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COMUNICAR

A mais simples e vulgar das palavras é tão importante na comunicação, rápida e precisa,
do nosso quotidiano, como qualquer vocábulo especializado da mais sofisticada linguagem
técnico-científica. Se, por exemplo, o mestre marceneiro disser ao aprendiz «vai buscar a
garlopa», este cumprirá a ordem se souber de que ferramenta se trata. Caso contrário, em
vez de um único nome que permita aquela comunicação, o mestre ver-se-á obrigado a
descodificá-lo numa linguagem que o seu ajudante entenda ou, então, ir ele próprio buscá-
la porque, simplesmente, o aprendiz ainda não sabe que a garlopa é uma espécie de
plaina comprida feita em madeira de azinho, com a qual se dá acabamento no alisar de
grandes superfícies de madeira, muito usada antes da entrada em cena da maquinaria
hoje habitual em qualquer oficina do sector.

Qualquer actividade humana, da mais humilde à mais sofisticada, da rural à científica, tem
a sua própria linguagem ou o seu jargão, como também se diz. Se é certo que entre as
sociedades mais primitivas se pode conviver com um número reduzido de palavras ou
expressões, aquém do milhar, um técnico especializado, um cientista ou um qualquer
intelectual usa milhares delas, familiares entre pares mas pouco ou nada acessíveis à
maioria dos cidadãos. Quem é que entende a generalidade dos médicos quando,
entrevistados na TV, se esquecem da função pedagógica que poderiam e deveriam ter?

Em qualquer domínio de actividade ou do saber, para além da terminologia de âmbito


geral, há que estabelecer contacto com uma outra, repleta de termos especializados. A
verdade é que estes não podem ser dispensados se se quiserem abordar os conceitos
próprios desse domínio. Uns são termos retirados da linguagem do cidadão comum,
habituais do nosso dia-a-dia. Outros, porém, são invulgares, têm significados precisos e
são essenciais a esse mesmo domínio. A facilidade ou a dificuldade da sua apreensão, por
parte de quem os recebe, reside no respectivo nível de linguagem, factor essencial à
comunicação.

Se, na escola, o vocabulário de uma qualquer disciplina não for suficiente e correctamente
explicado e se, pelo contrário, for debitado como algo a memorizar, em cumprimento de
um programa mal concebido ou mal interpretado, esse vocabulário acaba sempre, mais
tarde ou mais cedo, por ser lançado no caixote do esquecimento, por desnecessário e
enfadonho. Deixa-se, assim, espaço para o interesse por assuntos tidos por mais
apelativos, como o futebol, a literatura cor-de-rosa e outros, com evidente e grave prejuízo
a nível da formação que a escola tem de dar. Um prejuízo que não se limita ao cidadão,
mas que se reflecte na qualidade do Estado.

A terminologia científica é, em boa parte, erudita. Tal acontece porque a ciência europeia
nasceu e cresceu no seio do clero e de uma pequena aristocracia intelectual, as únicas
classes sociais verdadeiramente letradas, dominando o latim e o grego, e,
consequentemente, eruditas. Nasceu, assim, a erudição na linguagem científica. Erudição
que foi e ainda é, muitas vezes, usada como estatuto de classe. É o que vulgarmente se
chama “falar caro”.

Em todos os domínios da Ciência e da Tecnologia são muitos os neologismos criados para


designar novos materiais, novos processos, novos conceitos. Estes novos nomes
permitem a comunicação fácil e precisa entre os seus cultores, mas são, na maioria,
inacessíveis ao vulgo. A democratização do ensino e do acesso às fontes do
conhecimento, verificada ao longo do século XX e hoje potenciada pela explosão da
informática, tem vindo a abranger um número cada vez maior de cidadãos. Ao mesmo
tempo, o estudo do latim e do grego foi deixando de fazer parte dos curricula escolares de
base, línguas que nos ajudam a compreender muitos dos termos do léxico científico e
tecnológico.

Compete a quem ensina ou divulga explicar a terminologia, ou, por outras palavras, “trocar
por miúdos os palavrões” do jargão que é obrigado a usar. Tem de fazê-lo num espírito de
compromisso e equilíbrio entre o uso do vocabulário especializado e a sua descodificação
a cada momento, numa linguagem acessível e, se possível, atraente. É neste cuidado que
reside grande parte do êxito na transmissão do conhecimento, quer na aula, do professor
para o aluno, quer na divulgação científica, através das palavras escritas ou faladas.

No passado ainda recente aceitava-se como normal a existência de elites intelectuais


exercendo actividades baseadas na leitura e na escrita, consideradas menos interessantes
e nada apelativas por parte de uma população maioritariamente ignorante nesses
domínios, a quem apenas se pedia ou exigia trabalho braçal. Estereotipados pelo
romantismo, encafuados em bibliotecas escuras e bafientas, entre livros poeirentos e teias
de aranha, os sábios de então eram tidos por criaturas estranhas, tantas vezes meio
loucas e até, nalguns casos, com eventuais ligações a Lucifer. Entre o vulgo, poucos ou
nenhuns tinham acesso ao trabalho pioneiro destes precursores da investigação científica.
Poucos ou nenhuns aspiravam a uma tal actividade que, para a imensa maioria, era
destituída de qualquer atracção. Estudar? Matar a cabeça, para quê? São expressões em
declínio, mas que foram o dia-a-dia de gerações e gerações e ainda o são numa parte
importante da sociedade dos nossos dias, mesmo em muitos dos países reconhecidos
como democráticos. “O poder do feiticeiro reside na ignorância dos seus irmãos tribais” é
um dito que, na nossa sociedade e no nosso tempo, nos adverte para o facto de só o
conhecimento nos defende dos opressores.

É esta realidade que os professores devem fazer sentir aos seus alunos, em especial aos
mais desprotegidos e atingidos pela exclusão social que grassa em tantas escolas
marcadas pela suburbanidade crescente que caracteriza as sociedades
desenvolvimentistas. É esta realidade que o divulgador tem de transmitir aos que o ouvem
e lêem. O Sistema promove e alarga o fosso entre os que estudam, e assim aspiram e
conquistam o direito à cidadania, e os outros. E nestes outros estão os do trabalho
precário, os marginais, os sem abrigo. É uma obrigação transmitir aos nossos estudantes
esta mensagem, na batalha contra o insucesso escolar. Eles não sabem que estão a ser
vítimas de uma segregação a prazo, conhecida e promovida pelo dito Sistema, e é
necessário que alguém lhes abra os olhos. E esse alguém, à falta da acção dos pais, tem
de ser o professor. Não é fácil, mas não é impossível esta tarefa. Há que saber ganhar a
confiança dos alunos e, também, o seu afecto. Feliz do estudante que goste da
convivência com o seu professor e duplamente feliz se esse professor estiver à altura do
seu papel que, para além de educacional, é, também e sobretudo, social. Transmitir esta
mesma mensagem ao cidadão que ficou à margem do saber científico é um dever moral,
essencial na luta pelo direito a uma condição humana de maior dignidade. E essa tarefa
cabe aos seus concidadãos que tiveram o privilégio de estudar.
Novembro de 2010
A. M. Galopim de Carvalho

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