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ÁLVARO DE CAMPOS

Sendo o heterónimo pessoano que o poeta mais publicou, Álvaro de Campos é também aquele
que apresenta uma evolução mais nítida, podendo na sua obra distinguir-se três fases. Assim, os seus
primeiros poemas, escritos durante a viagem ao Oriente, aproximam-se de outros poetas da viragem
do século, os decadentistas; mas o seu verdadeiro génio vanguardista revela-se na sua fase futurista,
quando escreve poemas como a Ode Triunfal e a Ode Marítima; finalmente, numa terceira fase,
escreve uma poesia mais intimista.

A grande viragem na poesia de Álvaro de Campos aconteceu, de acordo com um relato seu,
depois de ter conhecido Alberto Caeiro, numa viagem que fez ao Ribatejo. Em Caeiro, reconheceu
imediatamente o seu Mestre, aquele que o introduziu no universo do sensacionismo. Mas enquanto
Caeiro acolhe tranquilamente as sensações, Campos experimenta-as febrilmente, excessivamente.
Tão excessivamente que, querendo “sentir tudo, de todas as maneiras”, parece esgotar-se a seguir,
caindo numa espécie de apatia melancólica, abúlica, ou num devaneio nostálgico que o aproxima de
Fernando Pessoa ortónimo com quem partilha o ceticismo, a dor de pensar, a procura do sentido no
que está para além da realidade, a fragmentação do “eu”, a nostalgia da infância irremediavelmente
morta.

A fase decadentista

O poema característico desta fase é Opiário, motivado por uma viagem de Campos ao Oriente.
Foi escrito para o número 1 da revista Orpheu. Neste poema, a nostalgia e a expressão do tédio, do
cansaço e da saturação da civilização provocam a necessidade de novas sensações, muitas vezes
tentadas na embriaguez do ópio. Os estupefacientes surgem aqui como escape à monotonia e a um
certo horror à vida. São um estimulante que, no entanto, nada resolve. Como o próprio reconhece no
poema, “A vida sabe-me a tabaco louro. / Nunca fiz mais do que fumar a vida”. Por isso, resta-lhe o
desejo da calma para “não ter estas sensações confusas”.

O decadentismo surge como uma atitude estética finissecular que exprime o tédio, o enfado, a
náusea, o cansaço, o abatimento e a necessidade de novas sensações. Traduz a falta de um sentido

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para a vida e a necessidade de fuga à monotonia. Com rebuscamento, preciosismo, símbolos e
imagens, apresenta-se marcado pelo romantismo e pelo simbolismo.

A fase futurista

A segunda fase da obra de Campos designa-se por futurista e é marcada pela inspiração em Walt
Whitman e no futurismo de Marinetti através do sensacionismo.

Nesta fase, Álvaro de Campos celebra o triunfo das máquinas, da energia mecânica e da
civilização moderna. Apresenta a beleza dos “maquinismos em fúria” e da força da máquina por
oposição à beleza tradicionalmente concebida. Exalta o progresso técnico, essa “nova revelação
metálica e dinâmica de Deus”. Sente-se nos seus poemas uma atração quase erótica pelas máquinas,
símbolo da vida moderna. Há no poeta uma paixão visceral pela civilização moderna industrial: “Ah,
poder exprimir-me todo como um motor se exprime! Ser completo como uma máquina!” (“Ode
Triunfal”). A Ode Triunfal ou a Ode Marítima são bem o exemplo desta intensidade e totalização das
sensações. Mas, a par desta paixão, há a náusea provocada pela poluição física e moral da vida
moderna: “À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica / Tenho febre e escrevo. /
Escrevo rangendo os dentes...” (Ode Triunfal). Álvaro de Campos canta a civilização moderna sem
deixar de referir o seu lado negativo, onde a máquina e as conquistas da civilização mecânica lhe
causam uma dolorosa impressão.

A sua procura da chave do ser e da inteligência do mundo torna-se desesperante. Tanto a Ode
Triunfal como a Ode Marítima são uma epopeia do mundo mecânico, do mundo do futuro que
caminha para o absurdo. Concretamente, na Ode Triunfal, Álvaro de Campos canta a fraternidade de
todas as dinâmicas. Canta a civilização e a corrupção na política, os progressos, todas as coisas
modernas; canta a raiva mecânica em contraste com o desejo de sossego e de serenidade. Mas é já
aqui na Ode Triunfal e também na Ode Marítima que Álvaro de Campos nos dá a sensação de uma
frustração radical – é na máquina, irracional e exterior, que se projetam os sonhos e os desejos do
poeta: “Ah poder exprimir-me todo como um motor se exprime! / Ser completo como uma máquina”.

Futurista, canta a civilização industrial e, estilisticamente, introduz na linguagem poética a


terminologia desse mundo mecânico citadino e cosmopolita, contemporâneo das máquinas e da luz
elétrica.

O futurismo caracteriza-se pela exaltação da energia, de “todas as dinâmicas”, da velocidade e da


força até situações de paroxismo. Procura um corte e mesmo o aniquilamento do passado para
exaltar a necessidade de uma nova vida futura, onde se tenha a consciência da sensação do poder e
do triunfo. Álvaro de Campos adere ao futurismo ao negar a arte aristotélica ou ao procurar de forma
vigorosa a inovação estética e ideológica da arte.

A segunda fase de Álvaro de Campos está marcada pela intelectualização das sensações ou pela
sua desordem, pela integração na civilização da máquina, pela pressa mecanicista e pela inquietude.
Campos, nesta exaltação do paroxismo, da velocidade e da força, mostra-se impaciente, sente a
força da realidade que lhe faz vibrar todo o corpo. Sente “uma sinfonia de sensações / incompatíveis
e análogas”. Cativo dos sentidos, procura dar largas às possibilidades sensoriais. Verdadeiro
sensacionista, procura o excesso violento de sensações (à maneira de Walt Whitman).

O sensacionismo de Campos começa com a premissa de que a única realidade é a sensação. Mas a
nova tecnologia na fábrica e nas ruas da metrópole moderna provocam-lhe a vontade de ultrapassar
os limites das próprias sensações, numa vertigem insaciável.

Álvaro de Campos aprende de Caeiro a urgência de sentir, mas não lhe basta a “sensação das
coisas como são”. Ele não se contenta senão com “sensações brutais”. O seu sensacionismo
distingue-se do de Alberto Caeiro na medida em que este heterónimo considera as sensações
captadas pelos sentidos como a única realidade, mas rejeita o pensamento, que para ele é uma
doença. Por sensação entende Caeiro a sensação das coisas tais como são, sem acrescentar
quaisquer elementos do pensamento pessoal, convenção, sentimento ou qualquer outro lugar da
alma. Para Campos, a sensação é tudo, sim, mas não necessariamente a sensação das coisas como
são, antes das coisas conforme sentidas. De modo que vê a sensação subjetivamente e faz esforços,
uma vez que assim pensa, não para desenvolver em si a sensação das coisas como são, mas toda a
espécie de sensações de coisas, e até da mesma coisa. Sentir é tudo: é lógico concluir que o melhor é
sentir toda a espécie de coisas de todas as maneiras, ou, como diz o próprio Álvaro de Campos,
“sentir tudo de todas as maneiras”. Assim, aplica-se a sentir a cidade na mesma medida em que

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sente o campo, o normal como sente o anormal, o mal como sente o bem, o mórbido como sente o
saudável. Nunca interroga, sente. É o filho indisciplinado da sensação.

Este desmedido sensacionismo de Campos vai dar origem ao seu estilo desmedido que constitui a
maior rutura na literatura portuguesa e o ponto mais alto do Modernismo (Futurismo) em Portugal.
Campos busca, na linguagem poética, exprimir a energia ou a força que se manifesta na vida. Daí o
surgimento de versos livres, vigorosos, submetidos à expressão da sensibilidade, dos impulsos, das
emoções. Numa linguagem em estilo torrencial, nervoso e exuberante, com marcas da oralidade,
expressa o mundo do progresso técnico. Recorrendo à mistura de níveis de língua, apresenta desvios
sintáticos, construções nominais, infinitivas e gerundivas, exclamações, apóstrofes, interjeições e
pontuação emotiva. Os versos livres, muitas vezes longos, surgem cheios de onomatopeias,
aliterações, anáforas, enumerações excessivas e recursos variados, como metáforas ousadas,
oxímoros, personificações, hipérboles e comparações.

A fase intimista ou abúlica

A terceira fase em Álvaro de Campos designa-se por intimista ou da abulia. Nela se revela a
desilusão, a revolta, a inadaptação, o cansaço, a abulia e uma grande angústia. Após a exaltação
heroica e a obsessão dos “maquinismos em fúria”, cai no desânimo e na frustração. Face à
incapacidade das realizações, sente-se abatido.

Este abatimento, que provoca em Álvaro de Campos “um supremíssimo cansaço, / íssimo, íssimo,
íssimo, / Cansaço...” lembra o decadentismo, mas esta decadência não possui o mesmo sentido
literário e histórico “post-simbolista”, antes traduz a reflexão intimista e angustiada de quem apenas
sente o vazio depois da caminhada heroica.

Nesta fase, Campos sente-se vazio, um marginal, um incompreendido. Sofre fechado em si mesmo,
angustiado e cansado.

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