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Mariana Barcinski 01 PDF
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Mariana Barcinski 1
Abstract The goal of the present article is to discuss Resumo O presente artigo tem o objetivo de proble-
the traditional victimization of women who get in- matizar a tradicional vitimização de mulheres que
volved in criminal activities, focusing on agency and se envolvem com atividades criminosas, chamando
personal initiative as the main motivators. Through a atenção para o protagonismo e a iniciativa pessoal
the discursive analysis of qualitative interviews with como motivadores para trajetórias criminosas femi-
five women with a history in drug trafficking in Rio ninas. A partir da análise discursiva de entrevistas
de Janeiro we sought to capture the dilemmas that qualitativas com cinco mulheres com uma história
characterize the ways in which these women justify passada de envolvimento na rede do tráfico de drogas
their participation in a traditional male activity. At no Rio de Janeiro, a intenção é captar os dilemas que
a micro level, the analysis focuses on the rhetoric caracterizam a forma como estas mulheres justifi-
efficacy of the different positions assumed by the par- cam a sua inserção numa atividade criminosa pri-
ticipants1. At a macro level, the analysis investigates mordialmente masculina. Ao nível micro, a análise
how the participants appropriate different discours- tratará da eficácia retórica dos diversos posiciona-
es about womanhood in order to give sense to their mentos assumidos pelas participantes1. De forma
personal histories2. The results show that the partic- complementar, investigará de que forma as entrevis-
ipants oscillate between appealing to external causes tadas se apropriam de discursos hegemônicos acerca
for justifying their choice (such as the lack of options da feminilidade para dar sentido às suas estórias pes-
characterizing the trajectory of marginalized popu- soais2. Os resultados demonstram que as participan-
lations and the personal involvement with criminal tes ora apelam para os motivos externos que justifi-
partners) and assuming responsibility for having been cam suas escolhas (como a falta de opção que marca
involved in drug trafficking. In this case, they often a trajetória de populações marginalizadas como os
mention the power and respect they used to experi- favelados ou o envolvimento com parceiros crimi-
ence as traffickers as the main motivator for their nosos), ora assumem total responsabilidade por te-
criminal trajectory. rem se envolvido com o tráfico de drogas. Neste últi-
Key words Agency, Gender, Criminality, Discourse mo caso, é comum que citem o poder e o respeito que
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Centro Latino-Americano
de Estudos Violência e
experimentavam como traficantes como o principal
Saúde Jorge Careli, Escola motivador para suas escolhas.
Nacional de Saúde Pública. Palavras-chave Protagonismo, Gênero, Crimina-
Fiocruz. Av. Brasil 4.036/
700, Manguinhos.
lidade, Discurso
21040-361 Rio de Janeiro
RJ. barcinski@fiocruz.br
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Barcinski M
sas mulheres enfatizam a subordinação principal- que segundo ela decide deliberadamente se envol-
mente a homens criminosos como o motivador ver com criminosos, em busca do status e do reco-
das suas vidas no crime. Desta forma, a participa- nhecimento advindos desta posição. Sandra é uma
ção destas mulheres no tráfico de drogas, em vez vítima inocente. Como aqueles que encontram no
de motivada por uma escolha pessoal, é descrita tráfico de drogas a única opção econômica dispo-
como o resultado da influência de homens envol- nível, ela também não teve escolha senão servir de
vidos na atividade. Como “mulheres de bandido”, cúmplice nos crimes do seu marido e filho.
elas não tiveram outra opção senão servirem de Ao se referir às namoradas do seu filho (morto
cúmplices nos crimes cometidos por seus parcei- pela polícia durante um assalto, aos dezenove
ros. Se por um lado o caráter involuntário desta anos), Sandra deixa clara a distinção que faz entre
participação é amplamente descrito na literatura4,9, ela e àquelas mulheres que intencionalmente se
é interessante notar o uso retórico que as partici- envolvem com bandidos. É assim que ela se refere
pantes fazem desta posição. Como vítimas de uma às “viúvas” do seu filho: ele deixou nove putas, nove
situação para além do seu controle, estas mulheres viúvas, cinco grávidas.
não devem ser responsabilizadas pelo caminho que Sandra faz um julgamento bastante rígido das
seguiram no passado. Ao contrário do protago- mulheres que se envolvem com bandidos por es-
nismo, do desejo pessoal e da intencionalidade tão colha. Em sua opinião, seu filho tinha nove namo-
claramente professados, aqui as mulheres são des- radas simplesmente porque era bandido; nenhu-
critas como passivas diante do risco de estarem ma das namoradas teria se envolvido com ele caso
envolvidas com um parceiro criminoso. ele estivesse trabalhando em uma atividade regu-
Curiosamente, nos casos em que as mulheres lar. O termo que ela usa para se referir a estas
posicionam-se como vítimas, o protagonismo é mulheres (putas) evidencia o julgamento que San-
reconhecido como propriedade de outras mulhe- dra faz delas. Interessante notar que o termo diz
res que, voluntariamente, decidem se envolver com respeito ao comportamento sexual destas mulhe-
bandidos. Esse reconhecimento vem, em geral, res. Em contraste, Sandra em nenhum momento
acompanhado de um julgamento acerca do cará- problematiza o fato do seu filho ter tido nove na-
ter destas mulheres. Portanto, é legítimo e justifi- moradas; o possível comportamento promís-
cável o caso de mulheres que se envolvem com o cuo do seu filho não é alvo de seu julgamento.
tráfico de drogas em virtude de suas relações amo- Nos casos acima discutidos, as participantes
rosas, mas altamente condenável o caso daquelas posicionam-se ambas como protagonistas de his-
que decidem por conta própria ingressarem no tórias e vítimas de uma realidade social ou pessoal
crime. O protagonismo aqui é identificado como fora de seu controle. Na maioria dos casos, os dois
uma característica negativa, diretamente equacio- discursos aparentemente contraditórios são apro-
nada com o desejo ilegítimo e reprovável que cer- priados por uma mesma participante.
tas mulheres têm de se sentirem poderosas. O po- A insistência das participantes em posiciona-
der, mais uma vez, é identificado como uma pro- rem-se como agentes é, de alguma forma, sur-
priedade masculina. Nestes casos, no entanto, as preendente se pensarmos nos comportamentos
mulheres não devem almejar o poder, que deve ser criminosos sobre os quais elas assumem respon-
exclusivamente exercido por homens. sabilidade. Como a agressão e a violência explícita
Sandra tem quarenta e um anos e seu envolvi- não fazem parte dos discursos culturalmente as-
mento no tráfico, segundo ela, é resultado do seu sociados às mulheres, os relatos em que as partici-
relacionamento com o marido e o filho envolvidos pantes posicionam-se desta forma parecem cair
na atividade. Por causa destas relações, Sandra cos- sobre a rubrica de contra-discursos. Produzidos
tumava esconder drogas e armas em casa, além de às margens, como uma reação a discursos hege-
dirigir em assaltos planejados por seu marido. Dian- mônicos, os contra-discursos capturam a com-
te do seu óbvio envolvimento em atividades crimi- plexidade que caracteriza as experiências pessoais10.
nosas, ela enfatiza a sua inocência diversas vezes no Conforme ilustrado pelos dados aqui analisa-
curso de suas entrevistas: [eu] não tinha paz, não dos, a decisão de entrar para o tráfico de drogas é
tinha paz, parecia que eu fiz um pacto com o capeta, justificada pelas participantes primordialmente de
mas eu não fiz. Eu não sabia, eu era inocente. duas formas: como motivada pela falta real ou
Ao contrário de outras mulheres que ela des- percebida de opções ou determinada por uma es-
creve, Sandra desconhecia as atividades crimino- colha deliberada. Ao adotar determinadas estraté-
sas do seu marido quando casou com ele, aos treze gias, é interessante notar a forma com que as en-
anos de idade. Por este motivo, ela não se conside- trevistadas reproduzem os discursos freqüente-
ra uma típica “mulher de bandido”, aquela mulher mente usados para descrever os favelados. Souza e
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Referências