocô...);

f) como mostram os exemplos em (v), o vocabulário utilizado re-


cobre em geral o universo imediato da criança.

Há quem pense que este modo de falar com as crianças seja uma
maneira de organizar um pouco o input e, portanto, auxilie na aquisi-
ção da linguagem. No entanto, há muita variação nas sociedades com
respeito ao modo como se fala com as crianças, isto é, o paiês não é um
fenômeno universal. O fato de não haver universalidade na maneira de
falar com as crianças não permite atribuir ao paiês um papel crucial no
desenvolvimento dos aspectos universais da aquisição.

Além disso, sob certos aspectos é possível que o paiês constitua na


verdade um input ainda mais degradado para as crianças. Por exem-
plo, o fato de todas as palavras desse vocabulário exibirem reduplicação
(papá, pepeta, etc.) poderia levar a criança a crer que este é um processo
produtivo da morfologia do português (brasileiro), o que não é o caso:

66
O argumento da pobreza do estímulo Capítulo 07
não fazemos nenhum tipo de morfologia usando a reduplicação. Ob-
serve que a estrutura dessas palavras reproduz em parte a estrutura do
balbucio da criança, o que pode querer dizer que o adulto é que passa a
produzir as palavras como a criança e não ao contrário – já houve quem
observasse que o paiês é muito mais uma necessidade do adulto por em-
patia na comunicação do que da criança por um input mais claro...

Finalmente, como observa Avram (2003), e aqui chegamos ao ponto


central da discussão, não há nada em sentenças simples, palavras
com reduplicação ou tom mais agudo que forneça informações mais
precisas à criança sobre que tipos de estruturas são ou não possíveis
na sua língua materna. Esse é o verdadeiro problema do input: ele
não fornece (e não tem como fornecer) informações sobre o que não
é possível na língua, mas todos nós, falantes de uma língua natural,
sabemos o que é possível ou não nela.

Vamos dar um exemplo pra tornar tudo isso mais claro. Com base
numa discussão presente em Mioto, Figueiredo Silva e Lopes (2004),
vamos considerar a distribuição de pronomes – como eu ou ele – e ex-
pressões-R(eferenciais) – como o João ou a mesa – nas sentenças do
português. Observe (3) a seguir:

(3)

a) O Joãoi disse que elei/k viajou no feriado.

b) Ele*i/k disse que o Joãoi viajou no feriado.

Se a expressão-R é o sujeito da sentença matriz e o pronome é o


sujeito da sentença encaixada, o pronome pode tanto ter a mesma refe-
rência no mundo que a expressão-R (traduzida aqui pelo mesmo índi-
ce referencial, i nos exemplos anteriores) quanto exibir uma referência
diferente (traduzida pelo índice referencial k). Assim, (3a) tanto pode
significar que o Joãoi disse que ele mesmo, Joãoi, viajou no feriado quan-
to que o Joãoi disse que, por exemplo, o Pedrok viajou no feriado; po-
rém, quando o pronome é o sujeito da sentença matriz e a expressão-R
é o sujeito da sentença encaixada, o pronome não pode mais portar o
mesmo índice referencial que a expressão-R e assim a sentença (3b) só

67
Aquisição da Linguagem

pode significar que ele, Pedrok, disse que o Joãoi viajou no feriado, não
é verdade?

Observe que a questão não é de mera precedência linear e por isso


não pode ser resolvida por algum princípio semântico-pragmático geral
que diria que o que é mais informativo (o nome) deve vir antes do que
é menos informativo (o pronome), porque uma sentença como (4) a
seguir é perfeita em qualquer das suas interpretações:

(4)

Quando elei/k foi preso, o Joãoi estava completamente bêbado.

Isso quer dizer que o que está em jogo é a relação hierárquica em


que se encontram o João e ele. Muito bem, e como nós sabemos disso?

Vamos explicitar ao máximo as afirmações que estamos fazendo


usando os passos de argumentação de Crain e Lillo-Martin (1999). O
que os dados em (3) e (4) nos mostram é que há certas impossibilidades
de formação de sentenças (com certas interpretações) que não podem
ser deduzidas de alguma lei mais geral de cunho não diretamente lin-
guístico; elas devem ser formuladas em termos de hierarquias sintáticas.
Vamos chamar a esse tipo de proibição de restrição. Uma restrição é,
portanto, uma formulação negativa (tal coisa não é possível). O único
modo de chegarmos a aprender uma restrição seria obter esse tipo de
informação ou por meio de evidência negativa (isto é, alguém que falas-
se a frase com a interpretação proibida, mas em seguida se desculpasse
pelo erro e formulasse outra frase com a interpretação em discussão)
ou por instrução específica (isto é, com o pai ou a mãe dizendo: “escute
bem, meu filho: não é possível atribuir a mesma referência ao pronome
e ao nome numa construção como ele disse que o João viajou”). Dado
que nós não temos acesso a dados negativos de nenhum tipo, menos
ainda a instruções com esse grau de sofisticação de análise gramatical,
nós não podemos ter aprendido as restrições que pesam sobre a nossa
língua materna. A única possibilidade que resta, então, é que essas res-
trições sejam inatas.

Note que o input só dispõe de dados positivos. Mesmo quando fa-


zem erros de construção, raramente os adultos fazem qualquer correção
explícita. Com certeza você já ouviu coisas como “é que as meninas...

68
O argumento da pobreza do estímulo Capítulo 07
quer dizer, ele passou na casa da Ana e a Maria estava lá então ele pen-
sou que...” em que claramente a sentença que contém as meninas está
inacabada. Nenhum adulto se corrige ou avisa de algum modo que co-
meteu um erro gramatical ali. O que os adultos fazem, na melhor das
hipóteses, é refazer a estrutura, dizendo aquilo de outra forma. E esse
fato só agrava as coisas: a rigor, o problema que a criança encontra com
respeito aos dados do input é ainda mais sério do que se poderia pensar,
por conta dos erros de desempenho do falante (por razões de cansaço
ou atenção, por exemplo) – atribui-se a Chomsky a observação de que a
criança aprendendo língua está na mesma posição de alguém que quer
aprender a jogar xadrez apenas vendo dois jogadores jogarem, mas de
vez em quando um deles faz um movimento impossível (anda com a
torre na diagonal, por exemplo), sem se desculpar com o outro jogador,
que não reclama porque também ele de vez em quando faz jogadas proi-
bidas como essa.

Voltemos a Platão transplantado para a linguística: como é pos-


sível que a criança saiba tudo o que ela sabe com respeito à gramática
da língua se ela dispõe de informação que, mesmo sendo abundante
em quantidade, é de qualidade tão questionável? Não se trata apenas
da incompletude dos dados ou dos eventuais erros de desempenho dos
adultos que a cercam; o ponto fundamental é a ausência da informação
crucial para que a criança seja capaz de emitir julgamentos de grama-
ticalidade, o que ela fará ao final do processo de aquisição. E apenas
observando os dados e fazendo uso de mecanismos de analogia e ge-
neralização gerais da inteligência humana não será possível construir o
conjunto de restrições sobre formas e significados que qualquer adulto
conhece em sua língua.

A resposta dada por Platão, novamente transplantada para a mo-


dernidade linguística, é a hipótese inatista: a criança atinge tão rapida-
mente e tão perfeitamente o estágio de conhecimento que os adultos
têm da gramática da língua porque numa larga medida ela já sabe o
que encontrará na língua. O espaço de procura que ela tem na verda-
de é pequeno e é por isso que afinal ela faz tão poucos erros no curso
da aquisição. A maneira exata de implementar essa ideia será abordada
posteriormente.

69
Aquisição da Linguagem

Para concluir a discussão, aqui talvez valha a pena insistir num


ponto: a aquisição do léxico é muito diferente da aquisição da sintaxe.
Para as questões do léxico, é claro que o input não é pobre, porque com
respeito às palavras não derivadas, só podemos saber alguma delas se
as ouvimos alguma vez na vida, e assim esse conhecimento não pode
ser inato. Observe que com respeito às palavras derivadas, que colocam
em jogo conhecimento mais propriamente gramatical, que é o conhe-
cimento morfológico, as coisas são diferentes. Aqui a criança é capaz
de criar formas que nunca ouviu com base no conjunto de regras que
rege a morfologia da língua. Como no campo da sintaxe, na morfologia
também a criança é criativa.

70
O papel do input no modelo P&P Capítulo 08
8 O papel do input no modelo
P&P
Num modelo inatista como o que estamos defendendo, é pertinente
perguntarmos exatamente que papel têm as informações linguísticas (o input)
que a criança recebe dos falantes que a rodeiam. Vamos discutir essa questão
olhando mais de perto o modelo de Princípios e Parâmetros e sua concepção de
aquisição de linguagem.

Acabamos de discutir longamente um dos grandes argumentos para


a hipótese inatista, que assume um programa genético comum a toda
a espécie humana como o responsável pela aquisição das propriedades
constitutivas mais profundas das línguas. Ora, isso implica que os dados
primários aos quais a criança tem acesso não são decisivos para a determi-
nação dessas propriedades constitutivas que terá a língua que esta criança
está aprendendo. Se for assim, qual é o papel do input para a aquisição?

Essa questão é ainda mais relevante quando retomamos uma dife-


rença apontada em Chomsky (1986) – e retomada por um sem-número
de autores – que diz respeito à diferença entre língua-I (interna, intensio-
nal) e língua-E (externa, extensional). Para Chomsky, o verdadeiro ob-
jeto de estudo da teoria gramatical deve ser a língua-I, aquela que está
internalizada pelo falante e que subjaz a toda produção linguística dele;
a língua-E (que é afinal o que é o português, o inglês ou o tupinambá) é
uma manifestação social, quando muito, da língua-I e não possui o mes-
mo estatuto teórico. O input é da ordem da língua-E, mas o que a criança
está desenvolvendo dentro de si é a língua-I. Não é assim de se esperar
nenhuma relação muito estreita entre input e aquisição.

Vamos voltar à comparação sugerida anteriormente por Costa e San-


tos (2003) entre o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento
de outras faculdades humanas biologicamente determinadas, como a ca-
pacidade de vir a andar. Trivialmente, se a criança for mantida em um
ambiente em que não possa se sentar, engatinhar ou ficar em pé, é bem
pouco provável que ela consiga desenvolver sua habilidade para andar.
Mais sério ainda: se as habilidades para sentar, engatinhar e pôr-se de pé

71
Aquisição da Linguagem

não forem desenvolvidas num tempo apropriado, que é bastante cedo na


vida da criança, há muitas chances de atrofiarem-se músculos e nervos
e a criança não poder desenvolver mais essas habilidades normalmente.
Como vimos no capítulo precedente, esse também é o caso das línguas
humanas, que não se desenvolvem se, até certo momento, a criança não
tiver acesso ao input de algum adulto falando alguma língua humana.

Portanto, uma coisa é certa: o input é necessário para pôr em marcha


esse mecanismo que chamamos gramática universal (isto é, o estado ini-
cial desse órgão do cérebro/mente chamado faculdade da linguagem), do
mesmo modo que a entrada de luz na vista é necessária para que o nosso
aparelho visual comece a funcionar. Contudo, crucial é que as caracterís-
ticas do sistema visual humano não são definidas pela luz que entra – se
entrar a luz rosa, então a gente vê tudo de um jeito; se entrar a luz verde,
a gente vê tudo de outro jeito completamente diferente... Não é assim que
funciona, concorda? Chomsky tem uma metáfora já antiga, mas muito
bonita: se você plantar uma margarida, é preciso que ela receba água e sol
e que a terra tenha nutrientes suficientes para que ela se desenvolva, mas o
que vai nascer ali, de acordo com o código genético da semente que você
plantou, é uma margarida, não uma rosa. Não adianta você tratar a muda
de margarida como se fosse de rosa (regando com água bem fria, por
exemplo), porque isso não vai fazer com que nasça ali uma rosa, certo?
Sem as condições mínimas, não vai nascer nada ali; mas se nascer, pode
apostar que é margarida!

É importante frisar esse ponto, porque a visão social da linguagem


é muito forte na nossa cultura e nos faz pensar que as propriedades
últimas que as línguas humanas têm dependem fundamentalmen-
te de elas serem usadas para o que são, isto é, para a comunicação.
Nós estamos aqui defendendo uma ideia completamente diferente:
as línguas humanas têm as propriedades que têm porque nós so-
mos o bicho homem, e o nosso código genético é tal que determina
certo conjunto de características para as línguas naturais, e não ou-
tro. Claro, com essas características as línguas humanas têm se pro-
vado relativamente eficientes para a comunicação, como vimos no
primeiro capítulo, mas não são as condições de comunicação que
determinam as propriedades das línguas.

72
O papel do input no modelo P&P Capítulo 08
Isto posto, podemos avançar para a próxima questão que provavel-
mente você já está se colocando aí: se as línguas são todas determinadas
pelo nosso código genético e se o nosso código genético é fundamen-
talmente o mesmo para toda a espécie humana, como é que as línguas
humanas são tão diferentes umas das outras?

Vamos começar retomando e aprofundando uma diferença que


nós já apontamos várias vezes, mas que sempre deve ser frisada: sob
o ponto de vista do léxico (isto é, do vocabulário da língua), aparente-
mente as línguas são diferentes, e isso depende pelo menos em parte da
cultura com a qual ela se integra (todos sabemos que nas línguas dos es-
quimós existem muitas palavras para traduzir “branco”, e isso tem tudo
a ver com o universo imediato deles, embora nem todos concordem
com esta última afirmação). Dizemos que “aparentemente as línguas são
diferentes”, porque pelo menos certo formato geral do léxico deve ser
partilhado por todas as línguas – todas elas, por exemplo, têm itens que
apresentam propriedades daquilo que chamamos verbo, itens que parti-
lham propriedades do que chamamos nome, etc.

Mas com respeito aos aspectos mais gramaticais, as línguas são


muito mais semelhantes do que pode parecer à primeira vista, porque
partilham certas propriedades profundas com as quais você já teve a
oportunidade de tomar contato na disciplina de Sintaxe, não é verdade?
Vamos retomar em (5) a seguir um dos exemplos dados em (3):

(5)

O Joãoi disse que elei/k viajou no feriado.

Essas possibilidades de correferência ou não que se observam em


português são também observadas em inglês, em katukina, em turco,
em walpiri e em todas as outras línguas que a gente conhece. Trata-se
de um fenômeno universal, que na teoria que você estudou em sintaxe
e que estamos adotando aqui é denominado princípio. Princípios são,
portanto, leis universais respeitadas por todas as línguas. Por outro lado,
sabemos que há variação entre as línguas em certos pontos; por exemplo,
sentenças do tipo de (5) podem apresentar variação na realização foné-
tica da posição sujeito da sentença encaixada em diferentes línguas: (5)
se realiza como (6a) em inglês, onde o pronome deve ser lexicalmente

73
Aquisição da Linguagem

realizado por he, mas (5) tem a forma (6b) em italiano, onde o pronome
deve ser realizado por uma categoria vazia nesse contexto gramatical:

(6)

a) Johni said that hei/k has travelled.

b) Giannii ha detto che cvi/k ha viaggiato.

Uma maneira de codificar esse tipo de variação é por meio da no-


ção de Parâmetros, que serão, portanto, responsáveis por certo tipo de
variação que encontramos entre as línguas. Por isso, essa teoria é cha-
mada de Teoria de Princípios e Parâmetros.

Mas saber que os parâmetros respondem pela variação entre as


línguas não é muito instrutivo se não soubermos o que pode ser um
parâmetro, isto é, exatamente que tipo de variação nas línguas pode ser
tratado desse modo. Vamos dar um exemplo para deixar claro do que
estamos falando. Nessa discussão dos exemplos anteriores em (6), está
em jogo um princípio. Você sabe qual é ele? Quem respondeu “Prin-
cípio de Projeção Estendido” acertou em cheio! Esse princípio garante
que toda sentença tem sujeito ou, dito de modo mais técnico, garante
que Spec IP é sempre projetado. E é exatamente porque esse princípio
garante que Spec IP está sempre presente que nós podemos jurar que,
mesmo não vendo nada ali, como no caso de (6b), alguma coisa tem
nesse lugar: uma categoria vazia. Esse tipo de variação é propriamente
gramatical, porque sob o ponto de vista semântico as línguas não pare-
cem diferir nas possibilidades de interpretação, como mostram os ín-
dices referenciais ali presentes. Portanto, essa variação pode ser tratada
por meio de um parâmetro.

Este é um dos parâmetros mais conhecidos (e também mais con-


troversos, diga-se de passagem): o Parâmetro do Sujeito Nulo. Esse pa-
râmetro cuida especificamente do preenchimento lexical obrigatório ou
não da posição sujeito nas línguas. Ele pode ser resumido em uma per-
gunta: a língua tem sujeito lexicalmente realizado de maneira obrigató-
ria ou não? O inglês responde “sim” e por isso deve apresentar algum
material lexical preenchendo a posição sujeito mesmo quando não teria
nenhuma razão semântica para pôr algo ali, como no caso do verbo
meteorológico que vemos em (7a); por outro lado, o italiano responde

74
O papel do input no modelo P&P Capítulo 08
“não” e assim pode permitir tanto (6b) quanto (7b), sentenças que exi-
bem uma categoria vazia na posição Spec IP:

(7)

a) It rains.

b) ____ piove.

/(expl.) chove/ (onde expl. significa “expletivo”)

Desta rápida discussão, uma coisa já deve ter ficado clara sobre o
formato que gostaríamos de dar para os parâmetros: eles devem ter uma
formulação binária, isto é, eles devem ser perguntas que admitem como
respostas apenas “sim” ou “não”, porque formulados dessa maneira en-
tendemos imediatamente como as crianças chegam tão rapidamente a
falar perfeitamente a língua que se fala ao redordelas. Observe qual é a
tarefa da criança aqui: ouvir sentenças matrizes e encaixadas na sua lín-
gua (abundantes no input!) e decidir se Spec IP sempre apresenta conte-
údo lexical ou não. Fácil, né?

No entanto, note que se qualquer tipo de variação nas línguas pu-


der ser um parâmetro, nós não teremos avançado muito na nossa com-
preensão de como a criança adquire tão rápida e perfeitamente a sua
língua, porque seriam necessários muitos anos olhando cada proprie-
dade superficial da língua para saber o valor de cada um dos milhares
de parâmetros que então deveriam existir. Não, a estória não pode ser
assim... E de fato não é, porque o que realmente vemos nas línguas é que
certos conjuntos de propriedades vão juntos: por exemplo, as mesmas
línguas que exibem sujeito nulo, como o italiano ou o espanhol, exibem
também inversão do sujeito (isto é, o sujeito pode aparecer à direita da
sentença), como mostra (8a,b); por outro lado, as línguas que não ad-
mitem sujeito nulo, como o inglês e o francês, por exemplo, também
não admitem inversão do sujeito, como se vê pela agramaticalidade de
(8c,d):

(8)

a) È arrivato Gianni.

b) Llegò Juan.

75
Aquisição da Linguagem

c) *Has arrived John.

d) *Est arrivé Jean.

/chegou o João/

Hum, a coisa está ficando bem interessante, não? O que queremos,


então, de um parâmetro é que a sua formulação seja de tal modo abstra-
ta que com um só parâmetro consigamos responder por várias proprie-
dades superficiais que as línguas podem exibir – sujeito nulo, inversão
do sujeito... Isso seria um sonho!

Mas que formulação abstrata é essa que poderíamos dar para o Pa-
râmetro do Sujeito Nulo que acabamos de examinar? Uma intuição já
antiga, que se encontra até mesmo na gramática tradicional, é a de que
apenas línguas com um paradigma morfológico “rico”, isto é, com certo
número de desinências distintas para representar as diferentes combi-
nações dos traços de número (singular e plural) e pessoa (1a, 2a e 3a)
presentes no paradigma verbal, aceitam uma categoria vazia na posi-
ção de sujeito; línguas com um paradigma verbal “pobre”, isto é, com
poucas desinências distintas para representar esse mesmo conjunto de
combinações, não são capazes dessa proeza. Compare em (9) a seguir os
paradigmas verbais do inglês e do italiano:

(9)

Paradigma do presente do indicativo do verbo comer – to eat e


mangiare:

a) I eat b) (io) mangio


you eat (tu) mangi
he/she eats (lui/lei) mangia
we eat (noi) mangiamo
you eat (voi) mangiate
they eat (loro) mangiano

Como você pode facilmente perceber, apenas o italiano dispõe de


seis desinências distintas que correspondem às seis combinações pos-
síveis dos traços de número e pessoa. Desse modo, a flexão é capaz de
recobrir o conteúdo da categoria vazia em posição sujeito, permitin-
do que ela seja nula; este também seria o caso do espanhol. Por outro

76
O papel do input no modelo P&P Capítulo 08
lado, o inglês possui uma só desinência, o que faz com que o paradigma
como um todo seja pobre demais para poder recobrir o conteúdo de
uma eventual categoria vazia na posição sujeito, razão pela qual jamais
esta posição poderá prescindir de conteúdo lexical (um pronome ou um
DP). Vale a mesma observação para o francês.

Observe que já temos três propriedades correlacionadas: sujeito


nulo, inversão do sujeito e conteúdo da flexão revelado pela morfologia
verbal. Esta última propriedade tem uma característica bem interessan-
te: ela diz respeito ao conteúdo de I, uma categoria funcional que os
estudiosos têm pensado que é um bom lugar para admitirmos como
locus da variação. Assim, chegamos a uma segunda característica dos
parâmetros: além de serem propriedades binárias (a primeira caracte-
rística deles), eles devem se relacionar com alguma categoria funcional
(já que as categorias lexicais, como nome e verbo, são mais ou menos
uniformes entre as línguas, e a variação nessas categorias costuma ser
mais associada com outras propriedades da linguagem, como aquelas
ligadas à cultura, por exemplo).

Nesse ponto da discussão, podemos tentar dar uma formulação para


o nosso Parâmetro do Sujeito Nulo olhando para a categoria funcional I.
Vamos dizer assim: a flexão das línguas humanas (isto é, seu nódulo I)
pode ter um caráter [+pronominal] ou [-pronominal]. Uma língua que
tem um paradigma verbal como o do italiano exibe o valor [+pronomi-
nal], enquanto uma língua com um paradigma verbal como o do inglês
exibe o valor [-pronominal]. Dito de outro modo, em italiano a flexão
vale por um pronome, digamos, enquanto em inglês isso não é verdade
e por isso o inglês precisa de um pronome lexicalmente realizado na
posição Spec IP. E como a criança reconhece que valor tem o Parâmetro
do Sujeito Nulo na sua língua? Bom, isso já é outra discussão... A metáfora é da professo-
ra Ruth Lopes (comunica-
Vamos usar aqui uma metáfora para tentar compreender melhor esta ção pessoal).

questão: o problema com que a criança se defronta para fixar o valor de


um parâmetro é similar ao que nos defrontamos quando compramos um
aparelho eletroeletrônico (um secador de cabelo, um micro-ondas, uma
impressora) e vamos ligá-lo na tomada. Normalmente tem uma chavinha
no aparelho: de um lado dela está escrito “220V”, do outro está escrito
“110V”. Pode ser que a chavinha venha posicionada no meio, isto é, ne-

77
Aquisição da Linguagem

nhum dos dois valores está acionado, mas daí se a gente ligar não acontece
nada, né? O aparelho não funciona... Muito bem, então temos que esco-
lher uma das duas opções para poder usar o aparelho. Qual é a voltagem
na sua região? Isso alguém que mora na região é que deve informar a
você, porque só olhando pra tomada você não vai saber, certo? Se na sua
região a voltagem é 220V, escolhendo a posição 110V seguramente você
vai queimar o aparelho (o caso contrário, isto é, ligar o aparelho 220V
na tomada 110V talvez não estrague o aparelho, mas é provável que ele
simplesmente não funcione). É verdade que modernamente existem apa-
relhos bivolt, que você pode ligar em qualquer tomada com qualquer vol-
tagem e eles mesmos reconhecem qual é a voltagem e se adaptam a ela...

Vejamos como essa metáfora nos ajuda a entender o problema da


criança frente à fixação de parâmetros. Não sabemos bem como
estão os parâmetros na GU logo no início da aquisição, mas uma
coisa é certa: se estão na posição neutra, nada vai funcionar, certo?
A criança vai precisar escolher um valor para os parâmetros, e isso
vai depender de qual é o input que ela tem. Em princípio, os dados
que vão servir para a fixação do parâmetro devem ser abundantes,
isto é, alguém estará dizendo ao lado dela qual é a voltagem da
tomada das mais variadas formas. Vimos que, se um mesmo parâ-
metro é responsável por diferentes propriedades, a rigor a criança
tem informações vindas de diferentes fontes, todas convergindo
para o mesmo valor. Não é muito claro se a criança presta atenção
a todas ou se existe uma delas (que a gente chama de dado desen-
cadeador ou trigger) que vai ser a responsável última pela fixação
daquele parâmetro. Uma coisa, no entanto, é certa: essa informação
tem que estar facilmente acessível nos dados (não pode depender
de ser uma sentença relativa que tenha a cabeça ocupando a posi-
ção de complemento PP na frase matriz, que é o complemento de
um nome na sentença encaixada, como o exemplo que vimos an-
teriormente, ok?). Curiosamente, todas as crianças parecem prestar
atenção aos dados relevantes para a fixação do parâmetro mais ou
menos na mesma época...

78
O papel do input no modelo P&P Capítulo 08
Observe que é um problema escolher a voltagem errada para de-
pois corrigir o erro e escolher a voltagem certa, porque a essas altu-
ras o aparelho pode estar queimado. O mesmo podemos dizer para a
aquisição, porque, se admitirmos que a criança pode refixar o valor dos
parâmetros, ela poderia ficar fazendo isso o resto da vida. Veja bem qual
é o problema: imagine que a criança está aprendendo italiano e vamos
imaginar que ouvir frases com sujeito nulo ou preenchido é que a faz
escolher um ou outro valor para o parâmetro. Ela ouve uma frase com
sujeito nulo, coloca a chavinha ali no [+pronominal]; mas se a próxima
frase da mãe é com sujeito lexical, ela pode se perguntar se não fixou o
valor errado e põe a chavinha no valor [-pronominal]. Daqui a pouco
aparece outra sentença com sujeito nulo e ela se pergunta novamente se
não fixou o valor errado... Deu pra perceber qual é o problema?

É por isso que alguns pesquisadores já estão defendendo a hipótese


bivolt, isto é, a hipótese segundo a qual a criança tem à disposição simul-
taneamente os dois valores do parâmetro. Isso é o que defende Meisel
(1997), citando Lebeaux (1988). Por trás dessa ideia está uma concepção
de que o valor do parâmetro é desencadeado pelos dados de forma auto-
mática; é alguma coisa que acontece quando a criança se defronta com
os dados relevantes. A rigor, a criança não tem que fazer nada: o próprio
mecanismo se encarrega da fixação quando recebe o input adequado.

Nessa perspectiva teórica, portanto, a tarefa da criança adquirindo


uma língua natural será adquirir os itens lexicais da língua e fixar os
valores dos parâmetros, já que os princípios estão todos dados, embo-
ra talvez não imediatamente acessíveis. O mesmo pode-se dizer para
os parâmetros: talvez não estejam todos imediatamente acessíveis, seja
porque o mecanismo como um todo deve maturar (como defendem os
maturacionistas), seja porque, embora o mecanismo de aquisição da
linguagem esteja todo pronto, esperando para funcionar, outros proble-
mas, ligados à memória e ao processamento, além da aquisição mesma
dos itens lexicais e funcionais da língua, impedem que a criança já nasça
falando (como defendem os continuístas). E só mais pesquisa na área
vai poder mostrar qual dessas alternativas está correta...

Como você pode ver, nós não temos respostas prontas para todas
as questões, mas o fato concreto é que nós conseguimos fazer perguntas

79
Aquisição da Linguagem

muito mais acuradas e profundas do que fazíamos antes, e isso em ciên-


cia já é um ganho enorme! Na próxima unidade, veremos uma aplicação
de algumas dessas ideias na discussão da aquisição de uma construção
específica em português brasileiro: a aquisição das estruturas interroga-
tivas.

80
Conclusões Capítulo 09
9 Conclusões

Nesta unidade, examinamos detalhadamente a argumentação que


geralmente se apresenta em prol de uma hipótese inatista para a aqui-
sição da primeira língua pela criança. Começamos observando que a
aquisição da linguagem é universal, no sentido de que todos os seres
humanos adquirem igualmente bem uma língua natural, supostamente
fazendo uso fundamentalmente dos mesmos mecanismos internos, por-
que certos fenômenos, como a supergeneralização de regras, ocorrem
não apenas com crianças que aprendem a mesma língua, mas também
com crianças que aprendem línguas diferentes. Dado que os fenômenos
observados na aquisição são tais que seria impossível qualquer tipo de
imitação ou instrução por parte dos adultos, a conclusão parece ser que
o mecanismo responsável pela aquisição é inato – esta é a razão para o
nome da hipótese que assume essa ideia ser hipótese inatista, adotada
no presente texto.

A hipótese inatista vê a linguagem como parte do programa gené-


tico dos seres humanos e assim é um processo que exibe propriedades
muito semelhantes com o processo de aprender a andar, por exemplo.
Além da universalidade, também a sequencialidade do processo é muito
clara. Vimos que a aquisição da linguagem pela criança não se dá ins-
tantaneamente, nem é diretamente dependente do tipo de input ao qual
a criança tem acesso. Ao contrário, o que se observa é uma incrível uni-
formidade com respeito às fases pelas quais todas as crianças passam,
independentemente da língua que estão aprendendo.

Examinamos detidamente um dos argumentos mais conhecidos


em defesa da hipótese inatista, que é o argumento da pobreza do estí-
mulo. Há vários sentidos em que podemos dizer que o input é degra-
dado, mas o problema real é ele não fornecer informações sobre o que
não é possível na língua. Como todos os falantes de uma língua natural
sabem o que é possível ou não nela, esse conhecimento não pode ter
vindo dos dados.

Finalmente, dada essa conclusão sobre a qualidade do input, dis-

81
Aquisição da Linguagem

cutimos que papel ele pode ter numa teoria inatista. Adotamos a Teoria
de Princípios e Parâmetros, segundo a qual a gramática universal (GU,
o estado inicial da faculdade da linguagem) é composta de um conjunto
de princípios, universais, e um conjunto de parâmetros, propriedades
binárias associadas fundamentalmente com categorias funcionais que
representam o lugar da variação nas línguas. O papel do input neste qua-
dro é o acionamento de um dos valores para os diferentes parâmetros.

Examinamos rapidamente um parâmetro bem conhecido na litera-


tura da área, o Parâmetro do Sujeito Nulo, mostrando que os parâme-
tros associam várias propriedades aparentes na língua com base em uma
única propriedade mais abstrata. Examinamos também uma metáfora
para o que deve ser o acionamento paramétrico feito pela criança. Com
base nessa metáfora, discutimos outros problemas, como o do dado rele-
vante para o desencadeamento do valor do parâmetro, que deve ser um
dado abundante e facilmente acessível. Finalmente, falamos rapidamen-
te sobre duas hipóteses a respeito do funcionamento da GU: a hipótese
maturacionista e a hipótese continuísta. Para os maturacionistas, nem
todos os princípios e parâmetros da GU estão acessíveis para a criança
desde o início por razões de maturação biológica, pelas quais nas fases
iniciais podem aparecer na gramática infantil estruturas impossíveis na
gramática adulta. Para os continuístas, por outro lado, as estruturas da
gramática infantil são fundamentalmente as mesmas que se encontram
nas gramáticas adultas. As diferenças observáveis podem ser devidas
aos limites de processamento ou memória ou ainda ao desconhecimen-
to de certos itens lexicais. Essa discussão ainda aguarda mais pesquisa e
avanços teóricos para ser dirimida.

Leia mais!
Costa e Santos (2003) é um livro de divulgação científica, não tão téc-
nico e por isso mesmo de fácil leitura. No capítulo 1 os autores apre-
sentam vários argumentos em defesa da hipótese inatista e no capítulo
2 apresentam as várias fases por que passa a criança quando começa a
falar, fazendo um paralelo interessante com outras habilidades humanas
biologicamente determinadas.

82
Conclusões Capítulo 09
Há leituras mais técnicas e por isso mesmo mais difíceis e interessantes.
Em Mioto, Figueiredo Silva e Lopes (2004), em particular no capítulo
V, você encontrará informações detalhadas sobre as possibilidades de
relações entre pronomes e expressões-R; com Kato (1995), você pode
também ampliar o seu conhecimento sobre este debate entre matura-
cionistas e continuístas.

83
Unidade C
Um problema específico: aquisição
das interrogativas no PB
O que é uma sentença interrogativa? Capítulo 10
10 O que é uma sentença
interrogativa?
Neste capítulo, vamos examinar as propriedades das interrogativas de
tipo WH. Vamos começar por uma definição geral do que é uma sentença
interrogativa; a seguir, vamos examinar que princípios e parâmetros já foram
aventados para explicar as restrições que pesam sobre esta construção nas
línguas do mundo.

É longa a tradição gramatical que se dedica ao estudo das interroga-


tivas. Tecnicamente, as sentenças interrogativas constituem uma moda-
lidade de sentença que não possui em si um valor de verdade (elas não
são nem verdadeiras nem falsas); no entanto, ou demandam um valor
de verdade para toda a sentença (quando estamos frente a interrogativas
de tipo sim/não, como a Maria saiu?) ou procuram estabelecer o valor
para alguma variável x (caso das interrogativas WH, assim chamadas por
conta da forma morfofonológica que possuem muitos dos elementos que
encabeçam o constituinte interrogado em inglês: who, what, whom, whe-
re, when, why; em português, pela mesma razão – a forma morfofonoló-
gica das expressões interrogativas: quando, quem, quanto, qual, o que –
podem ser chamadas interrogativas QU. Manteremos no entanto a sigla
em inglês). Este último tipo de interrogativa será o foco deste estudo.
LF
Você se lembra do
Sob o ponto de vista lógico, as interrogativas WH veiculam pres-
que é LF? É a sigla de
suposição existencial – a pergunta “quem saiu?” só tem cabimento se Logical Form, isto é, a
se supõe que alguém saiu, certo? Em termos estruturais, essas senten- Forma Lógica, o nível
ças são constituídas de um operador (um sintagma interrogativo, como de representação que
vem depois da estru-
quem ou onde) e de uma variável, que é o valor buscado pelo operador tura-S e é responsável
quando ele varre o conjunto de possibilidades de valores de verdade pela interpretação
num certo universo: por exemplo, o operador quem deve varrer o con- lógica dos enunciados.
Se você ainda tem
junto de pessoas, mas onde varre o conjunto dos lugares. Essa estrutura
dúvidas, retome seu
operador-variável pode aparecer já na sentença em estrutura-S, como material de sintaxe do
(1a), em que t representa a variável, mas pode se realizar apenas em português: MIOTO, C.
LF e então a estrutura-S será como em (1b), chamada WH in situ, isto Sintaxe do português.
Florianópolis: LLV/CCE/
é, uma sentença em que a expressão interrogativa não é movida para o UFSC, 2009
início da sentença:

87
Aquisição da Linguagem

(1)

a) O que a Maria tinha dito t?

b) A Maria tinha dito o quê?

Existe outro tipo de interrogativa, chamada interrogativa encaixa-


da ou indireta, exemplificada por sentenças como o Pedro perguntou o
que a Maria disse, mas nós não nos deteremos na análise desse tipo de
pergunta. Aqui nós vamos estudar o tipo de restrição que pesa sobre as
formações em (1) nas línguas naturais.

Rizzi (1996) se coloca a tarefa de responder por que línguas como


o italiano e o inglês exigem que o sintagma WH e o verbo conjugado
sejam absolutamente adjacentes, o que podemos apreciar em (2), tra-
duções de (1a):

(2)

a) What had Mary said t?

b) *What Mary had said t?

c) Cosa aveva detto Maria t?

d) *Cosa Maria aveva detto t?

O autor assume a explicação de Chomsky (1986) para as interro-


gativas principais do inglês: a flexão deve ir de I para C para criar com
o sintagma WH uma configuração especificador-núcleo, como vemos
em (3):

(3)
CP

Spec C’

C IP
OPWH

Ik
tk tOP

configuração especificador-núcleo

88
O que é uma sentença interrogativa? Capítulo 10
A questão que coloca Rizzi (1996) é: por que esse movimento seria
obrigatório em inglês e italiano, por exemplo? A resposta, segundo ele,
é que uma condição de boa formação universal, responsável pela dis-
tribuição em SS e interpretação em LF de operadores WH, exige essa
configuração Spec-núcleo entre um operador WH e um núcleo marca-
do com o traço [+wh]. Assim, em (3), a flexão porta o traço [+wh] e por
isso deve ir para C estabelecer essa relação com o operador WH movido
para lá. Essa restrição, conhecida como Critério WH, está enunciada em
(4) a seguir:

(4)

Critério WH:

a) um operador WH deve estar numa configuração especificador-


núcleo com um núcleo carregando o traço [+wh];

b) um núcleo carregando o traço [+wh] deve estar numa configu-


ração especificador-núcleo com um operador WH.

Um operador, para Rizzi (1996), é um sintagma WH ocupando


uma posição A-barra. O sintagma interrogativo é gerado na estrutura
em alguma posição no VP e depois é movido para Spec CP. A questão
é saber onde é gerado o traço [+wh] e o que o legitima. Observe que
este traço em C implica que este CP é interrogativo e, portanto, esta
projeção CP só poderá ser interpretada como parte de uma sentença in-
terrogativa. Com base na observação de que certas línguas apresentam
morfologia verbal especial nas sentenças interrogativas, o autor propõe
que o lugar para gerar esse traço [+wh] é I finito. Como I é ocupado pelo
verbo flexionado (um auxiliar no inglês), é ele que termina ocupando C
de maneira visível.

O Critério WH pode ser respeitado já em SS, como no inglês e no


italiano, ou em LF, como em chinês, que aceita perguntas apenas na
forma (1b), isto é, interrogativas com WH in situ. Mas o que dizer de
uma língua como o francês que aceita tanto (1a), a estrutura com mo-
vimento, quanto (1b), a estrutura com WH in situ? Uma ideia, segundo

89
Aquisição da Linguagem

Rizzi (1996), seria dizer que o lugar para respeitar o Critério WH pode
ser tanto SS quanto LF em francês, mas por conta de predições incorre-
tas que essa hipótese faria para as interrogativas indiretas, o autor opta
por propor um mecanismo chamado concordância dinâmica, segundo
o qual o operador WH, estacionado em Spec CP, pode dotar o núcleo
C com o traço [+wh] e assim satisfazer o Critério WH em estrutura-S.
Essa opção extra do francês também está disponível para o português,
como veremos no próximo capítulo.

Antes, porém, vamos frisar que o Critério WH, uma condição uni-
versal (um princípio, portanto), está sujeito à variação paramétrica nas
línguas basicamente em dois pontos, conforme vimos em toda a discus-
são feita acima:

(5)

P1: Movimento do operador WH: visível em SS ou movimento


coberto em LF?

P2: Aplicação ou não aplicação de movimento de I-a-C?

Veremos que, no caso de não aplicação de I-a-C, as línguas podem


usar diferentes estratégias para respeitar o Critério WH. Se tudo isso
parece muito abstrato para você, nós vamos já examinar os dados do PB
para você ver como isso funciona.

90
Características do português brasileiro (PB) adulto Capítulo 11
11 Características do português
brasileiro (PB) adulto
Abordaremos agora a questão de como o português brasileiro adulto (que
é o input da criança) lida com as exigências universais que pesam sobre as
interrogativas WH. A seção 11.1 investiga o que acontece com o movimento do
verbo para C nessa língua; a seção 11.2 examina as construções de tipo WH é
que e WH que, que parecem ser o modo principal de o PB respeitar o Critério
WH e, finalmente, em 11.3, vamos examinar as construções com WH in situ.

Vamos começar lembrando você de uma coisa importante: preci-


samos saber como é que funciona o sistema interrogativo no PB adulto
porque é esse tipo de dado que a criança ouve e, portanto, se queremos
saber como é o sistema interrogativo infantil, precisamos primeiro sa-
ber qual é o input da criança, certo? De outro modo, nós não saberemos
avaliar se a criança adquirindo essas construções atinge diretamente o
conhecimento adulto ou se passa por estágios diferentes do PB adulto.
Tendo essa preocupação como fundo, vamos nos perguntar: que tipo de
sentenças interrogativas WH encontramos no PB adulto? Sikansi (1999)
nos fornece o conjunto de exemplos que vemos em (6):

(6)

a) Onde os meninos foram?

b) Onde foram os meninos?

c) Onde que os meninos foram?

d) Onde é que os meninos foram?

e) Os meninos foram onde?

(6a) mostra a ordem WH S(ujeito)V(erbo), enquanto (6b) mostra


a ordem WH V(erbo)-S(ujeito), ambas possíveis pelo menos com certo
tipo de verbo; (6c) exibe a estrutura WH que SV e (6d), a estrutura WH
é que SV; finalmente, (6e) é um exemplo de WH in situ. Ainda que o pa-
radigma não esteja completo, ele já mostra um pouco da complexidade

91
Aquisição da Linguagem

da tarefa do linguista para explicar – e da criança para adquirir – essas


estruturas, complexidade que pode ser localizada em três pontos: a or-
dem relativa do verbo e do sujeito, a presença de que ou é que seguindo
o sintagma WH e a possibilidade de não mover o sintagma WH para o
início da sentença.

Este capítulo se subdivide em várias seções que discutem especi-


ficamente esses três aspectos da formação de sentenças interrogativas
do PB adulto, que é o input para a criança aprendendo essa língua: (i)
movimento do verbo para C, responsável pela ordem relativa do verbo
e do sujeito; (ii) outros modos de dotar o núcleo C com o traço [+wh],
como que e é que; (iii) construções sem o movimento do sintagma WH,
chamadas de construções com WH in situ.

11.1 A construção com inversão verbo-


sujeito
Um fato da história interna do português brasileiro é a mudança
que se deu em sua gramática com respeito à ordem de constituintes usa-
da nas sentenças interrogativas. Duarte (1992), num estudo baseado em
peças de teatro escritas entre 1734 a 1989, mostra que, até 1845, todas
as interrogativas WH diretas exibem a ordem WH VS; a partir de 1882,
começam a surgir construções interrogativas diretas com a ordem SV,
coincidindo com a aparição do expletivo é que (em 6 dos 8 dados que
registram essa ordem), tendo, portanto, o formato WH é que SV. Este
expletivo é fundamental para que a ordem SV se implante no sistema, o
que já é um fato em 1937; a partir desse momento, a presença do exple-
tivo deixa de ser condicionante, isto é, encontram-se já sentenças com o
formato WH SV, possibilidades exemplificadas em (7) a seguir:

(7)

a) WH VS: De onde surgiu você?

b) WH é que SV: Onde é que você andou até agora?

c) WH SV: Onde você andou?

92
Características do português brasileiro (PB) adulto Capítulo 11
Duarte (1992) nota ainda que a ordem SV privilegia sujeitos prono-
minais. A conclusão desta estudiosa é que a ordem VS em interrogativas
no PB atual está restrita a estruturas com verbos de cópula (como ser e
estar) e com verbos apresentativos, que admitem já nas sentenças decla-
rativas a ordem VS, como mostra (8) a seguir:

(8)

a) Apareceu a margarida.

b) Quando apareceu a margarida?

O caráter marginal de VS no PB atual leva Sikansi (1999), reportan-


do um estudo de Kato (1993), a avançar uma análise diferente para (8b).
Para ela, essa não é uma estrutura de movimento de V para C como no
KATO, M. A. Word order
inglês, isto é, em PB não é o verbo flexionado que se move para a es- change: the case of brazi-
querda, mas o sujeito que se move para a direita, fornecendo, portanto, lian portuguese Wh- ques-
tions. Manuscrito. Campi-
a ordem VS. Contudo, não se trata do mesmo fenômeno gramatical – é nas, SP, 1993.
o que Kato (1993) chamou de “falsa inversão”. O argumento de Kato
(1993) para defender essa hipótese é a possibilidade de termos um pro-
nome lexicalmente realizado na posição Spec IP (a posição do sujeito
pré-verbal), mostrado em (9a), num paralelo perfeito com o desloca-
mento à esquerda, exibido em (9b), que desfruta da mesma possibili-
dade:

(9)

a) (Eles) estão aqui, os meninos.

b) Os meninos, (eles) estão aqui.

A ideia dessa autora então é propor que a interrogativa WH se for-


maria a partir dessa estrutura com deslocamento à direita do sujeito,
(10a), com a categoria vazia na posição Spec IP, configurando a “falsa
inversão” que vemos em (10):

(10)

a) cv estão aqui os meninos.

b) Onde cv estão os meninos?

93
Aquisição da Linguagem

Com o intuito de comprovar essa análise de Kato (1993), Sikansi


(1998) conduziu um estudo estatístico especificamente sobre as estru-
turas interrogativas VS do PB atual. Com base em três corpora distin-
tos – (i) Norma urbana culta, no caso de São Paulo (NURC/SP), (ii)
língua escrita e (iii) língua falada – a autora observou que os fatores
que interferem diretamente na escolha da ordem nas interrogativas WH
são o tipo de verbo e o tipo de sujeito. Com respeito ao tipo de verbo,
observa-se que os verbos transitivos são inibidores da ordem VS, como
mostra a inaceitabilidade de sentenças como *Onde viu o João a Maria?;
os verbos monoargumentais (copulares, inergativos e inacusativos), por
seu turno, aceitam naturalmente a ordem VS, como se vê pela gramati-
calidade relativa de sentenças do tipo onde fica essa rua? ou ainda quan-
do chegou a carta?.

Com respeito ao tipo de sujeito, os pronominais tendem a aparecer


na ordem SV (os pronomes de tratamento ocorrem todos nessa ordem),
enquanto as expressões-R definidas podem aparecer na posição final,
que é favorecida quando elas são mais longas, fato consistente com uma
observação já antiga de que DPs pesados tendem a ocupar a posição
mais à direita da sentença, independentemente da função gramatical do
DP, como mostram sentenças do tipo Eu comprei pra ela o bolo mais
bonito que eu vi.

A análise é bem bonita, não é? Sim, mas ela tem alguns problemas.
Vamos a eles. Em primeiro lugar, é indiscutível que existem estruturas
com deslocamento do sujeito à direita em PB atual, mas elas são per-
feitas com verbos transitivos, como vemos em (11a), colhida em uma
festinha de aniversário. Esse fato coloca um problema para a análise de
Kato (1993), pois a “falsa inversão” parece sensível ao número de argu-
mentos do verbo, como mostra (11b), mas o deslocamento à direita do
sujeito em (11c) não é.

(11)

a) ‘Tão comendo muito brigadeiro, essas crianças.

b) * Onde (elas) ‘tão comendo muito brigadeiro, essas crianças?

c) ? (Elas) tão comendo muito brigadeiro na cozinha, essas crianças.

94
Características do português brasileiro (PB) adulto Capítulo 11
Você vê qual é o problema que esses dados colocam? O problema
é que a análise de Kato (1993) prediz que essas duas frases deviam ter
o mesmo juízo de gramaticalidade porque, para ela, ambas são deriva-
das pela mesma estratégia, que é o deslocamento à direita do sujeito.
É verdade que a frase em (11b) coloca em jogo também o movimento
WH, mas esse não parece ser um problema se o par em (10) não exibe
nenhum contraste, concorda? Então tem um problema mesmo aqui...

Em segundo lugar, é notável em construções como (9a) ou (11a) a


existência, dentre outros fenômenos entoacionais, de uma pausa (marca-
da acima pela vírgula) entre a sentença e o sujeito deslocado, sem a qual
a construção é completamente agramatical, e isso independe de o sujeito
pré-verbal ser realizado por um pronome lexical ou por uma categoria
vazia. Sem pausa e com entoação contínua, as sentenças com pronome le-
xical como (9a) e (11a) são excluídas; só são boas nesse caso as sentenças
com “verdadeira inversão”, isto é, sem pronome lexicalmente realizado.

Outro fato a salientar é que esta análise não pode explicar, como
bem nota Sell (2003), uma sentença como Onde foram eles?, que só é
gramatical sem o pronome pré-verbal, como mostra a agramaticalidade
de *onde eles foram eles?. Observe também que essa não poderia ser
uma estrutura de deslocamento à direita do sujeito – os pronomes são
preferidos na posição canônica do sujeito Spec IP, como mostrou Si-
kansi (1998). Portanto, parece inescapável a conclusão de que há tanto
a “falsa” quanto a “verdadeira” inversão no PB, esta última restrita aos
verbos inacusativos, o que inclui as cópulas que, como você sabe, sele-
cionam uma small clause como complemento.

Assim, o mais sensato parece ser manter uma análise para VS que
tire proveito do fato de serem os inacusativos os verbos que aceitam essa
ordem, verbos que não possuem argumento externo, apenas argumento
interno. É possível então que o único argumento que o verbo possui fi-
que em sua posição de base e apenas o verbo se mova, como usual, para
a posição I. Assim, uma sentença como (12a) terá uma representação
arbórea como (12b), a seguir:

(12)

a) Onde foram os meninos?

95
Aquisição da Linguagem

b)
CP

Spec C’

onde C IP

Spec I’

I VP

foram V’

V SC

t foram
os meninos

Por seu turno, a ordem WH SV receberá a seguinte análise de Si-


kansi (1999), sempre tendo por base Kato (1993): essas estruturas no
PB só são possíveis porque o movimento WH começa a ser efetuado
diretamente a partir de sentenças clivadas, como (13a), que tem efeti-
Sentenças clivadas
Você sabe o que é uma vamente a forma (13b) quando o constituinte clivado é uma expressão
sentença clivada? É WH. A partir daí, temos o apagamento do expletivo (é) que, resultando
uma sentença que tem em (13c) e (13d):
por objetivo focalizar
um constituinte da sen-
tença e por isso “ensan- (13)
duicha” esse constituin-
te entre a cópula ser e a) Foi o Pedro que saiu.
o complementizador
que, ao qual se segue o b) Foi quem que saiu?
resto da sentença: Foi
c) Foi quem que saiu?
a Maria que comeu o
bolo ou foi o bolo que a
d) Foi quem que saiu?
Maria comeu.

Essa hipótese ganha lastro na observação de Duarte (1992) de que


há dependência diacrônica entre WH é que SV e WH SV. Vamos discu-
ti-la na próxima seção.

96
Características do português brasileiro (PB) adulto Capítulo 11
11.2 A construção com (é) que
Lopes Rossi (1993, 1996), também num trabalho sobre diacronia
das construções interrogativas no PB, hipotetiza que as construções
com é que são derivadas de sentenças clivadas, exibindo, portanto, uma
sentença matriz e outra encaixada. Observe os exemplos em (14) e o
pedaço pertinente da árvore a elas correspondente em (15):

(14)

a) Foi o bolo que a Maria comeu

b) Foi o que que a Maria comeu?

c) O que foi que a Maria comeu?

(15)
CP

Spec C’

O que C IP

Spec I’

I VP

foi V’

V CP

t foi Spec C’
(o bolo)

C IP

que a Maria comeu


t o bolo / o que

97
Aquisição da Linguagem

A parte mais alta da árvore em (15) contém o primeiro conjunto


de projeções funcionais – CP, IP e o VP inacusativo que abriga a cópula
ser; a sentença encaixada começa no CP selecionado pela cópula que
abriga a sentença a Maria comeu o bolo/o que, que está dentro do IP
mais baixo.

Para Lopes Rossi (1993, 1996), as estruturas com WH que (entrada


recente no PB segundo Duarte (1992), que só tem registro delas nos
corpora de 1975 e 1989) devem ser analisadas do mesmo modo, isto é,
como derivadas de sentenças clivadas; elas exibem, contudo, o apaga-
mento adicional da cópula é/foi, possível também em outros contextos
como as perguntas com qual – exemplificado por qual (é) o seu nome?.
Também Kato (1993), reportada por Sikansi (1999), assume que é possí-
vel o apagamento da cópula em interrogativas WH é que, resultando em
estruturas WH que e, nessas estruturas, também é possível o apagamen-
to do complementizador que, resultando em estruturas WH SV.

Para Mioto (1996), no entanto, WH que não é a mesma coisa que


WH é que e é possível mostrar isso por meio de uma série de diferenças
sistemáticas que existem entre essas duas construções. A primeira ob-
servação desse autor é de cunho fonológico: sendo é um monossílabo
tônico, este não é um segmento facilmente apagado pelas leis da fono-
logia. Além disso, se é razoável postular o apagamento de um verbo no
presente do indicativo, já não é tão razoável postular esse mesmo apa-
gamento quando ele se encontra no pretérito perfeito, com a forma foi.
E mais: se é certo que em alguns contextos a cópula pode desaparecer
(como em interrogativas com qual), também é certo que em outros não
pode, como num outro tipo de clivagem, onde vemos o contraste entre
o que eu quero de você é um beijo e *o que eu quero de você um beijo.

O argumento mais forte, no entanto, vem da sintaxe: é possível a


coocorrência de que e é que na mesma sentença interrogativa, como
mostra (16a); se WH que e WH é que são de fato fundamentalmente
idênticos, espera-se que a recursão seja possível com os dois em qual-
quer ordem, o que não parece ser o caso:

(16)

a) O que que é que você está fazendo?

98
Características do português brasileiro (PB) adulto Capítulo 11
b) * O que que que você está fazendo?

c) * O que é que que você está fazendo?

Para Mioto (1996), a construção WH é que de fato deve ser deriva-


da de uma sentença clivada, como propõe Lopes Rossi (1993), e assim
Mioto (1996) assume a estrutura (15) para esses casos. Para as interro-
gativas WH que, no entanto, este pesquisador adota a estrutura mais
simples que Rizzi (1996) propôs para a satisfação do Critério WH, dada
em (3) e retomada aqui em (17):

(17)
CP

Spec C’

OPWh- C IP

que [+wh]
t Wh-

Configuração
especificador-núcleo

Se admitirmos que o complementizador que é a realização do traço


[+wh], o fato de ele estar ocupando o núcleo C da projeção CP que aloja
o sintagma WH em seu Spec já determina a satisfação do Critério WH
em PB, que não precisa assim recorrer ao movimento de V+I para C a
fim de dotar este núcleo com o traço relevante.

Essa proposta, todavia, não é suficiente para explicar como o Crité-


rio WH é satisfeito nas construções VS que o PB ainda apresenta, nem
nas construções WH é que e, a rigor, nem nos casos mais simples de SV,
retomados em (18) a seguir:

(18)

a) Onde foram os meninos?

b) O que foi que a Maria comeu?

c) Quem a Maria encontrou?

99
Aquisição da Linguagem

Para todos esses casos, Mioto (1996) hipotetiza que é o mecanis-


mo da concordância dinâmica, o mesmo que atua em francês, que é o
responsável pela satisfação do Critério WH. Este mecanismo supõe que
em certas línguas é possível que a presença mesma do sintagma WH
no Spec CP seja capaz de dotar o núcleo deste CP com a especificação
[+wh]. Assim, nas estruturas VS, representadas em (12b), ou nas estru-
turas WH é que, representadas em (15), a presença do operador onde e
o que, respectivamente, em Spec CP dota o núcleo C com o traço neces-
sário para a satisfação do critério. O mesmo ocorre nas estruturas SV,
representadas em (19) a seguir, em que o mecanismo de concordância
dinâmica atua determinando a satisfação do Critério WH:

(19)
CP

Spec C’

Quem [+wh] C IP

[+wh]
t WH

concordância dinâmica dota


o núcleo com o traço [+wh]

Parece claro que o mecanismo de concordância dinâmica não tem


poder explicativo grande, apenas poder descritivo, já que é um mecanis-
mo excessivamente permissivo. No entanto, para os nossos propósitos
aqui, é um modo de exprimir as generalizações robustas que temos so-
bre o PB que a criança ouve na fala à sua volta.

11.3 A construção com WH in situ


Lembremos que, para Rizzi (1996), uma expressão WH só se defi-
nirá como operador se estiver numa posição A-barra do tipo Spec CP.
Em sua posição de base, o sintagma WH não se qualifica como opera-
dor e, portanto, não obriga em estrutura-S o respeito ao Critério WH.

100
Características do português brasileiro (PB) adulto Capítulo 11
Assim, as estruturas com WH in situ não devem obedecer ao Critério
WH em SS, mas apenas em LF, onde supostamente todas as línguas são
idênticas. Portanto, a hipótese é que as interrogativas com WH in situ
poderão adiar até LF a satisfação do Critério WH, quando o sintagma
WH se moverá para Spec CP e se configurará assim como um operador
WH. Também nesse nível algo acontecerá para dotar o núcleo C com o
traço [+wh], garantindo o respeito ao Critério WH.

Essa análise, no entanto, deixa sem resposta uma questão óbvia (so-
bretudo para quem quer lidar com dados de aquisição): que propriedade
permitiria a certas línguas adiarem o movimento do sintagma WH até
LF enquanto outras já devem realizá-lo necessariamente em estrutura-S?
Alguns estudos vão tentar exatamente explicitar que propriedade seria
essa. Segundo a pesquisa diacrônica de Lopes Rossi (1993), o PB, a partir
do século XIX começa a permitir duas estruturas sintáticas inusitadas:
WH SV e WH in situ. Para ela, a razão do aparecimento destas cons-
truções no PB é que essa língua sofreu uma mudança na marcação do
parâmetro que governa tanto o movimento de núcleo de I-a-C quanto
o movimento do sintagma interrogativo para Spec CP: o PB passou, de
uma língua marcada com a opção [+movimento WH] até o século XIX,
a ser uma língua que escolhe a opção [-movimento WH] no século XX.

Para essa autora, portanto, o PB perdeu a possibilidade de movi-


mento conjunto do verbo para C e do sintagma interrogativo para Spec
CP. Assim, nem o verbo vai para C nem o sintagma WH vai para Spec
CP. Sintagmas WH no início da sentença no PB, então, estão adjuntos a
IP, exibindo uma estrutura como (20):

(20)
IP

Sintagma WH IP

DPsuj I’

[+wh] I VP

verbo finito ...

101
Aquisição da Linguagem

Para esta autora, a perda da morfologia flexional que ocorreu no PB,


em particular a perda dos traços distintivos de pessoa na flexão verbal,
determinou essa mudança paramétrica – o paradigma do português bra-
sileiro não comporta mais seis desinências distintas para as seis combina-
ções dos traços de número e pessoa. Quando muito, o paradigma do PB
exibe 4 morfemas distintos, caminhando firmemente em direção a exibir
apenas 3. Observe em (21) a seguir o paradigma do presente do indica-
tivo de um verbo regular de primeira conjugação em três variedades do
português: em (a) está o paradigma da GT, largamente usado na litera-
tura brasileira até o século XIX; em (b) está uma variante culta, mais for-
malizada do PB (por exemplo, usada nos telejornais); e em (c) está uma
variedade informal, usada nas interações sociais banais, por exemplo:

(21)

Paradigma verbal presente do indicativo do verbo cantar


a b c
eu canto eu canto eu canto
tu cantas você canta tu/você canta
ele canta ele canta ele canta
nós cantamos nós cantamos a gente canta
vós cantais vocês cantam vocês cantam
eles cantam eles cantam eles cantam

O que (21) nos mostra é que o PB de fato reduziu drasticamente


seu paradigma de flexões verbais, o que para Lopes Rossi (1993) é razão
suficiente para negar ao verbo o movimento em direção a I, tornando
impossível seu movimento a C.

Portanto, sem movimento de I-a-C, em geral, o traço [+wh] gerado


em I não pode alcançar C e assim aí permanece; como o sintagma WH
não vai para Spec CP, também não se configura como um operador e
assim pode permanecer na sua posição in situ ou outra posição interme-
diária, segundo Lopes Rossi (1993).

Como bem nota Sikansi (1999), se é verdade que houve essa mu-
dança paramétrica, isto é, nem o verbo vai a C nem o sintagma WH vai

102
Características do português brasileiro (PB) adulto Capítulo 11
a Spec CP, o que se espera é que as crianças adquirindo o PB, tendo im-
plantado essa nova opção, revelem abundantemente tanto construções
com a ordem WH SV (que revelam que o verbo não saiu de VP) quanto
com WH in situ (que mostram que o sintagma WH não precisa ir a Spec
CP). Veremos mais pra frente se essas predições se confirmam.

11.4 Resumo do capítulo


Como já notaram vários pesquisadores da área, a tentativa de ex-
plicitar o trabalho da criança na aquisição também conduz a um refina-
mento das propostas teóricas para as construções do adulto e ainda pode
selecionar, entre análises concorrentes, aquela que parece mais plausível
para tratar os fatos encontrados na aquisição. Que tipo de fenômeno
as análises que apresentamos das interrogativas WH do PB adulto nos
fazem esperar nas fases iniciais de aquisição?

a) quanto a WH VS: supostamente, apenas nos contextos de ver-


bos inacusativos teremos exemplos em número significativo;
em geral, esperamos encontrar WH SV – e como essa constru-
ção lança mão da concordância dinâmica, esse mecanismo já
deve estar em pleno funcionamento desde cedo.

b) quanto a WH é que e WH que: se a concordância dinâmica


tem que estar implantada, ela deve ser o meio mais direto de
realizar as interrogativas. Portanto, é bastante provável que a
criança só utilize WH é que em situações de focalização/de ên-
fase e no geral construa as interrogativas com a banal forma
WH SV. No entanto, se o input apresenta abundantemente WH
que sem qualquer tipo de focalização, isto é, se há em PB esta
alternativa à concordância dinâmica para respeitar o Critério
WH que é muito mais clara, é de se esperar que essa estrutura,
a partir de certo ponto, comece a ocorrer na fala infantil como
ocorre na fala adulta.

c) quanto ao WH in situ: poderia ser a primeira estrutura inter-


rogativa a aparecer, já que não fazer nada é a coisa mais fácil
a fazer, aparentemente. Todavia, a estrutura coloca em jogo
movimento em LF (e apenas lá), o que talvez seja uma difi-

103
Aquisição da Linguagem

culdade para a criança, que não tem evidência morfológica,


apenas interpretativa, para as construções. No entanto, se há
mesmo apenas um parâmetro, como quer Lopes Rossi (1993),
que responde tanto pelo movimento do verbo flexionado para
C quanto pelo movimento do sintagma interrogativo para Spec
CP, e se o valor desse parâmetro no PB é [-movimento WH],
espera-se um número expressivo de sentenças com WH in situ
na fala infantil. Contudo, também é possível que tenhamos
dois parâmetros distintos em jogo, como aventamos no final
da seção 3.1, retomados aqui em (22):

(22)

P1: Movimento do operador WH: visível em SS ou movimento co-


berto em LF

P2: Aplicação ou não aplicação de movimento de I-a-C

Se for este o caso, que valores a criança aprendendo português bra-


sileiro deveria escolher para cada um deles?

104
O que se observa na aquisição do português brasileiro Capítulo 12
12 O que se observa na aquisição
do português brasileiro
Neste capítulo, vamos examinar dados de basicamente duas pesquisas a
respeito de sentenças interrogativas em PB de modo a poder estabelecer quais
são os fatos da aquisição da linguagem nessa língua. Vamos nos debruçar em
particular sobre a possibilidade de inversão VS, tema da seção 12.1, em segui-
da abordando, na seção 12.2, a distribuição nos dados infantis das estruturas
WH é que e WH que, para finalmente examinarmos, na seção 12.3, as cons-
truções com WH in situ.

O presente capítulo apresentará dados das pesquisas feitas sobre


aquisição de estruturas interrogativas por Sikansi (1999) e Grolla (2000),
ambos os estudos com dados longitudinais (isto é, que acompanham a
criança por um certo período de tempo fazendo gravações semanais,
quinzenais ou mensais, normalmente em situação natural de contato).
A pesquisa de Sikansi (1999) abrange o período de dois anos e quatro
meses a três anos e dez meses de uma criança natural de Campinas, SP; Costuma-se usar ponto e
vírgula para separar o ano
a pesquisa de Grolla (2000) se estende pelo período que vai de dois a do mês e ponto para se-
quatro anos também de uma criança natural de Campinas, SP. Ambos parar o mês do dia. Assim,
2;04.07 quer dizer que
os estudos mostram que, nas fases iniciais até basicamente dois anos e estamos falando de uma
meio, as interrogativas infantis se constroem com a expressão interroga- criança com dois anos,
quatro meses e sete dias.
tiva cadê, inclusive em contextos em que claramente esta não é a expres-
são WH adequada, como no exemplo (23) abaixo, extraído de Sikansi
(1999, p. 96), quando G. está com2;06.09:

(23)

GAB: (c)adê a Deba [:=Deborah] (es)tá?

MÃE: que que a Deborah (es)tá fazendo?

G. começa a produzir interrogativas com diferentes sintagmas WH


aos 2;08.16; a criança que Grolla (2000) estuda, N., um pouco antes, na
faixa entre 2;4 e 2;7, já possui expressões WH com onde, por que, o que
e quem. Por isso, é a partir desse período que podemos investigar os
fenômenos que elencamos anteriormente.

105
Aquisição da Linguagem

12.1 Com respeito à inversão VS


Grolla (2000) não discute a ordem VS nas produções de N. Apa-
rentemente, o número de ocorrências não é significativo. No entanto, na
fala de G. a ordem VS aparece com frequência, razão pela qual Sikansi
(1999) dedica uma longa discussão ao fenômeno. Comecemos por apre-
sentar a Tabela 12.1.1, adaptada de Sikansi (1999, p. 97):

Informante Ordem WH SV Ordem WH VS Total


Adulto 292 – 70% 124 – 30% 416 – 77%
Criança 37 – 71% 15 – 29% 52 – 9,7%
G. 41 – 57% 31 – 43% 72 – 13,3%
Total 370 – 68,5% 170 – 31,5% 540 – 100%

Tabela 12.1.1 – Distribuição geral das estruturas interrogativas conforme a posição do verbo e

do sujeito (“adulto” é em geral o pai ou a mãe e “criança” é a irmã mais velha de G.)

Esta tabela mostra que a ordem SV é a preferida em 70% dos casos


na fala do adulto e da outra criança, confirmando dados de pesquisas
anteriores. Por outro lado, os dados de G., ainda que privilegiem essa
ordem, não apresentam uma diferença tão significativa entre as ordens
WH SV e WH VS: 57% e 43%, respectivamente. O fato de haver uma
diferença quantitativa importante entre a fala do adulto e a fala de G.
leva Sikansi (1999) a examinar mais de perto apenas a produção de G.,
observando qual é a distribuição de WH VS e WH SV segundo o tipo
de verbo – na Tabela 12.1.2 – e o tipo de DP sujeito – na Tabela 12.1.3 –
ambas adaptadas de Sikansi (1999, p. 97-98):

Tipo de verbo Ordem WH SV Ordem WH VS Total


Cópula 5 – 20% 20 – 80% 25 – 35%
Intransitivo 3 – 75% 1 – 25% 4 – 5,5%
Transitivo 33 – 76,8% 10 – 23,2 % 43 – 59,5%
Total 41 – 57% 31 – 43% 72 – 100%

Tabela 12.1.2 – Porcentagem de WH SV e WH VS na fala de G. segundo o tipo de verbo

106
O que se observa na aquisição do português brasileiro Capítulo 12
Tipo de DP sujeito Ordem WH SV Ordem WH VS Total
DP lexical 4 – 20% 16 – 80% 20 – 28%
Demonstrativo 3 – 18% 14 – 82% 17 – 23,5%
Pronome pessoal 34 – 97% 1 – 3% 35 – 48,5%
Total 41 – 57% 31 – 43% 72 – 100%

Tabela 12.1.3 – Porcentagem de WH SV e WH VS na fala de G. segundo o tipo de DP sujeito

As tabelas anteriores mostram que, embora as porcentagens da or-


dem WH VS de G. sejam mais altas, ela respeita as mesmas restrições
da gramática adulta: a ordem WH VS aparece com verbos copulares
ou em sentenças que ocupam a posição de sujeito com DPs lexicais (ou
demonstrativos) como (24) a seguir, que são perfeitas também na língua
adulta, já que esses são os contextos em que podemos ter o sujeito em
alguma posição mais baixa na estrutura, dando a impressão de inversão
quando o verbo flexionado aterriza em I, como em geral se supõe que é
o caso no PB. Observe que também para G. a ordem WH VS é desfavo-
recida quando o sujeito é um pronome pessoal ou o verbo é transitivo.

(24)

a) Quem é esse?

b) Que é isso aí?

O que a produção de G. tem de especial, então, é o número de


ocorrências de estruturas copulares, por exemplo: 35% de sentenças
com verbos copulares é seguramente muito acima do que se encontra
em qualquer tipo de corpus adulto, que em geral exibe maior variedade
lexical do que a fala da criança. Aliás, sentenças como (24) são abun-
dantes neste corpus de G. também por uma característica do próprio
método de coleta de dados: a gravação se faz numa situação natural,
mas o adulto que está gravando sabe que precisa de dados e, ansioso
por isso, “cutuca” várias vezes a criança para que ela fale, perguntando
“o que é isso?” ou “(de) que cor é aquilo?”, dando a ela essas expressões
formulares. Assim, não é surpreendente que essas expressões também
apareçam na fala da criança.

É notável, de qualquer modo, o fato de crianças pequenas em ge-

107
Aquisição da Linguagem

ral usarem tantas estruturas do tipo “X é Y”. Ruth Lopes (comunicação


pessoal), numa pesquisa sobre outro tópico com duas crianças de Por-
to Alegre, encontrou 813 dados desse tipo num universo total de 1567
enunciados, ou seja, 52%. Essas estruturas merecem, portanto, um es-
tudo à parte.

Resta ainda como surpreendente o fato de G. apresentar tantas


ocorrências de VS e N., a criança analisada por Grolla (2000), aparen-
temente não (estamos supondo que, se o número de ocorrências fosse
significativo, o estudo de Grolla teria abordado o problema). Essa é uma
questão que alguma pesquisa futura sobre o assunto deve abordar.

12.2 Com respeito às construções com (é) que

A Tabela 12.2.1 a seguir, adaptada de Sikansi (1999, p. 99), apresen-


ta os resultados com respeito à distribuição de estruturas WH (é) que:

Informante WH (é) que SV WH SV Total


Adulto 470 – 76,5% 144 – 23,5% 614 – 75,6%
Criança 46 – 62,1% 28 – 37,9% 74 – 9,1%
G. 3 – 2,4% 121 – 97,6% 124 – 15,3%
Total 519 – 63,9% 293 – 36,1% 812 – 100%

Tabela 12.2.1 – Distribuição geral das estruturas interrogativas WH conforme o sujeito falante e

a presença ou ausência de (é) que

Sikansi (1999) não separa WH que de WH é que por conta da baixa


frequência de qualquer dessas duas construções na fala de G. – apenas
2,4% dos seus enunciados interrogativos exibem essa ordem – contra
robustos 62,1% na fala da outra criança, mais velha que G., e 76,5% na
fala adulta. Os dados correspondentes aos 2,4% são apresentados por
Sikansi (1999, p. 99) e são reportados em (25) a seguir:

(25)

a) essas aqui quem que é? (2;8.16)

b) (de) quem que (é) aquela f(l)or? (2;10.11)

c) que que (vo)cê (es)tá fazendo aqui, o(lha)? (3;0.10)

108
O que se observa na aquisição do português brasileiro Capítulo 12
Sikansi (1999) observa que nesses dados só aparece a construção
WH que, mas o fato de a criança omitir a cópula em (25b) nos impede
de saber com certeza se WH que é diferente de WH é que para a criança.
O número diminuto de dados também impede qualquer conclusão mais
sólida a este respeito.

Definitivamente, a preferência clara de G. é por estruturas WH SV,


que compõem 97,6% de seus enunciados, uma ordem exibida por ape-
nas 24% dos enunciados adultos, seu input. Este é um resultado que
seria de difícil explicação para a hipótese de imitação discutida no ca-
pítulo anterior; para a hipótese inatista, contudo, a relação entre o input
e a produção infantil é menos direta e assim não se espera de fato total
espelhamento da fala do adulto pela criança, ainda que seja preciso sa-
ber se esses resultados se repetem no exame de outras crianças.

Os resultados de Grolla (2000), por exemplo, são um pouco dis-


tintos: embora a criança mostre preferência por WH SV, exibindo essa
estrutura em 67,2% das suas elocuções com WH deslocado para a peri-
feria esquerda da sentença, ainda assim são 153 elocuções com a estru-
tura WH que e 15 com a estrutura WH é que, num total de 512 interro-
gativas, com porcentagens, respectivamente, de 29,9% e 2,9%; portanto,
em quase 33% das suas elocuções, N. escolhe WH (é) que SV.

Com relação aos dados de N., observa-se ainda outro contraste sur-
preendente: o número de construções com WH que é dez vezes maior
que o de estruturas WH é que. Grolla (2000) nota que essa distância nas
porcentagens de uso de cada uma das construções não se encontra na
fala adulta: segundo o trabalho de Lopes Rossi (1996), numa pesquisa
com dois corpora de língua falada, não se observa diferença significativa
no uso de cada uma dessas construções:

(26)

a) corpus do NURC/SP b) em corpus televisivo


29% de ordem WH SV 0% de ordem WH SV
21% de ordem WH que 19% de WH que
37,5% de ordem WH é que 18,6% de ordem WH é que

109
Aquisição da Linguagem

Com respeito ao desenvolvimento temporal das estruturas WH


que e WH é que na criança, Grolla (2000) observa que as interrogati-
vas WH que aparecem na faixa dos 2;8-3;0 – o primeiro exemplo, com
como que, aparece numa interrogativa indireta aos 2;9 e em interroga-
tivas diretas aos 2;11, reportada em (27a). As interrogativas WH é que
só aparecem aos 3;3, como exemplifica (27b), quando se vê igualmente
a coocorrência das duas estruturas, como mostra (27c):

(27)

a) Que que é então? (2;11)


b) Onde é que tá a bala daqui? (3;3)
c) Como que é que eu faço assim? (3;2)

Grolla (2000) nota também que as construções clivadas aparecem


antes na fala da criança, mas ali não se nota a mesma diferença entre
as clivadas com cópula e as clivadas sem cópula, já que neste caso as
porcentagens de ocorrência são bem próximas – 55,7% de clivadas sem
cópula como (28a) e 44,3% de clivadas com cópula como (28b) – e a
idade de aparecimento das duas estruturas é a mesma:

(28)

a) O papai que jogou fora... no lixo... aqui. (2;6)


b) É este que é piga. (2;6)

Grolla (2000) assume, seguindo Lopes Rossi (1996), que ambas as


estruturas interrogativas – WH que e WH é que – são derivadas de cliva-
das sem e com cópula, respectivamente, mas talvez essa não seja a melhor
análise a dar, dadas as diferenças entre as interrogativas e semelhanças
entre as clivadas observadas nos dados. De qualquer modo, o fato de as
clivadas aparecerem antes das interrogativas com WH é que é consistente
com a análise que deriva esse tipo de interrogativas de sentenças clivadas.
Voltaremos a essa discussão no último capítulo desta unidade.

12.3 Com respeito a WH in situ

Vamos agora considerar as estruturas interrogativas sem movi-


mento do sintagma WH para o início da sentença, uma estrutura que

110
O que se observa na aquisição do português brasileiro Capítulo 12
poderia ser considerada a mais simples – e, portanto, a primeira a ser
adquirida pela criança. Se temos essa expectativa, os números são muito
surpreendentes: a criança analisada por Sikansi (1999), G., não produz
nenhuma interrogativa com WH in situ até a última sessão de gravação,
aos 3;10, e a criança analisada por Grolla (2000), N., só produz sua pri-
meira estrutura desse tipo aos 3;09, e até os quatro anos, momento da
sua última gravação, de um total de 520 interrogativas, não exibe mais
que 8 sentenças com WH in situ, um percentual de 1,7%, portanto.

É preciso dizer que os números dos adultos também não são tão ro-
bustos. Por exemplo, no corpus examinado por Sikansi (1999), o adulto
interagindo com G. produz apenas 24 interrogativas desse tipo, num to-
tal de 639, o que fornece um percentual de 3,75%; a criança mais velha,
irmã de G., produz, em 76 interrogativas, apenas 2 sentenças desse tipo,
totalizando 2,5% de enunciados com WH in situ.

Mais generosos são os números reportados por Grolla (2000), ex-


traídos de Lopes Rossi (1996): no corpus do NURC a incidência de WH
in situ é na casa dos 12,5% e no corpus televisivo temos 32,4% de senten-
ças com essa ordem, um número assombroso dada a penúria geral ob-
servada nos outros corpora. Mas é de qualquer modo digna de nota a di-
ferença entre 3,75% de WH in situ na situação de interação natural com
a criança e 32,4% dessa mesma construção no corpus televisivo – quase
10 vezes mais interrogativas desse tipo! Pode ser que haja alguma coisa
no tipo de interação que se estabelece na TV que favoreça essa estrutura.
Um estudo que investigue as condições de uso específicas das estruturas
com WH in situ no sudeste do Brasil ainda está para ser feito.

Observa Grolla (2000) que é de qualquer modo notável a demora na


aquisição dessa estrutura e deve haver uma razão para isso. Os primei-
ros exemplos acontecem aos 3;09, como no diálogo extraído de Grolla
(2000, p. 82), transcrito em (29) a seguir, caso em que não seria possível
o uso de uma construção com WH movido para a posição inicial:

(29)

Cr.: Que hora que é?

Ad.: 14 minutos para as 17 horas.

111
Aquisição da Linguagem

Cr.: Pá í aonde?

Ad.: Não. Falta 14 minutos (...)

Grolla (2000), apesar de citar o trabalho de Lopes Rossi (1996), não


adota a hipótese desta autora de que o PB perdeu o movimento do verbo
para I e do constituinte WH para Spec CP. Ao contrário, a hipótese de
Grolla (2000) é de que a aquisição desse tipo de construção é tardia por-
que exige que a criança mude o valor do parâmetro que estava marcado
como [+movimento WH] para [±movimento], isto é, uma língua em
que o movimento é opcional, uma hipótese que voltaremos a discutir
mais pra frente.

Por agora, é suficiente notar, como faz Sikansi (1999), que não pode
estar correta a hipótese de Lopes Rossi (1993, 1996), segundo a qual o
PB perdeu o movimento do verbo flexionado para C e por isso perdeu
o movimento do constituinte interrogativo para Spec CP, pois, se assim
fosse, o que se esperaria seria, no mínimo, a coexistência de movimento
do constituinte interrogativo e WH in situ na fala da criança desde sem-
pre, apresentando desde o início da aquisição porcentagens similares
para esses dois tipos de construção, o que não se verifica.

112
Conclusões Capítulo 13
13 Conclusões
A primeira observação a ser feita é o fato de que existem diferentes
modos de se fazer uma interrogativa WH direta em PB, como mostrou o
paradigma reportado por Sikansi (1999), apresentado em (6) e repetido
em (30) a seguir:

(30)

a) Onde os meninos foram?

b) Onde foram os meninos?

c) Onde que os meninos foram?

d) Onde é que os meninos foram?

e) Os meninos foram onde?

Sikansi (1999) nota que a criança, já aos 2;04, isto é, quando ainda
não produz essa profusão de ordens e nem mesmo a profusão de expres-
sões interrogativas do PB adulto (essa é a fase em que as interrogativas
infantis são montadas essencialmente com cadê), é perfeitamente capaz
de entender estruturas interrogativas complexas, como no seguinte diá-
logo, extraído de Sikansi (1999, p. 96):

(31)

Mãe: Quem que rabiscou esse livro aqui?

G.: Eu.

Mãe: Pode rabiscar livro?

G.: Não.

Mãe: Mamãe fica o quê?

G.: B(r)iga # brava.

Assim, parece claro que a criança chega rapidamente a entender quais são
os tipos de interrogativas e que restrições pesam sobre cada uma delas. Vamos
retomar as nossas expectativas com respeito à fala da criança dado o que obser-
vamos na fala adulta e o tipo de análise que encaminhamos para ela:

113
Aquisição da Linguagem

a) quanto a WH VS: os dados de G. confirmam perfeitamente a


hipótese feita para o PB adulto de que apenas nos contextos
de verbos inacusativos e sujeitos com a forma de DPs lexicais
teremos exemplos de WH VS na fala da criança, uma conclu-
são que não é surpreendente dado que este é o input adulto. A
forma geral das interrogativas WH diretas no PB infantil nas
suas primeiras fases é WH SV, de modo que, se temos um pa-
râmetro associado ao movimento do núcleo de I-a-C, o valor
atribuído a essa opção paramétrica é escolhido bem cedo e em
PB escolhemos o valor negativo para ele: a flexão não vai a C,
e portanto não fornece a ordem WH VS nas interrogativas em
geral. A construção WH SV, por seu lado, lança mão da con-
cordância dinâmica para a satisfação do Critério WH e assim
esse mecanismo já deve estar em pleno funcionamento desde
cedo, qualquer que seja o parâmetro conectado a ele.

b) quanto a WH é que e WH que: como a concordância dinâmica


está implantada desde cedo, ela é o mecanismo acionado para
respeitar o Critério WH nas interrogativas das primeiras fases
da aquisição. Em seguida, a construção com WH que é imple-
mentada na fala infantil, um resultado que talvez não esteja
completamente sintonizado com o input adulto, se os dados de
Lopes Rossi (1996) reportados por Grolla (2000) estão corre-
tos, já que, nos corpora adultos;

ǿǿou WH que e WH é que estão equiparados em termos per-


centuais;

ǿǿou WH é que ultrapassa WH que.

Possivelmente são esses dados dos adultos que estão por trás da
ideia de Lopes Rossi (1996) de que essas duas construções são funda-
mentalmente a mesma, derivadas ambas de construções clivadas com
ou sem cópula (isto é, com apagamento ou não da cópula).

Na fala infantil, no entanto, temos argumentos para defender uma


análise para o PB adulto como a de Mioto (1996), para quem essas são
construções fundamentalmente distintas: uma delas, WH que, sendo
simplesmente outra forma de respeitar o Critério WH, é bastante sim-

114
Conclusões Capítulo 13
ples em termos estruturais e já na faixa dos 2;9 está presente nos dados
infantis; a outra, WH é que, colocando em jogo mais estrutura frasal,
isto é, sendo muito mais complexa em termos estruturais, aparece mais
tarde na fala da criança, depois dos três anos.

c) quanto ao WH in situ: ao contrário da previsão mais ingênua


de que esta seria a primeira estrutura interrogativa a aparecer,
o que se observa concretamente nos dados infantis é que esta
é a última construção a se implantar no reino interrogativo, o
que nos faz questionar diretamente a hipótese de Lopes Rossi
(1996) quanto à formulação de um único parâmetro responsá-
vel pela subida do verbo conjugado para I (e depois para C) e
da expressão WH para Spec CP. Parece favorecida a hipótese de
Rizzi (1996) como formulada por Guasti (2003), de que temos
dois parâmetros em jogo, como vemos em (32) a seguir:

(32)

P1: Movimento do operador WH: visível em SS ou movimento co-


berto em LF?

P2: Aplicação ou não aplicação de movimento de I-a-C?

Voltemos à questão: que valores a criança aprendendo português


brasileiro deveria escolher para cada um deles? Para P2, a discussão feita
até aqui nos leva a crer que é a não aplicação de movimento de I-a-C,
com o adendo de que a concordância dinâmica é um mecanismo dispo-
nível nessa língua. Após os 2;08, também que passa a ser uma possibili-
dade para responder pela satisfação do Critério WH.

Com respeito a P1 tudo é mais misterioso. Parece possível termos


em PB tanto movimento em estrutura-S quanto apenas em LF, mas este
segundo tipo é adquirido tardiamente. A solução oferecida por Grolla
(2000) é que a criança primeiro fixa o valor [+movimento], isto é, movi-
mento visível em estrutura-S, e depois revê essa fixação, permitindo tan-
to o movimento visível em estrutura-S quanto o movimento coberto em
LF, traduzidos por Grolla (2000) pelo valor [±movimento] para P1. Essa
é uma hipótese que não consideramos possível quando assumimos, na
discussão feita no capítulo anterior, que os parâmetros oferecem opções
binárias e as crianças devem escolher uma delas, aquela adequada para

115
Aquisição da Linguagem

gerar os dados da sua língua. Pode ser que essa definição de parâmetro
não esteja correta, mas como ela tem nos permitido adquirir algum co-
nhecimento sobre como a criança chega tão rapidamente a falar a língua
que a rodeia, também não faz sentido abandonarmos a concepção no
primeiro problema, não?

Pode ser também que ainda não tenhamos compreendido per-


feitamente como formular esses parâmetros para a língua adulta. De
qualquer modo, o estudo de dados da aquisição nos dá indicações pre-
ciosas sobre quais devem ser as dificuldades nas construções. Assim,
apesar da aparência simples, a construção com WH in situ deve envol-
ver, numa língua como o português, dificuldades mais importantes do
que construções do tipo como que é que faço assim?, o que mostra que a
simplicidade aparente das construções não é o que de fato rege a aquisi-
ção da linguagem.

Uma observação final diz respeito a um fato que não abordamos


aqui, mas pelo qual você, pesquisador curioso, pode se interessar: há vá-
rios indícios de que a construção com WH in situ está sujeita à variação
dialetal. Em particular, os dialetos falados no nordeste parecem admitir
essa construção num conjunto muito maior de situações do que os fa-
lantes do sul admitem. Se é assim, é de se esperar que a aquisição das
construções interrogativas nas crianças nordestinas apresente alguns
padrões distintos dos analisados aqui, que são de crianças do sudeste.
Para quem quiser saber mais, basta entrar no site de teses da Biblioteca
da Unicamp (que vai pedir para você fazer um pequeno cadastro, mas
é só) e acessar a dissertação de Adriana Lessa de Oliveira. Você vai se
divertir!

Leia mais!
Você deve ter disponível aí no seu polo alguns materiais que podem
ajudar bastante a compreensão dessa unidade, que é mesmo bastante
difícil. Neste momento, é recomendada a leitura das seguintes obras:

1) Mioto (1994), onde você vai encontrar mais sobre o Critério


WH em PB;

116
Conclusões Capítulo 13
2) Duarte (1992), que apresenta o percurso histórico de VS e de
SV nas interrogativas do PB;

3) Sikansi (1998), que apresenta um estudo sobre as ordens VS e


SV no PB atual;

4) Mioto (2001), onde você encontrará uma longa discussão sobre


o sistema CP do PB, incluindo evidentemente as interrogati-
vas;

5) Lopes Rossi (1993), um texto mais curto, que apresenta toda a


hipótese da autora com respeito à evolução das interrogativas
WH no PB;

6) Sikansi (1999) e Grolla (2000), textos fundamentais para toda


a nossa discussão porque são exatamente eles que trazem a dis-
cussão sobre os dados de aquisição das construções interroga-
tivas.

117
Unidade D
Aquisição e aprendizagem:
algumas observações sobre
alfabetização
Fala e escrita Capítulo 14
14 Fala e escrita
Neste capítulo, vamos discutir, com base em Lyons (1987), as diferenças en-
tre língua falada e língua escrita, mostrando que a língua falada precede a língua
escrita sob os mais variados pontos de vista e é, portanto, pressuposta por ela.

Toda a Unidade D foi pensada em cumprimento às horas de PCC


que esta disciplina deve conter. A discussão sobre a adequação do pró-
prio PCC e também sobre o que deveria ser o PCC nos levaria muito
longe da nossa disciplina, razão pela qual devemos escolher uma inter-
pretação possível do que são essas horas: entendemos que compete às
disciplinas da Educação a intervenção específica em sala de aula, mas
compete à disciplina da Linguística uma reflexão sobre os conteúdos
aprendidos e o trabalho que deve ser feito em sala de aula. É nesse es-
pírito que se desenvolverá a presente unidade, por isso mesmo muito
distinta das unidades anteriores, como você verá...

Você deve se lembrar de que suas disciplinas iniciais de linguísti-


ca, dentre outras coisas, procuraram mostrar que a língua falada é mais
Doravante usaremos a
básica que a língua escrita. Segundo Lyons (1987), os linguistas foram sigla GT para fazer referên-
movidos, desde os primórdios da linguística, pelo desejo de reparar a cia à gramática tradicional.

visão tendenciosa da GT e do ensino tradicional de língua, que sempre


favoreceram a língua escrita, dado o seu interesse pela língua literária.
Esse interesse, aliás, é o fundamento para tomar o padrão literário como
padrão único de correção da língua, como o modelo a ser seguido pela
fala, ignorando o fato de que a língua falada dispõe de normas que são
em última análise a base longínqua das normas da língua escrita.

O que os linguistas observaram no século XIX é que, ainda que a


língua escrita seja muito mais impermeável a modificações, mudanças
notadas nos textos escritos podiam ser explicadas como resultado de
mudanças ocorridas nas línguas faladas correspondentes àquelas lín-
guas escritas. O exemplo mais claro é o tipo de mudança que ocorreu no
latim: como você viu nas disciplinas de Latim, a variedade falada desta
língua era chamada de latim vulgar e é dessa variedade que resultam
as línguas românicas atuais. Assim, este é um caso em que a mudança
linguística ocorrida durante séculos se impôs, a certo ponto ganhando o

121
Aquisição da Linguagem

estatuto de língua nacional e, pelas mãos de gênios literários dos diver-


sos países que se criavam, adquiriu uma modalidade escrita.

É por vermos esse tipo de desenvolvimento histórico que podemos


afirmar que qualquer dos padrões literários existentes no mundo deriva
em última instância da língua falada em alguma região – por exemplo,
o português tal como Camões o consagrou é calcado no dialeto lisbo-
eta. E numa larga medida é acidental que seja este ou aquele o dialeto
que ascende a norma literária de uma determinada comunidade. Essa é
uma observação muito interessante: o que faz com que certa variante de
língua chegue a ser padrão literário tem pouco ou nada de linguístico e
tem muito ou tudo de político, razão pela qual qualquer observação so
bre a “qualidade” dos outros dialetos é também política, não linguística.
Você seguramente discutiu em outras disciplinas que o que diferencia
eu vi ela de eu a vi para os gramáticos é o fato de apenas a última ser
usada pelos grandes escritores dos séculos precedentes; porém, sob o
Você estudará esta ques-
tão de forma mais apro- ponto de vista gramatical propriamente dito, as duas sentenças respei-
fundada na disciplina tam tanto o Critério Temático quanto o Filtro do Caso, por exemplo, e
Sociolinguística
assim são ambas perfeitas.

Os linguistas têm muita dificuldade para convencer os leigos – e


isso inclui os primeiro-anistas do curso de Letras – de que os dialetos
não padrão são regidos por regras do mesmo modo que os dialetos pa-
drão, embora não seja o mesmo conjunto de regras (que, aliás, a GT não
dispõe de meios para exprimir em toda a sua extensão). Para os leigos,
o dialeto que chega a se consolidar na literatura possui valor inerente,
porque é tido como a língua de cultura. E como em geral o acesso à
língua escrita tem ficado restrito, no correr dos séculos, às classes domi-
nantes, pode acontecer facilmente de esse dialeto não ser conhecido e/
ou dominado pelos falantes de outros dialetos.

No entanto, mostrar que a língua falada é mais básica do que a escri-


ta não pode ser apenas fruto do desejo de inverter a balança que a GT fez
pender excessivamente para um dos lados. Ao contrário, devemos apre-
sentar argumentos sólidos nessa direção. Que argumentos seriam esses?

O primeiro argumento, defende Lyons (1987), seria o argumento da


prioridade histórica: não se conhecem sociedades que não disponham
de uma língua falada (mesmo que seja uma língua de sinais, não uma

122
Fala e escrita Capítulo 14
língua oral); entretanto, inúmeras sociedades foram e ainda são ágrafas.
E, mesmo dentro das sociedades que dispõem de tradição escrita, muitos
de seus membros são analfabetos, mas evidentemente falam seu dialeto
sem problemas. A prioridade histórica, diz Lyons (1987), é indiscutível.

Contudo, ela não é a mais importante; outro tipo de prioridade


mais interessante é a que podemos chamar de prioridade estrutural.
Para entendermos bem o que isso significa, devemos frisar antes de mais
nada que, em princípio, uma sentença falada pode corresponder a uma
sentença escrita e vice-versa, isto é, numa larga medida língua escrita
e língua falada são isomórficas. Assim, por exemplo, numa língua que
dispõe de um sistema alfabético de escrita como a nossa, determinadas
letras corresponderão a certos sons, certas combinações de letras cor-
responderão a certas combinações de sons e assim por diante.

É certo que nem todas as combinações de letras serão possíveis,


como de resto nem todas as combinações de sons são possíveis, seja por
impossibilidades do aparelho articulatório humano ou por restrições
impostas pela língua oral específica – por exemplo, em português não é
possível começar uma palavra com uma consoante como /s/ se ela não
está acompanhada de uma vogal, mas em inglês isso é perfeitamente
possível, como se vê em space ou smoke. No entanto, há uma diferença
cabal aqui: enquanto certas combinações de sons são impossíveis por-
que são tecnicamente impronunciáveis pelo aparelho fonador humano,
como a sequência sktmpfg, por exemplo, não existe nenhuma restrição
em termos de formas das letras que impeça a combinação delas (tanto
que conseguimos escrever esse exemplo). Dito de outro modo, as com-
binações possíveis e impossíveis na escrita não são previsíveis em ter-
mos de suas formas, mas apenas em termos dos sons que estão sendo
representados. Dá pra ver por que a língua falada claramente antecede
a escrita aqui? Esse argumento não se aplica diretamente, é verdade,
a línguas que dispõem de sistemas de escrita que não são alfabéticos,
como o chinês; contudo, a mesma ideia vale para esses sistemas quando
pensamos em sintaxe, por exemplo.

Outro tipo de prioridade da fala sobre a escrita é de cunho funcio-


nal: usa-se a língua falada em um conjunto de situações muito maior
do que a escrita. A rigor, só usamos a língua escrita quando a fala não

123
Aquisição da Linguagem

é possível, não é eficiente ou não é confiável. Observe que a tecnologia


moderna ampliou ainda mais os contextos de uso da fala com o advento
do telefone e do gravador, por exemplo, ainda que o advento do com-
putador e a nossa vida on line tenham ampliado também os contextos
de uso da escrita. Mas ainda é verdade que o fato de a escrita ser mais
perene é também um fator responsável pelo prestígio que a escrita vem
desfrutando nas nossas sociedades.

O tipo de prioridade tido como mais controverso por Lyons (1987)


é a prioridade biológica. A discussão feita nos capítulos anteriores en-
caminha claramente a conclusão de que somos geneticamente dotados
para adquirir uma língua humana, inclusive porque desde muito pe-
quenos somos capazes de reconhecer e distinguir sons (ou gestos) da
fala e também de produzir esses sons (ou esses gestos, no caso da lín-
gua de sinais). Acrescente-se a isso a especialização de um dos lados do
cérebro, o hemisfério esquerdo em geral, para o tratamento dos sinais
linguísticos, processando os sons da fala com perfeição, embora não seja
tão bom para processar outros tipos de sons.

Parece claro também que as crianças chegam a compreender e a


falar uma língua natural sem nenhuma instrução específica ou trei-
no direcionado, mas as habilidades de leitura e escrita exigem essa
qualificação, além de conhecimento prévio da língua falada – é mui-
to mais raro, ainda que perfeitamente possível, aprender a escrita de
uma língua sem domínio prévio da fala que lhe corresponde, como
é o caso do latim, por exemplo. Observe, no entanto, que é possível
para um adulto aprender a ler e a escrever perfeitamente uma lín-
gua mesmo que ele não tenha aprendido na infância nenhuma lín-
gua escrita, mas não é possível aprender a falar uma língua depois
de passada certa idade se não tivemos acesso a uma língua falada
na primeira infância.

Essa nossa discussão nos mostra que há semelhanças e diferenças


notáveis entre a fala e a escrita e que não convém nos esquecermos de-
las. Dada a capacidade que os sistemas linguísticos têm de se transferir

124
Fala e escrita Capítulo 14
de meio, sabemos que a fala e a escrita são parcialmente isomórficas,
não completamente isomórficas – como observa Lyons (1987), nenhum
sistema de escrita conhecido é capaz de fornecer uma representação
perfeita de todas as distinções significativas que fazemos na fala (por
exemplo, os sistemas de pontuação disponíveis nas línguas escritas são
em geral uma pálida sombra do que fazemos com a entoação em qual-
quer língua). É claro que, nas sociedades que dispõem de uma escrita,
há que se considerar os aspectos relacionados à funcionalidade desses
sistemas: há coisas que só fazemos por escrito – como a escritura da
casa – mas há outras tantas que só fazemos oralmente – fofoca com a
vizinha, por exemplo.

Há ainda uma série de distinções terminológicas a serem feitas


nesse campo. Quando está em pauta a diferença de meio pela qual a
comunicação se realiza, usamos os termos “falado” versus “escrito”, mas
quando estão em pauta diferenças de estilo, os termos técnicos são “co-
loquial (ou informal)” versus “formal (ou literário)”. Observe que não
há, em princípio, nenhuma ligação direta entre “falado” e “coloquial”,
por um lado, e entre “escrito” e “formal” por outro, ainda que exista uma
tendência a ligar essas coisas. Observe também que essas diferenças de
meio e estilo podem se aplicar tanto ao dialeto padrão quanto aos diale-
tos não padrão e, portanto, aqui também não há nenhuma relação direta
entre “formal”, “escrito” e “padrão”, embora haja também aqui uma ten-
dência a pensar que apenas o dialeto padrão pode ser escrito.

Finalmente, exatamente por esse sistema de crenças, vale uma pala-


vra sobre certas diferenças funcionais e estruturais entre línguas faladas
e línguas escritas, que são menores em alguns casos, mas bem grandes
em outros, como no caso do PB. Por uma série de razões da história da
implantação do português no Brasil, a variedade tida como adequada
para a língua escrita está muito longe de qualquer dos dialetos falados
do PB hoje. Este é um problema sério que qualquer professor de portu-
guês, começando pelo alfabetizador, terá que enfrentar; assim, os pró-
ximos capítulos serão uma discussão sobre alguns dos aspectos dessa
diferença fundamental e sobre o tipo de dificuldade com que nos de-
frontamos como professores de português no Brasil.

125
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
15 Certas noções básicas que
todo professor de língua
deve ter
Vamos abordar agora, com base em Lemle (1985), a questão da alfabetiza-
ção (ou, mais precisamente, o domínio do sistema alfabético). Este capítulo vai
se organizar em várias seções: primeiramente, vamos examinar certos conceitos
gerais que estão em jogo na alfabetização e que devem ser considerados pelo edu-
cador. Nas seções seguintes, veremos como certas noções de fonologia, morfologia
e história da língua podem ajudar significativamente o alfabetizador na sua
tarefa de ensinar os mistérios do sistema da escrita.

Talvez o primeiro ponto a ser discutido aqui é por que estamos pau-
tando a questão da alfabetização ou do domínio do sistema alfabético
como um problema que os professores de português devem enfrentar,
já que em geral quem trabalha com a alfabetização das crianças são os
pedagogos. Embora seja verdade que poucos professores de português
lidam com alfabetização, é também verdade que mais tarde muitos pro-
blemas que deveriam ter sido resolvidos já na alfabetização (alguns dos
quais ligados a certas crenças sobre a língua) são os professores de por-
tuguês que devem resolver. Por essa razão, os professores de português
devem ter conhecimento técnico específico sobre a questão linguística
que subjaz à alfabetização para poder inclusive discutir com os colegas
pedagogos a melhor maneira de conduzir esse processo.

Segundo Lemle (1985), há certas capacidades prévias que os alfa-


betizandos devem possuir sem as quais a alfabetização não é possível.
A primeira é a capacidade de entender que os risquinhos pretos que
estão no papel representam ou simbolizam os sons da fala e para isso é
preciso compreender o que é um símbolo. A ideia de símbolo não é tão
simples quanto possa parecer, porque dizer que uma coisa é símbolo de
outra (ou representa outra) quer dizer que uma coisa aparece no lugar
de outra sem que entre elas exista qualquer semelhança imediatamen-
te perceptível. Por exemplo, uma bandeira branca no contexto de uma
guerra simboliza ou representa “rendição”; já no contexto de férias na
praia, uma bandeira branca é símbolo de “mar calmo”. É perfeitamente

127
Aquisição da Linguagem

possível que um time de futebol eleja a cor branca para os seus unifor-
mes e assim, nesse contexto, uma bandeira branca simboliza esse time.

É claro que os símbolos linguísticos são de natureza diversa, a co-


meçar porque fazem parte de um sistema simbólico maior, mas como
uma primeira aproximação a analogia acima não é de todo má para fazer
você perceber qual é o ponto, que já discutimos longamente na primeira
unidade deste material: a relação entre o símbolo e a coisa simbolizada é
completamente arbitrária porque a razão última de o símbolo ter aquela
forma específica não está em alguma característica da coisa simboliza-
da. E exatamente por isso é possível que um mesmo elemento sirva na
construção de símbolos diversos, como é o caso do nosso sistema de al-
fabetização. Observe, porém, que não há nada que garanta que a criança
vai fazer a hipótese de que riscos diversos no papel estão associados a
certos sons ou conceitos. Talvez isso também deva ser explicitado logo
de saída...

A segunda capacidade que o alfabetizando já deve ter desenvolvida


é a de discriminar as formas das letras, o que quer dizer uma percepção
fina de certas diferenças. Observe que com um pauzinho e uma bolinha
é possível construir quatro letras distintas: p, q, b e d, ou seja, colocando
o pauzinho de um lado ou de outro da bolinha, para cima ou para bai-
xo dela, obtemos símbolos distintos. Essa não é uma propriedade dos
objetos do nosso cotidiano, nota Lemle (1985): uma escova de dentes
com as cerdas voltadas para cima ou para baixo é sempre uma escova de
dentes, não outro objeto, e assim parece ser necessário chamar a atenção
da criança para isso.

Uma terceira capacidade importante é a discriminação dos sons


da fala, isto é, algum refinamento da percepção auditiva porque, se as
letras representam sons, é preciso que se reconheçam aí as diferenças
linguisticamente pertinentes para essa representação. Você deve lem-
brar, por exemplo, que a diferença entre bata e pata é a vibração das
pregas vocais no primeiro segmento da primeira palavra e a ausência
dessa vibração no primeiro segmento da segunda palavra – dito de for-
ma mais técnica, [b] é uma consoante sonora e [p] é uma consoante
surda. Portanto, como salienta Lemle (1985), a criança deve fazer uma
análise sutil da corrente da fala, cortando-a em pequenos pedaços que

128
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
terão representação na escrita. Como já falamos anteriormente sobre o
tamanho do trabalho da criança em segmentar a fala, não vamos nos
deter neste ponto. Vamos, contudo, frisar outra vez que essa consciência
mais fina das distinções da fala ainda não garante que a criança vai su-
por uma relação entre a forma da escrita e a fala.

Além dessas capacidades imediatamente ligadas à relação entre


sons e letras, existem outras sutilezas por trás da escrita que a criança
deve entender. Uma das propriedades mais interessantes das línguas hu-
manas é o fato de, a certas sequências sonoras, corresponderem certos
significados de maneira bastante consistente, que quando autônomas re-
cebem o nome de palavras. Pois bem: a criança deve ser capaz de isolar,
na corrente da fala, as palavras, dado que essas unidades serão escritas
entre espaços em branco. As palavras da língua foram adquiridas muito
cedo pela criança (apesar da dificuldade que o conceito de palavra en-
cerra, como vimos anteriormente).

Poucos são, na verdade, os problemas de segmentação que se ob-


servam na escrita; em geral, vemos ou a ausência de fronteira onde exis- Algo sobre esse tema
seguramente faz parte da
te uma (como em porisso ou minhavó) ou a colocação de fronteira onde
disciplina de Fonética e
não há uma (como em minha miga). Vamos examinar um pouco esse Fonologia do Português.
É hora de ir recuperar
último problema: o que está por trás da segmentação “minha miga” para
esse material: SEARA,
que esse fenômeno aconteça com frequência? Izabel Christine, Fonética
e fonologia do português.
Camara Jr. (1970) já fez um levantamento minucioso de como po Florianópolis: LLV/CCE/
UFSC, 2008.
dem terminar e de como podem começar as palavras no PB, exatamente
para ver todas as fronteiras possíveis. Vamos aqui examinar algumas
delas. Por exemplo, se a última sílaba tem a estrutura CV (ou apenas
V) e é átona, os finais só podem ser /a/, /i/ ou /u/. Se a palavra seguinte
começar com vogal átona também, o que vai acontecer se essa vogal
for /a/, /i/ ou /u/? Vamos construir os exemplos relevantes – as sílabas
relevantes dos exemplos estão em negrito e entre colchetes está a sua
representação fonética:

(1)

casa amarela [za a] vale amarelo gato amarelo


casa imaculada vale imaculado [li i] gato imaculado
casa humilde vale humilde gato humilde [tu u]

129
Aquisição da Linguagem

Camara Jr. (1970) garante que pronunciamos uma única vogal ligei-
ramente mais longa, mas talvez tenhamos (e a criança também) alguma
dificuldade para reconhecer a parte do “ligeiramente”. O fato concreto é
que pronunciamos uma só vogal, não duas, certo? Bom, então a criança
faz uma representação bem acurada do que ouve quando escreve “casa
marela”, né? Observe ainda que, tanto quanto sabemos, nenhuma crian-
ça faz a hipótese de escrever “cas amarela”! Por que será?

A resposta para essa questão vem da análise de outra instância de


problemas de segmentação: “o zóio” (embora nessa forma apareçam ou-
tros problemas, vamos nos deter apenas na segmentação). Aqui a estru-
tura silábica que está em jogo é outra: no inventário feito por Camara
Jr. (1970) de como podem terminar as palavras do português, aparecem
também as sílabas fechadas do tipo “os” ou “ar”, precedidas ou não por
consoantes (como em “cós” ou “mar”). O que acontecerá se a palavra
seguinte começa com vogal átona, por exemplo?

(2)

a b

os amores [uzamoris] ar alto [arauto]

os ilustres [uzilustris] ar ilustre [arilustri]

os oculistas [uzoculistas] ar orgulhoso [arorgulhosu]

os urubus [uzurubus] ar humilde [arumiudi]

Você vê que hipótese simples a criança está fazendo quando seg-


menta “o zurubu(s)”? Ela está atribuindo a estrutura mais recorrente às
sílabas que compõem a sequência sonora que ela ouve – V ou CV, isto
é, sílabas abertas – ignorando numa larga medida que existem sílabas
fechadas no português, já que esse não é o padrão principal.

Voltemos às bases da alfabetização. Observe que para que a criança


se alfabetize é crucial que ela saiba que a convenção do nosso sistema
de escrita é ir da esquerda para a direita e de cima para baixo e isso deve
ser explicitamente dito a ela, porque nem todos os sistemas de escrita
funcionam desse modo.

130
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
Finalmente, vamos notar com Lemle (1985) que há superposição de
relações simbólicas na palavra escrita: uma primeira camada é a que exis-
te entre a forma da palavra, digamos ilusão, e o seu significado; a segunda
camada é a que existe entre os sons [iluzãw] e as letras com que a palavra
é escrita, no caso i, l, u, s, a e o (e mais o diacrítico til). Será preciso frisar
muitas vezes que todas as relações simbólicas são fruto de convenção.

15.1 Noções de fonologia


Se o sistema alfabético de escrita assume que os segmentos gráfi-
cos representam segmentos de som, a hipótese mais simples a fazer é
que cada segmento gráfico representa um segmento sonoro e cada seg-
mento sonoro é representado por um segmento gráfico, ou seja, existe
correspondência biunívoca entre fonemas e grafemas. Isso é o que Le-
mle (1985) chama de hipótese do casamento monogâmico entre sons e
letras, uma hipótese razoável ainda que não necessária.

Essa relação de um para um (ou relação biunívoca) se estabelece


em alguns poucos casos no PB, como mostra o Quadro 15.1.1, adaptado
de Lemle (1985, p. 17):

Letras Fonemas

p /p/

b /b/

t /t/

d /d/

f /f/

v /v/

a /a/

Quadro 15.1.1– Correspondências biunívocas entre letras e fonemas em PB

131
Aquisição da Linguagem

Observe que os pares t-/t/ e d-/d/ só estão nesse quadro porque a


única vogal que faz parte dele é a vogal /a/, porque, quando /t/ ou /d/
são seguidos pela vogal alta anterior /i/, em vários dialetos do PB o que
se observa é a palatalização do /t/ e do /d/, resultando num som que
deveria se traduzir ortograficamente como “tchi” ou “dji” se a hipótese
monogâmica fosse verdadeira na escrita da língua em geral.

A alfabetização pode começar por esses segmentos “bem compor-


tados”, mas a ilusão da monogamia não pode durar muito tempo, por-
que o que se observa como fenômeno mais geral na escrita da língua é a
poligamia (que é o casamento de um homem com várias mulheres) e a
poliandria (que é o casamento de uma mulher com vários homens), isto
é, no nosso contexto gramatical, o casamento de um mesmo som com
várias letras e o casamento da mesma letra com vários sons. Mas aqui
temos poligamias e poliandrias muito especiais, como veremos a seguir,
porque essas relações sofrem certas restrições de posição – é como o cai-
xeiro viajante, que tem uma única mulher em cada cidade que visita...

Vamos começar com o caso de um mesmo som que se casa com di-
ferentes letras na língua. Vamos tomar o som [i]. Segundo Lemle (1985),
se esse som aparece numa posição acentuada, será transcrito pela letra
i, como em vida ou saci. Se, por outro lado, essa vogal se encontra numa
posição átona em final de palavra, a nossa convenção ortográfica nos
obriga a escrevê-la como e, e assim nós escrevemos vale mesmo falan-
do [vali]. Com o som [u] acontece alguma coisa muito parecida: em
posição tônica, [u] se escreve u mesmo, como em caju ou juba, mas em
posição átona final, [u] se escreve o e, por isso, embora falemos [bolu],
quando escrevemos somos obrigados a escrever bolo.

Você entende agora por que falamos em “restrição de posição”? Isso


mesmo: é porque saber que som a letra estará representando depende
de saber qual é a posição desse som na palavra (e de certas caracterís-
ticas dele, como a tonicidade, por exemplo). O Quadro 15.1.2, a seguir,
adaptado de Lemle (1985, p. 22), mostra algumas dessas possibilidades
de correspondências:

132
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
Fone
Letra Posição Exemplo
(som)

i Posição acentuada pino


[i] Posição átona em final
e de palavra padre, morte

u Posição acentuada lua


[u] Posição átona em
o final de palavra falo, amigo

c Diante de a, o, u casa, come, bicudo


[k]
qu Diante de e, i pequeno, esquina

g Diante de a, o, u gato, gota, agudo


[g]
gu Diante de e, i paguei, guitarra

rr Intervocálico carro
[R]
r Outras posições rua, carta, honra

ão Posição acentuada portão, cantarão


[ãw]
am Posição átona cantaram

Quadro 15.1.2 – Sons representados por diferentes letras segundo sua posição

Vamos agora examinar o caso de uma mesma letra que se casa com
diferentes sons da língua dependendo de onde estão. Vamos tomar a
letra l como exemplo: ela tem a pronúncia de consoante lateral quando
diante de uma vogal, como em lado ou bolo, mas em posição final (de
sílaba ou de palavra), quando segue uma vogal, a letra l corresponde em
muitos dialetos do PB ao som da vogal [u], como nas palavras sal, jornal,
alto, caldo.

Outro exemplo de uma mesma letra casada com diferentes sons


dependendo da posição é a ditongação que se observa em certos dia-
letos do PB das vogais tônicas que estão na última sílaba que possui a
consoante final s. Assim, é comum a pronúncia [treis] para a palavra
escrita três ou [péis] para a palavra que se escreve como pés. Em certos
dialetos, como o dialeto paulista, mesmo sílabas não finais podem exibir
esse tipo de ditongação – os paulistas pronunciam a palavra desde como
[deisdji], por exemplo.

133
Aquisição da Linguagem

A seguir temos o Quadro 15.1.3, adaptado de Lemle (1985, p. 21), que


exibe certas letras representando diferentes sons segundo sua posição:

Letra Fone (som) Posição Exemplos

[s] Início de palavra Sala


[z] Intervocálico casa, duas árvores
s
[š] Diante de consoante surda e pausa resto, duas casas
[ž] Diante de consoante sonora rasgo, duas gotas

[m] Antes de vogal mala, leme


m (nasalidade da V
precedente) Depois de vogal diante de p, b campo, sombra

[n] Antes de vogal nada, banana


n (nasalidade da V
precedente) Depois de vogal ganso, tango, conto

[l] Antes de vogal bola, lua


l
[u] Depois de vogal calma, sal

[ê] ou [é] Não final dedo, pedra


e
[i] Átono em final de palavra padre, morte

[ô] ou [ó] Não final podre, cova


o
[u] Átono em final de palavra amigo

Quadro 15.1.3 – Letras que representam diferentes sons segundo sua posição

Esses quadros não cobrem todos os fenômenos de poligamia e po-


liandria que temos em PB, mesmo porque esses fenômenos variam de-
pendendo do dialeto considerado – há dialetos em que a nasalização em
final de palavra se perdeu e assim as palavras homem e vagem se pro-
nunciam [home] e [vage], respectivamente; portanto, a linha referente à
letra m nesse dialeto deve receber mais uma qualificação: sua realização
será um zero fonético quando a nasalização estiver em final de palavra.

134
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
Evidentemente, esses casos de poligamia e poliandria colocam pro-
blemas sérios para os aprendizes, que podem ter pensado que exis-
tia casamento monogâmico entre os sons e as letras. O alfabetizador
tem que ter muito claro o que está em jogo para responder adequa-
damente às dúvidas dos alfabetizandos. É muito comum, frente a
uma pergunta como “por que é que eu tenho que escrever mato se
eu falo [matu]?”, o professor responder coisas como “é porque nós
falamos errado; nós deveríamos falar [mato]”. Essa resposta é inade-
quada porque, como bem coloca Lemle (1985, p. 20):

[r]esponder dizendo que as pessoas falam errado é um equívo-


co lingüístico, um desrespeito humano e um erro político. Um
equívoco lingüístico porque ignora o fato de que as unidades de
som são afetadas pelo ambiente em que ocorrem, ou seja, sons
vizinhos afetam-se uns aos outros. Um desrespeito humano, pois
humilha e desvaloriza a pessoa que recebe a qualificação de que
fala errado. Um erro político, pois ao se rebaixar a auto-estima
lingüística de uma pessoa ou de uma comunidade contribui-se
para achatá-la, amedrontá-la e torná-la passiva, inerme e incapaz
de manifestar seus anseios. O professor que usa a saída fácil de
explicar as dificuldades de escrita como sendo ocasionadas por
defeitos da fala contribui para a marginalidade de seus alunos.

Vimos até aqui casos de monogamia, de poligamia e de poliandria,


efetivamente os casos mais simples de ensinar porque eles são todos re-
gidos por regras que podem ser formuladas de maneira explícita (o pro-
fessor deve ter preparo adequado para isso, evidentemente). Existem,
contudo, casos de concorrência, em que várias letras estariam em prin-
cípio aptas a representar o mesmo som na mesma posição. Por exemplo,
tanto a letra s quanto a letra z podem representar o som [z] entre duas
vogais – como mostram os exemplos rosa e reza. Do mesmo modo, tan-
to ss quanto c (ou ç) podem representar o som [s] intervocálico: temos
assento ao lado de acento e caçado ao lado de cassado.

A seguir, no Quadro 15.1.4, adaptado de Lemle (1985, p. 24), estão


algumas das relações de concorrência entre letras que representam o
mesmo som:

135
Aquisição da Linguagem

Som (fone) Contexto Letras Exemplo

s mesa
[z] Intervocálico z certeza
x exemplo

ss russo
Intervocálico diante
[s] ç ruço
de a, o, u
sç cresça

ss posseiro, assento
Intervocálico diante
c roceiro, acento
de e, i
sc asceta

Diante de a, o, u prece- s balsa


dido por consoante ç alça

Diante de e, i precedido s persegue


por consoante c percebe

ch chuva, racha
[š] Diante de vogal
x xuxu, taxa

s espera, testa
Diante de consoante
x expectativa, texto

Final de palavra e dian- s funis, mês, Taís


te de consoante ou de
pausa z atriz, vez, Beatriz

Início ou meio de pala- j jeito, sujeira


[ž]
vra e diante de e, i g gente, viagem

u céu, chapéu
[u] Final de sílaba
l mel, papel

zero ora, ovo


zero Início de palavra
h hora, homem

Quadro 15.1.4 – Letras que representam sons idênticos em contextos idênticos

136
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
Como não há aqui nenhum princípio fônico que possa guiar a es-
colha entre uma ou outra das opções, a única maneira de descobrir qual
é a letra correta é consultar o dicionário e decorar o resultado. Mas não
é o caso de se desesperar: veremos a seguir que outros conhecimentos
linguísticos, como os advindos da morfologia, da história da língua e da
variação e mudança linguística, podem ajudar muito no entendimento
dessa aparente falta de sistematicidade da escrita do português.

15.2 Noções de morfologia


Uma vez exploradas todas as possibilidades de se extrair regulari-
dades fonológicas no sistema de escrita, é possível agora avançar para
as regularidades que existem como fruto da morfologia da língua. Por
exemplo, beleza se escreve com z, mas seria perfeitamente possível es-
crever essa palavra com s, não é verdade? Contudo, pode-se mostrar que
esse pedacinho de palavra, que você já conhece pelo nome técnico de
morfema, reaparece em outras palavras com certa característica morfo-
lógica: elas são todas o nome de uma qualidade (ou nomes de adjetivais,
isto é, derivados de adjetivos). Assim, ao lado de belo-beleza, existem
rico-riqueza, grande-grandeza, etc.

Não são poucos os casos em que a estrutura morfológica da pa-


lavra nos ajuda na escrita. No Quadro 15.2.1 a seguir, adaptado de Lem-
le (1985, p. 38), apresentamos um apanhado dos sufixos e prefixos mais
importantes para a discussão ortográfica:

Alternativa ortográ-
Afixo fica (fonologicamente Exemplos
plausível)

-eza *esa grandeza, beleza, moleza

-ês *ez português, francês

-ez *ês estupidez, gravidez

-iz *is atriz, bissetriz, aprendiz

-ção *ssão inflação, formação, votação

-al *au sensacional, maternal

137
Aquisição da Linguagem

-ice *isse burrice, tolice


-agem *ajem bobagem, passagem, lavagem
-izar *isar realizar, concretizar, socializar
-nça *nsa confiança, poupança, presença
-ncia *nsia importância, carência, frequência
des- *dis desfazer, desmentir
dis- *des dispersão, discussão, distorcer
extra- *estra extraordinário, extraditar

Quadro 15.2.1: Identificação de afixos visando à fixação de generalizações ortográficas

Você observou que não apenas a identificação de sufixos mas tam-


bém a de prefixos pode minimizar o problema da livre concorrência
entre letras que representam o mesmo som, já que os prefixos e os sufi-
xos terão uma forma fixa. Evidentemente, o alfabetizador deve dominar
com alguma tranquilidade essas informações com respeito à morfolo-
gia, mas esse conhecimento os alunos de Letras seguramente têm para
passar para os seus colegas pedagogos, não é verdade? Por outro lado,
não convém impingir longas listas de afixos para que os alfabetizan-
dos decorem, porque esse método já não funcionou conosco. É preciso
pensar em outra maneira de fazer isso, tópico em que seguramente os
nossos colegas pedagogos vão dar uma contribuição significativa.

Vamos agora examinar um último aspecto do conhecimento lin-


guístico que o alfabetizador deve possuir para utilizar como mais uma
possibilidade de explicação para os variados mistérios da relação que se
estabelece entre sons e letras.

15.3 Noções de história da língua e


mudança linguística
É comum que o alfabetizando, frente a problemas como os colo-
cados no Quadro 4, pergunte por que não é possível escrever como fa-
lamos, ou como é que aconteceu de tantas letras diferentes virem a re-
presentar fundamentalmente o mesmo som ou como é que acontece de
uma mesma letra representar sons tão diferentes. O exemplo trazido por

138
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
Lemle (1985, p. 32) é o das palavras sino e cinco: elas partilham o mesmo
som inicial mas ele aparece transcrito por letras diferentes.

Nesse ponto, a informação histórica pode ajudar muito: como você


já sabe, a nossa língua-mãe (ou talvez língua-avó...) é o latim e em latim
os sons representados por s e c não eram iguais. Em particular, o som
atribuído à letra c da palavra cinco era [k]; com o passar do tempo, ele foi
mudando e se transformou em [tš], que depois passou a ser pronuncia-
do como [ts], que finalmente passou a ter a pronúncia [s], um som igual
ao representado por s de sino.

Essa explicação não é apenas um consolo para o alfabetizando; ela


é parte da compreensão de que as línguas mudam, e isso se dá nas ge-
rações que se sucedem adquirindo certa língua como língua materna.
Dizem que quem conta um conto aumenta um ponto, não é verdade?
Pois é, a gente pode transplantar esse ditado para o nosso contexto: cada
geração que aprende uma língua introduz alguma mudança nela, mes-
mo que seja bem pequenininha e que isoladamente não possa ser per-
cebida, mas quando observamos o conjunto das mudanças sofridas pela
língua após certo número de gerações, vemos a distância com respeito
à língua original...

Sempre seguindo Lemle (1985), vamos dar um exemplo da história


do latim. Você já sabe que, ao lado do latim clássico, variedade utilizada
na literatura, havia o latim falado pelo povo, o latim vulgar, que é a lín-
gua que deu origem ao português, porque os conquistadores romanos
que chegaram à Península Ibérica em 197 a.C. falavam essa variedade
do latim, não o latim clássico. É claro que havia tentativas de “consertar”
os erros de pronúncia do latim vulgar. Por exemplo, o gramático Probus
escreveu no século III d.C. o Appendix Probi, que consistia numa longa
lista de palavras com a pronúncia “errada” ao lado da pronúncia “certa”
em latim, e esse documento é uma das nossas maiores fontes de infor-
mação sobre o latim vulgar.

Tomemos um de seus exemplos: rivus é a pronúncia correta para o


vulgar rius. Podemos ver em ação aqui um dos mecanismos de mudança
linguística: se, por alguma razão, os falantes de certa comunidade come-
çam a pronunciar o [v] intervocálico com uma articulação mais frouxa,
o que vai acabar acontecendo é que esse [v] será praticamente imper-

139
Aquisição da Linguagem

ceptível, porque quase não haverá a fricção característica da pronúncia


deste som. Até aqui não está em jogo nenhuma mudança na estrutura da
língua, porque os falantes que pronunciam o [v] de forma mais branda
sabem que podem pronunciá-lo também com maior força articulatória.

Onde a mudança se instaura é na aquisição dessa língua por uma


nova geração: as crianças que estão expostas à pronúncia sempre frouxa
do [v] podem simplesmente pensar que ele não está mais ali e assim,
para a nova geração, a palavra é [rius] mesmo, não [rivus] com arti-
culação fraca do [v]. Nesse momento, podemos dizer que houve uma
mudança na língua: haverá perda em todas as palavras em que esse som
[v] aparece entre duas vogais quando a segunda é átona. Portanto, do
mesmo modo que rivus passa a rius e, combinando-se com outras mu-
danças, finalmente a rio, bovem passa a boi, sanativum passa a sadio,
aestivum passa a estio, etc.

Essas observações sobre mudança linguística, ainda que bastante


superficiais, são muito importantes para o problema que estamos
abordando aqui, que é a alfabetização no seu aspecto de domínio
do sistema alfabético. A geração que só escuta [rius] não tem nenhu-
ma razão para pensar que a escrita dessa palavra será qualquer coisa
diferente de rius e obviamente terá um problema na escola quando
for informada de que a escrita correta da palavra é rivus. Trazendo
essas observações para o nosso tempo, a criança que fala [bruza] ou
[fartava] ficará muito surpresa quando lhe for dito que a escrita des-
sas palavras é blusa e faltava, respectivamente. Observe que aqui
estamos falando de uma mudança linguística que ocorre dentro da
mesma língua, eventualmente diferenciando espaços sociais: em
certos dialetos ou registros a pronúncia coincide com a escrita (pelo
menos com respeito ao fenômeno em discussão) e em outros não.

Você deve estar achando muito estranha a afirmação de que sim-


plesmente pronunciar algum segmento de forma mais frouxa pode afe-
tar a estrutura da língua. Na disciplina de História da Língua, você vai
ter a oportunidade de discutir mais a fundo essa questão. Por agora,

140
Certas noções básicas que todo professor de língua deve ter Capítulo 15
vamos nos limitar a mostrar alguns exemplos, seguindo Lemle (1985),
apenas para que você se convença do fato. Em última análise, o que es-
tamos afirmando é que, ao contrário do pensamento mais tradicional
veiculado pela GT, a mudança linguística não quer dizer perda pura e
simples de alguns segmentos; antes, se configura como um tipo de “es-
cravos de Jó” linguístico, uma espécie de rodízio de formas que Lemle
(1985, p. 55) representa como:

u2 l1 l2 r1 r2

zero zero
(anzol >anzou) (blusa>brusa)
(falou > falô) (cantar>cantá)

Você pode perceber o que está ocorrendo, não? Por exemplo, no


primeiro quadro temos as diferentes realizações de /u/, que ora se re-
aliza como [u] mesmo, ora como [w] e ora como zero na maioria dos
dialetos do PB, que perdeu essa ditongação final, presente pelo menos
em todos os verbos regulares de primeira conjugação na terceira pessoa
do singular do pretérito perfeito. Mas isso não diminuiu os ¬/u/s do PB,
porque na maioria dos dialetos também o /l/ final passou a se realizar
como /u/ (a rigor, como [w]). Essa não foi a única mudança pela qual
/l/ passou: em alguns dialetos, /l/ transformou-se em /r/ quando segue
imediatamente uma consoante, como no caso de brusa ou prano. Mas
os /r/s da língua também sofreram mudança, porque se realizam como
zero pelo menos nos infinitivos verbais, quando não se estendem tam-
bém a contextos nominais, como flo (ou fro).

Muitas coisas então podem ocorrer com a estrutura da língua: é


possível que a mudança afete apenas a forma de palavras individuais,
sem maior consequência para o conjunto de traços distintivos da lín-
gua como um todo, que permanece o mesmo. Mas pode acontecer que
não só um traço distintivo se perca, como desapareça por completo um
fonema da língua – em PB, há dialetos em que não existe mais a lateral
palatal, porque em todos os contextos ela foi substituída por /i/, e assim
folha passou a foia.

141
Aquisição da Linguagem

Pode ocorrer também que sejam alterados os tipos silábicos da lín-


gua – em PB, em vários dialetos praticamente não existem mais sílabas
travadas em posição final de palavra. Acontece inclusive que certas ca-
tegorias gramaticais da língua se perdem ou se rearrumam no sistema,
com consequências fatais para a morfologia e a sintaxe, um ponto que
exploraremos brevemente no próximo capítulo.

Antes disso, porém, uma palavra final sobre a relação entre a escrita
e a fala: na nossa sociedade, a escrita serve a propósitos de comunicação
bem mais amplos que a fala – nós queremos nos comunicar não apenas
com as pessoas que vivem no mesmo bairro ou na mesma cidade, mas
também no mesmo estado ou país e também em outros países, no tempo
passado, presente ou futuro. E é por isso que a língua escrita não pode
ser próxima da minha fala, da fala do meu bairro ou da minha cidade.
Na verdade, devemos fazer uma opção: ou temos uma única língua es-
crita para paulistas, gaúchos e alagoanos, moçambicanos e portugueses,
do século XIX ou do século XXI, ou temos muitas línguas escritas, cada
uma próxima de um desses falares – e eventualmente incompreensível
para outros falantes de outros lugares e outros tempos.

Optar pela língua escrita que vai além das fronteiras espaciais e
temporais sem dúvida é um peso para o aprendiz e explica também o
conservadorismo da língua escrita. Observe, no entanto, que as coisas
não seriam mais fáceis se fôssemos adotar uma escrita mais perto da
fala, porque de qualquer modo teríamos que eleger, dentre os diversos
dialetos falados numa região, qual seria a base para a escrita, uma ques-
tão de difícil solução linguística, já que nenhum dialeto ou registro é
inerentemente mais ou menos adequado à escrita. A solução nesse caso
é sempre política e daí depende de correlações de forças sociais, um lu-
gar onde a linguística nunca é chamada a opinar.

Portanto, o que parece ser mais sensato ainda é, como observa Lemle
(1985, p. 60), aceitar que “[h]á várias maneiras, todas igualmente válidas,
aceitáveis e respeitáveis de falar a língua. A relação entre língua escrita
e língua falada é fonética em uns poucos casos e arbitrária em outros
[...]”, mas a arbitrariedade é uma propriedade bem geral das línguas hu-
manas e, portanto, apreensível pelos humanos, certo?

142
Um pouco mais sobre língua escrita e mudança linguística Capítulo 16
16 Um pouco mais sobre língua
escrita e mudança linguística
Neste capítulo, vamos discutir um pouco mais sobre a língua escrita com
base no trabalho de Kato (1999), que mostra que a escrita, num primeiro mo-
mento, é efetivamente a transcrição da fala do indivíduo, mas, num segundo
momento, funciona como um novo input para a aprendizagem de uma nova
língua que, no caso do PB, distancia-se consideravelmente da língua adquirida
na primeira infância..

Kato (1999), fazendo referência ao seu trabalho de 1986, afirma


que, sob o ponto de vista da filogênese, o desenvolvimento da parte or-
KATO, M. A. No mundo da
tográfica da escrita passou de uma escrita icônica/analógica (como as escrita. São Paulo: Ática,
escritas do extremo oriente) a uma escrita claramente digital, como é o 1986.

sistema alfabético do ocidente; por outro lado, a ontogênese da escrita


percorre o mesmo caminho porque a criança, mesmo aprendendo um
sistema alfabético, aborda a escrita como se este fosse um sistema ideo-
gráfico – a criança, segundo Kato (1999, p. 203), “[...] tenta reproduzir,
através da letra, não o fonema, um conceito abstrato, mas o fone.”

Um tratamento dessas diferentes fases por que a escrita passa sob


os pontos de vista da filogênese e da ontogênese, Kato (1986) oferece
nos seguintes termos:

I. Fala1 Escrita1 Escrita2 Fala2

filtrada pela
transição da neutra em
pré-escrita tecnologia
fala do sujeito relação às falas
da escrita

Também com respeito aos diferentes tipos de conhecimento que


estão em jogo, há diferenças entre as diversas fases da fala e da escrita,
como vemos a seguir:

143
Aquisição da Linguagem

II. Fala1 Escrita1 Escrita2 Fala2

inconsciente consciente consciente (in) consciente

ou seja, a fala posterior ao momento de ida da criança à escola, que


é a FALA2, incorpora elementos da escrita de forma consciente.

É possível também conectar esses esquemas ao conhecimento das


gramáticas mais antigas, sugestão que Kato (1999, p. 204) implementa
adicionando o esquema III:

III. Fala1 Escrita1 Escrita2 Fala2

conservadora
inovadora conservadora conservadora
inovadora

Todas as inovações gramaticais se fazem na Fala1. Segundo Kato


(1999, p. 204), a Escrita2 é conservadora e é ela que “[...] reprime as
inovações e faz o falante voltar a formas já eliminadas ou no limiar do
desaparecimento.”

O que isso quer dizer exatamente? Vamos examinar alguns fatos do


PB citados por Kato (1999) para responder a essa questão de maneira
explícita.

1. O sujeito nulo

Um dos parâmetros mais conhecidos nos estudos gerativistas e


que examinamos brevemente na Unidade C é o Parâmetro do Sujeito
Nulo, responsável pela possibilidade de omissão de material lexical na
posição sujeito da sentença – mesmo quando a interpretação é referen-
cial, como em (3c):

(3)

a) ____ choveu a noite inteira.

b) ____ parece que a Maria viajou.

c) ____ comeu pizza ontem.

144
Um pouco mais sobre língua escrita e mudança linguística Capítulo 16
O que se observa é que sentenças como (3c) são altamente desfa-
vorecidas no PB atual, mas não em PE (português europeu) atual, nem
eram desfavorecidas no PB até o final do século XIX. A partir do começo
do século XX, começa a aparecer o padrão brasileiro de preenchimento
da posição de sujeito, que nos fornece sentenças como (4):

(4)

a) Eu disse que eu queria viajar mas eu não quero pagar uma for-
tuna de hotel.

b) Quando ela acordou ela estava em casa sem saber como ela foi
parar ali.

Segundo Kato (1999), a criança em fase de aprendizagem da es-


crita trará para o seu texto sentenças como as de (4), que são as formas
utilizadas na sua fala, constituindo assim a sua Escrita1. Para chegar à
Escrita2, a criança deve adquirir a capacidade de editorar seu texto, eli-
minando os pronomes sempre que possível – por exemplo, de duas das
três ocorrências dele em sentenças como as de (4). E pode mesmo acon-
tecer de, em uma situação formal de fala, o falante escolarizado usar
sentenças do tipo dessas da Escrita2 na sua Fala2.

2. Os pronomes clíticos CYRINO, S. M. L. O objeto


nulo no português do Bra-
Chamamos clíticos aos pronomes oblíquos átonos da GT exata- sil: um estudo sintático-
diacrônico. 1994. Tese
mente por conta da sua característica átona e portanto dependente fo- (Doutorado em Lingüísti-
nologicamente de uma palavra que lhe sirva como hospedeiro. Segundo ca) –Universidade Estadu-
al de Campinas, Campinas,
Cyrino (1994), citada por Kato (1999), o PB, a partir do século XVII SP, 1994.
começou a assistir à perda progressiva desses elementos, em particular
dos de terceira pessoa (o/a/os/as), perda essa que ocorre primeiramente
quando seu antecedente é uma proposição, como em (5a); depois, já no
século XVIII, quando seu antecedente é [-humano], como em (5b); e
finalmente, já no século XX, quando o antecedente é [+humano], como
mostra (5c) – exemplos adaptados de Kato (1999, p. 208), nos quais
também colocamos o antecedente entre colchetes:

145
Aquisição da Linguagem

(5)

a) [Maria morrera na véspera]. Pedro não soube ___.

b) [A fazenda] é tão grande que é preciso um dia inteiro para correr


___ toda.

c) [Quem não quiser] avise já, assim dá tempo de substituir ___.

No entanto, não é só o apagamento desses pronomes clíticos que


caracteriza o PB. Em alguns casos, é um pronome nominativo (como
ele/ela) que aparece em seu lugar, como numa outra versão do exemplo
(5b), que seria perfeita se a segunda parte da sentença fosse “... é preciso
um dia inteiro para correr ela toda”. A Tabela 16.1 a seguir, adaptada de
Kato (1999, p. 215), mostra os resultados de Cyrino (1994):

Tabela 16.1 – Distribuição de objetos diretos anafóricos no tempo

Século XVI Século XVII Século XVIII Século XIX Século XX

Nulo 31 (10,6%) 37 (12,6%) 53 (18,4%) 122 (45,9%) 193 (82,8%)

Pronome 01 (0,30%) - - 11 (4,1%) 13 (5.6%)

Clítico 262 (89,1%) 257 (87,4%) 234 (81,6%) 133 (50%) 26 (11,2%)

DP - - - - 1 (0,4%)

TOTAL 294 (100%) 294 (100%) 287 (100%) 266 (100%) 233 (100%)

Note que o uso de nulos é massivo em PB no século XX, ao pas-


so que é modesto o uso de clíticos (e Cyrino (1994) está aqui tratando
especificamente dos clíticos de terceira pessoa, como o/a/os/as), exata-
mente o contrário do que acontece no português do século XVI. Ainda
mais sério é que os pronomes clíticos que sobreviveram na língua ago-
ra obedecem a regras de distribuição bastante distintas, como se vê na
comparação entre (6) – as frases da GT e do PE – e (7) – as frases em
legítimo PB:

146
Um pouco mais sobre língua escrita e mudança linguística Capítulo 16
(6) (7)

a) Mario ontem viu-te. a) Mario ontem te+viu.

b) Mario tinha-te ontem visto. b) Mario tinha ontem


te+visto.
c) Digo-te já.
c) Te+digo já.

Os exemplos em (7) mostram que não existe ênclise em PB, apenas


próclise ao verbo principal; no PE e no português da GT, por outro lado,
a ênclise é obrigatória nesses contextos gramaticais. O que tem se ob-
servado na Escrita1 é sempre um excesso de próclise, mas a Escrita2, ao
contrário, exibe ênclise mesmo onde isso não é possível, num fenômeno
conhecido como hipercorreção.

3. As orações relativas

Como você já sabe, orações relativas são as orações subordinadas


adjetivas da GT, isto é, sentenças que funcionam como um adjunto do
nome (um adjunto adnominal nos termos da GT) e que exibem um pro-
nome relativo. A construção da GT é conhecida na gramática gerativa
como “estratégia padrão de relativização”, exemplificada por (8a). O PB,
contudo, exibe outras estratégias para a construção de suas relativas, como
a estratégia copiadora (que apresenta um pronome lembrete no lugar do
sintagma relativizado), exemplificada por (8b), e a estratégia cortadora
(que apresenta uma categoria vazia no lugar do sintagma relativizado),
exemplificada por (8c) – exemplos adaptados de Kato (1999, p. 214):

(8)

a) O menino com quem eu falei. (padrão)

b) O menino que eu falei com ele. (copiadora)

c) O menino que eu falei ____. (cortadora)

A estratégia copiadora talvez seja ligeiramente marginal no PB cul-


to, mas não resta dúvida de que a estratégia cortadora é sentida como
perfeita pelos falantes e não costuma ser alvo de críticas por parte dos

147
Aquisição da Linguagem

gramáticos de plantão. Em todo o caso, esse tipo de relativo padrão ain-


da é razoavelmente familiar aos brasileiros, diferentemente de (9a), que
não é dominada nem mesmo pelos falantes escolarizados, o que torna
as outras duas estruturas as únicas possibilidades – novamente, a copia-
dora é um pouco marginal:

(9)

a) O menino cujo pai esteve aqui. (padrão)

b) O menino que o pai dele esteve aqui. (copiadora)

c) O menino que o pai esteve aqui. (cortadora)

Observe que aqui a escolarização apenas determina a escolha por


uma opção menos marcada, mas não chega a incutir uniformemente o
CORREA, V. R. O objeto nulo padrão nem mesmo na Escrita2.
no português do Brasil.
1991. Dissertação (Mes-
trado em Lingüística). –
Como a escola recupera essas mudanças linguísticas? Vamos exa-
Universidade Estadual de minar os dados relativos à presença de clíticos que são objeto direto de
Campinas, Campinas, SP,
1991.
verbos transitivos. Vimos na Tabela 16.1 os resultados de Cyrino (1994)
na história do PB. O que Correa (1991), citada por Kato (1999), encon-
tra na sua pesquisa sincrônica pode ser visto nas Tabelas 16.2 e 16.3
abaixo, adaptadas de Kato (1999, p. 216), que apresentam dados de lín-
gua oral e língua escrita, respectivamente:

Tabela 16.2 – Distribuição de objetos diretos anafóricos


por nível de educação em narrativas orais

Analfabetos 1ª/2ª séries 3ª/4ª séries 5ª/6ª séries 7ª/8ª séries Universitário

Nulo 68% 73% 76% 72% 72% 65%

Pronome 26% 24% 9% 18% 21% 7%

Clítico - - - 2% 1% 14%

DP 5% 3% 15% 8% 7% 14%

148
Um pouco mais sobre língua escrita e mudança linguística Capítulo 16
Tabela 16.3 – Distribuição de objetos diretos anafóricos
por nível de educação em textos escritos

1ª/2ª séries 3ª/4ª séries 5ª/6ª séries 7ª/8ª séries Universitário

Nulo 59% 64% 48% 52% 10%

Pronome 8% 6% 14% 11% -

Clítico - 12% 25% 32% 86%

DP 33% 18% 13% 5% 5%

As Tabelas 16.2 e 16.3 são muito interessantes para mostrar como


os pronomes clíticos são inseridos pela escola. Repare que eles estão
completamente ausentes da fala da criança até a 4ª/5ª séries, mas já a
partir das 3ª/4ª séries começam a se apresentar na escrita, aparecendo
finalmente na Fala2 em 14% das ocorrências. As pessoas que não têm
acesso à escola, como mostra a Tabela 16.2, nunca fazem uso desse ex-
pediente gramatical.

Observemos a seguir a Tabela 16.4, que apresenta uma compara-


ção entre dados históricos da realização de objetos no PB e o resultado
do processo de escolarização sobre a escolha do tipo de realização para
o objeto:

Tabela 16.4 – Comparação de dados de distribuição de objetos nulos anafóricos


na diacronia do PB e na produção oral e escrita de universitários brasileiros

Dados de universitários Dados de peças de teatro

Oral Escrito Séc. XVIII Séc. XIX Séc. XX

Nulo 65% 10% 18,4% 45,9% 82,8%

Pronome 7% - - 4,1% 5,6%

Clítico 14% 86% 81,6% 50% 11,2%

DP 14,7% 5,0% - - 0,4%

149
Aquisição da Linguagem

Esta comparação revela algo muito interessante: a escola faz o brasi-


leiro recuperar uma quantidade de clíticos maior do que a exibida pelas
peças de teatro do século XVIII (86% e 81,6%, respectivamente), nada
parecido com a porcentagem de clíticos em peças de teatro atuais, que é
de 11,2%. Pronomes nominativos em posição objeto também estão au-
sentes tanto na escrita do século XVIII quanto nos textos universitários,
mas a porcentagem de objetos nulos da escrita universitária, que é de
10%, é ainda mais baixa que a dos textos do século XVIII, que gira em
torno dos 18% – a escola nos torna mais realistas que o rei!

No entanto, a majestade não é perfeita: embora a escola recupere


a porcentagem de clíticos usados no século XVIII, não recupera a sua
distribuição, porque no século XVIII os clíticos podiam sofrer movi-
mento longo, do tipo exibido em (10a), e jamais admitiam ênclise em
sentenças subordinadas, como parece ser possível em textos de univer-
sitários brasileiros – exemplos extraídos e adaptados de Kato (1999, p.
217-218):

(10)

a) ... vi que a não conhecia.

b) ... a moça que descreveu-o para o delegado.

Assim, pode-se afirmar que a gramática da língua de uma época


anterior não é conservada de maneira intacta pela escrita da população
escolarizada, mas, de qualquer modo, se contamina seja pelas regras de
realização efetiva da língua atual, seja pela imagem de texto escrito que
o falante tem – o melhor exemplo aqui é o excesso de casos de êncli-
se que pode ser observado em todo o processo de escolarização, como
mostra a Tabela 16.5 a seguir, adaptada de Kato (1999, p. 219):

Tabela 16.5 – Ocorrência de clíticos acusativos de terceira pessoa


de acordo com a posição e escolarização em textos escritos

1ª/2ª séries 3ª/4ª séries 5ª/6ª séries 7ª/8ª séries Universitário Total: 57

Próclise - 4 1 4 6 15

Ênclise - - 13 14 12 39

150
Um pouco mais sobre língua escrita e mudança linguística Capítulo 16
O que podemos tirar como conclusão deste breve estudo é que a es-
cola pressionará o aprendiz no sentido não apenas de aprender uma
escrita, mas de aprender uma escrita que difere muito em alguns as-
pectos da sua fala. Essa distância começa a se desenhar já na alfabeti-
zação e é fundamentalmente a mesma para as mais variadas línguas;
no entanto, ela pode depois se aprofundar em certas línguas, como
é o caso do PB, que tem estruturas gramaticais já muito distanciadas
das da língua portuguesa escrita, aquela que queremos manter em
comum com os portugueses, angolanos, moçambicanos, etc.

É importante notar, contudo, como o faz Kato (1999, p. 219), que


“[...] nem toda inovação é estigmatizada pela escola e que nem todo
arcaísmo é mantido na língua escrita.” As orações relativas cortadoras,
por exemplo, são uma inovação, mas não são estigmatizadas; por outro
lado, nem mesmo a escrita mantém a mesóclise, que se tornou numa
larga medida ininteligível para os falantes do PB. O que sobrevive é,
afinal, um misto da pressão conservadora e da criatividade do falante
nativo do PB.

151
Conclusões Capítulo 17
17 Conclusões
Vimos nesta unidade que língua oral e língua escrita são parcial-
mente isomórficas e não exatamente idênticas e que a língua oral tem
prioridade sobre a língua escrita sob os mais variados pontos de vista: o
histórico, o estrutural, o funcional e o biológico.

Fizemos a seguir uma longa discussão sobre a alfabetização, mos-


trando que a criança começa com a hipótese de que letras e sons estão
casados monogamicamente, mas que muito rapidamente tem que se dar
conta de que existem outros tipos de casamentos entre sons e letras. Num
primeiro momento dessa nova descoberta, é possível mostrar que o casa-
mento é ditado pela posição em que se encontra o som/a letra na palavra.
Esgotada essa fase, a criança deverá enfrentar o fato de que há situações
de concorrência entre letras para representar o mesmo som, e neste pon-
to apenas noções de morfologia e de história da língua podem ajudá-la.

De maneira mais geral ainda, noções de história da língua e mudan-


ça linguística podem ajudar a criança em todo o processo de domínio
da escrita. A consciência clara de quais são os fenômenos do português
escrito em séculos anteriores e o tratamento que o PB atual dá a esses
mesmos fenômenos parece-nos crucial para garantir o sucesso escolar.

Leia mais!
Em Lyons (1987), em especial na seção 1.4, você pode encontrar toda
a discussão a respeito da prioridade da língua oral com respeito à lín-
gua escrita. Já em Camara Jr. (1970), em particular no capítulo 8, você
encontra uma belíssima discussão sobre fronteiras prosódicas, que é na
verdade sobre a interface da fonologia com a morfologia. Não é preciso
dizer o que você vai encontrar em Lemle (1985), mas essa é uma leitura
que você deveria fazer várias vezes! Finalmente, em Kato (1999) você
encontra mais detalhes sobre a gramática do PB atual.

153
Aquisição da Linguagem

Bibliografia básica para estudos


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Conclusões Capítulo 17
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