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Recepção de Heráclito Por Platão PDF
Recepção de Heráclito Por Platão PDF
ASPECTOS DA RECEPÇÃO
DE HERÁCLITO POR PLATÃO
TESE DE DOUTORADO
Rio de Janeiro
Maio de 2009
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2
Ana Flaksman
Ana Flaksman
Ficha Catalográfica
Flaksman, Ana
CDD:100
4
Agradecimentos
A Maura Iglésias, pela orientação deste trabalho, por suas aulas sobre Platão e
pelo apoio, cuidado e incentivo fundamentais durante o curso de doutorado.
A Irley Franco, pelo ânimo e generosidade com que discutiu os temas deste
trabalho, pelas sugestões valiosas, e pela participação na banca examinadora.
A Maria Inês Anachoretta, pela cessão de muitos artigos sobre o Teeteto, pelo
estímulo e pelas conversas que muito enriqueceram esta tese.
A Gilberto Velho, pela leitura e as conversas sobre a tese, pela grande amizade, e
por estar sempre pronto a me ouvir e encorajar.
E ao Vicente, pelas minhas maiores alegrias e pela paciência ao ver a mãe ficar
muito sumida para terminar esta tese.
7
Resumo
Palavras-chave
Recepção de Heráclito; Platão; Teeteto; conhecimento; sensação; teoria do fluxo.
8
Abstract
Flaksman, Ana; Iglésias, Maura (advisor). Aspects of Plato’s reception of
Heraclitus. Rio de Janeiro, 2009. 197p. Doctoral Thesis - Departamento de
Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Keywords
Reception of Heraclitus; Plato; Theaetetus; knowledge; sensation; flux doctrine.
9
Sumário
1. Introdução 11
1.1 O conhecimento de Platão sobre Heráclito e os heraclíticos 11
1.2 A história da conservação dos escritos de Heráclito 16
1.3 Platão lendo seus predecessores 19
1.4 O que buscar na leitura platônica de Heráclito 22
1.5 Tomando o Teeteto como fio condutor 25
1.6 Roteiro da tese 27
1.
Introdução
1.1
1
Ver um pouco mais adiante, ainda nesta Introdução, alguns dos indícios de que é muito
implausível que Platão tenha tido somente um conhecimento indireto do texto de Heráclito.
2
Possuímos somente duas fontes independentes de doxografia sobre Crátilo, das quais todas as
outras fontes parecem ser tributárias: o Crátilo de Platão e três passagens da Metafísica de
Aristóteles. Cf. Serge Mouraviev, “Cratylos D’Athenes”, in R. Goulet (dir.), Dictionnaire des
Philosophes Antiques (Paris: CNRS, 1994), vol. II, p. 506.
3
Cf. Diogenes Laertios, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (Brasília: EdUnB, 1988), IX, 1. A
correção desta data, considerada a data aproximada do nascimento de Heráclito, é indicada pelo
12
a fonte mais rica para seus dados biográficos, apresenta as diversas variantes que
já perpassavam sua fama no séc. III d.C. Em sua obra, ele diz que Heráclito era
filho de Blóson e membro de uma família aristocrática de Éfeso. Depois de se
recusar a elaborar as leis e a participar do governo de sua cidade, e de renunciar,
em favor do irmão, ao direito de reinar, teria acentuado o desprezo que já
manifestava pelos efésios – por terem banido seu amigo Hermodoro –, afastando-
se do convívio com seus concidadãos, primeiro retirando-se para o templo de
Ártemis, onde foi jogar ossinhos com as crianças, e depois indo viver nas
montanhas. Lá teria escrito seu livro e em seguida tê-lo-ia depositado no templo
da deusa Ártemis. Teria depois adoecido e retornado à cidade. Sua morte, ocorrida
em torno de 474 a.C., é ora atribuída à hidropisia, ora ao ataque de cães, ora a
outra doença.4
Que o livro de Heráclito tenha de fato existido não foi sempre consenso
entre os estudiosos. Kirk, por exemplo, afirmou que o livro poderia ser o resultado
da compilação dos ditos de Heráclito por outrem. Entretanto, muitos foram os
intérpretes de Heráclito que sustentaram, seguindo diversos testemunhos e com
base na desenvoltura com que muitos autores o citaram, que o livro de fato
existiu.5 Hoje não se encontra mais quem duvide da real existência do livro do
Efésio.
fragmento 40, em que Pitágoras, Xenófanes e Hecateu – homens que morreram entre 510 e 480
a.C. – são citados.
4
Cf. Diogenes Laertios, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (op. cit.), IX, 1-6.
5
Cf. G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (Londres: Cambridge University Press, [1954]
1978), p. 7. Para a posição favorável à existência do livro de Heráclito, ver, por exemplo, W. K. C.
Guthrie, A History of Greek Philosophy (Cambridge: Cambridge University Press, [1962] 1977),
vol. 1, p. 407-408; Charles H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (Londres: Cambridge
University Press, [1979] 1999), p. 3.; e Marcel Conche, Héraclite. Fragments (Paris: Puf, [1986]
13
1991), p. 7.
6
Cf. Diogenes Laertios, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (op. cit.), IX, 6.
7
Cf. Diogenes Laertios, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (op. cit.), II, 22 e III, 6.
8
Cf. Serge Mouraviev, “Cratylos D’Athenes” (op. cit.), p. 503.
14
9
ἐκ νέου τε γὰρ συνήθης γενόµενος πρῶτον Κρατύλῳ καὶ ταῖς Ἡρακλειτείοις δόξαις, ὡς
ἁπάντων τῶν αἰσθητῶν ἀεὶ ῥεόντων καὶ ἐπιστήµης περὶ αὐτῶν οὐκ οὔσης, ταῦτα µὲν καὶ
ὕστερον οὕτως ὑπέλαβεν· Σωκράτους δὲ περὶ µὲν τὰ ἠθικὰ πραγµατευοµένου περὶ δὲ
τῆς ὅλης φύσεως οὐθέν, ἐν µέντοι τούτοις τὸ καθόλου ζητοῦντος καὶ περὶ ὁρισµῶν
ἐπιστήσαντος πρώτου τὴν διάνοιαν, ἐκεῖνον ἀποδεξάµενος διὰ τὸ τοιοῦτον ὑπέλαβεν ὡς
περὶ ἑτέρων τοῦτο γιγνόµενον καὶ οὐ τῶν αἰσθητῶν· (Aristóteles, Metafísica A, 987 a32-b5).
Diógenes Laércio também afirma que Platão freqüentou Crátilo, mas, ao contrário de Aristóteles,
diz que seu contato com o heraclítico ocorreu após a morte de Sócrates: “Dizem que a partir de
então, aos 20 anos, tornou-se discípulo de Sócrates. Quando este morreu ele passou a seguir
Crátilo, adepto da filosofia de Heráclito”. τοὐντεῦθεν δὴ γεγονώς, φασίν, εἴκοσιν ἔτη
15
1.2
ποταµῷ οὐκ ἔστιν ἐµβῆναι· αὐτὸς γὰρ ᾤετο οὐδ’ ἅπαξ. (Aristóteles, Metafísica, IV, 5,
1010a 7-15).
11
Este tema será tratado com mais detalhe no capítulo 4, no qual serão discutidos os argumentos
dos defensores da inexistência de uma tese do fluxo em Heráclito.
12
Este é o caso de G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 15.
13
Cf. Rodolfo Mondolfo e Leonardo Tarán. Eraclito: Testimonianze e Imitazioni (Florença: La
Nuova Italia, 1972), p. CXIX.
17
O interesse por Heráclito não parou de crescer e foi de fato muito intenso
durante o período helenístico. Muitos foram os autores e as obras, pertencentes a
diferentes escolas e movimentos, que dele se ocuparam. O ápice da influência
filosófica de Heráclito foi alcançado na obra dos estóicos, que, em conjunto com
os neoplatônicos e os primeiros doutrinadores cristãos, citaram a maior parte dos
fragmentos heraclíticos. As mais abundantes citações foram feitas pelos autores
cristãos Clemente de Alexandria, Hipólito de Roma e Orígenes de Alexandria,
responsáveis pela preservação de 47 fragmentos.
14
Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought os Heraclitus (op. cit.), p. 4.
15
Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought os Heraclitus (op. cit.), p. 5-6.
18
16
Nesta obra, são apresentadas, para cada pré-socrático, tanto as citações de seus livros
transmitidas por escritores posteriores, quanto material de fonte secundária, conhecido como
testimonia (comentários sobre as obras, relatos sobre as vidas e descrição das idéias filosóficas dos
pré-socráticos).
19
1.3
17
No que concerne à gênese da oposição entre mobilistas e imobilistas, lê-se com proveito o artigo
de Francesco Fronterotta, “Réontes kaì Stasiotai: Héraclite et Parménide chez Platon”, Les Cahiers
Philosophiques de Strasbourg. Les Anciens Savants (Tome 12, Automne 2001), p. 131-156.
18
Cf. Teeteto, 181c; Crátilo, 401d-e, 402a-c.
20
Mas outra razão pode ser apresentada: trata-se do argumento que ressalta
que a dimensão cronológica linear – a dimensão em que a filosofia pode ser
concebida historicamente – não é uma preocupação de Platão e é algo que ele
subverte freqüentemente.20 Além disso, pode-se alegar, como faz Monique
Dixsaut, que, quando um filósofo aborda historicamente o passado da filosofia,
ele delimita o campo da filosofia, constrói sua continuidade e concebe a si mesmo
como cume ou ponto de ruptura dessa história. Concordo com esta autora, quando
ela diz:
19
Cf. Monique Dixsaut e Aldo Brancacci, “Introduction”, in Platon: Source des Présocratiques
(Paris: Vrin, 2002).
20
Um exemplo célebre é o encontro do jovem Sócrates com o velho Parmênides, no diálogo
Parmênides.
21
21
Cf. M. Dixsaut e A. Brancacci, “Introduction” (op. cit.), p. 13.
22
Cf. M. Dixsaut e A. Brancacci, “Introduction” (op. cit.), p. 14.
23
A Carta Sétima é o único texto platônico ostensivamente autobiográfico. Mas ela tem a
autenticidade contestada por muitos, que a consideram provavelmente espúria. Cf., por exemplo,
Terence Irwin, “Plato: The Intellectual Background”, in The Cambridge Companion to Plato
(Cambridge: Cambridge University Press, 1992), p. 51-89.
22
1.4
Segundo essa leitura, a distinção platônica entre ser e devir também seria
fruto de uma adoção e fusão das filosofias de Parmênides e Heráclito: o domínio
do ser consistiria em coisas que, similares ao ser de Parmênides, nunca mudam em
nenhum sentido, e o domínio do devir seria constituído pelas coisas sensíveis,
que, tal como teria dito Heráclito, não são estáveis de nenhum modo.24 Essa
interpretação da influência do pensamento de Heráclito na filosofia de Platão pode
ser considerada correta ou incorreta, razoável ou exagerada, rica ou restritiva;
independentemente disso, porém, ela nos mostra que a importância da leitura
platônica de Heráclito não está somente no que essa leitura tem a contribuir para o
conhecimento da filosofia de Heráclito, mas também no que ela pode revelar
acerca da própria filosofia de Platão.
24
Esta é a leitura defendida, por exemplo, por Francis M. Cornford, em Plato’s Theory of
Knowledge: The Theaetetus and the Sophist of Plato (Nova York: Dover, 2003 [1957]).
24
determinadas teses a Heráclito e a seus adeptos, examinou e criticou essas teses tal
como elas apareceram a seus olhos, e julgou fundamental fazer essa exposição e
essa crítica para construir sua própria filosofia. Além disso, importa que
freqüentemente se disseminou uma visão caricatural da leitura platônica de
Heráclito, visão esta que formou uma das imagens mais correntes do Efésio: a do
mobilista radical cuja ontologia implicaria a impossibilidade do conhecimento e
da linguagem. Portanto, meu primeiro e também principal objetivo nesta tese é
examinar a interpretação que Platão constrói dos discursos e idéias heraclíticas de
que ele fala. É ver os diferentes modos e contextos em que Heráclito é trazido à
tona, compreendido, criticado. É investigar como Platão interpretou, transpôs e
transmitiu suas idéias.
1.5
25
Platão conservou dois dos fragmentos de Heráclito listados na edição mais usada dos
fragmentos, a de Diels e Kranz: os fragmentos 82 e 83, que se encontram em Hípias Maior (289a-
b). Mas há também versões platônicas quase idênticas a versões dos fragmentos conservadas por
outros autores e listadas por Diels e Kranz. Este é o caso, por exemplo, dos fragmentos 91 – que
aparece como tendo sido citado por Plutarco, mas também o foi por Platão, no Crátilo (402a) – e
10 – que aparece como tendo sido citado por Pseudo-Aristóteles, mas também o foi por Platão, no
Sofista (242d). Cf. H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (7ª ed., Zürich,
Weidmann, 1954).
26
As menções diretas a Heráclito aparecem em quatro diálogos: Teeteto (152e, 160d, 179d, 179e),
Crátilo (401d, 402a, 402b, 402c, 440c, 440e), Banquete (187a), Hípias Maior (289a, 289b),
República VI (498b).
27
Mondolfo e Tarán, por exemplo, ao fornecer uma espécie de catálogo dos fragmentos de
Heráclito que encontraram alusão ou eco, mais ou menos significativo, em Platão, listam mais de
cinqüenta passagens de 15 diálogos platônicos. Cf. R. Mondolfo e L. Tarán. Eraclito:
Testimonianze e Imitazioni (op. cit.), p. CL-CLVI.
26
1.6
Roteiro da tese
2.
2.1
28
Ver Ana Flaksman, A Questão do Conhecimento em Heráclito (Rio de Janeiro, Puc-Rio,
Dissertação de Mestrado, 2001).
31
29
É claro que Platão não se refere (pois sequer poderia fazê-lo) ao ceticismo e à tradição cética
propriamente ditos. Entretanto, numa primeira leitura do Teeteto, pode-se muito bem pensar que
ele aponta para aspectos da filosofia heraclítica que, mais tarde, seriam considerados parte da
temática cética. Vale lembrar que, mesmo que Sexto Empírico tenha buscado, em suas obras,
distinguir o ceticismo “autêntico” (pirrônico ou suspensivo) de “ceticismos” impropriamente
denominados, houve outras concepções e versões de ceticismo no próprio seio da tradição cética:
mesmo a afirmação ou conclusão de que o conhecimento é impossível (que seria tomada como
uma forma de dogmatismo negativo pelos pirrônicos) poderia ser considerada parte da via cética
por outros.
32
necessidade de uma análise mais detalhada deste diálogo, bem como de uma
distinção entre as teses expressamente formuladas por Heráclito ou a ele
atribuídas, as teses sustentadas pelos seguidores que distorceram e estenderam
muito suas idéias, e as teses que podem ser ou deduzidas a partir das doutrinas
heraclíticas ou a elas filiadas, por encontrarem nessas doutrinas ao menos uma de
suas condições e um de seus fundamentos.
2.2
O lógos heraclítico
30
Cf. o sumário de significados apresentado por G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments
(op. cit.), p. 38.
31
Cf. W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 1, p. 420-424.
33
32
Nesta tese, utilizarei a numeração e a edição dos fragmentos de Heráclito estabelecidas por
Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (op. cit.), bem como utilizarei
a tradução dos fragmentos realizada e publicada por Alexandre Costa, Heráclito: Fragmentos
Contextualizados (Rio de Janeiro, Difel, 2002). Toda alteração por mim realizada nesta tradução
dos fragmentos será indicada em nota.
33
Fragmento 39: e)n Prih/nv Bi¿aj e)ge/neto o( Teuta/mew, ou ple/iwn lo/goj hÄ tw½n
aÃllwn.
34
Fragmento 31: puro\j tropaiì: prw½ton qa/lassa, qala/sshj de\ to\ me\n hÀmisu gh=, to\
de\ hÀmisu prhsth/r. qa/lassa diaxe/etai kaiì metre/etai ei¹j to\n au)to\n lo/gon o(koiÍoj
pro/sqen hÅn hÄ gene/sqai gh=.
35
H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (op. cit.), p. 150.
34
36
Fragmento 1: tou= de\ lo/gou tou=d’ e)o/ntoj a)ei\ a)cu/netoi gi¿nontai aÃnqrwpoi kaiì
pro/sqen hÄ a)kou=sai kaiì a)kou/santej to\ prw½ton: ginome/nwn ga\r pa/ntwn kata\ to\n
lo/gon to/nde a)pei¿roisin e)oi¿kasi, peirw¯menoi kai\ e)pe/wn kaiì eÃrgwn toioute/wn,
o(koi¿wn e)gwÜ dihgeu=mai kata\ fu/sin diaire/wn eÀkaston kaiì fra/zwn oÀkwj eÃxei.
tou\j de\ aÃllouj a)nqrw¯pouj lanqa/nei o(ko/sa e)gerqe/ntej poiou=sin, oÀkwsper o(ko/sa
euÀdontej e)pilanqa/nontai.
37
Aristóteles diz o seguinte: “É uma regra geral que uma composição escrita deva ser fácil de ler e
portanto fácil de transmitir. Isso não pode ocorrer onde há muitas palavras ou expressões
conectivas, ou onde a pontuação é difícil, como nos escritos de Heráclito. Pontuar Heráclito não é
tarefa fácil, pois freqüentemente não podemos dizer se uma palavra determinada está ligada à que
a precede ou à que a segue. Assim na abertura de seu livro ele diz [segue o fragmento 1]”. ὅλως
δὲ δεῖ εὐανάγνωστον εἶναι τὸ γεγραµµένον καὶ εὔφραστον· ἔστιν δὲ τὸ αὐτό· ὅπερ οἱ
πολλοὶ σύνδεσµοι οὐκ ἔχουσιν, οὐδ’ ἃ µὴ ῥᾴδιον διαστίξαι, ὥσπερ τὰ Ἡρακλείτου. τὰ
γὰρ Ἡρακλείτου διαστίξαι ἔργον διὰ τὸ ἄδηλον εἶναι ποτέρῳ πρόσκειται, τῷ ὕστερον ἢ
τῷ πρότερον, οἷον εἶναι ποτέρῳ πρόσκειται, τῷ ὕστερον ἢ τῷ πρότερον, οἷον ἐν τῇ ἀρχῇ
αὐτῇ τοῦ συγγράµµατος· φησὶ γὰρ (Aristóteles, Retórica, 1407 b11).
38
Muitos comentadores concordam que o fato de Heráclito iniciar seu discurso falando “desse
lógos” indica que ele está se referindo a seu próprio lógos, à sua própria obra, a seu próprio
discurso. A expressão poderia ser interpretada como “Este discurso que estou agora iniciando...”.
Vale sublinhar que a tradição literária da historie jônica costumava fazer referência ao próprio
discurso na apresentação das obras. Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.),
p. 66-67).
35
“discurso”, “expressão verbal”, “palavra”. Esse discurso, por sua vez, seria a
expressão peculiar do pensamento de um homem particular, a saber, Heráclito.
No fragmento 108, “De quantos ouvi os lógous nenhum chega a ponto de
conhecer o que, de todas as coisas apartado, é sábio”,39 também podemos
observar o uso do termo lógos com o sentido claro e consensual de “discurso” ou
“expressão verbal”. Portanto, até este ponto podemos afirmar que o termo lógos é
usado por Heráclito reiteradamente com o sentido de “discurso”.
39
Fragmento 108: o(ko/swn lo/gouj hÃkousa, ou)deiìj a)fiknei=tai e)j tou=to, wÐste
ginw¯skein oÀti sofo/n e)sti pa/ntwn kexwrisme/non. Em nota referente à sua tradução deste
fragmento, na qual, em vez de “lógous” , se lê “discurso”, Alexandre Costa (Heráclito.
Fragmentos Contextualizados, op. cit.) declara ter aberto uma exceção à sua resolução de não
traduzir o termo lógos, afirmando que “o contexto torna evidente o sentido de ‘discurso’”.
Concordo com Costa, mas prefiro manter lógos sempre na forma original, apresentando seu
sentido não em traduções, mas em comentários.
40
Nesta abordagem do fragmento 1 e da tensão entre dois lógoi distintos, um particular e um
comum, devo muito a uma série de textos, especialmente a Alexandre Costa, Thánatos: Da
Possibilidade de um Conceito de Morte a partir do Lógos Heraclítico (Porto Alegre, EdPUCRS,
1999), cap. 1.
36
Vemos, então, que há um contraste e uma tensão entre os dois lógoi que
se mostram presentes no fragmento 1, isto é, entre o lógos particular (de
Heráclito) e o lógos comum e eterno. Será possível conciliá-los? Parece que sim,
pois o contraste entre a natureza de ambos os lógoi não implica uma discordância
ou incompatibilidade. Se considerarmos que o lógos de Heráclito é fruto e
portador de sua compreensão efetiva do lógos comum, “segundo o qual todas as
coisas vêm a ser”, concordaremos que seu discurso particular estará de acordo
com o lógos comum; não estará simplesmente com ele contrastado, mas antes,
estará unido a ele, e até certo ponto com ele fundido e identificado. Portanto, já
vemos a insinuação de que os lógoi comum e particular podem concordar em seu
conteúdo e que, se são distintos em sua natureza, não são por isso simplesmente
opostos e excludentes. Quando Heráclito critica os homens por não
compreenderem o lógos, parece estar fazendo uma dupla advertência: em
primeiro lugar, mesmo sendo o lógos aquilo segundo o que todas as coisas vêm a
ser, os homens falham em compreendê-lo; em segundo lugar, mesmo com
Heráclito expressando o lógos comum em palavras, ainda assim os homens
falham em sua compreensão.
41
Fragmento 75: tou\j kaqeu/dontaj (oiåmai o( ¸Hra/kleitoj) e)rga/taj eiånai le/gei kaiì
sunergou\j tw½n e)n t%½ ko/sm% ginome/nwn.
37
nenhum dos deuses nem nenhum dos homens, mas sempre (aeì) foi, é e será fogo
sempre vivo, acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.”42
Por outro lado, creio não ser preferível associar aeì a axýnetoi, pois,
embora entenda que se pode compreender esse “sempre ignorantes” em um
sentido não literal, fatalista ou universal, há fragmentos suficientes que destacam e
criticam a ignorância humana, sem dar margem, como essa expressão daria, à
idéia de uma impossibilidade de compreensão própria da natureza humana.
Vejamos dois fragmentos, 116 e 113, em que Heráclito afirma a possibilidade
cognitiva comum aos homens. Diz o fragmento 116: “Em todos os homens está o
conhecer (ginóskein) a si mesmo e bem-pensar (sophronein).”43 O conhecer a si
mesmo e o bem-pensar pertencem a todo homem, mas isso não impede que
poucos se interessem em efetivar tais capacidades e que raros sejam os que
realmente atingem o resultado de tais atividades, a saber, o autoconhecimento e o
pensamento sensato. As capacidades de pensar sensatamente e de se autoconhecer
podem permanecer irrealizadas, adormecidas, esquecidas. O fragmento 113, ao
afirmar que “O pensar (phronéein) é comum a todos”,44 também indica que o
pensar é de todo homem “por direito”, o que não garante que os homens o
exercitem de modo adequado, do único modo que pode caracterizar a
compreensão do lógos. Mais adiante serão analisados outros fragmentos em que o
termo “pensar” também aparece, e nos quais veremos ainda mais indícios de que,
se uma tal capacidade é dada ao homem, impedindo qualquer visão determinista
sobre sua ignorância, a realização dessa capacidade requer um empenho
específico, do qual o homem pode ou não se esquivar e do qual sua compreensão
do lógos dependerá.
42
Fragmento 30: ko/smon, to\n au)to\n a(pa/ntwn, ouÃte tij qew½n ouÃte a)nqrw¯pwn
e)poi¿hsen, a)ll' hÅn a)eiì kaiì eÃstin kaiì eÃstai pu=r a)ei¿zwon, a(pto/menon me/tra
kaiì a)posbennu/menon me/tra.
43
Fragmento 116: a)nqrw¯poisi pa=si me/testi ginw¯skein e(wutou\j kaiì swfroneiÍn.
44
Fragmento 113: cuno/n e)sti pa=si to\ frone/ein.
45
Kirk, Gurthrie e Berge mantêm a palavra lógos, no fragmento 1, sem tradução, enquanto Kahn a
38
Há, entretanto, quem veja a questão com outros olhos. Muitos intérpretes
vão afirmar a tensão e diferença entre o lógos que é discurso verbal e o lógos que
não se pode restringir a ele, que é dele independente, que regula, dirige e governa
o vir a ser das coisas e que, ao ser compreendido, revela a “lógica”, a
“racionalidade”, a “estrutura”, o “princípio ordenador” em função dos quais todas
as coisas vêm a ser. Nesse sentido, o lógos pode ser concebido como uma “lei”,
traduz por account. Cf. G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 35; W. K. C.
Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 1, p. 424; Damião Berge, O Logos
Heraclítico (Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1969), p. 62-89; e Charles H. Kahn, The
Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 93-100. Bollack e Wissmann traduzirão lógos, no
fragmento 1, por “discurso”, mas dirão que o termo grego guarda, neste fragmento, dois aspectos
em tensão: o discurso ou a palavra contingente, e o conteúdo objetivo e eterno desse discurso. Cf.
Jean Bollack e Heinz Wismann, Héraclite ou la Séparation (Paris, Minuit, [1972] 1995), p. 59-64.
46
Cf. Marcel Conche, Héraclite: Fragments (op. cit.), p. 23-28.
39
que pode ser descoberta, nomeada e descrita pelos homens (assim como, grosso
modo, a lei da gravidade ganha compreensão, nome e descrição em um discurso
científico contingente), mas que existe e sempre existiu independentemente deles
e que, aliás, os engloba. Esta seria, como Conche propõe chamar, a interpretação
“ontológica” do lógos.47
47
Cf. M. Conche, Héraclite: Fragments (op. cit.), p. 23.
48
Fragmento 2: tou= lo/gou d' e)o/ntoj cunou= zw¯ousin oi¸ polloiì w¨j i¹di¿an eÃxontej
fro/nhsin.
40
49
Fragmento 17: ou) frone/ousi toiau=ta polloi,ì o(ko/soi e)gkurseu/ousin, ou)de\ maqo/ntej
ginw¯skousin, e(wutoiÍsi de\ doke/ousi.
41
conhecimento. Nessa crítica, entretanto, Heráclito não fala da massa dos homens
anônimos, e sim de algumas das maiores autoridades entre os gregos, de homens
reconhecidos por sua sabedoria em toda a Grécia. Diz o fragmento 40: “Muito
aprendizado não ensina saber, pois teria ensinado a Hesíodo e a Pitágoras,
também a Xenófanes e a Hecateu.”50 O fragmento se inicia justamente afirmando
que o aprendizado, mesmo que realizado ininterruptamente, em grande quantidade
e variedade, não ensina o tipo de entendimento que caracteriza a inteligência, o
saber. Além de afirmar que a compreensão do lógos, o único tipo de cognição que
pode levar ao efetivo saber, ao efetivo conhecimento, não pode ser conquistada
pelo mero acúmulo de experiências, nem por um tipo desarrazoado de idéias delas
extraídas, o fragmento indica que o homem não se deve fiar nas autoridades por si
mesmas ou por terem elas legado aquilo que é tido pela coletividade como o mais
alto conhecimento. Heráclito não parece temer ou hesitar em recusar e criticar os
“saberes”, os “tesouros”, os discursos dos grandes mestres da tradição.
No fragmento 50, Heráclito anuncia o que deve ser feito para alcançar a
sabedoria. O fragmento diz: “Ouvindo não a mim, mas ao lógos, é sábio
concordar ser tudo um.”51 Aqueles que entendem que o lógos é o discurso de
Heráclito, e nada mais, consideram que a advertência “ouvindo não a mim mas ao
lógos” significa que ele está mostrando que a verdade de seu discurso não deve
ser atribuída à sua autoridade, à sua pessoa. Os homens devem desconsiderar tal
autoridade e, aí sim, dar ouvidos ao seu discurso, que, por revelar a verdade
objetiva e comum, vale por si mesmo. Por outro lado, há interpretes – e é nesse
grupo que me incluo – que enxergam nesse lógos novamente a tensão e fusão do
discurso de Heráclito com o lógos comum, afirmando que a oração “ouvindo não
a mim mas ao lógos” indica tanto que Heráclito exorta os homens a ouvir um
discurso independentemente da autoridade de quem o enuncia, quanto que ele os
conclama a ouvir o lógos “segundo o qual todas as coisas vêm a ser” (fragmento
1), que, por ser comum, é a única “coisa” a que os homens devem dar ouvidos.
50
Fragmento 40: polumaqi¿h no/on ou) dida/skei: ¸Hsi¿odon ga\r aÄn e)di¿dace kaiì
Puqago/rhn, auÅti¿j te Cenofa/nea/ te kaiì ¸EkataiÍon.
51
Fragmento 50: ou)k e)mou= a)lla\V tou= lo/gou a)kou/santaj o(mologei=n sofo/n e)stin
e(\n pa/nta ei=)nai. Alexandre Costa traduz hén pánta por “tudo-um” e explica, em nota, o uso
do hífen entre os dois termos. Preferi, todavia, manter as duas palavras separadas, lado a lado, sem
42
Atentemos agora para o fragmento 114, que diz: “Para falar com saber é
necessário apoiar-se sobre a comunidade de todas as coisas, como a cidade sobre a
lei e ainda mais vigorosamente. Porque todas as leis humanas são alimentadas por
uma lei una, a divina; pois exerce seu domínio tão longe quanto se consente, e
53
Fragmento 72: %Ò ma/lista dihnekw½j o(milou=si lo/g%, t%½ ta\ oÀla dioikou=nti,
tou/t% diafe/rontai, kaiì oiâj kaq' h(me/ran e)gkurou=si, tau=ta au)toiÍj ce/na fai¿netai.
44
basta e envolve a todas as outras.”54 Este fragmento carrega, logo em sua abertura,
um jogo de palavras bastante sugestivo: “com saber”, em grego xýn nóo, indica
uma equivalência, por sua semelhança fonética, com o “comum”, em grego xyvoû.
Levando em conta essa indicação, podemos crer que o falar inteligente será
sempre similar ao falar de acordo com o lógos comum. O próprio fragmento
confirma a insinuação presente no trocadilho: “Para falar com saber é preciso
apoiar-se sobre a comunidade de todas as coisas” – leia-se, é preciso apoiar-se
sobre o lógos comum.
54
Fragmento 114: cu\n no/% le/gontaj i¹sxuri¿zesqai xrh\ t%½ cun%½ pa/ntwn, oÀkwsper
no/m% po/lij kaiì polu\ i¹sxurote/rwj. tre/fontai ga\r pa/ntej oi¸ a)nqrw¯peioi no/moi u(po\
e(no\j tou= qei¿ou: kratei= ga\r tosou=ton o(ko/son e)qe/lei kaiì e)carkei= pa=si kaiì
perigi¿netai.
45
que Heráclito tem a nos dizer sobre a psyché e seu papel na aquisição de
conhecimento.
2.3
A psyché em Heráclito
Nem o lugar onde a psyché reside nem o modo como ela atua nos
homens vivos é tematizado nos poemas homéricos, mas, segundo Snell, a psyché
pode ser considerada quase como um órgão que se encontra no homem, assim
como o thymós e o nóos.56 O thymós seria responsável por suscitar os movimentos
e as reações, e estaria referido às emoções, enquanto o nóos seria responsável por
55
Muitos são os autores que tratam desse uso “negativo” de psyché em Homero. Cf., por exemplo,
Bruno Snell, A Descoberta do Espírito (Lisboa, Edições 70, [1975] 1992), p. 28-30; David J.
Furley, “The Early History of the Concept of Soul”, in T. Irwin (ed.), Classical Philosophy:
Collected Papers (New York & London: Garland Publishing, 1995), vol. 1, p. 112; Martha C.
Nussbaum, “Psyché in Heraclitus, I”, in T. Irwin (ed.), Classical Philosophy: Collected (op. cit.),
vol. 1, p. 201-2; Maura Iglésias, “Platão: A Descoberta da Alma”, Boletim do CPA (Campinas,
Unicamp, ano 3, n. 5/6, jan./dez. de 1998), p. 14; e Edward Hussey, “Heraclitus”, in A. A. Long
(ed.), The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy (Cambridge, Cambridge University
Press, 1999), p. 101.
56
B. Snell, A Descoberta do Espírito (op. cit.), p. 28-30.
46
Heráclito faz uso desta analogia para que possamos entender o modo
57
Ver, para mais considerações sobre a poesia lírica e a noção de psyché, C. H. Kahn, The Art and
Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 126-127; e B. Snell, A Descoberta do Espírito (op. cit.), p. 81-
120.
58
Sicut aranae, ait, stans in medio talae sentit quam cito musca aliquem filum suum corrumpit
itaque illuc celeriter currit quase de fili perfectione dolens, sic hominis anima aliqua parte
corporis laesa, illuc festine meat, quasi impatiens laesionis corporis, cui firme et proportionaliter
iuncta est.
47
como a psyché atua no homem vivo, para que notemos que a psyché não é
simplesmente uma sede “passiva” ou receptiva das impressões corpóreas, e sim o
centro ativo, emanador da ação humana. O exemplo que ele apresenta é a situação
em que essa ação visa a salvaguardar a integridade do corpo, respondendo a uma
lesão corporal. Todos os estímulos e as experiências do corpo estão, para
Heráclito, referidos à psyché, e, portanto, a uma única sede que garante a unidade
e a integridade do indivíduo. Entretanto, a concepção heraclítica da alma não se
restringe à idéia de uma sede meramente central e passiva, e sim remete a uma
sede ou centro extensivo, ativo.
59
Fragmento 30: ko/smon, to\n au)to\n a(pa/ntwn, ouÃte tij qew½n ouÃte a)nqrw¯pwn
e)poi¿hsen, a)ll' hÅn a)eiì kaiì eÃstin kaiì eÃstai pu=r a)ei¿zwon, a(pto/menon me/tra kaiì
a)posbennu/menon me/tra.
48
60
Fragmento 31: puro\j tropaiì: prw½ton qa/lassa, qala/sshj de\ to\ me\n hÀmisu gh=, to\
de\ hÀmisu prhsth/r. qa/lassa diaxe/etai kaiì metre/etai ei¹j to\n au)to\n lo/gon o(koiÍoj
pro/sqen hÅn hÄ gene/sqai gh=.
61
Fragmento 36: yuxv=sin qa/natoj uÀdwr gene/sqai, uÀdati de\ qa/natoj gh=n gene/sqai,
e)k gh=j de\ uÀdwr gi¿netai, e)c uÀdatoj de\ yuxh»/. Alexandre Costa traduz, neste
fragmento, psychêsin e psychés por “vapores” e “vapor”. Preferi seguir as traduções de G. S. Kirk
(Heraclitus. The Cosmic Fragments, op. cit., p. 339), de C. H. Kahn (The Art and Thought of
Heraclitus, op. cit., p. 237) e de M. Conche (Héraclite. Fragments, op. cit., p. 327), pois creio que
neste fragmento a noção de alma não deixa de estar em jogo nem se dissocia do sentido de psyché.
62
Fragmento 118: au)gh\: chrh\ yuxh\, sofwta/th kaiì a)ri¿sth.
49
Quando a psyché for úmida, isso implicará sempre, para o homem, uma
perda proporcional de vitalidade, de autocontrole e de inteligência. É o que
confirma o fragmento 117: “O homem, quando bêbado, é levado por uma criança
impúbere, trôpego, não notando para onde anda, tendo úmida a alma.”63 Este
fragmento oferece forte evidência da associação da psyché com o autocontrole e o
conhecimento. A embriaguez é um estado de reduzidos autocontrole, atenção e
discernimento. Heráclito pode estar empregando uma metáfora, pois nem todo
bêbado é conduzido de fato por uma criança, isto é, por uma criança de carne e
osso. Isso indicaria que o homem bêbado é guiado por uma “criança interna”, a
saber, sua própria faculdade de discernimento num estado de capacidade
diminuída. Isso mostra que, para Heráclito, os homens são guiados por uma sede
ou entidade interna, a saber a psyché, que pode ser mais ou menos competente,
mais ou menos sábia.
Essa analogia entre a psyché e o fogo pode ser entendida como uma
analogia entre microcosmo e macrocosmo, isto é, como a identidade de duas
totalidades ígneas e vivas, se tomadas proporcionalmente em suas diferentes
escalas. A analogia do microcosmo e do macrocosmo supõe a idéia de que
63
Fragmento 117: a)nh\r o(ko/tan mequsqv=, aÃgetai u(po\ paido\j a)nh/bou sfallo/menoj,
ou)k e)pai¿+wn oÀkh bai¿nei, u(grh\n th\n yuxh\n eÃxwn.
50
64
Fragmento 115: yuxh=j e)stiì lo/goj e(auto\n auÃcwn».
65
Fragmento 45: yuxh=j pei¿rata i¹wÜn ou)k aÄn e)ceu/roio, pa=san e)piporeuo/menoj
o(do/n: ouÀtw baqu\n lo/gon eÃxei.
51
bárbaras, olhos e ouvidos são más testemunhas.”66 Ao afirmar que homens com
almas bárbaras têm olhos e ouvidos que são más testemunhas (kakoì mártyres),
este fragmento sugere que os homens cujas almas não são bárbaras têm olhos e
ouvidos que são boas testemunhas.
66
Fragmento 107: kakoi\ ma/rturej a)nqrw/poisin o)fqalmoi\ kai\ w=)ta barba/rouj yuxa\ς
e)xo/ntwn.
52
Sexto Empírico afirma que Heráclito teria dito que a sensação (aísthesis)
não é confiável e a teria censurado. Esta interpretação parece ir em direção diversa
da que Heráclito aponta, a saber, de que a sensação e o entendimento que ela
imediatamente produz não são enganosos ou pouco confiáveis, mas devem ser
dimensionados, articulados e interpretados de forma inteligente para que
produzam conhecimento. Além disso, a censura de Heráclito não se dirige à
sensação, e sim aos homens cujas almas são bárbaras.
67
o( de\ (Hra/kleitoj, e)pei\ pa/lin e)do/kei dusi\n w)rganw=sqai o( a)/nqrwpoj pro\j
th\n th=j a)lhqei/aj gnw=sin, ai)sqh/sei te kai\ lo/g%, tou/twn th\n me\n ai)/sqhsin
paraplhsi/wj toi=j proeirhme/noij fusikoi=j a)/piston ei=)nai neno/miken, to\n de\
lo/gon u(poti/qetai krith/rion. a)lla\ th\n me\n ai)/sqhsin e)le/gxei le/gwn kata\ le/cin
[...]. (Contra os Matemáticos, VII, 126).
68
Fragmento 55: o(/swn o)/yiς a)koh\ ma/qhsij, tau=ta e)gw\ protime/w.
69
Essa interpretação se baseia no uso antigo de bárbaroi, para designar as pessoas que não falam
ou não compreendem a língua grega, e nas associações lingüísticas do lógos.
53
que não compreendem a linguagem”. Mas fica ainda por decidir que linguagem
está sendo mencionada. Segundo uma concepção, a linguagem, aqui, deve ser
entendida como uma metáfora: aqueles com almas bárbaras são aqueles que
falham em compreender a “linguagem da natureza”70 ou a “linguagem dos
sentidos”.71 Segundo outra concepção, a linguagem deve ser tomada literalmente,
de modo que os homens com almas bárbaras são aqueles que não compreendem a
língua grega, mesmo sendo gregos.72 Há também algumas concepções mistas.73
Penso que tanto a interpretação metafórica quanto a literal são úteis para
a compreensão da noção de “alma bárbara”. A interpretação metafórica supõe que
o lógos comum é uma espécie de discurso – um discurso entendido
metaforicamente como a manifestação da “gramática”, da lógica, ou da lei
reguladora de todos os acontecimentos – que pode ser “ouvido” no
comportamento de todas as coisas que vêm a ser. Nesse sentido, a alma, para não
ser bárbara, deve buscar compreender a “gramática” das coisas, que envolve mais
do que as múltiplas experiências apreendidas pelos sentidos; envolve seu
contexto, sua trama ou articulação, a unidade do seu “discurso”. A interpretação
literal, por sua vez, se atém mais fortemente à compreensão dos discursos verbais,
que, mais do que a atenção às meras palavras, deve envolver aquilo que
caracteriza o poder de compreender e aprender uma língua: reconhecer que ela é
um todo complexo e articulado, composto de uma pluralidade de elementos, a
saber, palavras. A língua é, como o cosmo, um fenômeno unitário que engloba e
organiza uma vasta pluralidade de fenômenos subordinados. Então, a
incompreensão da natureza da própria língua, em maior escala, equivale à
incompreensão da natureza do cosmo.
70
Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 107; e Jonathan Barnes, The
Presocratic Philosophers (London, Routledge and Kegan Paul, 1982), p. 148.
71
Cf. E. Hussey, “Epistemology and Meaning in Heraclitus”, in M. Schofield e M. C. Nussbaum
(eds.), Language and Logos (Cambridge, Cambridge University Press, 1982), p. 34.
72
Cf. M. C. Nussbaum, “Psyché in Heraclitus, I” (op. cit.), p. 209-210.
73
Cf. W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 1, p. 415 e 429; e Hermann
Fränkel, “A Thought Pattern in Heraclitus”, in A. P. D. Mourelatos (ed.), The Pre-Socratics (New
York, Garden City, 1974), p. 217, n. 6.
54
Uma das indicações mais fortes de que Heráclito acredita que, ao menos
em parte, o conhecimento deve ser construído sobre a experiência sensível está no
fato de que ele apresenta, em diversos fragmentos, exemplos primeiramente
perceptíveis da unidade dos opostos. Portanto, Heráclito apresenta, em exemplos
recorrentes, o modo como se deve considerar as informações dadas pelos sentidos:
nunca em sua dimensão meramente diversa e desconectada, mas sim atentando
para sua unidade, complementaridade, interconexão ou interdependência.
74
Nesta abordagem da concepção homérica do conhecimento, devo muito aos textos de Joel
Wilcox, The Origins of Epistemology in Early Greek Thought: A Study of Psyche and Logos in
Heraclitus (New York, The Edwin Mellen Press, 1994, p. 131-135), B. Snell (A Descoberta do
Espírito, op. cit., p. 179-194) e J. H. Lesher (“Early Interest in Knowledge”, in A. A. Long (ed.),
The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy, op. cit., p. 225-49).
56
75
Wilcox argumenta que, se de um lado a Odisséia apresenta o tema do engano e do
reconhecimento, e cria uma distinção entre “percepção em geral” e “conhecimento”, de outro,
tanto o engano quanto o conhecimento são concebidos como tipos de percepção, e a aquisição do
conhecimento (ou a falta dele) é sempre condicionada externamente, por aquilo que alguém
encontra e vê. Por exemplo, o disfarce de uma pessoa produz engano, enquanto a verdadeira
aparência de uma pessoa produz reconhecimento. Cf. J. Wilcox, The Origins of Epistemology (op.
cit.), p. 133.
76
Cf. Snell , A Descoberta do Espírito, op. cit., p. 19-46.
57
77
Fragmento 34, segundo a numeração de H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker:
A tradução dos fragmentos de Xenófanes citados nesta tese foi retirada de G. S. Kirk e J. E.
Raven, Os Filósofos Pré-Socráticos (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979), p. 180. Vale
notar que alguns autores dókos, neste fragmento, por “crença”, e outros, por
“opinião”. É possível que Xenófanes acreditasse que a crença é atribuída a todas as coisas ou que a
opinião é inevitável precisamente por causa do “véu” ou da parcialidade das aparências. A
diferença entre a interpretação de dókos como “aparência” e essas duas outras traduções parece
estar na ênfase dada, pela primeira, à causa da ignorância humana, em vez do destaque ao efeito
dessa ignorância.
78
Cf. S. Yonezawa, “Xenophanes: His Self-Conciousness as a Wiseman and Fr. 34”, in K. J.
Boudouris (ed.), Ionian Philosophy (op. cit.), p. 432.
58
a partir do seu “empirismo”.79 Segundo essa leitura, duas são as razões da crítica
de Xenófanes às opiniões, crenças e teorias humanas. De um lado, essa crítica se
deve ao fato de que tais opiniões e teorias vão além da evidência usada para as
formar e verificar, podendo fazer projeções sobre fenômenos não vistos e podendo
falar sobre acontecimentos cuja natureza está além da observação.80 De outro
lado, o problema está em que, para um homem, cada nova observação pode mudar
sua compreensão de uma situação ou de uma coisa. Para conhecer uma coisa ou
situação, ele teria de ver tudo o que nela é relevante. Mas não há nada na
experiência sensível que indique quando todas as informações relevantes foram
adquiridas. Portanto, mesmo que um homem saiba e diga a verdade, não terá
como saber que o fez.
79
Este exame do problema do conhecimento em Xenófanes se baseia principalmente nos
trabalhos de M. McCoy, “Xenophanes’ Epistemology: Empiricism Leading to Skepticism”, in K.
J. Boudouris (ed.), Ionian Philosophy (Athens, International Association for Greek Philosophy,
1989), 235-240; J. H. Lesher, “Xenophanes’ Scepticism”, in J. P. Anton (ed.), Essays in Ancient
Greek Philosophy (Albany, State University of New York Press, 1983), vol. 2, p. 20-40, e C. J.
Classen, “Xenophanes and the Tradition of Epic Poetry”, in Ionian Philosophy, op. cit., p. 91-10.
80
Testemunhos antigos, como o de Hipólito, mostram que Xenófanes tentou evitar qualquer
postulado concernente a entidades que estão além de nossa experiência. Para ele, não seria válido
atribuir qualquer natureza a uma coisa que está além de nossa possibilidade de observação. No
fragmento 34, as ações representadas pelo grupo de palavras íden (viu/sabe), eidós (saberá/terá
visto), oîde (sabe/se dá conta/viu) revelariam que nenhum homem tem um conhecimento completo
das coisas.
81
Fr. 23: “Existe um só deus, o maior dentre os deuses e os homens, em nada semelhante aos
mortais quer no corpo quer no pensamento”.
2.4
82
Fragmento 112: swfroneiÍn a)reth\ megi¿sth, kaiì sofi¿h a)lhqe/a le/gein kaiì poieiÍn
kata\ fu/sin e)pai¿+ontaj
83
O termo phýsis, que só aparece uma vez em Homero e nenhuma em Hesíodo, será encontrado
em mais de duzentas passagens dos fragmentos dos pré-socráticos. Cf. Henrique G. Murachco, “O
Conceito de Physis em Homero, Heródoto e nos Pré-Socráticos”, Hypnos (São Paulo, Educ/ Palas
Athena, ano 1, n. 2, 1996), p. 11-22.
62
84
Fragmento 123: fu/sij kru/ptesqai fileiÍ.
85
Cf. M. Conche, Héraclite: Fragments (op. cit.), p. 253-254.
63
não pode ser limitado pelo perspectivismo ou por qualquer outro impedimento à
“comunidade” ou “universalidade”. Entretanto, temos de examinar o modo como
Heráclito justifica a possibilidade de conhecer a phýsis das coisas.
86
Fragmento 54: a(rmoni/h a)fanh\j fanerh=j krei/ttwn.
87
Fragmento 8: ou) cunia=sin o(/kwς diafero/menon e(wut%= o(mologe/ei pali/ntropoj
a(rmoni/h o(/kwsper to/cou kai\ lu/rhj.
64
Mesmo assim, Moyal admite que não podemos atribuir a Heráclito uma
concepção “empirista” ou “sensualista” do conhecimento, e que podemos entrever
traços de um “racionalismo” heraclítico, irrefutável quando se tomam sua visão a
respeito do que é cognoscível (o lógos, que é o tipo de objeto do conhecimento
que não pode ser dado na percepção sensível como comumente a concebemos) e
sua visão do modo como o que é cognoscível vem a ser conhecido (por meio da
atividade da alma, e não apenas de sua “passividade” ou receptividade de
impressões, em que se revela um esforço deliberado para discernir a estrutura da
realidade, o arranjo das coisas sensíveis). 89
88
John M. Robinson, An Introduction to Early Greek Philosophy (New York, Houghton Mifflin,
1968), p. 107.
89
Cf. Georges J. D. Moyal, “On Heraclitus’ Misanthropy” (Revue de Philosophie Ancienne,
Bruxelles, Éditions Ousia, t. 7, n. 2, 1989), p. 131-48 e “The Unexpressed Rationalism of
Heraclitus” (Revue de Philosophie Ancienne, op. cit.), p. 298-303.
67
2.5
Podemos ver, a partir deste exame, que Heráclito poderia ter participado
da crítica platônica, realizada no Teeteto, ao relativismo de Protágoras e à
69
90
Cf. Georges J. D. Moyal, “Did Plato Misunderstand Heraclitus? (Revues des Études Anciennes,
Talence, 1988, n. 90), p. 89-98.
70
3.
3.1
91
Alguns intérpretes, partindo da crítica às idéias ou formas no Parmênides e da ausência de
referências às formas no Teeteto, concluíram que Platão ou abandonou ou revisou
substancialmente a teoria das idéias no início da velhice. Daí esse período ser chamado de
“crítico” pelos que defendem esse desenvolvimento na obra de Platão. Cf., por exemplo, Jorgen
Mejer, “Plato, Protagoras and the Heracliteans: Some Suggestions Concerning Thaetetus 151d-
186e”, Classica et Mediaevalia, n. 29 (Copenhage, 1968), p. 40, e W. K. C. Guthrie, A History of
Greek Philosophy (op. cit.), vol. 5, p. 1. Mas esse conjunto de diálogos recebeu também outras
designações, como, por exemplo, a de “metafísicos”. Cf. Auguste Diès, “Notice Générale sur les
Dialogues Métaphysiques”, in Platon, Ouvres Complètes, Tome VIII, Ire Partie: Parménide (Paris,
Les Belles Lettres, 1950), p. V-XIX
72
diálogos foram compostos antes do Filebo, do Timeu92 e das Leis, e depois dos
diálogos do período médio ou da maturidade, que incluem, entre outros, o Mênon,
o Crátilo, o Fédon, o Banquete, a República e o Fedro. Mas, se há bastante
acordo com relação à seqüência dos grupos de diálogos, já não há tanto consenso
com relação à ordenação cronológica interna a esses grupos.
92
A posição do Timeu é, ainda assim, muito debatida, e esse debate tem reflexos nas interpretações
do Teeteto. De um lado, a estilometria – método do qual falarei mais adiante – concluiu que o
Timeu está estreitamente associado ao Filebo, e faz parte do grupo de diálogos composto no
período da velhice. De outro, G. E. L. Owen (no artigo intitulado “The Place of Timaeus in Plato’s
Dialogues”, de 1953) contestou a evidência estilométrica sobre o Timeu, afirmou que o Timeu foi
escrito antes do Parmênides e do Teeteto, e assim iniciou um debate que não se esgotou até hoje.
93
Os textos que levei em conta aqui, neste breve tratamento da cronologia da obra platônica,
foram os de Leonard Brandwood, “Stylometry and Chronology”, in The Cambridge Companion to
Plato (Cambridge, Cambridge University Press, 1992), p. 90-120; Auguste Diès, “Notice Générale
sur les Dialogues Métaphysiques” (op. cit.), p. V-XIX; W. K. C. Guthrie, “The Dialogues:
Chronology”, in A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 4, p. 41-55; e David Bostock,
“Chronology”, in Plato’s Theaetetus (New York, Oxford University Press, [1988] 2005), p. 1-9.
73
94
Cf. W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 4, p. 52.
95
Cf., por exemplo, A. Diès, “Notice Générale sur les Dialogues Métaphysiques” (op. cit.), p. XII-
XIII, e F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. I.
74
96
No caso do Teeteto, outra evidência interna de sua cronologia é a alusão, feita no prólogo, a uma
batalha em Corinto, batalha em que Teeteto lutara, ferindo-se muito e adoecendo em seguida.
Tendo em vista que, durante a vida de Platão, houve duas batalhas em Corinto, e que a última
delas ocorreu em 369 a.C., parece haver motivo suficiente para se afirmar que o diálogo, ou ao
menos o prólogo, não poderia ter sido escrito antes dessa data.
97
Cf. L. Brandwood, “Stylometry and Chronology” (op. cit.), p. 90.
75
3.2
98
Cf. F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 1.
99
Muitos autores preferem dividir o diálogo apenas em um prólogo e mais três partes, muito
embora reconheçam que a seção que chamam de prólogo possui duas partes muito distintas, que
correspondem a conversas mantidas em tempos e lugares diversos, por personagens diferentes.
76
100
As citações do Teeteto presentes nesta tese foram retiradas da tradução brasileira de Carlos
Alberto Nunes publicada em Platão, Teeteto – Crátilo (Belém, EdUFPA, 3ª ed., 2001). Em muitas
citações, introduzirei alterações na tradução, indicando em nota quando isso tiver ocorrido.
77
101
Costuma-se chamar de “primeira parte do diálogo” e de “parte inicial do diálogo principal” a
seção que começa com a primeira definição dada por Teeteto, segundo a qual “conhecimento nada
mais é que sensação”. Assim também denominarei esta seção do diálogo ao longo desta tese, sem
querer com isso dizer que a primeira definição corresponde à primeira resposta formulada por
Teeteto, ou que todas as passagens do diálogo que precedem a primeira definição constituem
apenas preliminares para a posterior discussão sobre o conhecimento. Para um exame bastante
completo da relevância das páginas que antecedem a primeira definição para a compreensão do
diálogo, cf. Michel Narcy, “Introduction”, em Platon, Théétète (Paris, Flammarion, 1995), p. 7-
121.
102
Cf. Myles Burnyeat, The Theaetetus of Plato (Indianapolis, Hackett, 1990), p. 3-4.
78
pintor, não se deve atribuir muita importância ao que ele afirmou sobre a
semelhança física. Mas se ele falasse da sabedoria da alma de alguém, suas
palavras deveriam ser levadas a sério, e quem quer que fosse por ele elogiado
nesse sentido deveria ser examinado. É preciso então examinar Teeteto, pois
nunca Teodoro fez elogios mais calorosos a alguém.
3.3
Quando Teeteto dá sua primeira resposta, o que ele oferece é uma lista de
especialidades ou áreas de conhecimento teórico e prático (146c-d). Sócrates
insiste na diferença entre uma pluralidade de exemplos de conhecimentos
especializados, que apenas determina o objeto de cada um desses conhecimentos,
e a definição unitária do que é o conhecimento em si mesmo. E afirma ainda mais
enfaticamente que ninguém pode conhecer exemplos de conhecimento, ou seja,
ninguém compreenderá o que é o conhecimento disto ou daquilo, até que saiba o
que o próprio conhecimento é. Isso significa que todo conhecimento especializado
se torna problemático se o próprio conhecimento é problemático: daí a
necessidade de passar do tema dos conhecimentos particulares para o tema do
conhecimento em geral.
frutos mais perfeitos – sendo este o saber de que mais se envaidecem as parteiras
– e saber distinguir o verdadeiro do falso.
3.4
103
“Teeteto – Realmente, Sócrates, exortando-me como o fazes, fora vergonhoso não esforçar-me
para dizer com franqueza o que penso. Parece-me, pois, que quem sabe alguma coisa sente o que
sabe. Minha opinião, pois, é que quem sabe alguma coisa sente o que sabe. Assim, o que me
aparece neste momento é que conhecimento não é mais que sensação”. ΘΕΑΙ. – Ἀλλὰ µέντοι, ὦ
Σώκρατες, σοῦ γε οὕτω παρακελευοµένου αἰσχρὸν µὴ οὐ παντὶ τρόπῳ προθυµεῖσθαι ὅτι
τις ἔχει λέγειν. δοκεῖ οὖν µοι ὁ ἐπιστάµενός τι αἰσθάνεσθαι τοῦτο ὃ ἐπίσταται, καὶ ὥς γε
νυνὶ φαίνεται, οὐκ ἄλλο τί ἐστιν ἐπιστήµη ἢ αἴσθησις. (Teeteto, 151e)
81
De fato, se for verdade que o Teeteto foi escrito após a República, obra
em que Platão discerne os vários tipos de apreensão da alma e seus objetos
próprios, distingue sensível e inteligível, apresenta uma clara diferença entre
opinião e conhecimento, descreve a geometria como propedêutica à dialética e
afirma que o conhecimento do ser e do inteligível adquirido pela dialética é o
conhecimento mais claro que podemos obter, será inevitável que o Teeteto
provoque surpresa: pois começa apresentando uma definição de conhecimento
como sensação, não ultrapassa em nenhum momento o domínio da opinião, não
faz referência às idéias ou formas inteligíveis e nunca menciona a dialética como
resposta à questão sobre o conhecimento. Além disso, o diálogo é aporético e
apresenta uma forma de argumentação semelhante à do elenchus socrático, forma
esta característica dos diálogos platônicos do período inicial.
104
Como bem observou Marcelo Pimenta Marques, só é possível falar em “retorno” à reflexão
sobre a relação entre sensação e conhecimento, quando está em jogo a hipótese – que me parece
plausível, ainda que seja questionável –, de que o Teeteto foi escrito depois da República. Nesse
sentido, este “estranhamento” ou “surpresa” produzido pelo Teeteto, para ser aceitável, depende
inteiramente de se ter em vista um outro diálogo, e de se partir de considerações sobre a cronologia
e o desenvolvimento da obra de Platão. Ainda assim, se deixamos de lado as considerações sobre a
anterioridade da República para pensarmos o Teeteto somente a partir de si mesmo, permanece o
interesse em buscar entender qual é o sentido, nele, da proposta de definição de conhecimento
como sensação. E isso será feito mais adiante.
82
105
Para a argumentação de Narcy que aqui será apresentada de forma resumida, cf. M. Narcy,
“Introduction”, in Platão, Théétète (op. cit.), p. 30-69.
106
“Teeteto – A respeito de algumas potências, Teodoro, aqui presente, fez desenhos, fazendo
aparecer que a de três pés e a de cinco, consideradas segundo seu comprimento, não são
comensuráveis com a de um pé. E assim foi estudando uma após a outra, até a de dezessete pés.
Não sei por que parou aí. Ocorreu-nos, então, já que é infinito o número dessas potências, reuni-las
numa única, que serviria para designar todas.” ΘΕΑΙ. Περὶ δυνάµεών τι ἡµῖν Θεόδωρος ὅδε
ἔγραφε, τῆς τε τρίποδος πέρι καὶ πεντέποδος [ἀποφαίνων] ὅτι µήκει οὐ σύµµετροι τῇ
ποδιαίᾳ, καὶ οὕτω κατὰ µίαν ἑκάστην προαιρούµενος µέχρι τῆς ἑπτακαιδεκάποδος· ἐν δὲ
ταύτῃ πως ἐνέσχετο. ἡµῖν οὖν εἰσῆλθέ τι τοιοῦτον, ἐπειδὴ ἄπειροι τὸ πλῆθος αἱ δυνάµεις
ἐφαίνοντο, πειραθῆναι συλλαβεῖν εἰς ἕν, ὅτῳ πάσας ταύτας προσαγορεύσοµεν τὰς
δυνάµεις. (Teeteto, 147d-e). Alterei a tradução brasileira nos trechos “fez desenhos”, “fazendo
aparecer” e “consideradas em seu comprimento”, com base nas traduções francesas de A. Diès e
de M. Narcy: no primeiro caso, para solucionar a ausência de tradução do termo égraphe, no
segundo, para substituir a tradução de apophaínon como “mostrar” e, no terceiro, para tornar mais
claro o texto em português.
83
Mas Narcy sabe que se pode alegar que, embora Teodoro seja um mau
matemático aos olhos de Platão, e portanto um matemático do qual não se pode
esperar sucesso na definição de conhecimento, seu pupilo Teeteto já não pode ser
tido como um mau geômetra, visto que propõe, não exemplos ou construções, e
sim a reunião das infinitas potências numa unidade, e visto que recebe elogios
calorosos não apenas de Teodoro, mas também de Sócrates. Em resposta a essas
alegações, Narcy afirma que há muito mais motivos para se acreditar que Teeteto
não se aproxima de Sócrates e do geômetra platônico, e sim de Protágoras e de
Teodoro, do que o contrário. A fala sobre a disenteria funesta e a morte sem glória
de Teeteto seriam prenúncios de seu fracasso. Os elogios de Sócrates poderiam
muito bem ser interpretados como pura ironia. E atribuir-se-ia erroneamente a
Teeteto um progresso com relação à geometria de Teodoro, pois a definição de
potência oferecida por Teeteto (por seu vocabulário; por definir as potências no
plural como uma coleção e não como uma acepção geral; por definir
determinando a coisa de que a potência é potência e nunca a própria potência
independentemente; por definir identificando a potência com a linha
incomensurável, isto é, com uma figura visível) ressaltaria a geometria aprendida
com Teodoro e condenada por Sócrates na República. Por isso, esse autor vê
sentido em que saia da boca de Teeteto a definição de conhecimento como
sensação, assim como vê sentido na assimilação que é feita quase imediatamente
entre essa definição e a doutrina de Protágoras.
107
A tradução desta passagem foi inteiramente alterada, com base na tradução de A. Diès. A
passagem não menciona explicitamente a dialética, mas Narcy sustenta que os “argumentos
abstratos” – que ele traduz como “palavras abstratas” – mencionados na passagem designam as
demonstrações em que estão ausentes quaisquer figuras, e que isto é o que Sócrates entende por
dialética na República.
84
indicar uma visão mais moderada do devir, que incluiria a existência de medida,
regularidade e, por conseguinte, alguma racionalidade.108
108
Cf. Maria Inês S. Anachoretta, O Teeteto de Platão e a dynamis (Rio de Janeiro, PUC-Rio,
Dissertação de Mestrado, 1998).
109
Cf. Michael Frede, “Observations on Perception in Plato’s Later Dialogues”, in Essays in
Ancient Philosophy (Oxford, Clarendon, 1987), p. 4.
86
querendo dizer algo muito geral, como, por exemplo, que o conhecimento é um
dar-se conta, um compreender da alma que não se confunde com as meras
suposições, conjecturas ou opiniões de segunda mão, e sim se caracteriza como
um dar-se conta direto, claro e, por isso, mais evidente e seguro.
Mas, será que Teeteto não está mesmo querendo dizer aquilo que
nós entendemos por “percepção sensível” quando fala de aísthesis? Poderíamos
nos certificar disso no texto do diálogo, e não apenas em exames extrínsecos a
ele, como por exemplo este, que recorreu ao conjunto de usos correntes do termos
aísthesis? Enfim, é possível saber se Teeteto está de fato se baseando nesse
sentido amplo, geral, corrente de aísthesis? Parece que sim, mas somente se não
tomarmos a definição de Teeteto isoladamente, e sim considerando toda a fala em
que ele a formula. Teeteto diz:
110
Inseri alterações nesta citação da passagem 151e, para deixar mais evidente, com as palavras
“opinião” e “o que me aparece”, a presença dos termos dokeî e phaínetai na formulação da
primeira definição de conhecimento de Teeteto.
111
Toda a exposição que se segue sobre a relação entre os quatro termos (dóxa, epistéme, aísthesis,
phaínetai) na passagem 151e, bem como o exame que proponho dos significados atribuídos no
Teeteto aos termos aísthesis e phaínetai, devem muito ao trabalho de Anachoretta, O Teeteto de
Platão e a dynamis (op. cit.), p. 89, e a outros que serão citados ao longo do texto.
87
Mas qual o conteúdo da opinião de Teeteto, disso que aparece para ele
nesse momento? É que quem sabe sente o que sabe, logo, conhecimento
(epistéme) é sensação (aísthesis). Formou-se assim um novo par cujos termos
foram identificados: conhecimento e sensação. Porém como os dois pares se
relacionam entre si? Uma boa solução para esta questão pode ser encontrada
quando imaginamos o que aconteceria se Sócrates perguntasse a Teeteto como ele
apreendeu o que apareceu a ele naquele momento, isto é, como ele formou sua
opinião: uma das respostas possíveis – e não apenas possível, mas a mais
condizente com a definição de conhecimento que o próprio Teeteto acabou de
formular – é que ele apreendeu sentindo. Mas, se a opinião de Teeteto, isto é, o
que apareceu a ele naquele momento, é o que ele sentiu (dóxa = phaínetai =
aísthesis), e se conhecimento não é mais que sensação (epistéme = aísthesis),
então a opinião e a aparência também são conhecimento (dóxa = phaínetai =
epistéme)!
Mas não nos é dito, no diálogo, que quando Teeteto define conhecimento
como aísthesis ele está restringindo o sentido de aísthesis à apreensão desses
objetos externos e internos, nem muito menos que ele o está restringindo a apenas
um desses tipos de objeto. Em compensação, o que fica muito claro na seqüência
do diálogo, a partir dos exemplos do vento (152b) e da cor branca (153d), é que
Sócrates levará Teeteto a tratar principalmente, senão exclusivamente, da
apreensão de objetos externos, isto é, da apreensão de objetos físicos e de suas
qualidades sensíveis. Ou seja, mesmo que Teeteto tenha querido dizer algo muito
mais geral (e menos estranho, sendo ele o matemático que é), Sócrates limita o
termo aísthesis a esse sentido (o de sensação de objetos externos) e conduz a
discussão a partir dessa limitação.
112
Cf. F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 30; e M. Frede, “Observations on
Perception in Plato’s Later Dialogues” (op. cit.), p. 3.
89
Como diz Burnyeat,114 o exemplo do vento, que parece ser frio para uma
pessoa, e quente para outra deixa claro – como muitos outros exemplos dados no
Teeteto também deixam – que o tipo relevante de aísthesis, até quase o final da
primeira parte do diálogo, é aquele em que uma coisa física é percebida como
tendo uma determinada qualidade sensível. De fato, no diálogo, há algumas
alusões à apreensão de qualidades sensíveis em que só se faz menção às próprias
qualidades, sem se fazer referência às coisas físicas que possuem tais qualidades.
Mas, ao contrário, toda menção à apreensão de uma coisa física faz referência a
alguma qualidade sensível nela apreendida (cf., por exemplo, 156e, 166e, 178d).
Nas palavras de Burnyeat, isso significa que “a percepção que está em questão
aqui é a percepção de que isso e aquilo é o caso”.115
113
Cf. George Nakhnikian, “Plato’s Theory of Sensation, I” (The Review of Metaphysics, n. IX,
Sept. 1955), p. 129-31.
114
Cf. M. Burnyeat, The Theaetetus of Plato (op. cit.), p. 11-12.
115
Cf. M. Burnyeat, The Theaetetus of Plato (op. cit.), p. 11.
90
de objeto, mas também no que toca à forma de apreensão do objeto. Pois, quando
percebemos que uma coisa é o caso, nossa apreensão não se limita à captação de
uma qualidade sensível ou à tomada de consciência de um objeto físico, mas já
envolve alguma forma de julgamento, algum conteúdo proposicional. Mais
adiante (179c, 184b-ss), essa decisão sobre como a aísthesis deve ser entendida se
mostrará problemática, e então o papel do julgamento na sensação será discutido,
e a compreensão de Teeteto a respeito da aísthesis será corrigida.
crenças e opiniões do mesmo modo que temos sensações poderia ser encontrado
“inclusive no Fédon e na República, onde Platão trata opinião (dóxa, dokeîn,
doxázein), aparência (phaínesthai) e sensação (aisthánestai) como virtualmente
equivalentes”.116
116
Cf. Mi-Kyoung Mitzi Lee, “Thinking and Perception in Plato’s Theaetetus” (Apeiron, n. 32,
1999, p. 37-54), p. 38.
117
Cf. M. Frede, “Observations on Perception in Plato’s Later Dialogues” (op. cit.), p. 4.
92
traduções de aísthesis sejam fiéis ao texto platônico, há uma razão pela qual
alguns escolhem usar o termo “sensação” (ou também “percepção sensível”, em
lugar de simplesmente “percepção”): é que assim se evita traduzir aísthesis por
um termo que sempre evocará a ambigüidade que o texto do próprio diálogo
tratará de desfazer. De outro lado, traduzir aísthesis por percepção tem a
vantagem de deixar em aberto essa ambigüidade que Sócrates vai explorar até
quase o final do exame da primeira definição de conhecimento. Trata-se portanto
de escolher entre duas alternativas justificáveis. Aqui, optei por traduzir aísthesis
por sensação, tanto para seguir a tradução brasileira que é fonte das citações desta
tese e as traduções francesas consultadas constantemente neste trabalho, quanto
por querer ressaltar a vantagem que essa tradução tem de favorecer a compreensão
da distinção entre aísthesis e julgamento, crença ou opinião, que será realizada no
final da primeira parte do diálogo.
118
A. Bailly, Dictionnaire Grec Français (Paris, Hachette, 1963), p. 49-50.
119
Cf. Édouard des Places, Lexique de la Langue Philosophique et Religieuse de Platon, em
Platon, Ouvres Complètes (Paris, Les Belles Lettres, tome XIV, vol. 2), p. 529-530.
120
Cf. Charles H. Kahn, “Alguns Usos Filosóficos do Verbo ‘Ser’ em Platão”, em Sobre o Verbo
Ser e o Conceito de Ser (Puc-Rio, Cadernos de Tradução, n. 1, Série Filosofia Antiga, 1997), p.
118-121.
94
3.5
121
Cf. A. Bailly, Dictionnaire Grec Français (op. cit.), p. 49-50.
122
Kahn explica que surge uma nuance veritativa no uso copulativo do verbo eînai quando esse
verbo tem “a função de chamar atenção para a pretensão de verdade que está implícita em toda
frase declarativa”, o que ocorre “sempre que há um contraste entre ser assim e parecer assim”. Cf.
C. H. Kahn, “Alguns Usos Filosóficos do Verbo ‘Ser’ em Platão” (op. cit.), p. 118. Para a
passagem em que Kahn comenta o contraste entre ser e parecer no Teeteto, cf. p. 131.
95
que elas são, e das que não são, que elas não são. Decerto já leste isso?
(Teeteto, 152a)123
Sócrates – Não quererá ele, então, dizer que as coisas são para
mim conforme me aparecem, como serão para ti segundo te
aparecerem?125 Pois eu e tu somos homens.
123
ἐπιστήµης, ἀλλ’ ὃν ἔλεγε καὶ Πρωταγόρας. τρόπον δέ τινα ἄλλον εἴρηκε τὰ αὐτὰ
ταῦτα. φησὶ γάρ που “πάντων χρηµάτων µέτρον” ἄνθρωπον εἶναι, “τῶν µὲν ὄντων ὡς
ἔστι, τῶν δὲ µὴ ὄντων ὡς οὐκ ἔστιν.” ἀνέγνωκας γάρ που; (Teeteto, 152a). Alterei a parte
final da tradução desta passagem com base em diversas traduções – entre elas a de M. J. Levett,
em M. Burnyeat, The Theaetetus of Plato (op. cit.), p. 272 –, pois nelas encontrei a opção pelo
verbo “ser” em lugar de “existir”, opção que creio estar plenamente justificada, por exemplo, no
trabalho intitulado “Alguns Usos Filosóficos do Verbo ‘Ser’ em Platão” (op. cit.), em que Charles
Kahn reconhece o veritativo nessa citação da frase de Protágoras, de tal modo que a tradução
poderia se apresentar assim: “O homem é a medida de todas as coisas, do que é (assim) que é
(assim), do que não é que não é”.
124
Esta sentença de Protágoras foi catalogada por Hermann Diels e Walter Kranz, em Die
Fragmente der Vorsokratiker (op. cit.), como fragmento 1, e tem como fonte, além de Sexto
Empírico em uma passagem de Contra os Matemáticos, justamente esta passagem do Teeteto de
Platão.
125
Vale notar que esta “tradução socrática” da tese de Protágoras, que estabelece a coincidência
96
Teeteto – Exato.
Teeteto – É.
Teeteto – Perfeitamente.
entre ser e aparecer e garante assim a verdade do que aparece, repete textualmente uma passagem
do Crátilo (386a).
126
ΣΩ. – Οὐκοῦν οὕτω πως λέγει, ὡς οἷα µὲν ἕκαστα ἐµοὶ φαίνεται τοιαῦτα µὲν ἔστιν
ἐµοί, οἷα δὲ σοί, τοιαῦτα δὲ αὖ σοί· ἄνθρωπος δὲ σύ τε κἀγώ;
ΘΕΑΙ.– Λέγει γὰρ οὖν οὕτω.
ΣΩ. – Εἰκὸς µέντοι σοφὸν ἄνδρα µὴ ληρεῖν· ἐπακολουθήσωµεν οὖν αὐτῷ. ἆρ’ οὐκ
ἐνίοτε πνέοντος ἀνέµου τοῦ αὐτοῦ ὁ µὲν ἡµῶν ῥιγῷ, ὁ δ’ οὔ; καὶ ὁ µὲν ἠρέµα, ὁ δὲ
σφόδρα;
ΘΕΑΙ. – Καὶ µάλα.
ΣΩ. – Πότερον οὖν τότε αὐτὸ ἐφ’ ἑαυτοῦ τὸ πνεῦµα ψυχρὸν ἢ οὐ ψυχρὸν φήσοµεν;
ἢ πεισόµεθα τῷ Πρωταγόρᾳ ὅτι τῷ µὲν ῥιγῶντι ψυχρόν, τῷ δὲ µὴ οὔ;
ΘΕΑΙ. – Ἔοικεν.
ΣΩ. – Οὐκοῦν καὶ φαίνεται οὕτω ἑκατέρῳ;
ΘΕΑΙ. – Ναί.
ΣΩ. – Τὸ δέ γε “φαίνεται” αἰσθάνεσθαί ἐστιν;
ΘΕΑΙ. – Ἔστιν γάρ.
97
Como Burnyeat observa, a idéia de que “isto lhe aparece” significa “ele
sente isto” é aceita por Teeteto sem argumentos. O exemplo do vento deixou claro
que a sensação (aísthesis) está sendo concebida não como a pura sensação de um
objeto físico em si mesmo, e sim como a sensação que engloba um julgamento
sobre como o objeto é. Isso significa que o “aparecer” que está em jogo aqui, ao
ser identificado com “sensação”, ganha também o sentido ambíguo de aparecer
sensível e de aparecer judicativo. Podemos concluir que, ao se estabelecer a
coincidência entre ser e aparecer, garante-se a verdade do que aparece. E ao se
estabelecer a identidade entre ser, aparecer e sensação, garante-se a verdade da
sensação e do julgamento nela envolvido. E é exatamente disso que Sócrates trata
ΣΩ. – Φαντασία ἄρα καὶ αἴσθησις ταὐτὸν ἔν τε θερµοῖς καὶ πᾶσι τοῖς τοιούτοις. οἷα
γὰρ αἰσθάνεται ἕκαστος, τοιαῦτα ἑκάστῳ καὶ κινδυνεύει εἶναι.
ΘΕΑΙ. – Ἔοικεν. (Teeteto, 152a-c)
98
127
ΣΩ. – Αἴσθησις ἄρα τοῦ ὄντος ἀεί ἐστιν καὶ ἀψευδὲς ὡς ἐπιστήµη οὖσα (Teeteto,
152c). Modifiquei aqui a tradução brasileira em dois pontos, com base nas traduções já
mencionadas de A. Diès e de M. J. Levett: na tradução de apseudés, usei infalível em vez de não
ilusória; e, na tradução de estin, inseri é em lugar de existe.
99
Alguns intérpretes lêem toda a primeira parte do Teeteto (ou seja, a que
trata da primeira definição de conhecimento) como uma argumentação cujo
objetivo é sustentar a visão (apresentada, por exemplo, no Fédon) segundo a qual
a verdadeira realidade – a única que é objeto de conhecimento – é o domínio não-
sensível das idéias, seres imutáveis, constantes e uniformes.129 Nessa
argumentação, a passagem em que é dito que a sensação é sempre sensação do
que é seria muito importante, pois, ao dizer que só há conhecimento do que é
estável e não devém, prepararia o terreno para a sensação ser descartada como
conhecimento: de fato, se uma das condições que a sensação deve satisfazer para
que possa ser conhecimento é ser sempre sensação do que é estável, então a
sensação do que devém não pode constituir conhecimento. Embora não creia que
toda a primeira parte do Teeteto consiste numa argumentação voltada unicamente
para dar suporte à visão de que onde há devir e não há formas inteligíveis não há
conhecimento, penso que o contraste entre ser e devir, pode, sim, ser uma das
oposições indicadas nesta passagem, tendo em vista que logo em seguida esse
mesmo contraste será enfatizado.
De todo modo, há uma terceira distinção que pode ser encontrada nesta
passagem (152c), na tradução que diz que “a sensação é sempre sensação do que
é”: a distinção entre entre ser e parecer ou, mais precisamente, entre “o que é
realmente assim” e “o que é só aparentemente assim”. Esse é o contraste que
vimos estar presente na citação da sentença de Protágoras e na interpretação
128
Cf. C. H. Kahn, “Alguns Usos Filosóficos do Verbo ‘Ser’ em Platão” (op. cit.), p. 118-119.
129
O mais representativo deles é F. M. Cornford, em seu clássico comentário ao Teeteto intitulado
Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.).
100
socrática desse dito (152a), ou seja, é a oposição que saltou à vista nas passagens
imediatamente anteriores a esta. Estando presente também aqui, essa oposição nos
faz ver que a sensação é sempre sensação de como uma coisa é, isto é, a sensação
é um critério para determinar como as coisas são, no sentido de quais qualidades
lhes devem ser atribuídas, quais predicados lhes devem ser aplicados.
Kahn indica que, nesta passagem, pode ser reconhecida uma cópula
incompleta, com força veritativa, de tal modo que poder-se-ia até propor a
seguinte tradução: “a sensação é sempre sensação do que é realmente assim”.130
Lee também mostra dar ênfase à força veritativa ao propor que este passo quer
dizer que “a sensação é sempre verdadeira” e ao sugerir para ele a seguinte
tradução: “a sensação é sempre do que é o caso”.131 Mesmo crendo que o
contraste entre ser e devir pode estar sendo indicado nesta passagem, penso, pelas
razões apresentadas, que a oposição mais marcante é aquela entre ser e parecer, de
modo que o que a passagem afirma é sobretudo que a sensação é sempre “do que
é realmente tal como é sentido”, sendo infalível e constituindo conhecimento.
Mas uma coisa que está sendo suposta o tempo todo na passagem que diz
que “a sensação é sempre sensação do que é, sendo, pois, infalível, visto ser
conhecimento”, é que ser verdadeiro e ser infalível são as duas condições ou
exigências incontornáveis para que haja conhecimento. Se era de se esperar que o
diálogo “partisse do zero” em sua busca por elaborar uma resposta à pergunta “o
que é conhecimento?”, podemos ver aqui que não é isso o que acontece. Pois duas
características ou condições, que nos informam sobre a natureza do conhecimento,
isto é, que começam a responder a pergunta sobre o que ele é, são dadas sem
maiores explicações, como se fossem pressupostas, evidentes, já sabidas: o
130
Cf. C. H. Kahn, “Alguns Usos Filosóficos do Verbo ‘Ser’ em Platão” (op. cit.), p. 132, n. 25.
131
Cf. M.-K. M. Lee, “Thinking and Perception in Plato’s Theaetetus” (op. cit.), p. 42.
101
3.6
132
Essa mesma “continuação” da sentença do homem-medida, que diz que o que aparece para cada
um é o que é para cada um, é apresentada no Crátilo (386a) e é confirmada por Aristóteles
(Metafísica, 1062 b13) e por Sexto Empírico (Contra os Matemáticos VII 60), o que reforça a
idéia de que devia fazer parte da doutrina do próprio Protágoras.
102
caráter histórico. Nesse sentido, com relação aos escritos de Protágoras, Platão
poderia muito bem estar completando, constrangendo, extraindo conseqüências e
explorando associações e afinidades que o próprio Protágoras não teria
enxergado.133 Mas, se de um lado temos razões para supor que é muito provável
que Platão tenha distorcido e extrapolado os ditos de Protágoras, de outro
precisamos também ter em mente que os escritos de Protágoras eram bem
conhecidos, e que muitos dos argumentos e críticas de Platão perderiam a força, se
ele não expressasse suas teorias fielmente, ao menos até um certo ponto.134 Além
disso, é preciso notar que, no Teeteto, Platão parece ter se esforçado para deixar
claro quando ele está indo além da obra de Protágoras. Finalmente, vale lembrar
que as obras de Protágoras se perderam, que o contexto em que suas sentenças
foram escritas não pode ser recuperado, e que uma de nossas principais fontes de
informação a seu respeito é a obra de Platão. Por isso, a discussão da doutrina de
Protágoras no Teeteto costuma ser considerada de suma importância para, entre
outras coisas, a reconstrução do que Protágoras efetivamente disse e escreveu.
133
Cf., por exemplo, Maura Iglésias, Platon et la These Sophistique de L’Impossibilité du Faux
(Paris, Université de Paris IV – Sorbonne, 1981, Tese de Doutorado), p. 117.
134
Cf. J. Mejer, “Plato, Protagoras and the Heracliteans” (op. cit.), p. 41, e G. B. Kerferd, “Plato’s
Account of the Relativism of Protagoras” (Durham University Journal, n. 42, 1949), p. 20.
135
Ver, por exemplo, DK 80 A16: “[Protágoras dizia que] o homem é limite e juízo dos objetos, de
modo que aqueles objetos que caem sob sua percepção existem, e os que não caem, não existem
entre as formas do ser” (Hérmias, Irrisão dos Filósofos Pagãos IX); e DK 80 A17: “Com efeito,
não haverá nada frio nem quente, nem doce nem nenhuma outra qualidade sensível, se não existe
quem as perceba. De modo que se encontraram defendendo o argumento de Protágoras”
(Aristóteles, Metafísica 1047a 4).
103
Quando Sócrates diz que “aparecer é o mesmo que ser sentido” (152b),
ele mostra que a sensação ganha um sentido amplo, na medida em que passa a
envolver um reconhecimento, um julgamento ou uma crença. Mas, por outro lado,
a identificação com “sensação” restringe o sentido de “aparência”, pois, por mais
crença e julgamento que a sensação envolva, ela só produz julgamentos a respeito
de objetos sensíveis, julgamentos de um tipo restrito.136 E sabemos que é legítimo
dizer: “me parece que tal coisa é assim”, mesmo quando a “aparência” não tem
nada a ver com a sensação, com objetos físicos e com qualidades sensíveis. Ou
seja, a aparência pode envolver julgamentos de outros tipos, como por exemplo
julgamentos sobre valores e sobre outros julgamentos. Será então que Platão, no
Teeteto, estaria negligenciando o fato de que a aparência “protagórica” tem esse
sentido mais amplo, e estaria distorcendo a doutrina de Protágoras ao restringir a
aparência à “aparência sensível”?
Não parece ser isso o que acontece. É verdade que, inicialmente, não
apenas o uso de “aparência” como também toda a discussão sobre a doutrina do
homem-medida ficam restritos à aplicação dessa doutrina às aparências sensíveis.
E é verdade também que esse uso restrito não exaure todo o significado do dito de
Protágoras. Mas o uso mais amplo de “aparecer” vai figurar mais adiante, quando
a doutrina do homem-medida for relacionada justamente com os julgamentos
sobre valores e sobre acontecimentos futuros. Por isso, muitos intérpretes de
Protágoras crêem que não há nenhum sinal de “infidelidade” platônica quando, no
Teeteto, Sócrates propõe que a doutrina do homem-medida seja examinada,
apenas inicialmente, a partir do exemplo do vento e de suas qualidades sensíveis.
136
Cf. D. Bostock, Plato’s Theaetetus (op. cit.), p. 43.
137
ἢ πεισόµεθα τῷ Πρωταγόρᾳ ὅτι τῷ µὲν ῥιγῶντι ψυχρόν, τῷ δὲ µὴ οὔ; (Teeteto, 152b).
104
quando Sócrates oferece esse exemplo do vento, fica muito claro que a doutrina
do homem-medida envolve a rejeição da opinião corrente de que o vento em si
mesmo é ou quente ou frio, e de que, se há conflito entre dois indivíduos, um
deles está errado e o outro está certo.138 Mas, se esse exemplo indica nitidamente
que visão está sendo rejeitada, já não deixa tão claro que visão está sendo
sustentada.
138
G. B. Kerferd, O Movimento Sofista (São Paulo, Loyola, 2003), p. 148; e “Plato’s Account of
the Relativism of Protágoras” (op. cit.), p. 20.
105
quente para outro” são verdadeiras, porque ambas atribuem ao vento propriedades
que ele realmente possui em si mesmo.
139
Cf. Sexto Empírico, Hipotiposes Pirrônicas I 216: “[Protágoras] afirma também que as causas
inteligíveis de todos os fenômenos radicam na matéria, pois a matéria, na medida em que estes
dependem dela, é em potência tudo quanto a todos se revela. Mas os homens apreendem às vezes
umas propriedades e outra, outras, segundo suas diferentes disposições. Assim, o que se encontra
numa disposição conforme à natureza apreende das propriedades que estão na matéria aquelas que
podem revelar-se aos que se encontram em uma disposição conforme à natureza; quem se encontra
num estado contrário à natureza, aquelas que podem revelar-se a quem se encontra num estado
contrário à natureza.” (DK 80 A14)
140
Cf. M. F. Cornford, Plato’s Theory of Knowledege (op.cit.), p. 35.
106
141
Cf. DK 80 A14, citado anteriormente.
142
Cf. W. K. C. Guthrie, Os Sofistas (São Paulo, Paulus, 1995), p. 175.
143
Cornford, ainda assim, considera este testemunho confiável. Argumentando que “Sexto sem
dúvida foi influenciado pelo Teeteto, mas parece ter tido fontes independentes também”. Cf. F. M.
Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 35.
107
defesa de ambas as posições. Guthrie, por exemplo, para apoiar sua interpretação,
lembra que Aristóteles negou expressamente que Protágoras tenha defendido a
teoria de que uma substância ou matéria contém propriedades que podem ou não
ser percebidas.144 Já Kerferd – para quem Platão atribui ao Protágoras histórico a
visão de que o vento é em si mesmo quente e frio – lembra que Aristóteles sempre
trata Protágoras como um dos que romperam com o princípio de não-contradição,
e alega que isso só seria possível se Protágoras tivesse de fato afirmado que as
coisas possuem em si mesmas propriedades opostas.145
Essa terceira resposta, até onde sei, teve um único defensor: Taylor.146
Ela recebeu críticas contundentes, entre as quais destacarei uma, que me parece
razoável: trata-se da crítica feita por Cornford e por Kerferd, que afirmam que a
linguagem desta passagem do Teeteto vai claramente contra essa interpretação,
pois não há sugestão nenhuma de dois ventos.147 De fato, Sócrates primeiro
144
Cf. Aristóteles, Metafísica 1047a 4, já citado anteriormente.
145
Cf. W. K. C. Guthrie, Os Sofistas (op. cit.), p. 175; e G. B. Kerferd, “Plato’s Account of the
Relativism of Protágoras” (op. cit.), p. 21.
146
Cf. A. E. Taylor, Plato the Man and his Work (Dover, 2001), p. 326.
147
Cf. F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 34; e G. B. Kerferd, “Plato’s
Account of the Relativism of Protágoras” (op. cit.), p. 20.
108
pergunta o que acontece quando duas pessoas estão “sob a ação do mesmo vento”
e em seguida pergunta como essas pessoas dirão que é “o vento em si mesmo”. 148
148
Vale notar que Bostock, embora não defenda a resposta proposta por Taylor, também não
concorda com a idéia de que a linguagem dessa passagem vai contra ela. Segundo ele, o que
Sócrates mostra claramente, nessa passagem, quando sugere que o vento é quente para uma pessoa
e frio para outra, é que “não devemos perguntar o que ele é em si mesmo”. Cf. D. Bostock, Plato’s
Theaetetus (op. cit.), p. 58.
149
Cf. F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 34-36; e G. B. Kerferd, “Plato’s
Account of the Relativism of Protágoras” (op. cit.), p. 21.
109
150
Cf. D. Bostock, Plato’s Theaetetus (op. cit.), p. 43-44 ; e M. Burnyeat, “Protagoras and Self-
Refutation in Later Greek Philosophy” (The Philosophical Review, vol. LXXXV, n. 1, January
1976), p. 46.
151
Embora aqui, por ora, somente o exame da doutrina secreta seja mencionado, os argumentos
usados para defender as diferentes interpretações do princípio do homem-medida com base no
Teeteto não se restringem a ele. Para citar apenas um exemplo, Kerferd afirma que as razões mais
fortes para se crer que a visão correta é a de que o vento em si mesmo é simultaneamente frio e
quente são encontradas em passagens posteriores, especialmente na Defesa de Protágoras e na
parte da crítica conhecida como Peritropé. Cf. G. B. Kerferd, O Movimento Sofista (op. cit.), p.
180-183.
152
Cornford afirma não haver razão para crer que Protágoras devesse sustentar uma doutrina do
fluxo tal como a apresentada na doutrina secreta, embora Sexto diga: “Afirma este [Protágoras]
que a matéria é fluida e que, ao fluir, se produzem constantemente adições que vêm a substituir as
perdas (...)”. Cf. F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 36; e Sexto Empírico,
Hipotiposes Pirrônicas, I 216-ss. Vale entretanto citar um trecho do texto de Mondolfo e Tarán
acerca dos “ecos” de Heráclito em autores anteriores a Platão: “Outro pensador indubitavelmente
influenciado por Heráclito é o concidadão de Demócrito, Protágoras, no qual deve-se considerar
110
uma derivação de Heráclito a concepção da hýle rheusté (DK 80 A14)”. Cf. R. Mondolfo e L.
Tarán. Eraclito: Testimonianze e Imitazioni (op. cit.), p. LXXI.
153
Este é o ponto de vista de Cornford, por exemplo. Cf. F. M. Cornford, Plato’s Theory of
Knowledge (op. cit.), p.38.
111
pouco confiáveis, o próprio Platão é uma das principais fontes para nosso
conhecimento do Protágoras histórico, e o sentido do que Platão disse a respeito
de Protágoras é disputado. Mas, mesmo enquanto essa disputa fica em aberto, o
que essas as interpretações “rivais” nos mostram é que o exemplo do vento e a
introdução da doutrina secreta explicam e justificam, seja de um modo, seja de
outro, a associação de Protágoras com Heráclito, que, como será visto, é uma
associação feita explicitamente por Platão.
Teeteto, todo o texto que se segue a esse exemplo trata de expor as teses
heraclíticas, de associá-las a Protágoras e a Teeteto, e de construir, a partir dessa
associação, uma teoria da sensação. Devemos começar, portanto, o exame da
leitura platônica de Heráclito no Teeteto. E é com essa tarefa que iniciarei o
próximo capítulo.
113
4.
4.1
(152e). Essa interpretação formou uma das imagens mais célebres de Heráclito: a
do pensador mobilista, opositor do imobilismo eleata. Todavia, numa leitura mais
detida da primeira parte do Teeteto, percebe-se que a tese do fluxo universal não é
apresentada de uma só forma ao longo do texto, nem é o tempo todo atribuída, ao
menos não explicitamente, a Heráclito. Percebe-se também que a tese do fluxo
universal não é a única, e sim uma das teses atribuídas a Heráclito, além de não
ser apresentada de forma isolada, e sim conectada com ao menos mais duas
doutrinas: a tese da unidade dos opostos e a tese da ilegitimidade dos nomes
unívocos.
4.2
154
J. Mejer, “Plato, Protagoras and the Heracliteans: Some Suggestions Concerning Thaetetus
115
consentindo em vinculá-la à sua própria definição. Mas, após tão rápido exame
dessa doutrina, Sócrates, ainda que sem perdê-la de vista, retira dela o foco da
análise, associando-a a uma outra tese, a chamada doutrina secreta:
ἑνὸς µήτε τινὸς µήτε ὁποιουοῦν· ἐκ δὲ δὴ φορᾶς τε καὶ κινήσεως καὶ κράσεως πρὸς
ἄλληλα γίγνεται πάντα ἃ δή φαµεν εἶναι, οὐκ ὀρθῶς προσαγορεύοντες· ἔστι µὲν γὰρ
οὐδέποτ’ οὐδέν, ἀεὶ δὲ γίγνεται. καὶ περὶ τούτου πάντες ἑξῆς οἱ σοφοὶ πλὴν Παρµενίδου
συµφερέσθων, Πρωταγόρας τε καὶ Ἡράκλειτος καὶ Ἐµπεδοκλῆς, καὶ τῶν ποιητῶν οἱ
ἄκροι τῆς ποιήσεως ἑκατέρας, κωµῳδίας µὲν Ἐπίχαρµος, τραγῳδίας δὲ Ὅµηρος, <ὃς>
εἰπών — Ὠκεανόν τε θεῶν γένεσιν καὶ µητέρα Τηθύν πάντα εἴρηκεν ἔκγονα ῥοῆς τε καὶ
κινήσεως· ἢ οὐ δοκεῖ τοῦτο λέγειν;
ΘΕΑΙ. – Ἔµοιγε. (Teeteto, 152d)
157
Vale lembrar que o exemplo do vento, apresentado por Sócrates um pouco antes, parece, até
aqui, se relacionar muito mais com estas teses, da simultaneidade de aparências e qualidades
opostas num mesmo objeto, do que com a tese do movimento e mudança das qualidades de um
objeto ao longo do tempo, pois o mesmo vento, segundo o exemplo, pode parecer quente e frio
117
leitores não fossem alertados retiraria a força de qualquer crítica ou refutação das
doutrinas desse sofista.
158
Cito algumas das passagens em que a doutrina secreta é atribuída novamente, mesmo que de
forma vaga, a diversos autores. Vale notar, no entanto, que essa atribuição só não é vaga no que
diz respeito a Homero e Heráclito, que são repetidamente mencionados: “E quem se atreveria a
lutar contra um exército tão forte e um general como Homero, sem cair no ridículo?” (153a); “E
não me ficarás agradecido, se te ajudar a patentear o sentido oculto do pensamento de um homem
famoso, ou melhor, de vários homens famosos?” (155d-e); “Outros há engenhosíssimos, cujos
segredos pretendo revelar-te. Para esses, o princípio de que pende tudo o que acabamos de expor é
que só há movimento e que, fora disso, nada existe (...)” (156a); “Por isso mesmo, tinhas carradas
de razão, quando disseste que o conhecimento não passa de sensação, o que vem a dar,
precisamente, nisto de Homero e de Heráclito e de toda a tribo de seus acompanhantes.” (160d);
“Porém discutir com seriedade, Sócrates, doutrinas heraclitianas, ou, como disseste, homéricas, se
não forem ainda mais velhas, com aquela gente de Éfeso que se apresenta como conhecedora dela
(...).”(179e); “E esse problema, não o recebemos dos antigos velado pela poesia, para melhor
escondê-lo das multidões, que Oceano e Tétis, geradores do resto das coisas, são corrente d’água, e
que nada é imóvel?” (180d).
159
οἱ γὰρ τοῦ Ἡρακλείτου ἑταῖροι χορηγοῦσι τούτου τοῦ λόγου µάλα ἐρρωµένως
(Teeteto, 179d).
119
sua fonte em Homero e nos velhos mitos.160 Parece-me que Platão está sugerindo
que a maioria dos filósofos acreditou em algum tipo de teoria do fluxo, que quem
mais a desenvolveu foi Heráclito, que seus defensores mais apaixonados eram os
seguidores de Heráclito e que a única exceção era a escola eleática. Além disso,
se a doutrina do fluxo é claramente atribuída a Homero e a muitos outros
pensadores, e a eles é repetidamente imputada no diálogo, o mesmo não ocorre
com as outras teses envolvidas na doutrina secreta – a co-presença dos opostos e a
ilegitimidade dos nomes unívocos. Se ficar claro – como espero que fique, ao
longo desta tese – que essas duas outras teses são teses genuína e tipicamente
heraclíticas, será mais que plausível crer que Platão, embora também indique que
muitos são os defensores da doutrina secreta, destaca e opera principalmente com
as teorias de Heráclito e dos heraclíticos, e estará justificada a tentativa de
examinar o significado da doutrina secreta com referência a estes filósofos.
4.3
160
E nisto concordo com René Schaerer, “Héraclite Jugé par Platon”, em J. Mansfield & L. Rijk
(eds.), Mélanges C. J. de Vogel (Assen, Van Gorcum, 1975), p. 12. Vale notar também a
observação de Mondolfo, que lembra que Platão, nesta passagem do Teeteto, destaca somente as
afinidades entre os autores mencionados, deixando de lado as diferenças, mesmo quando elas eram
assinaladas pelas polêmicas entre eles, tais como as de Heráclito contra Homero. Mas Platão, que
no Crátilo expressa essa mesma vinculação entre Heráclito e Homero (402a-b), não ignora essas
polêmicas, e mostra isso claramente ao apresentar Heráclito zombando de Homero por ter
identificado a lei universal com o sol (Crátilo, 413b-c). Cf. Rodolfo Mondolfo, “Dos textos de
Platón sobre Heráclito”, Notas y Estudios de Filosofia, n. 4 (Tucumán, Argentina, 1953), p. 241-
242.
120
Uma das mais célebres leituras sobre a relação entre as teses de Teeteto,
Protágoras e Heráclito tem em Francis M. Cornford um de seus maiores
representantes.161 Cornford foca seu comentário nas semelhanças e diferenças
entre as posições do próprio Platão e as de Heráclito e Protágoras. Sua idéia é que
Platão faz uma combinação dialética, tanto entre a definição de Teeteto e a
doutrina de Protágoras, quanto entre a doutrina de Protágoras e a tese de
Heráclito, com o propósito mais imediato de formular uma teoria da sensação e,
assim, esclarecer a definição vaga dada por Teeteto. Nas palavras de Cornford, “o
que realmente aconteceu foi que Platão deu uma explicação sobre a natureza da
percepção que envolve elementos tirados de Protágoras e de Heráclito – elementos
que o próprio Platão aceita como verdadeiros quando são guardados e limitados
com as necessárias qualificações”.162
Segundo essa leitura, na crítica que Platão apresenta logo após ter aceito
certos elementos das teses de Heráclito e Protágoras e ter formulado sua própria
teoria da sensação, ele mostraria aquilo que não aceita das teses protagórica e
161
O resumo das posições de F. M. Cornford exposto a seguir foi feito a partir de seu texto Plato’s
Theory of Knowledge (op. cit), p. 5-13, 30-40 e 97-101.
162
F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 31.
121
163
Cf. M. Burnyeat, The Theaetetus of Plato (op. cit.), p. 10.
122
164
Cf. Terence H. Irwin, “Plato’s Heracleiteanism” (The Philosophical Quarterly, vol. 27, n. 106,
Jan. 1977), p. 1-23.
123
Além disso, Irwin busca mostrar que há duas espécies muito diversas de
fluxo heraclítico, e que, se Platão usa, nos diálogos da fase intermediária, algum
tipo de fluxo heraclítico para argumentar a favor da separação das formas
inteligíveis, o fluxo em questão não é aquele primeiro, que é o mais extensamente
explorado no Teeteto, e sim um outro tipo de fluxo ou de instabilidade, a saber, o
fluxo incluído na tese heraclítica da unidade dos opostos e causado pelo fato de
uma coisa poder possuir propriedades opostas e receber predicados contrários em
diferentes situações ou comparações, sem para isso precisar mudar com relação a
si mesma ao longo do tempo. Para Irwin, Platão se mostra muito mais preocupado
com este tipo de fluxo do que com o primeiro, pois, por exemplo, no caso de
propriedades relativas – como “igual” ou “grande” –, todas as coisas sensíveis que
possuem uma propriedade possuem também, simultaneamente, a propriedade
oposta, podendo receber predicados contrários que não podem ser definidos ou
explicados por referência a propriedades sensíveis.
165
Cf. Alexander Nehamas, “Plato and the Imperfection of the Sensible World” (American
Philosophical Quarterly, vol. 12, n. 2, April 1975), p. 105-117.
124
Se a mudança incessante das coisas sensíveis seria uma das razões para
que Platão afirmasse a existência de formas inteligíveis separadas e imutáveis,
outra razão seria a imperfeição das coisas sensíveis, entendida como a
incapacidade de encarnar exatamente as qualidades ou propriedades que
atribuímos às formas inteligíveis. Segundo essa tradição, as coisas sensíveis são
imperfeitas, pois, ao contrário das formas inteligíveis, elas nunca são exatamente,
e sim apenas aproximadamente, qualquer coisa que digamos que elas são: as
coisas particulares que dizemos ser iguais ou circulares são só aproximadamente
iguais ou circulares, assim como pessoas belas ou ações justas são só
aproximadamente belas ou justas. Segundo essa visão, portanto, as coisas
particulares seriam imperfeitas na medida em que suas propriedades seriam
encarnações defeituosas, incompletas, inexatas das formas inteligíveis.
Nehamas se opõe a essa visão e propõe que Platão foi levado a formular
a teoria das idéias a partir, não do mobilismo, nem da imperfeição das coisas
sensíveis tal como entendida por essa tradição, e sim dos problemas criados por
um grupo de termos, entre os quais se destacam os termos que designam as
virtudes morais e aqueles que envolvem comparação e mensuração. A
preocupação platônica com esses termos se justificaria quando se observasse que
tanto eles quanto seus contrários podem ser aplicados aos mesmos objetos,
simultaneamente, sem gerar contradição. Assim, uma mesma pessoa pode (em
diferentes contextos, mas sem sofrer nenhuma mudança nela mesma) ser descrita
tanto como bela quanto como feia, grande ou pequena, corajosa ou covarde. Além
disso, a definição desses termos é problemática, pois o que poderia definir um
deles (a coragem) numa situação poderia definir seu contrário (a covardia) noutra
situação.
A imperfeição das coisas sensíveis não estaria, então, nas suas propriedades, e sim
no modo como essas propriedades são possuídas. Nehamas, nessa abordagem, se
aproxima de Irwin e se afasta de Cornford, ao discordar da idéia de que Platão
tanto adota a doutrina heraclítica do fluxo universal como um dos princípios mais
representativos de sua concepção de mundo físico quanto parte dessa doutrina
para elaborar sua teoria das idéias. Além disso, Nehamas também se aproxima de
Irwin ao argumentar que há uma doutrina que preocupa muito mais Platão, nos
diálogos intermediários, do que a doutrina heraclítica do fluxo universal: e esta é a
doutrina (também heraclítica) da unidade ou da co-presença de opostos.
166
Cf. Robert Bolton, “Plato’s Distinction Between Being and Becoming” (The Review of
Metaphysics, n. 29, 1975-76), p. 66-95.
126
depois descobriu que toda e qualquer distinção entre essas duas categorias era
incoerente.
Sua posição é a de que a distinção entre ser e devir foi muito modificada
ao longo da obra de Platão, mas nunca deixou de existir nem de ser
suficientemente forte para sustentar a teoria platônica dos diferentes “graus de
realidade”. Para Bolton, Platão sustentou a doutrina extrema do fluxo em diálogos
intermediários, mas alterou sua visão original no Teeteto e nos diálogos seguintes,
onde passou a adotar uma versão moderada do devir e uma versão correspondente
da distinção génesis-ousía. Bolton mostra que é no Teeteto (181b-183c) que se
encontra uma das duas passagens dos diálogos tardios onde os intérpretes de
Platão enxergam um ataque à distinção completa entre ser e devir. Nessa
passagem, Platão não estaria desafiando a versão moderada do heraclitismo –
segundo a qual há coisas que só têm características em devir, mas cujo devir tem
uma direção ou padrão contínuo, possuindo portanto alguma estabilidade. O que
ele estaria atacando é a alegação de que um objeto não pode reter ao longo do
tempo nenhuma característica ou qualidade, nem se essa característica for um
fluxo ou um padrão de fluxo (pois mesmo o fluxo ou o padrão devem permanecer
por algum tempo). E esse seria o absurdo, pois não pode haver um objeto que não
possa ter absolutamente nenhuma característica.
167
Cf. M. Burnyeat, The Theaetetus of Plato (op. cit.), p. 7-10.
128
assim fosse, ele estaria pensando com Cornford que a definição de Teeteto poderia
cair por terra mais adiante, sem que as teses de Protágoras e de Heráclito ruíssem
junto, inteiramente. Ao contrário, para Burnyeat, cada uma das três teses força
quem a sustenta a sustentar também as outras. A teoria da sensação que Sócrates
ajuda Teeteto a elaborar, a partir de sua definição de conhecimento como
sensação, é uma tese que engloba as teorias de Protágoras e Heráclito e que
constitui uma tese “três-em-um”, de tal forma que ou todas as três se sustentam ou
todas caem juntas. Portanto, para Burnyeat, ao apresentar, no fim da primeira
parte do diálogo, a refutação à definição de conhecimento de Teeteto, Platão não
estaria deixando intacta, nem muito menos adotando, nenhuma parte das teorias
de Protágoras e Heráclito.
Para começar, Lee afirma que Platão não mostra que a tese de Teeteto
implica a de Protágoras, e argumenta que isso fica claro quando Sócrates precisa
esperar que Teeteto consinta com a tese de Protágoras, antes de seguir em frente.
Afirma também que Platão não mostra que a tese de Protágoras implica a de
Heráclito, argumentando que, ainda que a tese heraclítica possa ajudar a defender
168
O resumo das posições de Mi-Kyoung Lee exposto a seguir foi feito a partir de seus textos
“Thinking and Perception in Plato’s Theaetetus” (op. cit.), p. 41-43, e “The Secret Doctrine:
Plato’s Defense of Protagoras in the Theaetetus” (Oxford Studies in Ancient Philosophy, vol. XIX,
Winter 2000, p. 47-86), p. 50-54.
129
169
Isso porque seria possível haver relativismo sem haver fluxo ou instabilidade constantes: por
exemplo, se parecer para alguém, por toda a sua vida, que uma certa pedra é negra, então o
relativista dirá que ela é negra para esse alguém durante todo esse tempo; mas a permanência de
sua negritude não tornará essa qualidade uma propriedade não-relativa, independente do
“sentiente”.
130
Mais uma das questões propostas pede que se diga se Platão sempre
esteve mais preocupado com a co-presença de propriedades opostas nas coisas
sensíveis do que com a mudança delas no tempo. Não caberá aqui extrapolar o
Teeteto e examinar com o que Platão sempre esteve mais preocupado, mas
buscarei mostrar que, neste diálogo, muito embora Platão trate mais extensamente
do problema do fluxo no tempo, ele indica tanto que se preocupa com esses dois
aspectos da realidade sensível quanto que os concebe como aspectos de algum
modo ligados entre si.
4.4
Mas essa passagem do Teeteto é importante não apenas por fazer essa
conexão, e sim também por vincular essas duas teses heraclíticas com a doutrina
da correção (orthótes) dos nomes, que é o tema central do Crátilo e que, tal como
interpretada por Heráclito, revela a impossibilidade de se dar corretamente a
qualquer coisa um único nome unívoco. O Teeteto liga o fluxo e a mudança à
afirmação de que nada é uno em si mesmo, mas tudo é também o seu contrário; e
também liga a correção dos nomes à tese de que as coisas não são unas em si
mesmas, mostrando que é impossível nomear corretamente as coisas com nomes
unívocos.
170
Como Irwin e Bostock observam, diálogos anteriores ao Teeteto já mostram que o próprio
Platão pensava haver alguma conexão entre as doutrinas que dizem que “todo caso de X é também
simultaneamente um caso de não-X” e “tudo está em fluxo constante”. Isso fica muito evidente no
Fédon (74b) e na República (479a-480a), onde, como já foi dito, o argumento em favor da
existência das idéias parte da constatação de que as coisas sensíveis manifestam propriedades
simultaneamente opostas, mas a diferença entre essas coisas e as idéias é caracterizada, em seguida
(Fédon 78d-e, República 485b), em termos de fluxo e mudança: as idéias são imutáveis e as coisas
sensíveis estão sempre mudando. Cf. T. H. Irwin, “Plato’s Heracleiteanism” (op. cit.), p. 4; e D.
Bostock, Plato’s Theaetetus (op. cit.), p. 46.
171
Fragmento 32: eÁn to\ sofo\n mou=non le/gesqai ou)k e)qe/lei kaiì e)qe/lei Zhno\j
oÃnoma.
133
172
Fragmento 48: t% to/c% o)/noma bi/oj, e)/rgon de\ qa/natoj.
173
As palavras arco e vida aparecem diferenciadas pela acentuação no léxico do séc. IX d.C. do
qual se extraiu este fragmento. Mas, no tempo de Heráclito, não havia o acento escrito, e essas
duas palavras eram grafadas exatamente da mesma forma: bios.
134
que para Crátilo não permite a mais remota permanência do mesmo ser que passa
pelos estados opostos, não permite nem o conhecimento das coisas nem sua
indicação por meio de palavras. A defesa cratiliana da teoria da correção natural
dos nomes e sua associação com a teoria do fluxo provocam, por isso, uma crise.
E o diálogo Crátilo nos mostraria justamente o processo dessa crise.174
174
Cf. R. Mondolfo, “Dos textos de Platón sobre Heráclito” (op. cit.), p. 234-235.
175
ΣΩ. – Ἐγὼ ἐρῶ καὶ µάλ’ οὐ φαῦλον λόγον, ὡς ἄρα ἓν µὲν αὐτὸ καθ’ αὑτὸ οὐδέν
ἐστιν, οὐδ’ ἄν τι προσείποις ὀρθῶς οὐδ’ ὁποιονοῦν τι, ἀλλ’ ἐὰν ὡς µέγα προσαγορεύῃς,
καὶ σµικρὸν φανεῖται, καὶ ἐὰν βαρύ, κοῦφον, σύµπαντά τε οὕτως, ὡς µηδενὸς ὄντος ἑνὸς
µήτε τινὸς µήτε ὁποιουοῦν· ἐκ δὲ δὴ φορᾶς τε καὶ κινήσεως καὶ κράσεως πρὸς ἄλληλα
γίγνεται πάντα ἃ δή φαµεν εἶναι, οὐκ ὀρθῶς προσαγορεύοντες· ἔστι µὲν γὰρ οὐδέποτ’
οὐδέν, ἀεὶ δὲ γίγνεται.
135
é gerado por fricção; os seres vivos são gerados por movimento; o corpo se
deteriora com o repouso e a preguiça, e se conserva com a ginástica e o
movimento; a alma ou nada aprende ou esquece o que aprendeu com o repouso,
enquanto adquire e conserva conhecimentos com o estudo e o exercício.
uma razão para afirmar que Platão, em sua obra, não isola a doutrina heraclítica
do fluxo, e sim oferece uma imagem multidimensional da filosofia de Heráclito.176
176
Mondolfo e Tarán notam que houve quem achasse que Platão nunca mencionou a doutrina
heraclítica do fogo como princípio universal, ignorando-a ou deixando-a inteiramente de lado.
Entretanto, Platão fala da doutrina do fogo, não apenas no Teeteto, mas também em outros
diálogos (cf. Fédon, 96b, e Crátilo, 412c). Cf. R. Mondolfo e L. Tarán. Eraclito: Testimonianze e
Imitazioni (op. cit.), p. CXX.
137
Sócrates segue dando exemplos para esclarecer o que quis dizer quando
afirmou que, já que os objetos físicos e os observadores não têm em si mesmos
qualidades fixas, eles podem mudar – dar origem a sensações e aparências
múltiplas, e até opostas – sem sofrer mudanças internas. O primeiro exemplo é o
dos ossinhos de jogar (154c): se há seis ossinhos num lugar, e ao lado deles
colocarmos outros quatro, os seis serão mais (que quatro); mas se ao lado deles
pusermos outros doze, os seis serão menos (que doze). O segundo exemplo é o do
tamanho de Sócrates (155b): Sócrates, com a idade e a altura que tem, é agora
maior que Teeteto, que é um garoto. Porém, no decurso de um ano, ficará menor
que Teeteto, e não porque ele mesmo terá sofrido qualquer alteração, mas porque
Teeteto terá crescido.
“menores” sem sofrer acréscimo ou diminuição. Mas eles estão sendo comparados
com outras coisas. Do mesmo modo, se quisermos lembrar do exemplo do vento,
o que se vê agora é que ele não é nem quente nem frio em si mesmo, e sim se
torna quente, assim como se torna frio, em virtude das diferentes relações em que
é inserido: ou da relação com dois observadores distintos, ou da relação com um
observador em momentos distintos.177
177
Bostock começa a interpretar a doutrina secreta perguntando como a tese heraclítica do fluxo
poderia estar por trás do relativismo protagórico e do enunciado segundo o qual “qualquer coisa
que se disser ser X também parecerá ser não-X, logo nenhuma coisa é una em si mesma”. Para ele,
aparentemente surge um problema na doutrina secreta, pois poderíamos imaginar três casos em
que uma coisa é X e não-X, sendo que só um desses casos envolveria a tese do fluxo: 1) quando a
coisa parece X para um indivíduo e não-X para outro; 2) quando a coisa é X numa comparação e
não-X em outra; 3) quando a coisa é X num momento e não-X em outro. Acontece que Platão não
estaria apresentando a doutrina do fluxo como um desses três casos, e sim como a explicação para
todos os casos a que a tese de que “nenhuma coisa é una em si mesma” se aplica. E nisso Platão
estaria aparentemente fazendo uma confusão, pois tanto o exemplo do vento quanto o dos ossinhos
seriam casos de presença simultânea de opostos, e não casos de fluxo, devir ou mudança no tempo.
Em seguida, Bostock afirma que essa aparente confusão de Platão pode ser na verdade fruto de
uma má interpretação da doutrina secreta. Com isso concordo inteiramente, pois me parece no
mínimo implausível que Platão não tivesse se dado conta de que não é preciso haver mudança no
tempo, entre dois atos de sensação, para que o vento ou os ossinhos apareçam como X e não-X.
Mas então Bostock afirma que, na verdade, o que a doutrina secreta diz é somente que “tudo vem a
ser como um resultado da mudança”, e que isso não corresponde à visão pela qual Heráclito é
tradicionalmente citado, a saber, a visão de que “tudo está sempre mudando”. Neste ponto,
discordo de Bostock: a doutrina secreta inicialmente inclui e associa quatro teses heraclíticas,
como vimos. Após apresentar essa conexão, ela de fato se concentra na tese segundo a qual “tudo
vem a ser como um resultado do movimento”, mas nunca deixa de lado a tese segundo a qual
“tudo está sempre mudando”. Ao contrário, as qualidades sensíveis são ditas tanto resultados da
mudança quanto coisas que nunca são – nem mesmo depois de terem sido engendradas – mas
sempre devêm. Além disso, tanto os sujeitos quanto os objetos físicos são concebidos como coisas
que estão sempre mudando. Cf. D. Bostcok, Plato’s Theaetetus (op. cit.), p. 44-47.
140
não será interna, e sim uma mudança que ocorre fora deles, num lugar
intermediário entre os objetos e os observadores. Ou seja, de acordo com a teoria
da sensação apresentada agora, as “leis do devir” são outras: visto que as
qualidades sensíveis devêm segundo certas relações, e que os objetos físicos
mudam em virtude de suas relações, é verdadeiro afirmar que um objeto pode se
tornar “maior”, “menor”, “quente” ou “frio” sem perder nem ganhar qualquer
qualidade imanente. Em si mesmo, à parte do observador e do devir implicado no
ato da sensação, um objeto não é nem branco nem preto, assim como em si
mesmo, à parte da comparação com outro objeto e, novamente, do devir implicado
no ato da sensação, nenhum objeto é maior ou menor.
178
Neste ponto, concordo com M. F. Cornford, Plato’s Theory of Knowledege (op.cit.), p. 50-51, e
com G. Nakhnikian, “Plato’s Theory of Sensation, I” (op. cit.), p. 133-142.
142
que num caso é passivo em outras conexões se torna ativo (o olho, por exemplo,
pode tanto ver quanto ser visto) (156e-157a).
afirmar que as coisas são (157b). Como vimos, que as coisas (os objetos físicos,
os órgãos sensíveis, os agentes, os pacientes, as sensações e as qualidades
sensíveis) sejam coisas que devêm e nunca são estáveis é o que já vinha sendo
mostrado. Os objetos físicos e os órgãos sensíveis são movimentos, os agentes e
pacientes são também movimentos que vêm a ser um para o outro, e as qualidades
sensíveis e as sensações devêm como produtos do movimento e não deixam de
devir depois de engendradas.
(Teeteto, 160d-e)179
179
ΣΩ. – Παγκάλως ἄρα σοι εἴρηται ὅτι ἐπιστήµη οὐκ ἄλλο τί ἐστιν ἢ αἴσθησις, καὶ εἰς
ταὐτὸν συµπέπτωκεν, κατὰ µὲν Ὅµηρον καὶ Ἡράκλειτον καὶ πᾶν τὸ τοιοῦτον φῦλον
οἷον ῥεύµατα κινεῖσθαι τὰ πάντα, κατὰ δὲ Πρωταγόραν τὸν σοφώτατον πάντων ρηµάτων
ἄνθρωπον µέτρον εἶναι, κατὰ δὲ Θεαίτητον τούτων οὕτως ἐχόντων αἴσθησιν ἐπιστήµην
γίγνεσθαι. ἦ γάρ, ὦ Θεαίτητε; φῶµεν τοῦτο σὸν µὲν εἶναι οἷον νεογενὲς παιδίον, ἐµὸν δὲ
µαίευµα; ἢ πῶς λέγεις;
ΘΕΑΙ. – Οὕτως ἀνάγκη, ὦ Σώκρατες. (Teeteto, 160d-e)
146
sensação.180 Para isso, não é preciso afirmar um fluxo extremado, isto é, não é
preciso dizer que os indivíduos são completamente diferentes em cada ato de
sensação, nem que não há nenhuma identidade ou continuidade num indivíduo ao
longo do tempo. Como vimos, ser homem, ou indivíduo, ou conjunto de órgãos
sensíveis, ou olho, não é o mesmo que ser paciente. Um homem ou um olho se
tornam pacientes no ato de sensação, e nunca fora dele. Fora desse ato, eles são
movimentos ou processos lentos, e nada requer que sejam descontínuos ou que
constituam uma série de homens e olhos instantâneos e inteiramente diferentes.
Entretanto, se um mesmo indivíduo, num certo momento, se encontra numa
determinada condição e se torna paciente, e noutro momento e condição se torna
paciente novamente, ele se torna então um outro paciente, um todo inteiramente
diferente do primeiro, que cooperará na produção de uma impressão sensível
diferente.
Em suma, parece-me que aqui não está sendo dito que o homem ou o
indivíduo Sócrates não permanece o mesmo, em nenhum sentido, ao longo de sua
vida. Não há, portanto, ainda, nenhuma versão extrema do fluxo heraclítico, coisa
que haverá, mais adiante, quando se fizer a afirmação de que “tudo sempre muda
em todos os sentidos” (181e).181 É preciso lembrar que o contexto aqui é o do
funcionamento da sensação, e que o propósito é mostrar que todo ato de sensação
é incorrigível. As afirmações que estão sendo feitas só poderiam ser consideradas
equivalentes à fórmula “todas as coisas sempre mudam em todos os sentidos” se
elas fossem muito além do que foi dito antes e do que precisaria ser dito para que
a objeção contra a incorrigibilidade fosse efetivamente combatida.
O que está em jogo aqui é que nunca pode ser um erro meu que “me
parece que estou sentada nesta cadeira agora” ou que “me parece que o mel é
180
Cf. Naomi Reshotko, “Heraclitean Flux in Plato’s Theaetetus”, History of Philosophy Quarterly
(Ohio, n. 11, 1994), p. 143-144.
181
Muitos outros autores sustentam a tese de que não há fluxo extremo no Teeteto antes da
apresentação da fórmula “tudo se move sempre em todos os sentidos” (181e). Cf., por exemplo, R.
Bolton, “Plato’s Distinction Between Being and Becoming” (op. cit.), p. 69; F. M. Cornford,
Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 55-56; G. Nakhnikian, “Plato’s Theory of Sensation, I”
(op. cit.), p. 135. Há, entretanto, diversos autores que já enxergam nesta passagem a apresentação
de uma versão radical do fluxo heraclítico. Cf., por exemplo, M. Burnyeat, The Theaetetus of Plato
(op. cit.), p. 17; A. Diès, “Notice Générale sur les Dialogues Métaphysiques” (op. cit.) p. 131-132;
e T. Irwin, “Plato’s Heracleiteanism” (op. cit.), p. 5-6.
147
amargo”. Ou seja, nunca posso errar acerca de meu estado sensorial presente, de
forma que o conteúdo momentâneo da sensação é sempre incorrigível. Como diz
Cornford, a palavra aísthesis ainda está sendo usada num sentido amplo o
suficiente para incluir a consciência de sentimentos e sensações internos, e
também as imagens dos sonhos. E, como a distinção entre a consciência imediata
e as opiniões também ainda não foi desenhada, não há sequer como pretender
distinguir entre a infalibilidade da consciência imediata e a falibilidade da crença,
do pensamento ou da opinião.182
Vale adiantar que, bem mais adiante, Protágoras vai alegar exatamente
que a sensação (e a opinião), seja a do homem são ou a do homem doente, é
sempre infalível, quando disser que o médico muda a disposição do paciente não
porque ela o deixa menos apto a ter uma sensação (e opinião) verdadeira, e sim
porque ela o deixa menos apto a sentir o que é melhor (166e-167b). Por isso,
sustentar a infalibilidade da sensação é tão importante: pois, segundo a leitura de
Platão, ela é fundamental para dar suporte às posições de Protágoras. Não há
ainda, então, interesse ou necessidade de afirmar uma versão radical do devir, e
sim o propósito de garantir a infalibilidade da sensação, assegurando a pertinência
da identificação entre conhecimento e sensação.
Outra razão para não crer que aqui já há heraclitismo extremo é bem
apresentada por Nakhnikian, que mostra que, enquanto o fluxo extremo será
apresentado como a sujeição simultânea a todas as formas de movimento – a
translação (phorá) e a alteração (alloíosis) –, de tal maneira que tudo sofre sempre
todos os tipos de movimento, mudando em todos os sentidos, os movimentos que
dão origem aos atos de sensação são apresentados, na exposição da teoria da
sensação até aqui, como movimentos lentos cuja natureza é não se deslocar, não
sofrer translação. Ou seja, trata-se de um movimento bem diferente do que é
descrito como movimento extremo.
182
Cf. F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 53.
148
mundo sem lei e sem medida dos heraclíticos, no qual é impossível haver
conhecimento e linguagem.183
4.5
183
G. Nakhnikian, “Plato’s Theory of Sensation, I” (op. cit.), p. 134-135.
184
Apresentarei uma exposição e um exame bastante resumidos da crítica à doutrina do homem-
medida de Protágoras. Creio que fazer um exame extenso e detalhado não cabe neste trabalho, e
penso que este resumo é útil e suficiente para produzir o encadeamento necessário ao exame da
recepção platônica de Heráclito e dos heraclíticos no final da primeira parte do diálogo, que
constitui o próximo objetivo deste capítulo.
149
lei ou ação será vantajosa para mim amanhã, a verdade deste julgamento
dependerá de minha experiência, amanhã, confirmar a vantagem que eu hoje
prevejo. Mas nada garante que amanhã me parecerá de fato vantajoso o que hoje
julgo que assim será. Os julgamentos sobre o futuro, portanto, estão sujeitos a erro
e a verificação, e no que diz respeito a eles, é preciso concordar que é possível
haver verdade e falsidade.
4.6
Em seguida é dito e aceito que, de acordo com a teoria da sensação exposta antes,
e que se funda na explicação heraclítica da gênese das coisas pelo movimento, o
agente se torna branco, e o paciente se torna sentiente. Nem qualidade, nem
agente ou paciente existem em si mesmos em parte alguma. Mas, além disso,
essas coisas que devêm e se movem não poderiam somente passar de um lugar a
outro sem sofrer alteração, pois, se não houvesse alteração, poderíamos dizer de
que natureza elas são. Visto, então, que nem o “devir branca” de uma coisa escapa
ao fluxo, sofrendo também alteração, o resultado é que há fluxo até da brancura, e
uma mudança dela para outra cor. Nenhuma qualidade, portanto, poderá ser
apreendida como tal, de forma que não será possível falar corretamente de
nenhuma cor (182a-d).
De modo semelhante, não será possível falar de qualquer outra coisa que
nos escapar no próprio instante em que formos designá-la, visto não parar de fluir.
O mesmo valeria para as sensações de todo tipo: a visão e a audição, por exemplo,
jamais subsistiriam nesse estado de visão e audição, e, por isso, não haveria mais
razão para chamá-las de visão e audição do que de não-visão e não-audição. A
conseqüência disso tudo para a tese de que conhecimento é sensação se revela
então: se nenhuma sensação é mais sensação que não-sensação, nenhuma
sensação é mais conhecimento que não-conhecimento. De fato, então, não há mais
motivos para se afirmar que conhecimento é sensação do que há para se dizer que
conhecimento não é sensação (182d-e).
5.
5.1
Também fiz, àquela altura, uma remissão ao primeiro capítulo desta tese,
onde ficou evidente a presença freqüente e significativa, nos fragmentos
heraclíticos, da doutrina do fogo como princípio universal. No caso do vínculo
estabelecido no Teeteto entre a tese do fogo e a doutrina secreta (e, por
conseguinte, a Heráclito), sustentei que Platão estava atribuindo a Heráclito mais
uma tese que efetivamente fazia parte da filosofia heraclítica. No terceiro capítulo,
157
entretanto, não tratei da presença da tese da unidade dos opostos nos escritos de
Heráclito, nem tampouco do problema da origem da tese heraclítica do fluxo
universal.
185
Exemplos claros da presença da tese da unidade dos opostos em Heráclito: fragmentos 8, 10,
23, 48, 50, 51, 53, 54, 59, 60, 61, 62, 65, 67, 76, 80, 82, 83, 84a, 88, 103, 111, 126.
158
5.2
Tanto quem aceita quanto quem recusa a existência de uma tese do fluxo
universal em Heráclito baseia seus argumentos sobretudo no exame dos célebres
fragmentos do rio. São três os fragmentos do rio (12, 49a e 91), e no caso de dois
deles (49a e 91) há mais de uma versão. O fragmento 12, citado por Ário Dídimo
e conservado por Eusébio (Preparação Evangélica, XV, 20, 2), diz: “Aos que
entram nos mesmos rios afluem outras e outras águas; e as almas exalam do
úmido” (potamoîsi toîsin autoîsin embaínousin hétera kaì hétera hýdata epirreî⋅
kaì psychaì dè apò tôn hygrôn anathymiôntai).186 O fragmento 49a aparece na
edição de Diels e Kranz na versão citada por um Heráclito conhecido como
“Heraclitus Homericus” (Alegorias, 24), mas também foi citado por Sêneca
(Epistulae Morales, 58, 23) numa outra versão. O fragmento 49a, tal como figura
em Diels e Kraz, diz: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não
somos” (potamoîs toîs autoîs embaínomén te kaì ouk embaínomen, eîmén te kaì
ouk eîmen).187 Já o fragmento 91 aparece na edição de Diels e Kranz na versão
citada por Plutarco (De E apud Delphos, 392b), mas também foi citado, em
versões um pouco diferentes, por Platão (Crátilo, 402a) e por Aristóteles
(Metafísica, 1010a 12). O fragmento 91, tal como figura em Diels e Kranz, diz:
“Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio” (potamoî ouk éstin embênai dìs
toî autoî).188
186
Fragmento 12: potamoiÍsi toiÍsin au)toiÍsin e)mbai¿nousin eÀtera kaiì eÀtera uÀdata
e)pirreiÍ: kaiì yuxaiì de\ a)po\ tw½n u(grw½n a)naqumiw½ntai. Alexandre Costa traduziu o
termo psychaì, neste fragmento, por “vapores”. Alterei aqui a tradução para “almas”, pelo fato de
que a noção grega de alma abarca os sentidos de sopro ou vapor, e pode se referir a ambos, sem
perder necessariamente sua conhecida polifonia; o inverso, no entanto, não ocorre.
187
Fragmento 49a: potamoi=j toi=j au)toi=j e)mbai/nome/n te kai\ ou)k e)mbai/nomen,
ei=me/n te kai\ ou)k ei=men.
188
Fragmento 91: potam%½ ou)k eÃstin e)mbh=nai diìj t%½ au)t%½.
159
original.189 Vou mostrar, primeiro, como alguns autores alegam não haver, na
totalidade dos fragmentos heraclíticos autênticos, e por conseguinte na filosofia de
Heráclito, nada próximo de uma doutrina do fluxo universal. Em seguida vou
apresentar, de forma resumida, algumas das posições contrárias à autenticidade de
determinadas compreensões e reproduções da imagem heraclítica do rio.190
Finalmente, vou apresentar alguns argumentos em defesa da autenticidade do
fragmento 91, bem como um exame da interpretação platônica do pensamento de
Heráclito acerca do fluxo e da mudança.
Desde a Antiguidade, o fragmento 91, que diz que “não é possível entrar
duas vezes no mesmo rio”, é o mais célebre entre todos os ditos atribuídos a
Heráclito. Ainda assim, muitos críticos (entre os quais me referirei principalmente
a Kirk) negaram que Heráclito fosse o seu autor. Esses críticos argumentam de
maneiras diversas, mas coincidem na razão que consideram ser a mais forte para a
rejeição: de acordo com eles, o fragmento 91 implica a doutrina chamada por
Platão, por sua própria conta, de pánta choreî ou pánta reî, ou seja, a doutrina do
fluxo irrestrito e ininterrupto de todas as coisas, que é incompatível com a
concepção básica de Heráclito da identidade e da medida na mudança. Alguns
deles argumentam, então, que o fragmento 91 foi uma construção erroneamente
derivada do fragmento 12 ou dos fragmentos 12 e 49a, dependendo da
autenticidade por cada um atribuída a esses dois outros fragmentos do rio.
189
Por exemplo, F. Schleiermacher, I. Bywater, E. Zeller, W. Nestle, H. Diels, W. Kranz, G.
Calogero, R. Mondolfo, W. K. C. Guthrie, J. Bollack, H. Wismann, G. Colli e M. Conche, entre
outros, aceitam os três fragmentos. K. Reinhardt e T. M. Robinson aceitam os fragmentos 12 e
49a; G. Vlastos, 91 e 49a; C. H. Kahn e L. Tarán, 91 e 12; O. Gigon, G. S. Kirk e M. Marcovich,
somente o 12.
190
Nesta abordagem do debate sobre a autenticidade dos fragmentos do rio, usei muito os
seguintes textos: G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 366-384; G. S. Kirk,
J. E. Raven & M. Schofield, The Presocratic Philosophers (Cambridge, Cambridge University,
1984 [1957]), p. 193-197; C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 166-169 e
339 n. 431; Leonardo Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications”, Elenchos
(Bibliopolis, vol. XX, n. 1, 1999), p. 9-52; e Irley Franco, “A Realidade do Mundo Físico na
Filosofia de Platão”, O Que nos Faz Pensar (Departamento de Filosofia da Puc-Rio, n. 11, 1997),
p. 87-130.
160
191
Cf. K. Reinhardt, Parmenides und die Geschichte der griechischen Philosophie (Bonn, 1916),
p. 206-207 apud L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications” (op. cit.), p.
13; G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 370; M. Marcovich, Heraclitus
(Mérida, 1967), p. 213, apud L. Tarán (idem).
192
ΣΩ. – Λέγει που Ἡράκλειτος ὅτι “πάντα χωρεῖ καὶ οὐδὲν µένει,” καὶ ποταµοῦ ῥοῇ
ἀπεικάζων τὰ ὄντα λέγει ὡς “δὶς ἐς τὸν αὐτὸν ποταµὸν οὐκ ἂν ἐµβαίης.” (Crátilo, 402a).
161
Desse modo, não haveria por que afirmar que Heráclito elaborou algo como uma
doutrina do fluxo.193
Heráclito diria que a maior parte dos casos de mudança poderia ser
resolvida em mudanças ou “guerras” entre opostos. Ainda que nenhum dos
opostos pudesse “vencer a guerra” e estabelecer uma dominação permanente,
deveria haver pausas temporárias e localizadas no “campo de batalha”, bem como
imobilizações provisórias produzidas pelo equilíbrio das forças em oposição. Por
isso, Kirk afirma que Heráclito deve ter admitido que a estabilidade temporária
fosse encontrada no cosmo. Assim, embora todas as coisas devam mudar
ocasionalmente, elas são evidentemente estáveis em alguns momentos. Que os
fragmentos certamente genuínos de Heráclito sugiram que uma pedra ou uma
montanha, por exemplo, estão invariavelmente sofrendo mudanças é uma idéia
que Kirk nega e critica. Pois, para ele, Heráclito achava que as coisas mudavam,
até poderia achar que elas sofrem mudanças invisíveis, mas jamais concordaria
que essas mudanças são constantes e contínuas. Platão, portanto, poderia ter sido
enganado pelo exagero produzido pelos heraclíticos acerca da visão de Heráclito
sobre a mudança ocasional das coisas.
193
Neste ponto, Kirk concorda inteiramente com K. Reinhardt, “Heraklits Lehre von Feuer”,
Hermes, 77, 1942, p. 18, apud G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 370.
194
Vale notar que Marcovich, se de um lado concorda com Reinhardt e Kirk que a ênfase
fragmento 12 não está no fluxo constante, de outro discorda deles, ao afirmar que a ênfase não está
tampouco na medida e estabilidade inerentes à mudança. Para ele, o fragmento 12 é só mais um
162
Em suma, como podemos ver, Platão recebeu uma série de críticas e foi
acusado de ter cometido muitos erros por um grupo de comentadores modernos de
Heráclito: ele teria atribuído equivocadamente a Heráclito uma doutrina do fluxo;
teria exagerado a visão de Heráclito sobre a mudança, interpretando-a
erroneamente como uma defesa do fluxo ininterrupto; teria parafraseado e criado,
mas não citado, o dito “não se entra duas vezes no mesmo rio” e a designação
panta reî, imputando-as depois a Heráclito; teria cometido um erro de ênfase em
sua leitura da imagem do rio, ao destacar a mudança em lugar da estabilidade e da
medida.
5.3
exemplo de unidade dos opostos, o que ficaria evidente na oposição entre “mesmos” e “outras”.
Cf. M. Marcovich, Heraclitus (op. cit.), p. 213, apud L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments
and their Implications” (op. cit.), p. 33.
163
por sua vez, está dando ou uma citação ou um relato indireto de Cleantes, que
teria dito que Zenão descreveu a alma como uma exalação percipiente, o que
concordaria com a descrição dada por Heráclito, que Cleantes então cita. Segue o
fragmento 12 em seu contexto:
195
Eusébio, Preparação Evangélica, XV, 20, 2, apud L. Tarán, “Heraclitus: The River-
Fragments and their Implications” (op. cit.), p. 22.
164
perceptiva, vendo aí a semelhança com a doutrina de Zenão. Mas nas citações, ele
mostra que a similaridade consiste somente na concepção da alma como exalação.
Depois das citações, ele também restringe a similaridade entre Zenão e Heráclito à
exalação, e em seguida parece discutir o poder perceptivo da alma somente de
acordo com Zenão. Neste fragmento e em seu contexto, então, o que se encontra
com certeza é a noção de Cleantes de que a alma, para Heráclito, é uma exalação.
Mas, o que muitos perguntam é por que o fragmento do rio está sendo
citado também nesse contexto. Pois, na sentença dos rios nada é dito sobre almas,
nem há qualquer comparação implicada. E não há nenhuma conexão óbvia entre
rios e almas. Ainda assim, muitos comentadores de Heráclito acharam que as duas
partes vêm originalmente de um contexto psicológico, que esse contexto esclarece
a ligação entre elas, e que então a primeira deve ser interpretada num sentido
psicológico.196 Outros sugeriram acrescentar palavras à segunda sentença, para
tentar estabelecer uma ligação entre as duas.197 Finalmente, muitos pensaram, ou
que a última sentença (“e as almas exalam do úmido”) é uma citação livre, ou que
as duas sentenças são fragmentos separados que não têm nada a ver um com o
outro.198
196
Este é o caso, por exemplo, de K. Reinhardt, Parmenides und die Geschichte der griechischen
Philosophie (op. cit.), apud L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications”
(op. cit.), p. 24.
197
Por exemplo, Capelle e Gomperz, apud G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op.
cit.), p. 369. Diels sugeriu uma solução parecida ao propor uma correção, e não um acréscimo (ele
afirmou que noerai poderia ser uma corrupção de heterai).
198
Por exemplo, Marcovich e Kirk pensam que a segunda sentença é uma paráfrase, e não uma
citação literal de Heráclito.
165
199
Cf. K. Reinhardt, Parmenides und die Geschichte der griechischen Philosophie (op. cit.), apud
L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications” (op. cit.), p. 30.
166
200
Cf. L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications” (op. cit.), p. 31-32.
201
Por exemplo, Tarán segue uma outra linha de leitura, sugerida por Cherniss, para quem o
sentido de embaínousin era significar literalmente um plural: mais de uma pessoa. O significado
do fragmento 12 seria, então: para várias pessoas que entram nos mesmos rios, águas diferentes
fluem. Quaisquer pessoas que entrassem em quaisquer rios teriam a mesma experiência: embora
estando nos mesmos rios, elas veriam que cada uma toca outras e outras águas. O contexto estaria
relacionado com os fragmentos 2 e 89: o cosmos é comum, mas a maioria das pessoas erra a
respeito das implicações de sua experiência, tratando seu próprio mundo como um mundo
separado e privado. Cf. L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications” (op.
cit.), p. 35.
202
O fragmento 49a é considerado autêntico por Bywater, Diels, Kranz, Zeller, Nestle, Snell,
Vlastos e Bollack-Wismann, entre outros. Foi rejeitado por Kirk e Marcovich, e também por Kahn
e Tarán. Cf. I. Bywater, Heracliti Ephesii Reliquiae (1877), apud C. H. Kahn, The Art and
Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 339, n. 431; H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente der
Vorsokratiker (op. cit.); E. Zeller e W. Nestle, Die Philosophie der Griechen I (6ª ed., 1920), apud
G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 373; B. Snell, “Die Sprache Heraklits”,
Hermes 61 (1926), apud C. H. Kahn (idem); G. Vlastos, “On Heraclitus”, American Journal of
Philology, LXXVI (1955), p. 21; J. Bollack e H. Wismann, Héraclite ou la Séparation (op. cit.);
G. S. Kirk (idem), p. 373; M. Marcovich, Heraclitus (op. cit.), p. 213, apud L. Tarán (idem), p. 13.
167
203
Muitas críticas foram dirigidas às objeções formuladas por Kirk para rejeitar o fragmento 49a.
Para a crítica a essa sua afirmação de que, em grego, o predicado nunca poderia ser inteiramente
omitido depois de um eînai copulativo, lê-se com proveito o trabalho de C. H. Kahn, Sobre o
Verbo Ser e o Conceito de Ser (op. cit.), e o artigo de Irley Franco, “A Realidade do Mundo Físico
na Filosofia de Platão” (op. cit.), p. 97-99.
204
Cf. O. Gigon, Untersuchungen zu Heraklit (Leipzig, 1935), p. 106, apud G. S. Kirk, Heraclitus.
The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 373.
168
mesmo a mudança nos rios não seria o que Heráclito afirmaria. E muito menos
que em todo e qualquer momento os rios são os mesmos e não os mesmos, o que,
segundo Kirk, corresponderia à crença atribuída por Aristóteles a Crátilo, e não a
Heráclito. Quanto à versão de Sêneca, Kirk também a rejeita, por crer que ela é
semelhante demais ao fragmento 91, que ele considera ser uma paráfrase
originalmente platônica do 12.
fossem tomadas como uma citação direta de Heráclito.205 Para outros, toda a
passagem do Crátilo está sendo apresentada como se não fosse verbatim, e por
essa razão seria possível suspeitar imediatamente de sua autenticidade.206
205
Cf., por exemplo, L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications” (op. cit.),
p. 48.
206
Kahn, por exemplo, defende que Platão não oferece uma citação das palavras exatas de
Heráclito. Mas ele afirma também que, mesmo que o enunciado do rio pareça ser mais uma
paráfrase do que uma citação, ele parece remontar de fato a Heráclito. Cf. C. H. Kahn, The Art and
Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 168.
170
207
Cf. G. Vlastos, “On Heraclitus” (op. cit.), p. 338-ss.
171
emprestado o ouk àn embaíes de Platão. Além disso, ele repete também o trecho
hétera gàr epirreî hýdata do fragmento 12.
5.4
208
Reinhardt e Marcovich concordam com Kirk não apenas em alguns pontos de sua
argumentação, mas também, especialmente, no conteúdo de sua conclusão: ambos também crêem
que o fragmento 91 é simplesmente uma interpretação livre do fragmento 12. Cf. K. Reinhardt,
Parmenides und die Geschichte der griechischen Philosophie (op. cit.), p. 207, apud Kahn, The
Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 168, e Marcovich, Heraclitus (op. cit.),p. 206, apud
Kahn (idem), p. 168.
173
Mas Platão não precisou nem criar essa radicalização da doutrina do fluxo, nem
atribuí-la a Heráclito, pois tal radicalização já havia sido levada a cabo pelos
heraclíticos. Nesse sentido, podemos afirmar que Platão fez uso dos ditos de
Heráclito com vistas a mostrar que a doutrina heraclítica, a não ser que limitada,
levaria a uma doutrina extrema, e extremamente problemática.
209
Essa antinomia do convergente-divergente se repete em Heráclito nos fragmentos 8, 10 e 51.
Fragmento 8: “O contrário é convergente e dos divergentes, a mais bela harmonia” (to\
a)nti¿coun sumfe/ron kaiì e)k tw½n diafero/ntwn kalli¿sthn a(rmoni¿an). Fragmento 10:
“Conjunções: completas e não-completas, convergente e divergente, consoante e dissonante, e de
todas as coisas um e de um todas as coisas” (sulla/yiej: oÀla kaiì ou)x oÀla, sumfero/menon
diafero/menon, sun#=don di#=don, kai\ e)k pa/ntwn eÁn kaiì e)c e(no\j pa/nta). Fragmento
51: “O divergente consigo mesmo concorda” (ou) cunia=sin o(/kwς diafero/menon e(wut%=
o(mologe/ei). Vale notar que essa passagem do Sofista foi incluída na listagem dos testemunhos
sobre Heráclito por Diels e Kranz (A 10).
174
210
Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 167.
211
ἐνταῦθα γὰρ τὸν αὐτὸν ἐκείνῳ λόγον ἡ θνητὴ φύσις ζητεῖ κατὰ τὸ δυνατὸν ἀεί
τε εἶναι καὶ ἀθάνατος. δύναται δὲ ταύτῃ µόνον, τῇ γενέσει, ὅτι ἀεὶ καταλείπει
ἕτερον νέον ἀντὶ τοῦ παλαιοῦ, ἐπεὶ καὶ ἐν ᾧ ἓν ἕκαστον τῶν ζῴων ζῆν καλεῖται
καὶ εἶναι τὸ αὐτό—οἷον ἐκ παιδαρίου ὁ αὐτὸς λέγεται ἕως ἂν πρεσβύτης γένηται·
οὗτος µέντοι οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ ὅµως ὁ αὐτὸς καλεῖται, ἀλλὰ νέος
ἀεὶ γιγνόµενος, τὰ δὲ ἀπολλύς, καὶ κατὰ τὰς τρίχας καὶ σάρκα καὶ ὀστᾶ καὶ αἷµα
καὶ σύµπαν τὸ σῶµα. καὶ µὴ ὅτι κατὰ τὸ σῶµα, ἀλλὰ καὶ κατὰ τὴν ψυχὴν οἱ
τρόποι, τὰ ἤθη, δόξαι, ἐπιθυµίαι, ἡδοναί, λῦπαι, φόβοι, τούτων ἕκαστα οὐδέποτε
τὰ αὐτὰ πάρεστιν ἑκάστῳ, ἀλλὰ τὰ µὲν γίγνεται, τὰ δὲ ἀπόλλυται (Banquete, 207d).
175
Kirk, de que o fragmento 91, com seu enunciado “não se pode entrar duas vezes
no mesmo rio”, não implica uma doutrina do fluxo irrestrito. Em primeiro lugar,
não vejo razão para concordar com Kirk quando ele afirma que o fragmento 91
expressa clara e inevitavelmente a doutrina extrema do fluxo, pois este fragmento
me parece ser compatível com a doutrina segundo a qual cada coisa individual
muda e sofre transformações de acordo com certos padrões estáveis de mudança.
Afinal, o que haveria nele que o tornaria tão obviamente incompatível com uma
visão do fluxo com medida e padrão?
Concordo com Kahn quando ele diz que, ainda que o fragmento 91
pudesse levar a uma conclusão mais radical que o fragmento 12, os dois não
seriam incompatíveis, e sim poderiam ser concebidos como se figurassem juntos.
Talvez o fragmento 91 tenha sido desenhado para completar o 12: “visto que
novas águas estão sempre fluindo nos rios, não é efetivamente possível entrar duas
vezes no mesmo rio”. Ou, o que Kahn propõe como uma conexão mais plausível,
talvez o fragmento 91 fosse enunciado antes, com o 12 seguindo como sua
justificação: “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio; pois, aos que entram
em [o que se supõe serem os] mesmos rios, outras e outras águas afluem”.212
Além disso, há uma razão que me faz crer que o fragmento 91 não apenas
não implica a doutrina do fluxo universal extremo, como é incompatível com essa
doutrina. Pois o fragmento certamente implica que alguém pode entrar ao menos
uma vez num mesmo rio. E o que Aristóteles nos mostra é que esse é
precisamente o ponto que Crátilo, partidário da versão extremada da doutrina,
negou quando censurou Heráclito. Crátilo corrigiu o fragmento 91, justamente
porque ele era, aos seus olhos, moderado demais, e afirmou em seu lugar que é
impossível entrar sequer uma vez no mesmo rio.213 Se o fragmento 91 fosse um
enunciado tão mais radical do que o 12, a ponto de afirmar uma mudança
universal irrestrita, era de se esperar que nele se encontrasse uma rejeição clara e
completa da identidade, o que poderia ser condensado numa fala que enfatizasse
que só há diferença e mudança. O testemunho aristotélico sobre Crátilo mostra
que a crítica de Crátilo a Heráclito visava exatamente a fazer isso: afirmar
212
Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 169.
213
Aristóteles, Metafísica, 1010a 14-15.
176
Aristóteles nos mostra com clareza que também não acreditou que
Heráclito tivesse levado a doutrina da mudança universal até a posição extrema
defendida por Crátilo e outros heraclíticos. Ele, como vimos, afirmou que “a
opinião mais extremada” é “a dos que afirmam que heraclitizam”, tal como
“Crátilo, que, finalmente, cria que não se devia dizer nada, limitando-se a mover o
dedo”.214
214
Aristóteles, Metafísica, 1010a 10-13.
215
Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), e L. Tarán, “Heraclitus: The
River-Fragments and their Implications” (op. cit.).
177
Quando Crátilo corrige o fragmento 91, atesta que ele já era conhecido,
no séc. V, como um dito de Heráclito. Platão, portanto, não poderia tê-lo criado,
visto que ele já existia e já circulava. E, se o livro de Heráclito era disponível
tanto para Platão quanto para Aristóteles, o fato de que ambos citam, ainda que
não literalmente, o fragmento 91 atesta ainda mais fortemente que se tratava de
um enunciado de Heráclito acessível e conhecido. Kahn observa que o fato de a
citação do fragmento 91 presente no Crátilo não ser verbatim não impede que o
enunciado remonte a Heráclito, nem implica que Platão estivesse equivocado em
sua interpretação e paráfrase. Além disso, como podemos ver, tanto Crátilo quanto
Aristóteles testemunham a favor de Platão no caso do fragmento 91, atestando que
ele é um dito genuíno e independente de Heráclito. Desse ponto de vista, a
suposição de Kirk e de outros autores, segundo a qual o fragmento 91 foi
inventado por Platão com base no fragmento 12, parece ser pouco plausível, além
de se revelar uma conjectura motivada principalmente por uma interpretação
equivocada das implicações desse fragmento e da leitura platônica de Heráclito.217
216
Tarán observa que, mesmo sem uma leitura direta do livro de Heráclito, Aristóteles poderia
conhecer, por meio de uma citação, um ou outro caso em que essa dificuldade de pontuação
acontece. Mas, de todo modo, ele não poderia dizer que se tratava de uma característica de todo o
escrito. Cf. L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications” (op. cit.), p. 39.
217
Como escreve Irley Franco, “no estado em que se encontram as informações que nos dão
acesso ao pensamento de Heráclito, isto é, na impossibilidade de uma leitura de fragmentos que
fazendo sentido não seja puramente conjectural, não podemos supor que, mais do que Platão, esses
comentadores tenham compreendido Heráclito, embora o próprio Heráclito não fosse muito
otimista com relação à capacidade de compreensão de sua audiência original, como deixa
transparecer em alguns de seus fragmentos”. Cf. I. Franco, “A Realidade do Mundo Físico em
Platão” (op. cit.), p. 100.
178
218
No capítulo 1 desta tese, foram citados muitos fragmentos de Heráclito que tratam da
universalidade da mudança, e da estrutura, padrão, medida e identidade inerentes à mudança.
Segue uma listagem dos fragmentos que falam especialmente disso: fragmentos 1, 7, 10, 30, 31,
36, 50, 51, 53, 62, 76, 80, 84a, 88, 125, 126.
179
6.
Considerações finais
6.1
O percurso da pesquisa
Por exemplo, Platão e Aristóteles – ainda que sejam, eles próprios, mais
antigos do que a tradição cética propriamente dita –, além de Sexto Empírico –
que busca sistematizar o ceticismo antigo –, quando mencionam e interpretam
Heráclito em suas obras, indicam haver parentesco e proximidade entre o
pensamento de Heráclito e o que viria a constituir a temática cética. Platão, no
Teeteto, associou a doutrina de Heráclito ao relativismo de Protágoras; além disso,
tanto no Teeteto quanto no Crátilo, mostrou que a tese heraclítica do fluxo e do
devir poderia ter como conseqüência a interdição do conhecimento e da
linguagem. Aristóteles, na Física e, principalmente, no Livro IV da Metafísica,
inclui Heráclito no rol dos filósofos que teriam negado o princípio de não-
contradição e, em sua defesa deste princípio, indica a existência de elementos
céticos em Heráclito, em outros pré-socráticos e nos sofistas. Por fim, na leitura
de Sexto Empírico, tanto Enesidemo quanto os seus seguidores teriam se
equivocado ao afirmar que a via cética conduziria à filosofia heraclítica, pois,
embora houvesse traços céticos em seu pensamento, Heráclito afirmaria o lógos
como critério de verdade e, neste sentido, seu pensamento teria um caráter
dogmático.
Iniciei a pesquisa pelo Teeteto, e dele também não consegui nem quis mais
sair. Ou melhor, relacionei o Teeteto muitas vezes com os demais diálogos
platônicos, mas sempre partindo dele, Teeteto, e de seu percurso de leitura. No
início de minha leitura desse diálogo e da literatura sobre ele, me dei conta de
duas coisas que exigiram decisões e tomadas de posição difíceis e demoradas:
uma delas foi que muitos intérpretes do Teeteto examinam a recepção de Heráclito
por Platão buscando antes de tudo determinar se Platão leu Heráclito
corretamente. Desde o primeiro momento, me pareceu que eu deveria evitar
inteiramente essa abordagem, pois, mesmo que me parecesse estranha a leitura
platônica de Heráclito, eu não conseguia ver legitimidade numa leitura de Platão
que viesse com um interpretação prévia e pretensamente impecável de Heráclito,
para, como um juiz, e o mais autorizado deles, julgar se Platão chegou lá e
entendeu Heráclito direito ou não. De tal maneira me pareceu problemática essa
abordagem, que decidi simplesmente tentar deixar de lado minha pesquisa de
mestrado; não recorrer nem a ela nem a nenhuma fonte externa a Platão, mas
buscar somente entender quem é o Heráclito que Platão desenha, em que
contextos, e na discussão de que questões e problemas.
Mas, felizmente, chegou um momento em que ficou claro que não fazia
sentido impedir a entrada de outras fontes, nem deixar de fora o trabalho que, no
mestrado, tinha me levado a esse interesse e a essa pesquisa: pois, de um lado, o
recurso a outras fontes e leituras de Heráclito não necessariamente precisa ser
feito com o intuito de julgar se Platão entendeu Heráclito corretamente ou não, e,
182
de outro, ele pode ser muito proveitoso se o objetivo for ver o que Platão
deliberadamente enfatizou e o que ele deixou de lado ou tratou mais brevemente
no pensamento de Heráclito, enfim, que imagem de Heráclito ele decidiu
transmitir, e com que propósito.
A segunda coisa que me tomou muito tempo e exigiu escolhas difíceis foi
a percepção de que o Teeteto, que usei como uma espécie de porta de entrada para
meu primeiro estudo de Platão em maior profundidade, suscita questões básicas,
amplas e dificílimas sobre a obra e a filosofia de Platão como um todo: os
comentadores do Teeteto, ao articularem este diálogo com o restante da obra
platônica, numa leitura de tipo transversal, mostram que ele é importantíssimo
para a reflexão, por exemplo, sobre os problemas que deram origem à teoria das
idéias de Platão e sobre o desenvolvimento da concepção platônica acerca do
status ontológico e epistêmico do devir e do mundo físico. E essas questões, além
de fascinantes, me pareceram durante algum tempo fundamentais para qualquer
exame do Teeteto, inclusive o meu, que de início não parecia requerer nada disso.
Mas elas extrapolavam muito o recorte desta tese, e exigiam toda uma outra
pesquisa, que não havia como ser feita, ou melhor, bem feita. Por isso, depois de
elas terem produzido uma espécie de desvio na pesquisa e de vertigem em mim,
decidi indicá-las, mostrar sua relevância e sua conexão com o texto do Teeteto e
com a temática da tese, mas deixá-las em aberto, retornando ao tema da tese
propriamente.
Já foi dito neste trabalho que mais de um objetivo pode dirigir uma
investigação sobre a leitura platônica das idéias heraclíticas, e de fato mais de um
propósito norteou a pesquisa apresentada nesta tese. O primeiro e mais importante
objetivo deste exame da recepção de Heráclito por Platão foi entender, a partir da
leitura do Teeteto, quais teses Platão atribuiu a Heráclito, quais imputou a seus
adeptos, e como examinou e criticou essas teses tal como elas apareceram a seus
olhos.
interpretação que Platão constrói dos discursos e idéias heraclíticas de que fala na
primeira parte do Teeteto. Platão estaria de fato atribuindo um mobilismo extremo
a Heráclito nesse diálogo? Ou será que sua exposição da tese heraclítica do fluxo,
no Teeteto, ao ser realizada em etapas que progressivamente vão apresentando
versões mais e mais radicais desse mobilismo, se refere apenas inicialmente a
Heráclito, para depois referir-se exclusivamente a seus seguidores extremados?
Também procurei verificar se a interpretação platônica remonta de fato às teses e
escritos originais de Heráclito. Mesmo considerando que Platão não foi um
historiador da filosofia, mostrou-se inevitável pensar se a transmissão que ele fez
do pensamento de Heráclito, além de filosoficamente relevante, é também
historicamente verídica; se, do ponto de vista histórico, essa transmissão é
multifacetada e rica, ou parcial e pontual. Será, por exemplo, que o Teeteto estaria
atribuindo a Heráclito somente a tese do fluxo universal, isolando assim um
aspecto de sua filosofia até o ponto de produzir uma imagem muito parcial e
distorcida de seu pensamento? Ou será que ali Platão está apresentando uma
imagem multidimensional de Heráclito, considerando de autoria do Efésio outras
teses de peso, como por exemplo a doutrina da unidade dos opostos?
6.2
De início supus que uma resposta possível a essa questão seria que, no
Teeteto, não importava muito para Platão o fato de Heráclito poder ser seu aliado
185
contra o relativismo de Protágoras, pois o que interessava realmente a ele era que
um aspecto da filosofia heraclítica, a saber, o seu mobilismo, servia para
fundamentar o relativismo de Protágoras, podendo ser identificado como a sua
fonte, ou uma das suas fontes. E esse relativismo, somente depois de ser
construído sobre determinadas bases, poderia ser finalmente criticado e refutado,
o que era um dos objetivos de Platão nesse diálogo.
7.
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7.1
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