Você está na página 1de 8

ORIENTALISMO: REPENSANDO AS CATEGORIAS DE ORIENTE E

OCIDENTE.

Resumo: Este trabalho propõe uma reflexão sobre a relevância da crítica à dicotomia
Ocidental e Oriental com base na obra de Edward Said, Orientalismo (2007) relacionando-o
com a noção de discurso empregada por Michel Foucault e como esse fenômeno da
hegemonia Ocidental tem sua influência no cenário global até os dias atuais. Realizaremos
uma breve análise sobre o colonialismo europeu ocidental e a sua construção considerando o
Mediterrâneo como palco de grandes mudanças e atuação de novas ideias que nos levam as
questões atuais que se desdobram na construção do orientalismo.

Edward Said irá aplicar o procedimento foucaultiano da arqueologia do saber para


compreender o Orientalismo não como uma ideologia, uma prática irônica, sínica ou mau.
Tem como objeto de análise não a consciência dos proferidores do discurso orientalista, mas
sim a própria constituição deste discurso. Tal discurso se a apresenta em âmbito político,
social e cultural de modo que sua hegemonia motivou a divisão da sociedade em dominados e
dominantes. Por meio de, inclusive, produções historiográficas de meados do século XIX
E.C., justificando a supremacia Ocidental e posicionando como inferior o desenvolvimento
cultural do Oriente.

Palavras Chaves: Alteridade, Discurso, Etnocentrismo, Hegemonia, Ocidente, Oriente.

***

1. Mediterrâneo: conector de nações

“[...] o processo de integração [...] se iniciou ainda no terceiro milênio a.C., a chamada
Idade do Bronze, e envolveu, principalmente, o Mediterrâneo oriental” (GUARINELLO,
2016, p.55). “A descoberta de rotas marítimas no início do segundo milênio aponta que os
mares do Egeu e da Ásia Menor deram início à exploração do mediterrâneo como o palco das
relações de troca e comércio, entre os homens de diferentes regiões orientais e ocidentais”
(BRAUDEL, 1988). Mediante as relações construídas através do mar, a cada dia os homens
buscavam se especializar na navegação e nas embarcações, pois possuir o controle do mar
significava poder.

1
Os fenícios, durante o segundo milênio, desenvolveram importantes técnicas de
navegações e dominaram, por muito tempo, o comércio marítimo, já que se encontravam em
uma situação favorável em relação às outras sociedades. Já no século VII a.C., o Mediterrâneo
passou para o domínio não só apenas dos fenícios, mas também de outros grupos que nele
navegavam: os etruscos e os gregos.

Entende-se, por fim, que orientais deram início à exploração do mar mercantil,
contudo, sociedades ocidentais, também aprimoraram seu conhecimento sobre o Mediterrâneo
Conector. Com a descoberta de novas rotas marítimas, que desenvolveram (sobretudo os
habitantes da Península Itálica, pois eram peritos no domínio do mar) com o aperfeiçoamento
das técnicas de navegação, contribuíram para a imposição da Europa como modelo de
desenvolvimento, maximizando a divisão de Ocidente e Oriente. Logo, a unificação do
mundo através das vias oceânicas resultou em dominação europeia, uma vez que o mar era
vetor dos privilegiados do comércio, da população local dos diversos territórios percorridos e,
posteriormente, da colonização à distância.

“O Oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material europeia”


(SAID, 2007, p. 28). Esta fala do autor toma forma por meio da desconstrução de
comparações etnocêntricas e põe em evidência como o Oriente se reflete no Ocidente como
um discurso construído. Ressalta-se, portanto, a importância em contestar o imaginário
eurocêntrico na reconstrução da cultura oriental tendo em vista a organização historiográfica
desde a Antiguidade.

2. O “eu” certo e o “outro” errado: uma visão etnocêntrica do Mundo Oriental

O Oriente sempre foi palco de uma relação de interesses pautada em um discurso


etnocêntrico que visa ressaltar a superioridade do Ocidente. Podemos dizer que, no decorrer
do tempo, o pensamento etnocêntrico teve seu apogeu marcado pela alteridade, o choque de
cultura preponderante e intensificado no séc. XXI E.C. Esse conceito baseia-se na visão do
mundo na qual uma etnia, uma nação ou nacionalidade é a essência de tudo, por isso o outro
deve seguir seus conceitos de mundo e suas tradições.

Said (2007) trata desse etnocentrismo, levando em conta a hegemonia do Ocidente


sobre o Oriente, tomando como exemplo a imposição da Inglaterra sobre o Egito no contexto
do período da expansão europeia (séc. XIX e início do séc. XX E.C.), que teve a

2
predominância do Colonialismo expandindo seu território. Os dois maiores impérios eram o
da Inglaterra e o da França, aliados em alguns casos e rivais em outros.

A minha ideia é de que o Orientalismo deriva de uma intimidade


particular experimentada entre a Grã-Bretanha, a França e o Oriente, que até
o início do século XIX significava apenas a Índia e as terras bíblicas. Do
começo do século XIX até o fim da Segunda Guerra Mundial, a França e a
Grã-Bretanha dominaram o Oriente e o Orientalismo; desde a Segunda
Guerra Mundial, os Estados Unidos dominam o Oriente, abordando-o como
a França e a Grã-Bretanha outrora fizeram (SAID, 2007, p. 30-31).

Com base no discurso enunciado por Arthur James Balfour para a Câmara dos
Comuns, datado de 13 de junho de 1910, o autor define essa hegemonia auto declarada pelos
europeus, a Inglaterra em especial, em relação à cultura oriental, neste caso o Egito. Segundo
Balfour, era necessária a ocupação do Egito pela Inglaterra, porém sua afirmação não se dava
por um discurso de superioridade e inferioridade e, sim, com base em um domínio de
conhecimento ao invés de um domínio de poder econômico e militar. O conhecimento por ele
proposto estava ligado à análise de uma civilização desde sua origem, até o seu declínio. Ter
conhecimento sobre um objeto supunha, dessa forma, o direito de autoridade e domínio sobre
ele. Porém Balfour nunca negou a superioridade da Inglaterra e inferioridade do Egito, apenas
aceitava naturalmente como consequência desse conhecimento. Dessa forma, Said descreve:

A Inglaterra conhece Egito; o Egito é o que a Inglaterra conhece; a Inglaterra sabe


que o Egito não pode ter autogoverno; a Inglaterra confirma esse conhecimento
ocupando o Egito; para os egípcios, o Egito é o que a Inglaterra ocupou e agora
governa; a ocupação estrangeira torna-se, portanto, “a própria base” da civilização
egípcia contemporânea; o Egito requer, até insistentemente, a ocupação (2007, p.
65).

Empregando a noção de discurso defendida por Foucault em “A arqueologia do Saber”


(1969) e em “Vigiar e Punir” (1975) Said enxergará o Orientalismo – para além de uma
questão de relação de poder e dominação – como parte da construção de um discurso o qual
coloca o Oriente em destaque na experiência Ocidental.

Achei útil neste ponto empregar a noção de discurso de Michel Foucault, assim
como é descrita por ele em Arqueologia do Saber e em Vigiar e Punir. Minha
argumentação é que, sem examinar o Orientalismo como um discurso, não se pode
compreender a disciplina extremamente sistemática por meio da qual a cultura
europeia foi capaz de manejar – e até produzir – o Oriente política, sociológica,
militar, ideológica, científica e imaginativamente durante o período do pós-
iluminismo (SAID, 2007, p.29)

3
Tomaremos aqui como base obra Conceitos Fundamentais (2018) 1
– produzida por
vários colaboradores – para explicar a noção de discurso apresentada por Foucault em suas
obras já citadas acima. Essa noção de discurso surge em seu estudo a partir da análise das
relações de poder – que para ele vem sempre associada a alguma forma de saber -
identificadas por ele como três: o poder disciplinar, qual diz respeito ao individuo. Essa
forma de poder trabalha distribuindo indivíduos, controlando atividades, organizando gêneses
e compondo forças; o biopoder, descrito pelo autor como um poder que se apropria da vida
humana; o poder soberano – a forma mais antiga de poder – sendo esse um poder que deduz,
nele tem-se o direito de tirara não somente a vida, mas também, serviços, trabalhos, produtos,
riquezas. Trata-se, não de uma forma de regulação ou controle, mas de uma forma de
subtração.

Michel Foucault, trabalha com diferentes analises e “teorias” (grifo do autor) acerca do
poder tentando distingui-las de concepções equivocadas sobre o tema. Contudo para ele, há
uma concepção equivocada muito importante sobre o poder, a qual o autor entende como
uma visão jurídico-discursiva do poder. Trabalharemos aqui com essa última.

Partindo dessa análise jurídico-discursiva, o poder apresenta cinco características


principais: 1- Opera negativamente, sempre sofrendo interdições; 2- Toma forma de uma
regra ou uma lei (o que é permitido ou não, legal ou ilegal); 3- o poder trabalha como um
ciclo de proibições e interdições, essa terceira característica e formada a partir das duas
primeiras; 4- Aparece com três formas de proibição revelando uma censura: “afirmando que
tal coisa não é permitida/ impedindo-a de ser dita/ negando que exista” (FOUCAULT, 1990, p
84 apud LYNCH In: THAYLOR, 2018, p.28); 5- Esse poder é universal e uniforme em seu
modo de funcionar.

Foucault denomina essa visão de poder de jurídico-discursiva, pois é uma forma de


poder especificamente jurídico, centrado na declaração de leis e operação de tabus
(FOUCAULT, 1990, p 85 apud LYNCH In: THAYLOR, 2018, p.29). Contudo o poder não
se reduz a uma forma de dominação ou de lei, pois funciona em diversas formas e diferentes
meios e técnicas. Dentro de tal visão, o poder torna-se exclusivamente discursivo, onde suas
restrições se baseiam em uma lógica de censura, restringindo tanto a realidade quanto a ação

1
Titulo original- Michel Foucault: Conceitos Fundamentais (2018)
4
para além também da linguagem montando uma narrativa, onde por mais que não se enxergue
há uma interferência externa.

Nesse sentido, a superioridade Ocidental idealizada ao longo do tempo e até os dias


atuais é construída através de um discurso erudito, acadêmico e midiático, político, que
complementa a programação de canais explicativos e, em sua maioria, se torna predominante
na explicação da cultura oriental. “O olho que vê é o órgão da Tradição” (BOAS 1986). A
frase de Franz Boas (1858-1942) expressa bem o etnocentrismo moldado. O fato é que
ninguém consegue ver com olhos livres: isentos das preconcepções de seu próprio tempo e
sua própria cultura. O Oriente por sua vez é enxergado através de uma interferência externa
(ocidental) que internaliza uma memória oriental pré-programada, que opera por meio de
tabus modificando a realidade.

O Orientalismo não é um simples tema ou campo político refletido passivamente


pela cultura, pela erudição ou pelas instituições; nem é uma grande e difusa
coletânea de textos sobre o Oriente; nem é representativo ou expressivo de alguma
execrável trama imperialista “ocidental” para oprimir o mundo “oriental”. É antes a
distribuição de consciência geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos,
sociológicos, históricos e filológicos; é a elaboração não só de uma distinção
geográfica básica (o mundo é composto de duas metades desiguais, o Oriente e o
Ocidente), mas também de toda uma série de “interesses” que, por meios como a
descoberta erudita, a reconstrução filológica, a análise psicológica, a descrição
paisagística e sociológica, o Orientalismo não só cria, mas igualmente mantém; é,
mais do que expressa, uma certa vontade ou intenção de compreender […] o que é
um mundo manifestamente diferente. (SAID, Edward, 2007, p.40-41).

3. Desconstruindo a visão do Oriente pelo Ocidente

O Oriente foi relegado de sua tradição cultural, social e econômica ao ser subjugado
por uma construção de memória ocidental, junto a mitos que serviram de fundamentos para a
visão eurocêntrica do mundo. O que dele é conhecido foi idealizado de acordo com o
interesse europeu no processo etnocêntrico de dominar aqueles que podem ser dominados.
Esse etnocentrismo evidencia ainda a ideia de que o Oriente não faz parte da história ocidental
e ignora todo o estudo da historiografia – sobretudo a historiografia da Antiguidade – a
respeito das culturas que se interligaram por meio do Mediterrâneo.

O pensamento sobre o oriental está enraizado e é enraizado de acordo com as


definições sobre o que é o Oriente na construção de um Oriente Primitivo, reflexo do discurso
civilizatório europeu, segundo o qual a sociedade passaria por estágios definidos como
“atrasado” ou “sem cultura”. Said tenta romper com esse conceito de Orientalismo, que ganha

5
contorno científico no séc.XIX E.C. quando especialistas da História Antiga buscaram
contrapor essas ideias preconceituosas que são perpetuadas por anos.

O Oriente que aparece no Orientalismo, portanto, é um sistema de


representações estruturado por todo um conjunto de forças que introduziram
o Oriente na erudição ocidental, na consciência ocidental e, mais tarde, no
império ocidental [...] O Orientalismo é uma escola de interpretação cujo
material é por acaso o Oriente, sua civilização, povos e localidades (SAID,
2007, p.275-276).

O Orientalismo é interpretado com base nos discursos na erudição, em instituições


públicas e em escritos genericamente determinados. Assim o Oriente é pesquisado, ensinado,
administrado e comentado, seguindo uma forma determinada de compreensão, ou seja, ele é
representado e estruturado de acordo com o discurso que se baseia nos interesses do mundo
ocidental

A relação entre o Ocidente e o Oriente é uma relação de poder, de dominação, de


graus variáveis de uma hegemonia complexa [...] O Oriente não foi orientalizado só
porque se descobriu que eram ‘oriental’ em todos os aspectos considerados lugares-
comuns por um europeu comum do século XIX, mas também porque poderia ser
(SAID, 2007 p. 32).

O Oriente submeteu-se a orientalizado, formou-se assim um modelo de conhecimento


sobre sua cultura, uma maneira de introduzir esse Oriente no pensamento ocidental, assim
como multiplicou as afirmações que transitam do Orientalismo para a cultura de uma maneira
geral. Para Said (op. cit), o Orientalismo é um sinal de poder europeu-atlântico sobre o
Oriente, mais do que um discurso autêntico sobre ele.

As ideologias culturais não podem ser compreendidas sem que seus aspectos de poder
sejam pensado, assim não seria correto admitir que o Oriente foi criado, ou “orientalizado”,
simplesmente por pura necessidade da imaginação, mas, sobretudo, por relações de poder.
Nesse caso, o Oriente não fala por si só, ele é falado e entendido por meio da ideologia criada
no Ocidente, mostrando assim uma relação de poder na qual o primeiro é o dominado, o
submetido, e o segundo é o dominante, o superior. Sobre isso, Guarinello (2016, p. 47)
reflete: “Não é a História Universal, não é a História de uma civilização superior, não é a
História do Ocidente. Não é, igualmente, uma História de sucessivas nações: Oriente
Próximo, Grécia e Roma”.

A história do Mediterrâneo, do Oriente em si necessita da criação de um novo recorte


acerca de seus estudos, pois este ainda é um foco restrito, que apenas substitui as antigas
histórias da Grécia e de Roma. Essa restrição permite a colocação de questões mais
6
especificas, por exemplo: como se deu o processo de integração humana na bacia do
Mediterrâneo? Esse processo de integração se deu entre os séculos X a.C e V E.C. e, embora
seja diferente do atual, é campo bem documentado da história, que nos permite fazer
perguntas interessantes, as quais condizem com nossas questões mais imediatas.

Conclusão

O Oriente é analisado aqui por Edward Said através de uma noção de discurso,
construída e disseminada na sociedade ocidental para a distorção de sua realidade. Essa noção
de discurso é apresentada com base nas relações de poder analisadas por Michel Foucault em
uma visão jurídico-discursiva de tal poder. Toda essa análise tem como resultado o que Said
chama de Orientalismo.

Por fim, reforça-se aqui a necessidade de mais estudos sobre as relações construídas
entre o Ocidente e o Oriente ao logo dos tempos, sendo vital a caracterização e diferenciação
sem que haja sobreposição de culturas. O olhar sobre os objetos históricos perde parte de sua
veracidade ao ser classificado e construído dentro da História Mundial ao invés de ser
discutido dentro de sua singularidade. Mais do que isso, as culturas de antes da Era Comum se
fizeram fundamentais para a construção social e material da Europa, partindo para um dever
historiográfico de contestar discursos de caráter hegemônico e elaborar novas formas de
análise para determinado recorte histórico. Portanto, pode-se refletir que a divisão entre
Oriente e Ocidente trouxe problemas para dentro da historiografia. O imaginário eurocêntrico
sobre o oriental ao longo das eras aponta problemas sociais que tiveram como base o modelo
do “ser civilizado” através de um olhar ocidental.

No cenário global atual, o mundo oriental é explicado e mitificado por meio de um


conhecimento imposto pelas mídias. A ocultação de informação acerca do chamado “mundo
Árabe” constrói um efeito tão cortante na formação de opiniões quanto o ofício de opiniões
talhadas, que continuam a ser distribuídas pelos meios de comunicação de todo o mundo.
Assim, não se pode querer explicar o Oriente por meio da mídia internacional, uma vez que
essa sempre tentará explicá-lo por meio de um critério político.

7
Bibliografia:

BRAUDEL, Fernand. O espaço e a história no Mediterrâneo. São Paulo: Livraria Martins


Fontes, 1ª ed. 1988, cap. 1- “A Alvorada” p. 55-83.

GUARINELLO, Norberto L. História Antiga. São Paulo: Contexto, 1ª ed., segunda


reimpressão, 2016, cap. 3- “O Mediterrâneo: Processos de integração” p.47/55.

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense. 9ª edição,


1996, cap.1- “A Pré-História da Antropologia” p.25-37.

ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 5ª ed.,


1988, cap. 1- Pensando em Partir, p.5-22.

SAID, Eduard W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:


Companhia das Letras, 1ª ed., edição de bolso, 2007.

LYNCH, Richard A. A Teoria do Poder de Foucault. In: TAYLOR, Dianna. Michel


Foucault: Conceitos Fundamentais. Petrópolis- RJ: Vozes, 2018, capitulo 1, p. 23-39.

Você também pode gostar