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Para uma reflexão sobre

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os efeitos sociais do
encarceramento1

Rafael Godoi

Rafael Godoi é mestre e doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, e especialista em Pesquisa Etnográfica, Teoria Antropológica e

Relações Interculturais pelo Departamento de Antropologia Social da Universidade Autônoma de Barcelona.

São Paulo - São Paulo - Brasil

rafael.godoi@usp.br

Resumo
O artigo discute os efeitos sociais mais amplos do encarceramento, principalmente para as famílias e comunidades
de origem dos presos. Diferentes perspectivas teóricas sobre a prisão e seus efeitos são exploradas em seus
fundamentos, potencialidades e limites, com o objetivo de contribuir na construção de uma abordagem crítica sobre
o tema na atualidade.

Palavras-Chave
Prisão. Efeitos sociais. Perspectivas teóricas. Prisionização.

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O presente artigo objetiva pautar o pro-
blema dos efeitos sociais mais amplos
do encarceramento, que vem ganhando centra-
Depois de problematizar alguns dos limites des-
sas formulações, serão exploradas outras matri-
zes analíticas que possam contribuir para a for-

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lidade no debate sociológico sobre a punição, mação de um novo olhar sobre a questão.
conforme aumentam as populações carcerárias
em diversos países ocidentais (GARLAND,
2001). Para tanto, recorre-se a alguns estudos Problema
que se debruçaram – direta e indiretamen- Nina2 mora com Kátia e Marcelinho, num
te – sobre esse tema, buscando refletir sobre bairro periférico de São Paulo. Nina é mãe de
suas potencialidades e debilidades, seus prin- Ronaldo, Kátia é mulher dele e Marcelinho
cipais pressupostos e possíveis contribuições é filho. Ronaldo está preso há mais de dez
para uma abordagem do problema tal como se anos. As duas se conheceram dentro da pri-
apresenta na atualidade. são, num dia de visita. Kátia, muito jovem
e ainda grávida, desesperava-se por não ter
A partir da ideia de efeitos sociais do encar- condições de criar o filho que viria. Ronal-
ceramento, busca-se apontar, de modo geral, do igualmente, por mais que trabalhasse na
para a questão dos efeitos externos da prisão: a penitenciária, sabia que o dinheiro que rece-
ação da prisão fora de seus limites físicos e suas bia seria insuficiente para garantir o sustento
consequências sociais imprevistas e abrangentes. do primeiro filho. Nina, viúva e aposentada,
Essa ordem de causas externas do encarceramen- assumiu a responsabilidade de colaborar na
to pode ser observada em diversos níveis, como criação do neto enquanto o filho estivesse
na política (MAUER, 2001) e na economia preso e chamou a nora para morar com ela.
(HULING, 2002), porém, esse trabalho se diri- Juntas, durante a semana, as duas fazem o
ge, especificamente, para o problema dos efeitos “jumbo”3 que uma delas levará para Ronaldo
colaterais do encarceramento na conformação no dia de visita. O “jumbo” e também o pra-
de sociabilidades familiares e comunitárias. A to de Marcelinho – arroz, feijão, macarrão
breve apresentação de algumas pesquisas con- – são doados por vizinhos solidários e conhe-
temporâneas será suficiente para identificar, em cedores das dificuldades daquela família.
linhas gerais, como essa ordem de questões vem
sendo trabalhada na teoria social. Em seguida, Aisa, como Marcelinho, foi concebida
buscar-se-ão os fundamentos teóricos dessas numa visita íntima, no interior de um pre-
pesquisas, explorando alguns dos principais tra- sídio, porém num contexto social bastante
balhos do século XX sobre o encarceramento. distinto: na Catalunha4. Até os quinze anos

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de idade, cresceu numa cidade satélite de Nesses ambientes familiares tão diversos é
Barcelona, tendo o pai dentro de uma prisão possível perceber a prisão agindo fora dela, pro-
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muito distante. Ela comemorou aniversários, duzindo vínculos, práticas e significados. Estu-
brincou e fez amizades dentro de uma uni- dando as trajetórias de vida e as estratégias de
dade prisional desde sempre. Por mais que o sobrevivência de familiares, amigos e vizinhos
pai estivesse preso e distante, a relação fami- de pessoas presas, parece ser possível interpelar
liar era forte e, na medida do possível, sau- o problema do extravasamento da prisão e dos
dável; ele sabia de tudo que se passava com efeitos sociais mais amplos do encarceramento.
ela, trocavam cartas e lembranças, viam-se E para dar conta de melhor compreender essas
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frequentemente, conversavam francamente, dinâmicas que se empreende o percurso teóri-


amavam-se. Enquanto seu pai esteve preso, co sintetizado nas próximas páginas.
ela sonhava com uma vida normal que viria
com sua libertação. Quando ele foi solto,
o sonho não se concretizou, de modo que A hipótese da desestruturação
aquela família carinhosa e unida a despeito Desestruturação, ruptura e estigma têm
da prisão ruiu quando a prisão deixou de agir sido noções fundamentais para uma extensa
sobre ela. Na rua, ele envolveu-se em ilegalis- reflexão sobre a ação da prisão num ambiente
mos diversos, ficou violento com a mulher, familiar ou comunitário. Os efeitos deletérios
ausente com a filha, sumiu, arrumou outra da prisão no entorno social do preso são te-
mulher, outros filhos, outra família, que pas- mas discutidos e desdobrados em diversos tra-
sou a visitá-lo quando ele voltou a ser preso. balhos. Comfort (2003) formulou a hipótese
de “prisionização secundária”, como um dos
Eis alguns fragmentos de histórias de vida processos que afetam principalmente as mães,
que mostram, em contextos tão distintos quan- esposas e namoradas de presos que continua-
to o paulista e o catalão, famílias se estruturan- mente passam pela experiência de visitação em
do a despeito da prisão de um de seus com- uma unidade prisional. A autora analisou a di-
ponentes, ou mesmo a partir da prisão de um nâmica social da visitação num presídio de se-
de seus componentes. Famílias estruturadas gurança máxima da Califórnia, destacando as
ao redor da prisão, em cuja estruturação con- alterações comportamentais e simbólicas que
correm diversas gerações e também amigos e esse processo específico de socialização intro-
vizinhos, que vão, como podem, preenchendo duz na vida dessas mulheres.
as lacunas deixadas pela prisão do “chefe-pro-
vedor”. Nesses ambientes familiares, a ausência Travis e Waul (2003) organizaram uma pu-
do “chefe-provedor” é também a presença da blicação dedicada ao tema dos efeitos do encar-
prisão. A prisão presente e circulando o tempo ceramento em diferentes níveis, na qual existe
todo, em lembranças doloridas (ou não), em uma explícita preocupação em avaliar como os
conversas triviais, em atividades cotidianas, em serviços sociais, sanitários, educacionais e cor-
contas (de dívidas, de dias), em sonhos feitos e recionais podem se integrar de uma maneira
refeitos a cada momento. mais efetiva para melhor atender às necessi-

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dades de indivíduos, famílias e comunidades como os de Nina e Aisa levam a crer que a
desestruturados pelo encarceramento. Com prisão impõe efeitos que podem ser doloro-

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uma abordagem menos programática, Mauer sos, desagradáveis, mas que não são absolu-
e Chesney-Lind (2002) organizaram um livro tamente destruidores, podendo ser também
no qual, entre tantas questões sobre os efeitos reestruturantes, produtivos, e num sentido
colaterais do recente incremento do encarce- muito preciso. O vínculo entre Nina e Katia
ramento, aparecem trabalhos que repõem a foi produzido na prisão sem que nenhuma
questão da desestruturação que o cárcere pro- delas cruzasse os limites da lei, o cotidiano
move na organização familiar e comunitária. delas de manufatura de “jumbo” e visita se-

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Os trabalhos do OSPDH (2006), na Espanha, manal é produzido pelo encarceramento de
e de Myashiro (2006), no Brasil, indicam que Ronaldo; as próprias existências de Marceli-
esse tipo de argumento também é mobilizado nho e Aisa, no limite, foram também pro-
para dar conta dos efeitos mais amplos do en- duzidas na prisão; como também o vínculo
careramento lá e aqui. afetivo entre Aisa e seu pai foi produzido e
mantido só enquanto ele esteve preso. São
A hipótese geral que subjaz nessa ordem de diversas as produções que a ação da prisão
análises dos efeitos do encarceramento é a de impõe num círculo familiar, para descrevê-
que a prisão tem a desestruturação como efei- las meramente como destruição, corrosão,
to primordial. De toda forma, essa ordem de desestruturação, etc.
problematizações contrasta significativamente
com alguns aspectos que chamam a atenção A bibliografia contemporânea parece privi-
nas trajetórias de familiares de pessoas presas. legiar determinados aspectos da ação da prisão
As famílias de Marcelinho e Aisa seguramente sobre vidas e sociabilidades mais amplas, espe-
enfrentavam diversos problemas, debilidades cialmente os fatores desagregadores, desviantes,
financeiras, afetivas, preconceito. Porém, não anômicos, etc. Essas formulações acabam por
eram famílias propriamente desestruturadas; desenvolver – em diversas versões e com dife-
eram famílias singulares, diferentes, distantes rentes ênfases – uma só hipótese analítica, que
de um padrão imaginado de família ideal, mas poderia ser designada como “hipótese da deses-
não desestruturadas. Rechaço social segura- truturação”. Segundo essa hipótese, diagnosti-
mente existia, mas havia também pessoas soli- car (ou denunciar) a erosão de vínculos fami-
dárias que colaboravam no sustento da família, liares e comunitários é a tarefa principal dos es-
na criação das crianças, etc. As relações entre tudos sociais que se voltam para esse problema,
mãe e filho, pai e filho(a), marido e mulher ficando em segundo plano uma descrição po-
não eram relações contínuas, diárias, mas não sitiva dos novos vínculos e práticas sociais que
se pode dizer que fossem relações rompidas. essa desestruturação primordial efetivamente
engendra na vida das pessoas. De toda forma,
Essa bibliografia parece ser por demais ta- aprofundando os estudos, é possível perceber
xativa: a prisão invariavelmente impõe defei- que a “hipótese da desestruturação”não decor-
tos num ambiente familiar; enquanto relatos re meramente de opções políticas particulares,

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nem de fatores contextuais gerais, mas está cal- dades fundamentais não podem ser satisfeitas
cada numa importante gama de estudos sociais no devido ambiente; e desejo de conseguir
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sobre a prisão, que, no decorrer do século XX, um bom trabalho no interior do presídio.
consolidaram um determinado olhar sobre os Na medida em que se verificam esses fato-
efeitos do encarceramento. res gerais nas atitudes de um preso, é possível
identificá-lo como um membro assimilado à
“comunidade prisional”, como alguém que
Um olhar sobre os efeitos do encarce- foi socializado na cultura da prisão. Clemmer
ramento sustenta ainda que existam graus de prisioni-
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O problema dos efeitos do encarceramen- zação e múltiplos fatores que determinam a


to ganhou força e relevância na teoria social velocidade e o alcance do processo para cada
na primeira metade do século XX, quando indivíduo, desde a duração da pena até os
alguns pesquisadores analisaram a ação da atributos de personalidade. Interessavam-lhe
instituição prisional sobre a identidade dos especialmente os casos de prisionização nos
presos. Isto é, os efeitos do encarceramento seus graus mais altos, pois, segundo ele, é
foram problematizados primeiramente com nesse estágio que se aprofundam as atitudes
referência ao ambiente interno da prisão. antissociais e se desenvolve uma ideologia
As análises da cultura prisional de Clemmer criminal no indivíduo.
(1958) e Sykes (1958), de um lado, e a análi-
se das instituições totais de Goffman (1974), Sykes é outro autor que discutiu a es-
de outro, constituíram referências centrais pecificidade do processo de socialização no
no desenvolvimento desse debate. interior da comunidade prisional. Mas, por
sua vez, para qualificar esse processo, Sykes
Clemmer formulou a teoria da “prisio- privilegiou outros elementos e processos
nização” para dar conta das transformações estruturais. Segundo o autor, a cultura da
que a prisão impõe sobre a vida de um in- prisão pode ser mais bem descrita pela enu-
divíduo preso. Segundo o autor, o processo meração e análise das privações que a vida
de prisionização é experimentado, em algu- prisional implica. Descrevendo o que cha-
ma medida, por todo homem que passa por ma de “dores do encarceramento” – que dão
uma prisão, implicando uma reinterpretação ensejo à elaboração de práticas e significa-
geral da vida. Para qualificar esse processo, dos sociais que são próprios ao ambiente –,
Clemmer apontou os elementos que consi- Sykes apresenta os traços característicos da
derava fundamentais: aceitação de uma po- cultura prisional e do processo de prisioni-
sição social inferior; acumulação na memó- zação. As privações de liberdade, de bens e
ria de uma infinidade de fatos concernentes serviços, de relacionamentos heterossexuais,
à organização prisional; desenvolvimento de autonomia e de segurança constituiriam
de novos hábitos de alimentação, vestuário, as bases estruturais do desenvolvimento de
trabalho e sono; adoção de uma linguagem uma cultura e de uma identidade específicas
particular; reconhecimento de que as necessi- ao ambiente prisional.

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Goffman, por sua vez, formulou contri- vida na instituição, de forma que se possa con-
buições basilares para o entendimento dos servar um mínimo de domínio sobre o meio.

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efeitos socializadores de “instituições totais”, Sistemas informais de comunicação, estratégias
como a prisão, o manicômio, o convento. para obtenção de satisfações proibidas, ou mo-
Assumindo o risco de negligenciar muito bilização de meios proibidos para a obtenção
da complexidade e fecundidade dos estudos de satisfações permitidas são alguns elementos
desse autor, para os fins que se propõe nes- que caracterizam esse sistema de ajustes.
se trabalho, é possível destacar um elemento
específico – mas não menos importante – de Diferentemente de Clemmer, que diferen-

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suas análises: o problema das “mortificações cia o processo de prisionização em termos de
do eu”. Segundo Goffman, o ingresso numa grau quantitativo e ritmo, Goffman identifica
instituição total impõe uma série de desvios diferentes possibilidades de desenvolvimento
na “carreira moral” do indivíduo, que são de ajustes secundários, conformando diferen-
experimentados como degradantes e consti- tes sujeitos adaptados ao ambiente institu-
tuem “mortificações do eu”. Por “carreira mo- cional. A adaptação pode rumar ou para uma
ral”, o autor faz referência ao processo geral conversão absoluta do sujeito, que passa a se
de socialização e constituição de identidades, identificar com os objetivos institucionais; ou
que se desenvolvem na constante interação para uma acomodação passiva e utilitária, que
do indivíduo no interior de diferentes grupos visa o aproveitamento máximo dos benefícios
sociais. Já as “mortificações do eu” podem ser possíveis no ambiente interno; ou para uma
entendidas como mutilações que são impos- recusa intransigente de tudo o que a institui-
tas numa identidade previamente constituí- ção obriga e oferece; ou para uma alienação
da. Para o autor, a primeira mutilação do eu profunda, que torna o indivíduo indiferente a
que uma instituição total impõe é a própria quase tudo que não lhe toque o corpo.
barreira que separa o interno do meio ex-
terno, impossibilitando que o indivíduo se Clemmer, Sykes e Goffman, cada um ao
mantenha atualizado sobre o que acontece seu modo, contribuíram para a consolidação
na sociedade em geral. A segunda mutilação de um campo de problematização do proces-
é a perda do nome, e sua substituição por um so de socialização no interior do ambiente
número e/ou apelido, geralmente percebidos prisional. Foi com base neles, ou se opondo
como humilhantes. a eles, que toda uma bibliografia sobre a pri-
sionização se desenvolveu (WHEELER, 1961;
A perda absoluta de espaços e momentos EDWARDS, 1970; KAMINSKI, 2003). Esses
de intimidade, a submissão a procedimentos estudos também serviram de referência para
humilhantes e a perda de controle sobre as análises dos efeitos da prisão sobre outros gru-
atividades são outras das mutilações destaca- pos sociais, para além dos presos. Goffman já
das por Goffman. A essas mutilações, no eu expandia o foco de suas análises sobre a socia-
mortificado, sobrepõe-se uma série de ajustes lização em instituições totais para o corpo de
secundários que visam a adaptação do sujeito à funcionários, discutindo os efeitos e as espe-

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cificidades desse tipo de trabalho sobre seres efeitos da prisão, que privilegia seus efeitos de-
humanos. Zimbardo et. al. (1973), a partir gradantes e destrutivos. Nesse plano, a prisão
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do experimento que conduziram em 1971 na é vista como fator de deturpação do processo


Universidade de Stanford,5 aprofundaram-se de constituição de uma individualidade – à
na reflexão sobre a ação do meio na constitui- qual, só posteriormente, se acresceriam ajustes
ção dos sujeitos, dando especial atenção para sempre secundários, esboços e tentativas de re-
as bruscas e negativas transformações na perso- estruturação identitária. Mas, esboços que são
nalidade de indivíduos que ocupavam posições invariavelmente insuficientes para reparar uma
de poder num ambiente prisional.6 identidade fundamentalmente desfigurada
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pela prisão. Assim foi se concebendo os efeitos


Ainda sobre a socialização dos profissionais da prisão, seja sobre internos, seja sobre fun-
do encarceramento, podem ser citados os traba- cionários, seja sobre familiares de presos, seja
lhos de Duffee (1974), Jacobs e Retsky (1975) sobre suas comunidades de origem.
e Ellis (1979). A prisionização de funcionários
de prisão, portanto, também constitui uma li- O que parece importante destacar desse
nhagem dessa ampla bibliografia sobre a socia- amplo escopo de estudos é que os efeitos do
lização prisional. No Brasil, Thompson (2002) encarceramento são antes formulados com
já indicava a importância de a reflexão sobre as referência aos presos e ao ambiente interno
instituições penitenciárias abarcar esse aspecto dos presídios, e só então estendidos para ou-
específico. A psicóloga Lopes (1998) abordou tros agentes e territórios. Essa extensão analí-
o tema em sua pesquisa de mestrado; e Chies tica é de extrema relevância e tem seus funda-
et. al. (2005) desenvolveram uma pesquisa es- mentos: a mulher que visita o marido preso,
pecífica sobre a prisionização de funcionários por exemplo, indubitavelmente fica marcada
num presídio de Pelotas (RS). pelas experiências que tem dentro da unida-
de, pelos procedimentos de segurança, pelos
A passagem para análises da socialização constrangimentos impostos, pela agressivida-
prisional de familiares de presos – prisioniza- de do ambiente, acabando por carregar essas
ção secundária, nos termos de Comfort – pode marcas em seu próprio corpo e subjetividade
ser vista como uma derivação, uma continui- para o ambiente externo. Porém, é preciso
dade, uma ampliação de toda essa discussão ponderar que a prisão impõe efeitos sociais
anteriormente apontada. Privilegiar na análi- mais amplos, que vão além da multiplicação
se os aspectos desestruturantes da ação insti- dessas marcas em território aberto. Dizer
tucional sobre as famílias de presos deriva da que a prisão vem desestruturando indivídu-
maneira de se conceber a ação da prisão sobre os, famílias e comunidades é afirmar algo de
os próprios presos, no interior das muralhas. fundamental, mas isso não é tudo. Existem
É possível situar os “fatores da prisionização” várias outras questões que a “hipótese da de-
de Clemmer, as “dores do encarceramento” de sestruturação” não contempla. Se a prisão é
Sykes e as “mortificações do eu” de Goffman tão devastadora, sobre o que ela se sustenta?
num mesmo plano de problematização dos Por que ela ainda é utilizada, mesmo com

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tantos diagnósticos negativos e denúncias? determinada época possa ser analisada com
Como um número cada vez maior de famí- referência às relações positivas que mantém

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lias e cada vez mais amplas comunidades não com as estruturas sociais e econômicas nas
só sobrevivem a essa destruição toda, mas quais se insere. Ou seja, em vez de indagar
convivem com ela? sobre o que a prisão busca reprimir – sobre
sua relação negativa com o delito –, deve-se
questionar sobre o que a prisão busca ope-
A hipótese produtiva7 rar – sua relação positiva com o sistema pro-
Para responder a essas questões, é possível dutivo. A forma específica da punição num

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recorrer a autores que procuraram indagar à determinado período histórico, segundo
prisão sobre sua especificidade diante de outras esses autores, seria uma função do grau de
formas de punição, sobre suas funcionalidades desenvolvimento do sistema produtivo, das
estratégicas, suas causas obtusas. Trata-se de condições de oferta e demanda de força de
estudos que se alinham aos anteriores ao veri- trabalho. De acordo com eles, o desenvol-
ficarem que a prisão não é exatamente o “ins- vimento econômico de uma sociedade e as
tituto de regeneração” que apregoa ser, mas oscilações entre oferta e demanda de mão de
que se afastam daqueles ao empreender outros obra determinam variações no valor atribuí-
percursos analíticos a partir dessa constatação. do à própria vida humana, condicionando as
Nesse outro plano de referências, questões so- escolhas por métodos punitivos mais ou me-
bre o que a prisão desestrutura, como a prisão nos severos. Rusche e Kirchheimer realizam
reprime ou distorce individualidades e grupos uma extensa reflexão sobre os motivos pelos
sociais são deslocadas, cedendo lugar a indaga- quais o excedente de mão de obra e a corre-
ções sobre o que produz a punição em forma lativa desvalorização da vida humana, no pe-
de prisão, como a punição em forma de prisão ríodo moderno, não implicaram um retorno
funciona e como ela conforma individualida- substantivo às penas corporais e capitais, que
des e grupos sociais. Opera-se, assim, uma pas- caracterizavam o período feudal.
sagem de foco dos efeitos desestruturantes da
prisão para os processos estruturantes da puni- Para explicar esse aparente enigma, que
ção (em forma de prisão e/ou não). O trabalho contradiria os fundamentos do argumento,
de Rusche e Kirchheimer (1984), de um lado, os autores analisam detalhadamente o desen-
e o de Foucault (2004), de outro, constituem volvimento das casas de correção, as funções
referências fundamentais para elaboração dessa econômicas e sociais do trabalho penal, os per-
ordem de questões. calços do processo de industrialização em dife-
rentes países, os avanços políticos e ideológicos
Rusche e Kirchheimer sustentam que, da burguesia, atentando, principalmente, para
para analisar sociologicamente um sistema as repercussões teóricas e práticas de todo um
punitivo, é necessário, em primeiro lugar, novo pensamento penalista reformador que
suspender o nexo explicativo entre delito e emergiu no período do Iluminismo. É a partir
pena, de modo que a forma da punição numa desse minucioso trabalho analítico que os au-

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tores formulam a hipótese da prisão dissuasi- tíveis a uma função unívoca e totalizante.
va e identificam o princípio de less eligibility Enquanto Rusche e Kirchheimer privilegiam
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(de piores condições de vida dentro da pri- as determinações econômicas de um sistema


são do que as piores condições de vida fora) punitivo, Foucault se debruça sobre a espe-
como organizador da pena de prisão no sis- cificidade das relações de poder e saber que
tema produtivo capitalista. A esse princípio o conformam. “Vigiar e Punir” começa pela
fundamental se submetem os programas de contraposição de descrições de um brutal ri-
reforma das prisões, desenvolvidos em dife- tual de suplício e de um sóbrio regulamento
rentes países ocidentais nos últimos séculos. de uma casa de detenção para jovens.
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Os programas que apregoam um tratamento


mais racional e humanizado do criminoso – No contraste gritante entre as duas for-
e que por meio da prisão visam regenerar e mas punitivas, o autor situa o seu problema
reinserir o criminoso na sociedade – nunca de investigação. Foucault sustenta que o su-
podem se realizar plenamente, uma vez que plício era um ritual político de produção,
seus avanços e recuos dependem mais das demonstração, afirmação do poder sobera-
condições exteriores do mercado de trabalho no, do poder do rei sobre a vida e a morte
do que das práticas de gestão interna. Por isso, de seus súditos. Já a prisão e seu minucioso
contraditoriamente, o discurso ideológico re- regulamento são expressões de um poder dis-
formador é quase sempre acompanhado de ciplinar, de uma racionalidade que interpela
uma realidade de superpopulação carcerária, as disposições para o crime, mais do que o
de péssimas condições de higiene e saúde no crime em si; de um poder que não se exerce
interior dos presídios, de ócio generalizado num episódio público e ostensivo sobre um
(ou de trabalhos meramente punitivos), de corpo em evidência, mas sim discretamente,
altos índices de mortalidade, etc.; atributos continuamente, indefinidamente, e sobre a
que evocam os tradicionais castigos corporais quantidade de corpos que se considere ne-
e capitais e fazem do nível de vida no interior cessária e possível. Na passagem do suplício
da instituição penal sempre mais baixo do à prisão, o que pode aparecer como suaviza-
que o nível mínimo fora dela. ção, humanização e racionalização da pena
deve ser visto, segundo Foucault, como in-
Foucault recupera alguns dos preceitos tensificação, extensão e maior produtividade
estabelecidos por Rusche e Kirchheimer para da punição. Prender ao invés de esquartejar
desenvolver suas análises, especialmente no não é punir menos ou mais humanamente, é
que se refere às positividades e produtivi- punir mais com menos recursos, é punir mais
dades estratégicas da punição. Porém, para eficazmente, é punir economicamente.
Foucault, diferentes sistemas punitivos ex-
pressam diferentes racionalidades, diferentes Para explicar essa eficácia econômica da
relações de poder, respondem a problemas prisão, Foucault recorre a deslocamentos
estratégicos distintos e constituem arranjos que se davam no plano dos ilegalismos po-
específicos de poder-saber, que são irredu- pulares. Segundo o autor, no Antigo Regime

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– período de preeminência do poder sobera- de programas para sua reforma são processos
no –, existia uma ampla tolerância entre os sincrônicos e articulados.

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ilegalismos das elites e das classes populares.
Os delitos que acionavam os mecanismos A formulação das mesmas críticas8 e dos
punitivos do suplício eram aqueles que aten- mesmos princípios reformadores9 é peça que
tavam direta ou simbolicamente contra o compõe e fundamenta a implantação e ex-
corpo do rei, contra o poder soberano. Mas, tensão da pena de prisão, porque a eficácia
com o avanço da industrialização, a conse- da prisão não seria exatamente a de reprimir
quente proliferação das mercadorias em cir- ou prevenir os ilegalismos populares, mas sim

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culação e em estoque, a ascensão dos estratos de geri-los diferencialmente. Ou seja, a prisão
burgueses às esferas de poder e o aumento não fracassa absolutamente ao produzir uma
pronunciado das populações urbanas, os delinquência organizada e profissionalizada,
ilegalismos populares tenderam aos crimes uma vez que essa mesma delinquência pode ser
contra a propriedade, despertando maior utilizada, penetrada e mobilizada para operar
atenção das novas classes dominantes. Desse outros ilegalismos, isolar uns e evidenciar ou-
modo, fez-se necessário um tipo de sistema tros. Portanto, a conformação da delinquência
punitivo que deixasse menos lacunas às prá- e a estruturação de um meio delinquente den-
ticas ilegais, que fosse mais eficiente, mais tro da prisão, que é mobilizável fora dela, são
extensivo e menos custoso – em termos eco- elementos que permitem interpelar o encarce-
nômicos e políticos. A pena de prisão, de- ramento em sua positividade, em sua produti-
fendida pelos reformadores do sistema penal vidade estratégica.
e propagada como mais humana em relação
aos suplícios, também atendia sub-repticia- Foucault situa a prisão numa ampla estra-
mente a essas demandas de regularidade e tégia de controle social, num mecanismo com-
eficiência econômica da punição. plexo de gestão diferencial dos ilegalismos –
que se dá via a produção de uma delinquência
Poder-se-ia objetar que a prisão foi sempre domesticada, manipulável, operacionalizável,
ineficaz nessa pretensa tarefa de se opor e pre- seja para viabilizar lucrativos mercados ilíci-
venir a proliferação dos ilegalismos populares tos (como a prostituição no século XIX), seja
contra os interesses e os direitos de proprieda- para policiar e minar associativismos populares
de das novas elites, na medida em que, ao in- (pela infiltração de informantes e agitadores),
vés de reprimir a delinquência, a prisão a pro- seja para eclipsar, pelo escândalo que provo-
duzia, a profissionalizava. Foucault inclui essa cam, outros ilegalismos que são e devem ser
crítica no próprio mecanismo de implantação tolerados. Assim, tem-se outra matriz analítica
da punição em forma de prisão, sofisticando para se pensar a prisão e seus efeitos sobre in-
seu argumento e indicando outros sentidos divíduos, famílias e comunidades, que não se
para a produtividade e a eficácia da prisão. O limita à denúncia da desestruturação que a pri-
autor mostra como a implantação da prisão, a são impõe, mas que parte dessa desestruturação
crítica de sua ineficácia e o desenvolvimento e a reinsere num campo político estratégico.

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Para os objetivos desse trabalho, seria in- Reconfigurações
teressante ressaltar que essas constribuições Uma primeira demarcação de distância
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reservam um lugar de destaque para os efei- entre o que Foucault analisou e o momento
tos mais amplos do encareramento. Tanto presente é que já não se entende que a prisão
Rusche e Kirchheimer quanto Foucault con- continuamente fracassa em seus objetivos de-
cebem um jogo de relações mais complexo clarados. Novos objetivos se estabeleceram, de
entre o que acontece dentro e fora da prisão – modo que se faz possível afirmar o anterior-
um jogo que não se reduz à repetição no meio mente impensável: a prisão funciona! Foi so-
externo do que se sabe acontecer do lado de bre essa significativa guinada no pensar e no
Para uma reflexão sobre os efeitos sociais do encarceramento
Rafael Godoi

dentro. Portanto, esse autores realizam, cada exercer o poder de punir que Garland (2001,
um a seu modo, uma problematização so- 2005) focou boa parte de seu trabalho nos úl-
bre a prisão que abarca, desde o princípio, o timos anos. De acordo com o autor, até mea-
questionamento dos efeitos externos e que os dos da década de 1970, os sistemas punitivos
mobilizam inclusive para mais bem qualificar ocidentais funcionavam sob uma configuração
o que se passa dentro da prisão. Para Rusche que ele chama de “penal-walfare”, na qual o
e Kichheimer, não é possível compreender as objetivo declarado era o de reabilitar o de-
condições de funcionamento de uma insti- linquente para o convívio social. A partir de
tuição penal sem conhecer as transformações então, a impossibilidade de se atingir esse pro-
no mercado de trabalho e as condições de pósito deixa de impor sofisticações ao progra-
vida das camadas mais pobres de uma popu- ma punitivo-reformador; o próprio objetivo é
lação. Para Foucault, a gestão diferencial dos reformado, passando a ser concebido como a
ilegalismos em ambiente aberto é o que con- incapacitação, a anulação, a exclusão, a elimi-
fere sentido à produção de uma delinquência nação de indivíduos delinquentes em nome da
no meio interno. Trata-se, portanto, de con- segurança da sociedade. Mas, se o declínio do
tribuições que ajudam a pensar os sentidos ideal de reabilitação é a marca atual da pena de
estratégicos e produtivos da desestruturação prisão, segundo o autor, ele se insere num con-
que os outros autores denunciam. junto mais amplo de reconfigurações. E são
essas reconfigurações que recolocam na ordem
De todo modo, entre o momento em que do dia o problema de se repensarem as fun-
autores como Rusche e Kirchheimer e Foucault cionalidades estratégicas da prisão e os efeitos
publicaram seus trabalhos e a atualidade, um mais amplos do encarceramento.
importante conjunto de transformações teve
lugar na sociedade em geral e, particularmente, Para abordar essas reconfigurações, Garland
nas instituições penitenciárias. A prisão que se também reserva um lugar destacado ao que se
faz presente em círculos familiares e comunitá- passa no ambiente externo à prisão, situando-
rios, como os de Aisa e Nina, no começo do as no que chama de “campo do controle do de-
século XXI, é uma instituição profundamente lito e justiça penal”, uma ampla rede de agen-
alterada e que adquire um renovado lugar na tes, instituições, práticas e discursos que se es-
sociedade mais ampla. truturam ao redor do crime e de sua punição,

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extravasando em muito os limites dos sistemas cadas no real, no imediato, no evidente, sem
punitivos e até mesmo do próprio Estado. maiores problematizações. Esses agentes são

Artigos
No escopo desse trabalho, bastará apresentar proclamadores fundamentais de afirmações
esquematicamente algumas das principais re- como: A prisão funciona! Ela incapacita o
configurações nesse amplo campo para se fazer criminoso perigoso! Ela vinga a vítima ino-
uma ideia dos desafios teóricos e analíticos que cente! Ela protege a sociedade!
se apresentam na atualidade.
Ao mesmo tempo, os saberes técnicos são
Em primeiro lugar, Garland sugere que a mobilizados para dar sustentação às novas po-

Para uma reflexão sobre os efeitos sociais do encarceramento


Rafael Godoi
figura da vítima passa a ocupar uma posição líticas e, nesse movimento, são reformulados,
central no campo do controle do delito e jus- assumindo para si outros problemas e desafios.
tiça penal, mobilizando reformas legislativas e A partir da década de 1970, emerge um novo
decisões judiciais mais severas. Assim, as medi- tipo de saber especializado que toma o infra-
das punitivas são requalificadas como formas tor como um agente racional que aproveita
de retribuição e proteção das vítimas reais e/ oportunidades delitivas que se apresentam no
ou potenciais, em lugar de serem vistas como ambiente, de modo que as causas do crime já
meios técnicos de reabilitação de indivíduos não são atribuídas a macroprocessos sociais,
infratores para o convívio social. Esse movi- mas sim a insuficiências nos investimentos em
mento é acompanhado de uma progressiva controles situacionais, ambientais ou compor-
politização da segurança, isto é, o problema tamentais. A partir desse arranjo, desenvolve-
da segurança vai se consolidando como uma se uma percepção generalizada de que os riscos
questão central na vida política, econômica e do crime quase naturalmente se proliferam no
social, e todos os esforços que se fazem no sen- ambiente, sendo que toda uma infraestrutura
tido de promovê-la são, ao mesmo tempo, bem de prevenção do delito, de segurança pessoal e
vistos e sempre insuficientes. comunitária se expande. A ação policial deixa
de ser vista simplesmente como o “combate ao
Essa obsessão securitária é promovida por crime”, passando a ser considerada um serviço
políticos e personalidades públicas dos mais de distribuição de segurança.
diferentes matizes ideológicos, que, baseados
num grande e pretenso consenso – naquilo A autossuficiência e a exclusividade da ação
que julgam todos saberem e compartilharem policial contra o crime são colocadas em ques-
sobre o delito e a justiça –, passam a ser cada tão, passando a ser incentivado todo um arran-
vez mais determinantes na conformação de jo sinergético de diferentes atores locais e co-
políticas e programas penais. O discurso téc- munitários, que, por outros instrumentos e em
nico e especializado é deslocado para segun- colaboração com a polícia, passam a ser vistos
do plano, de modo que as políticas criminais como estratégicos para a “segurança pública”.10
e penais passam a ser formuladas num tipo A sociedade civil e a iniciativa privada são cha-
de discurso popular, populista, como respos- madas à tarefa de colaborar com o controle do
tas simples e reações diretas, exemplares, cal- delito, de modo que as fronteiras institucionais

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do “Estado” se diluem e seu monopólio sobre importância de que a pesquisa social se volte
o controle da violência é substituído por uma para os vínculos, práticas e significados so-
Artigos

economia mista de produção da segurança. ciais que são produzidos em função de uma
prisão que se pretende segregadora, anulado-
Nesse novo “mercado aberto” da segurança, ra, incapacitante. É possível que, conhecen-
forças policiais e empresas de segurança priva- do as trajetórias, estratégias de sobrevivência
da, instituições estatais e organizações da so- e redes de sociabilidade de pessoas afetadas –
ciedade civil compartilham uma mesma racio- direta e indiretamente – pela prisão, consiga-
nalidade empresarial de prestação de serviços, se desenvolver uma nova forma de descrever
Para uma reflexão sobre os efeitos sociais do encarceramento
Rafael Godoi

focalizando recursos, estabelecendo metas e e analisar os efeitos mais amplos do encarce-


apoiando-se em indicadores de desempenho. ramento no contexto atual.

A resultante desse amplo conjunto de veto-


res é um cada vez mais intenso uso do encar- Considerações finais
ceramento, acompanhado de uma ampliação Impossível, nos limites desse trabalho, fa-
da duração das penas; fatores que elevam a po- zer justiça à riqueza e complexidade dos es-
pulação penitenciária a níveis até então desco- tudos e autores abordados. Porém, talvez seja
nhecidos. O encarceramento em massa, a am- esse um custo incontornável quando o que se
pliação dos parques penitenciários e o incre- pretende é mobilizar a tradição teórica para
mento nas taxas de encarceramento são alguns assentar as bases de uma abordagem crítica
dos efeitos imediatos dessas amplas reconfigu- do presente. Assim, seria razoável concluir
rações que se articulam à nova convicção de esse trabalho com três ponderações sintéticas.
que a prisão funciona. É nesse contexto que Em primeiro lugar, é preciso ponderar que,
a prisão se torna uma instituição socializadora nas páginas precedentes, pretendeu-se tão so-
de amplas parcelas da população, passando a mente explorar, em algumas das mais impor-
fazer parte do cotidiano de um número cada tantes formulações teóricas sobre o tema pe-
vez maior de pessoas e a reesturutrar sociabili- nal, argumentos, pressupostos e raciocínios
dades familiares e comunitárias. que parecem contribuir para a elaboração de
parâmetros de análise dos efeitos sociais mais
Agora – e retomando a hipótese produ- amplos do encarceramento na atualidade. Em
tiva foucaultiana – se, para o século XIX, o segundo lugar, deve-se ponderar que as dife-
segredo da produtividade da prisão estava na rentes contribuições teóricas não foram mo-
eficácia inversa que aparecia como acusação bilizadas para serem integralmente refutadas,
de fracasso, na própria produção da delin- nem comprovadas, nem aplicadas, porque se,
quência, no final do século XX e começo do de um lado, é verdade que todas elas – com
XXI, inversamente, talvez o segredo do que suas potencialidades e limites – são impor-
a prisão massificada vem produzindo esteja tantes para estabelecer referências analíticas
no fracasso escondido sob a proclamação rei- mínimas, de outro, nenhuma delas parece ser
terada de que a prisão funciona. Por isso a inteiramente suficiente como modelo para o

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pesquisador interessado em compreender o – e, de outro, pela replicação no ambiente
renovado lugar das instituições prisionais na externo de um modelo analítico-descritivo

Artigos
sociedade atual. formulado para dar conta do que aconte-
ce no meio prisional interno. Diante disso,
Finalmente, também é pertinente ressaltar propôs-se desenvolver uma perspectiva de
que, mais do que resenhar uma bibliografia análise que incorpore, desde o princípio, as
de referência, esse trabalho encerra críticas e dinâmicas sociais externas à prisão, buscando
propostas. Nele, procurou-se apontar para as uma abordagem mais sistêmica, que conside-
insuficiências da “hipótese da desestrutura- re os conflitos de classe e as relações de poder,

Para uma reflexão sobre os efeitos sociais do encarceramento


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ção”, de um lado, pelo que ela deixa escapar que interpele a funcionalidade estratégica do
no mundo empírico – por tudo o que ela não encarceramento e suas transformações e que
explica ou reduz à incompletude e imperfei- conceba um jogo mais complexo de relações
ção na trajetória de pessoas como Nina e Aisa entre o dentro e o fora da prisão.

1 O artigo adapta questões trabalhadas na dissertação de mestrado intitulada Ao redor e através da prisão: cartografias do dispositivo carcerário contemporâneo,
defendida em 2010, no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Vera da Silva Telles.

2 Todos os nomes são fictícios.

3 Pacote de roupas, artigos de higiene e alimentos levado pelo familiar ao preso.

4 Para uma reflexão sobre o sistema penitenciário catalão a partir da trajetória de vida de Aisa, ver Godoi (2008).

5 Experimento de simulação de uma prisão, com voluntários desempenhando os papéis de presos e vigilantes.

6 Os resultados do experimento estão disponíveis em: <http://www.prisonexp.org/>. Consulta feita em maio de 2010.

7 Mais do que designar uma necessária superioridade analítica diante da hipótese da desestruturação, o adjetivo “produtivo” quer enfatizar a heterogeneidade
de outro campo de problematização, que confere pertinência a outros elementos empíricos e teóricos.

8 A prisão não reduz a criminalidade, provoca a reincidência, fabrica delinquentes, permite sua organização coletiva, etc.

9 O objetivo da prisão é transformar os indivíduos; os presos devem ser separados segundo suas especificidades; a duração da pena deve variar segundo os
progressos do indivíduo; o preso deve trabalhar e se educar; os profissionais da prisão devem ser especializados; e o egresso da prisão deve ser assistido
para não reincidir.

10 Para uma discussão acerca dos recentes deslocamentos nas práticas policiais, ver: O´MALLEY, P; HUTCHINSON, S. (2007). Sobre o crescente envolvimento da
comunidade local nas políticas de segurança, ver: ROSE (1996).

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Para uma reflexão sobre os efeitos sociais do
encarceramento
Artigos

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Resumen Abstract
Para uma reflexão sobre os efeitos sociais do encarceramento
Rafael Godoi

Para una reflexión sobre los efectos sociales del A reflection on the social effects of imprisonment
encarcelamiento This article discusses the broader social effects of
El artículo discute los efectos sociales más amplios del imprisonment, especially for the families of prisoners and
encarcelamiento, principalmente para las familias y their communities. Different theoretical perspectives on
comunidades de origen de los presos. Se exploran en sus imprisonment and its effects are explored, including their
fundamentos diferentes perspectivas teóricas sobre la prisión foundations, potentials and limits. The goal is to provide a
y sus efectos, potencialidades y límites, con el objetivo de contribution to the construction of a critical approach on this
contribuir a la construcción de un abordaje crítico sobre el topic for the present time.
tema en la actualidad.
Keywords: Prison. Social effects. Theoretical perspectives.
Prisonization.
Palabras clave: Prisión. Efectos sociales. Perspectivas
teóricas. Encarcelamiento.

Data de recebimento: 09/12/2010


Data de aprovação: 29/01/2011

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