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Ana Flaksman

ASPECTOS DA RECEPÇÃO
DE HERÁCLITO POR PLATÃO

TESE DE DOUTORADO

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia da Puc-Rio como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutora em Filosofia.

Orientadora: Profa. Maura Iglésias

Rio de Janeiro
Maio de 2009
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2

Ana Flaksman

Aspectos da recepção de Heráclito por Platão

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do


grau de Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em
Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e
Ciências Humanas da Puc-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.

Profa. Maura Iglésias


Orientadora
Departamento de Filosofia da Puc-Rio

Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho


Departamento de Filosofia da Puc-Rio

Profa. Irley Fernandes Franco


Departamento de Filosofia da Puc-Rio

Prof. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues


Departamento de Filosofia da UFRJ

Prof. Marcelo Pimenta Marques


Departamento de Filosofia da UFMG

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade


Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – Puc-Rio

Rio de Janeiro, 8 de maio de 2009


3

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou


parcial do trabalho sem a autorização da universidade, da autora e
da orientadora.

Ana Flaksman

Graduou-se em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro


(UFRJ) em 1997. Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (Puc-Rio) em 2001. Professora de Filosofia
do Ciclo Básico de Graduação da Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ)
desde 2006.

Ficha Catalográfica

Flaksman, Ana

Aspectos da recepção de Heráclito por Platão / Ana


Flaksman ; orientadora: Maura Iglésias. – 2009.
197 f. ; 30 cm

Tese (Doutorado em Filosofia)–Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Inclui bibliografia

1. Filosofia – Teses. 2. Recepção de Heráclito. 3. Platão.


Teeteto. 4. Conhecimento. 5. Sensação. 6. Teoria do fluxo. I.
Iglésias, Maura. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.

CDD:100
4

Para o Caco e o Vicente,


e aos meus pais também
5

Agradecimentos

A Maura Iglésias, pela orientação deste trabalho, por suas aulas sobre Platão e
pelo apoio, cuidado e incentivo fundamentais durante o curso de doutorado.

A Fernando Rodrigues, Marcelo Pimenta Marques e Danilo Marcondes, pela


participação na banca examinadora desta tese.

A Irley Franco, pelo ânimo e generosidade com que discutiu os temas deste
trabalho, pelas sugestões valiosas, e pela participação na banca examinadora.

Ao CNPq e à Puc-Rio, pelas bolsas de estudo que me concederam.

A Edna e Diná, pelos auxílios no Departamento de Filosofia.

A Maria Inês Anachoretta, pela cessão de muitos artigos sobre o Teeteto, pelo
estímulo e pelas conversas que muito enriqueceram esta tese.

A Marcus Reis, pela amizade e interlocução preciosas desde minhas primeiras


investigações filosóficas, e pelos livros que emprestou para a tese.

A Marieta Dantas, pelo afeto e a companhia durante o curso, e pela


disponibilidade, sempre, para conversar e ajudar.

Aos professores e colegas da Puc-Rio, em especial aos amigos e colegas do


Núcleo de Filosofia Antiga, pelo ótimo convívio e pela troca de idéias e textos.
6

A Anaïs Fléchet e Luciana Garbayo, pelos vários textos que me enviaram de


bibliotecas estrangeiras.

A Gilberto Velho, pela leitura e as conversas sobre a tese, pela grande amizade, e
por estar sempre pronto a me ouvir e encorajar.

Às amigas Gabriela Gastal e Soraya Simonelli pela escuta, o carinho e a torcida a


favor, sempre.

A Margareth, pela ajuda essencial para lidar com as dificuldades da tese.

Ao meu pai e à Myriam, ao Carroberto, à Lili e ao Daniel, ao Antonio e à Maria,


ao Marcus e à Alice, por todo apoio e afeto.

À minha mãe, pela proximidade e as conversas freqüentes, pelas muitas, grandes e


variadas ajudas, pela revisão do texto.

Ao Caco, pelo amor, cumplicidade, suporte e ajuda sem tamanho.

E ao Vicente, pelas minhas maiores alegrias e pela paciência ao ver a mãe ficar
muito sumida para terminar esta tese.
7

Resumo

Flaksman, Ana; Iglésias, Maura (orientadora). Aspectos da recepção de


Heráclito por Platão. Rio de Janeiro, 2009. 197p. Tese de Doutorado -
Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Uma interpretação muito comum da leitura platônica de Heráclito é aquela


segundo a qual Heráclito aparece nos diálogos de Platão, especialmente no
Teeteto, como o principal defensor do fluxo extremo e o pensador que trouxe à
tona uma interdição incontornável ao conhecimento e à linguagem. Entretanto, se
lemos os fragmentos de Heráclito, vemos que a questão do conhecimento foi
tematizada expressamente por ele, que a possibilidade do conhecimento e da
linguagem foi por ele afirmada, e que o mobilismo por ele defendido não era
extremado. Por esta razão, essa interpretação freqüente do Teeteto produz um
estranhamento que pode e deve ser convertido num desafio para a leitura de Platão
e de Heráclito. Esta tese busca mostrar, a partir principalmente da leitura da
primeira parte do Teeteto, como Platão compreendeu e transpôs o pensamento de
Heráclito. Algumas conclusões da tese são que Platão, no Teeteto, não transmitiu
de Heráclito a imagem exagerada de um mobilista radical, e sim distinguiu as
teses mais moderadas de Heráclito das opiniões mais extremadas de seus adeptos.
E, se tudo indica que Heráclito nunca dissociou a tese do fluxo universal de outras
teses suas, como por exemplo a tese da unidade dos opostos, Platão por sua vez
não isolou a tese do fluxo, de modo que não se deve considerar que ele atribuiu a
Heráclito uma versão unilateral e empobrecida de sua filosofia. Por fim, ao
contrário do que pode parecer à primeira vista, no Teeteto, Platão critica somente
o heraclitismo exagerado, dando a entender que está aceitando e considerando
respeitável a versão moderada da teoria do fluxo universal, tal como defendida por
Heráclito.

Palavras-chave
Recepção de Heráclito; Platão; Teeteto; conhecimento; sensação; teoria do fluxo.
8

Abstract
Flaksman, Ana; Iglésias, Maura (advisor). Aspects of Plato’s reception of
Heraclitus. Rio de Janeiro, 2009. 197p. Doctoral Thesis - Departamento de
Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A current interpretation of Plato’s reading of Heraclitus maintains that


Heraclitus appears in Plato’s dialogues, mostly in Theaetetus, as the main
defender of the extreme flux and as the philosopher who asserted an irrevocable
interdiction of knowledge and language. However, when we read Heraclitus’
fragments, we can see that he expressly considered the theme of knowledge, that
he recognized the possibility of knowledge and language, and that the flux he
defended was not extreme. For this reason, this frequent interpretation of
Theaetetus produces a kind of uneasiness that could and should be turned into a
challenge to the reading of Plato and Heraclitus. Basing its arguments mainly of
the first part of Theaetetus, this thesis intends to show how Plato understood and
translated Heraclitus thought. One of its conclusions is that in Theaetetus Plato
did not transmit an exaggerated image of Heraclitus as a radical flux defender, but
rather distinguished Heraclitus’ more moderate theories from his followers’ more
radical opinions. If most likely Heraclitus never dissociated the universal flux
doctrine from other of his theories, as the doctrine of the unity of opposites, and
neither Plato did isolate the theory of flux, we should not consider that Plato
imputed to Heraclitus an unilateral and impoverished version of heraclitean
philosophy. Finally, contrarily to what may seem at first sight, in Theaetetus Plato
condemns only exaggerated heraclitism, suggesting that he accepts and respects
the moderate version of the theory of universal flux as proposed by Heraclitus
himself.

Keywords
Reception of Heraclitus; Plato; Theaetetus; knowledge; sensation; flux doctrine.
9

Sumário

1. Introdução 11
1.1 O conhecimento de Platão sobre Heráclito e os heraclíticos 11
1.2 A história da conservação dos escritos de Heráclito 16
1.3 Platão lendo seus predecessores 19
1.4 O que buscar na leitura platônica de Heráclito 22
1.5 Tomando o Teeteto como fio condutor 25
1.6 Roteiro da tese 27

2. Heráclito e o conhecimento: o conflito aparente


entre os fragmentos e o testemunho de Platão 30
2.1 A questão do conhecimento em Heráclito 30
2.2 O lógos heraclítico 32
2.3 A psyché em Heráclito 45
2.4 Heráclito e a escuta da phýsis 61
2.5 Platão e Heráclito poderiam ser aliados no Teeteto? 68

3. Considerações iniciais sobre o Teeteto 71


3.1 O Teeteto na cronologia da obra platônica 71
3.2 O prólogo e o diálogo introdutório 75
3.3 Começa a discussão sobre o conhecimento 78
3.4 A primeira definição de Teeteto 80
3.5 A associação com Protágoras 94
3.6 O problema do Protágoras histórico 101
10

4. Platão lendo Heráclito no Teeteto 113


4.1 As referências a Heráclito e a outros filósofos 113
4.2 A primeira menção a Heráclito 114
4.3 A relação entre as três teses em diversas leituras 119
4.4 A exposição da doutrina secreta e da teoria da sensação 131
4.5 Começa a crítica às três teses 148
4.6 A crítica ao heraclitismo extremo 151

5. Platão, os fragmentos do rio e a tese heraclítica do fluxo 156


5.1 O Teeteto e as teses atribuídas a Heráclito 156
5.2 O suposto erro de Platão 158
5.3 O debate sobre a origem e o significado dos fragmentos do rio 162
5.4 A hipótese da autenticidade e suas implicações 172

6. Considerações finais 179


6.1 O percurso da pesquisa 179
6.2 A riqueza da leitura platônica de Heráclito 184

7. Referências bibliográficas 187


7.1 Fontes primárias 187
7.2 Fontes secundárias 189
11

1.

Introdução

1.1

O conhecimento de Platão sobre Heráclito e os heraclíticos

Há fortes evidências de que Platão teve acesso ao livro de Heráclito em


sua forma original, e não apenas possuiu um conhecimento indireto de sua
filosofia.1 Platão é também uma fonte importante de citações e de doxografia a
respeito de Heráclito, assim como é uma das pouquíssimas fontes para nosso
conhecimento do heraclítico Crátilo.2 E não é uma fonte qualquer: é a mais antiga
e a primeira cujo texto se conservou integralmente até os dias de hoje.

Há muito pouca informação confiável sobre a vida e a atuação filosófica


de Heráclito. Em contraste, existe uma abundante biografia lendária, composta de
anedotas, de descrições de seu caráter, e de versões sobre a sua morte. Os dados
seguros sobre a vida de Heráclito são que ele nasceu em Éfeso, colônia grega na
Ásia Menor – e território hoje pertencente à Turquia –, em data estimada em cerca
de 544 a.C.3 Diógenes Laércio, cuja obra Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres é

1
Ver um pouco mais adiante, ainda nesta Introdução, alguns dos indícios de que é muito
implausível que Platão tenha tido somente um conhecimento indireto do texto de Heráclito.
2
Possuímos somente duas fontes independentes de doxografia sobre Crátilo, das quais todas as
outras fontes parecem ser tributárias: o Crátilo de Platão e três passagens da Metafísica de
Aristóteles. Cf. Serge Mouraviev, “Cratylos D’Athenes”, in R. Goulet (dir.), Dictionnaire des
Philosophes Antiques (Paris: CNRS, 1994), vol. II, p. 506.
3
Cf. Diogenes Laertios, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (Brasília: EdUnB, 1988), IX, 1. A
correção desta data, considerada a data aproximada do nascimento de Heráclito, é indicada pelo
12

a fonte mais rica para seus dados biográficos, apresenta as diversas variantes que
já perpassavam sua fama no séc. III d.C. Em sua obra, ele diz que Heráclito era
filho de Blóson e membro de uma família aristocrática de Éfeso. Depois de se
recusar a elaborar as leis e a participar do governo de sua cidade, e de renunciar,
em favor do irmão, ao direito de reinar, teria acentuado o desprezo que já
manifestava pelos efésios – por terem banido seu amigo Hermodoro –, afastando-
se do convívio com seus concidadãos, primeiro retirando-se para o templo de
Ártemis, onde foi jogar ossinhos com as crianças, e depois indo viver nas
montanhas. Lá teria escrito seu livro e em seguida tê-lo-ia depositado no templo
da deusa Ártemis. Teria depois adoecido e retornado à cidade. Sua morte, ocorrida
em torno de 474 a.C., é ora atribuída à hidropisia, ora ao ataque de cães, ora a
outra doença.4

Que o livro de Heráclito tenha de fato existido não foi sempre consenso
entre os estudiosos. Kirk, por exemplo, afirmou que o livro poderia ser o resultado
da compilação dos ditos de Heráclito por outrem. Entretanto, muitos foram os
intérpretes de Heráclito que sustentaram, seguindo diversos testemunhos e com
base na desenvoltura com que muitos autores o citaram, que o livro de fato
existiu.5 Hoje não se encontra mais quem duvide da real existência do livro do
Efésio.

O livro de Heráclito circulou por um período e, ao longo do tempo, se


perdeu, assim como as obras de todos os pré-socráticos. O que se conhece da obra
do Efésio, os seus fragmentos, deve-se a citações de suas palavras feitas por
outros autores. Essas citações, nas obras em que aparecem, são trechos
contextualizados, e não fragmentários. Os autores que citam os célebres
fragmentos são, portanto – e isso se revela no contexto das citações –, também
seus intérpretes.

fragmento 40, em que Pitágoras, Xenófanes e Hecateu – homens que morreram entre 510 e 480
a.C. – são citados.
4
Cf. Diogenes Laertios, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (op. cit.), IX, 1-6.
5
Cf. G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (Londres: Cambridge University Press, [1954]
1978), p. 7. Para a posição favorável à existência do livro de Heráclito, ver, por exemplo, W. K. C.
Guthrie, A History of Greek Philosophy (Cambridge: Cambridge University Press, [1962] 1977),
vol. 1, p. 407-408; Charles H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (Londres: Cambridge
University Press, [1979] 1999), p. 3.; e Marcel Conche, Héraclite. Fragments (Paris: Puf, [1986]
13

A circulação de cópias do livro de Heráclito – que teria ocorrido durante


a Antiguidade até os primeiros séculos da era cristã – e a disseminação oral de
suas idéias fizeram com que a sua filosofia logo ultrapassasse as fronteiras das
cidades gregas da Ásia Menor. Vale notar que a transmissão oral, que era o
principal meio de difusão de idéias e obras dos filósofos pré-socráticos, não foi
tão intensa no caso do Efésio, pois ele não teve discípulos diretos. Mas isso não
impediu que sua obra fosse disseminada e ganhasse fama rapidamente, a ponto de
logo aparecerem partidários – reais ou presumidos – de suas teorias que se
autoproclamavam heraclíticos.6 A rapidez e a amplitude da propagação da obra de
Heráclito se evidenciam quando notamos, por exemplo, que Empédocles e
Demócrito – quase seus contemporâneos – estavam muito familiarizados com sua
obra e sua filosofia.

No século V a.C., a obra do Efésio chegaria a Atenas. Diógenes Laércio,


além de contar que em meados do séc. V Eurípides apresentou o livro de Heráclito
a Sócrates, fala também de Crátilo, um ateniense que se dizia um heraclítico e, de
fato, passou a ser considerado o “discípulo” de Heráclito por excelência.7 Tudo o
que hoje sabemos sobre Crátilo e sobre suas idéias depende de fontes indiretas e
está de um modo ou de outro ligado ao heraclitismo que os próprios antigos lhe
atribuíram. Estima-se que Crátilo tenha nascido aproximadamente em 450 a.C., e
que ele tivesse cerca de 20 anos menos que Sócrates e 20 anos mais que Platão.8

Platão, que viveu entre os fins do séc. V e a primeira metade do séc. IV


a.C., é o autor mais antigo a citar Heráclito. Apenas duas são as suas citações de
Heráclito, mas muitas são as referências a ele, sejam elas explícitas – o que ocorre
em pelo menos seis de seus diálogos –, sejam implícitas – o que parece poder ser
encontrado ao longo de toda a sua obra. Platão também se referiu diversas vezes
aos heraclíticos, e sobretudo a Crátilo, que é o personagem central do diálogo que
leva seu nome no título.

1991), p. 7.
6
Cf. Diogenes Laertios, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (op. cit.), IX, 6.
7
Cf. Diogenes Laertios, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (op. cit.), II, 22 e III, 6.
8
Cf. Serge Mouraviev, “Cratylos D’Athenes” (op. cit.), p. 503.
14

Em muitos relatos a respeito da vida de Platão consta que, quando ele


ainda era jovem, teve contato não apenas com a filosofia de Sócrates, mas também
com a filosofia de Crátilo, o auto-intitulado heraclítico. Aristóteles diz o seguinte
sobre a relação entre Platão e Crátilo:

Pois, tendo se familiarizado ainda jovem com Crátilo e com as


opiniões de Heráclito, segundo as quais todas as coisas sensíveis
fluem sempre e não há ciência acerca delas, [Platão] sustentou esta
doutrina também mais tarde. Por outro lado, ocupando-se Sócrates dos
problemas morais e não da natureza em seu conjunto, mas buscando
neles o universal, e tendo sido o primeiro que aplicou o pensamento às
definições, [Platão] aceitou seus ensinamentos, mas por aquele motivo
[por estar familiarizado com as opiniões de Heráclito] pensou que isto
[o universal] se produzia em outras coisas, e não nas sensíveis.9

O heraclitismo de Crátilo é afirmado por quase todas as nossas fontes, a


começar por Platão (Crátilo, 440e; 401d-422c) e Aristóteles (Metafísica 987a 32;
1010a 7), e depois por diversos biógrafos de Platão e por comentadores de
Aristóteles. Das doutrinas de Heráclito, consta que Crátilo professava tanto a tese
do “fluxo universal” quanto a tese da “retidão natural dos nomes”. Em sua obra,
Platão mostra ter conhecido e discutido essas duas doutrinas, o que fica claro
quando observamos que ambas constituem os temas centrais do diálogo Crátilo e
que a primeira delas (a doutrina heraclítica do fluxo universal) é uma das teses
mais discutidas no diálogo Teeteto.

9
ἐκ νέου τε γὰρ συνήθης γενόµενος πρῶτον Κρατύλῳ καὶ ταῖς Ἡρακλειτείοις δόξαις, ὡς
ἁπάντων τῶν αἰσθητῶν ἀεὶ ῥεόντων καὶ ἐπιστήµης περὶ αὐτῶν οὐκ οὔσης, ταῦτα µὲν καὶ
ὕστερον οὕτως ὑπέλαβεν· Σωκράτους δὲ περὶ µὲν τὰ ἠθικὰ πραγµατευοµένου περὶ δὲ
τῆς ὅλης φύσεως οὐθέν, ἐν µέντοι τούτοις τὸ καθόλου ζητοῦντος καὶ περὶ ὁρισµῶν
ἐπιστήσαντος πρώτου τὴν διάνοιαν, ἐκεῖνον ἀποδεξάµενος διὰ τὸ τοιοῦτον ὑπέλαβεν ὡς
περὶ ἑτέρων τοῦτο γιγνόµενον καὶ οὐ τῶν αἰσθητῶν· (Aristóteles, Metafísica A, 987 a32-b5).
Diógenes Laércio também afirma que Platão freqüentou Crátilo, mas, ao contrário de Aristóteles,
diz que seu contato com o heraclítico ocorreu após a morte de Sócrates: “Dizem que a partir de
então, aos 20 anos, tornou-se discípulo de Sócrates. Quando este morreu ele passou a seguir
Crátilo, adepto da filosofia de Heráclito”. τοὐντεῦθεν δὴ γεγονώς, φασίν, εἴκοσιν ἔτη
15

Não se sabe se Crátilo escreveu alguma obra, nem se ele ensinou


sistematicamente, e nossas fontes para o conhecimento de suas doutrinas são
pouquíssimas. As principais fontes, o Crátilo de Platão e a Metafísica de
Aristóteles, atribuem a Crátilo as seguintes teses: “todas as coisas possuem nomes
justos conformes à sua natureza” (Crátilo, 383a-384a, 390d-e, 427d); “todas as
leis são igualmente justas” (Crátilo, 429b); “é impossível dizer o falso” (Crátilo,
429d); “todas as coisas estão sempre em fluxo” (Crátilo, 401d-422c, 436e-437a;
Metafísica, 987a 32, 1078b 12, 1010a 7); e “das coisas que mudam não é possível
dizer verdade, e não se deve dizer nada” (Metafísica, 1010a 7-13).

Todos os antigos sustentam que a tese do fluxo universal defendida por


Crátilo tem sua origem em Heráclito. Mas alguns testemunhos sobre Crátilo
mostram que ele foi freqüentemente considerado “mais heraclítico” que o próprio
Heráclito no que toca à teoria do fluxo. Aristóteles, por exemplo, diz o seguinte
sobre a relação e sobre as diferenças entre Crátilo e Heráclito a respeito dessa
teoria:

Além disso, estes filósofos, vendo que toda esta natureza


sensível se move, e que nada se diz com verdade do que muda,
acreditaram que, ao menos acerca do que muda sempre totalmente,
não é possível dizer a verdade. Desta concepção surgiu, com efeito, a
opinião mais extremada entre as mencionadas, a dos que afirmam que
heraclitizam, tal como Crátilo, que, finalmente, acreditava que não se
devia dizer nada, limitando-se a mover o dedo, e censurava Heráclito
por haver dito que não é possível entrar duas vezes no mesmo rio, pois
ele acreditava que [não é possível entrar] nenhuma.10

διήκουσε Σωκράτους: ἐκείνου δ᾽ ἀπελθόντος προσεῖχε Κρα τύλῳ τε τῷ Ἡρακλειτείῳ.


(Diogenes Laertios, op. cit., III, 6).
10
ἔτι δὲ πᾶσαν ὁρῶντες ταύτην κινουµένην τὴν φύσιν, κατὰ δὲ τοῦ µεταβάλλοντος
οὐθὲν ἀληθευόµενον, περί γε τὸ πάντῃ πάντως µεταβάλλον οὐκ ἐνδέχεσθαι ἀληθεύειν.
ἐκ γὰρ ταύτης τῆς ὑπολήψεως ἐξήνθησεν ἡ ἀκροτάτη δόξα τῶν εἰρηµένων, ἡ τῶν
φασκόντων ἡρακλειτίζειν καὶ οἵαν Κρατύλος εἶχεν, ὃς τὸ τελευταῖον οὐθὲν ᾤετο δεῖν
λέγειν ἀλλὰ τὸν δάκτυλον ἐκίνει µόνον, καὶ Ἡρακλείτῳ ἐπετίµα εἰπόντι ὅτι δὶς τῷ αὐτῷ
16

Uma série de estudiosos modernos, no entanto, nega que Heráclito tenha


formulado uma tese do fluxo universal, e considera inautênticos os fragmentos do
rio (mais freqüentemente os fragmentos B 91 e B 49a), que são os que melhor
expressam esta tese.11 Eles entendem que Platão e Aristóteles propagaram uma
versão cratiliana (isto é, deformada) de Heráclito, pois o Efésio na verdade estaria
ressaltando o tempo todo a estabilidade na mudança e no fluxo, e não o fluxo
universal. Alguns estudiosos também acreditaram que Platão teve um
conhecimento muito limitado de Heráclito e pode mesmo não ter conhecido as
suas sentenças autênticas mais do que nós as conhecemos.12 Mas essa idéia não
parece ser muito razoável, e isso por várias razões: os “ecos” das sentenças
heraclíticas em uma multiplicidade de escritos pré-platônicos mostram a grande
difusão que o livro de Heráclito deve ter tido na Jônia, Grécia e Magna Grécia até
o tempo de Platão.13 Nessa época, uma multiplicidade de cópias devia circular; e
que elas circulavam em Atenas é indicado não só por Diógenes (quando conta que
Eurípedes deu uma cópia a Sócrates), mas ainda pelo fato de ter-se formado em
Atenas, em torno de Crátilo, uma corrente de heraclíticos. Além disso, é
indubitável o interesse de Platão pelas doutrinas do filósofo de Éfeso, que é
mencionado e discutido explícita ou implicitamente ao longo de toda a sua obra.
Tudo isso leva a crer que Platão, um pensador ávido de saber que teve uma
relação com Crátilo, certamente buscaria ter um conhecimento direto da fonte das
doutrinas deste, que era acessível na Atenas de seu tempo.

1.2

A história da conservação dos escritos heraclíticos

ποταµῷ οὐκ ἔστιν ἐµβῆναι· αὐτὸς γὰρ ᾤετο οὐδ’ ἅπαξ. (Aristóteles, Metafísica, IV, 5,
1010a 7-15).
11
Este tema será tratado com mais detalhe no capítulo 4, no qual serão discutidos os argumentos
dos defensores da inexistência de uma tese do fluxo em Heráclito.
12
Este é o caso de G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 15.
13
Cf. Rodolfo Mondolfo e Leonardo Tarán. Eraclito: Testimonianze e Imitazioni (Florença: La
Nuova Italia, 1972), p. CXIX.
17

Depois de Platão, Aristóteles foi o primeiro a conservar citações de


Heráclito. Ele fez sete citações e, assim como Platão, realizou discussões bastante
detalhadas do pensamento do Efésio. Teofrasto, discípulo direto de Aristóteles, foi
o primeiro autor a tentar sistematizar a filosofia e a reunir os dados biográficos
mais importantes de Heráclito e de outros filósofos pré-socráticos. Sua obra se
perdeu, mas é provável que tenha constituído uma das bases para os relatos
registrados por Diógenes Laércio.14

O interesse por Heráclito não parou de crescer e foi de fato muito intenso
durante o período helenístico. Muitos foram os autores e as obras, pertencentes a
diferentes escolas e movimentos, que dele se ocuparam. O ápice da influência
filosófica de Heráclito foi alcançado na obra dos estóicos, que, em conjunto com
os neoplatônicos e os primeiros doutrinadores cristãos, citaram a maior parte dos
fragmentos heraclíticos. As mais abundantes citações foram feitas pelos autores
cristãos Clemente de Alexandria, Hipólito de Roma e Orígenes de Alexandria,
responsáveis pela preservação de 47 fragmentos.

Outra fonte importante para os fragmentos originais de Heráclito foi


produzida pelo antologista Estobeu, no séc. V d.C. Kahn lembra que a antologia
de Estobeu foi compilada quase um milênio depois da composição original do
livro do Efésio e afirma que, embora seja provável que muitas de suas citações
fossem de segunda mão (feitas com base em antologias ou autores mais antigos),
não há por que duvidar de que o livro ainda estivesse disponível em sua forma
original nesse período.15 A partir do século VI d.C., a importância e a memória do
pensamento de Heráclito quase se extinguiram. Afora a difusão abundante,
durante a Idade Média, da imagem pictórica do Heráclito melancólico e choroso
em oposição ao Demócrito alegre e risonho, pode-se dizer que nesse período
Heráclito permaneceu praticamente esquecido. Entretanto, seis fragmentos foram
conservados durante o Medievo, principalmente por autores e dicionários
bizantinos. É curioso observar, ainda assim, que ao longo de quatro séculos não se
fez nenhuma citação da obra de Heráclito – período este situado entre as citações

14
Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought os Heraclitus (op. cit.), p. 4.
15
Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought os Heraclitus (op. cit.), p. 5-6.
18

do antologista Estobeu (séc.V d.C.) e do dicionário Etymologicum Magnum (séc.


IX d. C.). O último autor a citar Heráclito foi Alberto Magno (1193-1280).

Na Idade Moderna, começa-se a reunir, compilar e editar as citações de


Heráclito espalhadas em muitas obras. O primeiro a fazê-lo foi o compilador e
editor francês Henri Estienne, também conhecido por seu nome latino Henricus
Stephanus, em seu Poesis Philosophica, publicado em 1573. Diversas outras
edições se lhe seguiram, entre elas a do filósofo e teólogo alemão Friedrich
Schleiermacher (séc. XVIII) e a do filólogo inglês Ingram Bywater (séc. XIX).
Em 1901, o filólogo alemão Hermann Diels publicou seu volume dedicado a
Heráclito, Herakleitos von Ephesos, no qual reuniu os fragmentos que valem até
hoje como padrão do corpo heraclítico. Em 1903, Diels inseriu o conjunto de
fragmentos heraclíticos na obra Die Fragmente der Vorsokratiker, que apresenta
os fragmentos de Heráclito e dos demais pré-socráticos. Essa obra foi revista e
expandida três vezes por Diels, e foi finalmente revisada e editada duas vezes por
Walther Kranz.16 Diels considerou 131 fragmentos de Heráclito autênticos (sem
contar o fragmento 109, que é igual ao fragmento 95) e adotou um critério
extrínseco ao ordená-los, a saber, a ordem alfabética dos nomes dos autores que os
citaram. A única exceção é a citação que engloba os dois primeiros fragmentos,
considerados, desde Sexto Empírico, componentes da introdução do livro de
Heráclito. Os fragmentos catalogados por Diels, bem como sua numeração, são
até hoje padrão e referência para as edições dos textos remanescentes de
Heráclito. Entretanto, desde Diels até hoje, vários são os autores que se ocupam
com o estabelecimento do texto heraclítico, propondo-lhes também diferentes
ordenações e numerações.

Nos séculos XIX e XX, o pensamento de Heráclito despertou enorme


interesse e teve bastante influência sobre a obra de grandes filósofos, como Hegel,
Nietzsche e Heidegger, que não apenas buscaram mostrar o papel de Heráclito na
história da filosofia grega, como também procuraram deixar clara a atualidade de
seu pensamento. Além disso, a filosofia de Heráclito tem sido objeto de inúmeros

16
Nesta obra, são apresentadas, para cada pré-socrático, tanto as citações de seus livros
transmitidas por escritores posteriores, quanto material de fonte secundária, conhecido como
testimonia (comentários sobre as obras, relatos sobre as vidas e descrição das idéias filosóficas dos
pré-socráticos).
19

estudos realizados por filólogos, pesquisadores de filosofia antiga e de história da


filosofia mundo afora.

O Heráclito que aparece nas páginas de seus diversos intérpretes, dos


mais antigos aos mais contemporâneos, carrega as múltiplas e controversas
imagens que dele se construíram nas sucessivas leituras, citações, paráfrases,
imitações, reconstituições e interpretações de seus escritos. De todos os seus
leitores, Platão foi o primeiro a estabelecer a oposição entre Heráclito e
Parmênides, e a evocar a imagem dos “mobilistas e imobilistas”, que desde então
é muito célebre e constitui um lugar comum quase onipresente na história da
filosofia.17 Além disso, foi através dos diálogos de Platão – tenham eles sido bem
compreendidos ou não – que se constituiu a célebre interpretação de Heráclito,
predominante até os dias de hoje, como a do pensador cuja tese mais importante,
definidora e decisiva é a que diz pánta reî, tudo flui.18

1.3

Platão lendo seus predecessores

Quando buscamos chegar a uma compreensão apropriada do ponto de


vista histórico, e expressiva do ponto de vista filosófico, dos enunciados de
Heráclito e dos demais pré-socráticos, cujas obras se perderam, podemos dar de
antemão uma certa prioridade à nossa testemunha mais antiga, que é Platão. Mas
tanto Platão quanto os outros autores tardios que nos transmitiram as citações dos
pré-socráticos, embora tivessem acesso ou familiaridade com os escritos que
citavam, ao mesmo tempo deles se apropriavam para seus próprios propósitos.
Esses autores, Platão inclusive, transmitiram seu próprio pensamento através de
sua referência a Heráclito e aos demais predecessores.

17
No que concerne à gênese da oposição entre mobilistas e imobilistas, lê-se com proveito o artigo
de Francesco Fronterotta, “Réontes kaì Stasiotai: Héraclite et Parménide chez Platon”, Les Cahiers
Philosophiques de Strasbourg. Les Anciens Savants (Tome 12, Automne 2001), p. 131-156.
18
Cf. Teeteto, 181c; Crátilo, 401d-e, 402a-c.
20

O primeiro problema que se apresenta quando buscamos ver Platão como


uma fonte para o conhecimento de Heráclito, e dos pré-socráticos em geral, é que
Platão não é um historiador da filosofia. Muitos argumentos foram oferecidos para
sustentar a idéia de que Platão nem fez nem poderia fazer história ou
historiografia filosófica. Um dos argumentos usados se baseia em declarações,
encontradas na própria obra platônica, de que tudo o que foi produzido antes de
Platão seria ou investigação sobre a natureza, ou mito, ou sofística. Este
argumento não é no entanto o único utilizado, nem é aceito por todos, pois pode-
se considerar problemática uma leitura que, por levar tão a sério as passagens do
texto platônico em que os seus antecessores são tratados de forma severa, chega
ao ponto de concluir que Platão não os considerou filósofos.19

Mas outra razão pode ser apresentada: trata-se do argumento que ressalta
que a dimensão cronológica linear – a dimensão em que a filosofia pode ser
concebida historicamente – não é uma preocupação de Platão e é algo que ele
subverte freqüentemente.20 Além disso, pode-se alegar, como faz Monique
Dixsaut, que, quando um filósofo aborda historicamente o passado da filosofia,
ele delimita o campo da filosofia, constrói sua continuidade e concebe a si mesmo
como cume ou ponto de ruptura dessa história. Concordo com esta autora, quando
ela diz:

Essa história não existe senão por um movimento de uma


verdade que ele, filósofo, detém mais completamente; ele é portanto o
único capaz de elevar à sua verdade os filósofos que o precederam e
de revelar os erros ou insuficiências deles. Todas as outras filosofias
são assim convertidas em momentos de um devir que conduz a uma
filosofia determinada, seja de maneira contingente – o que nos faz
lembrar dos “soldados não adestrados” de Aristóteles (Metafísica A,
985a) – ou necessária, como em Hegel. Se é na constituição desse

19
Cf. Monique Dixsaut e Aldo Brancacci, “Introduction”, in Platon: Source des Présocratiques
(Paris: Vrin, 2002).
20
Um exemplo célebre é o encontro do jovem Sócrates com o velho Parmênides, no diálogo
Parmênides.
21

tempo orientado que reside a possibilidade de uma história filosófica


da filosofia, tudo mostra que Platão a recusa.21

Platão, de fato, não parece abordar seus predecessores a partir da


suposição de um “tempo orientado”. É para Aristóteles (Metafísica, I, 6, 987a32-
b10) que Platão é um resultado ou uma “culminação”. Para ele, Platão teria
primeiro se familiarizado com Crátilo, o heraclítico, e com as opiniões de
Heráclito, e deles teria conservado a concepção de uma realidade sensível em
fluxo perpétuo, sobre a qual não haveria ciência; teria em seguida retido de
Sócrates seu interesse pelos problemas éticos e pelas definições; e teria também se
inspirado na teoria pitagórica dos números. Assim, finalmente, pensando que o
universal não se produzia nas coisas sensíveis, teria separado as idéias das coisas
sensíveis e teria trocado para o nome de participação aquilo que os pitagóricos
chamavam de imitação.

Segundo Dixsaut, não se pode atribuir a Platão uma abordagem histórica


de seus antecessores também em virtude de seu anonimato obstinado. Como
observa a autora, a palavra de Platão é polifônica, habitada por outras palavras, e
seu uso do discurso é impuro, é híbrido: “ele integra ao seu discurso, ao discuti-
los, os discursos dos outros, e assim os torna presentes”.22 Platão nem é
personagem, nem fala em primeira pessoa em seus diálogos.23 Além disso,
aqueles que para Platão seriam antecessores, como por exemplo Protágoras e
Górgias, muitas vezes aparecem como contemporâneos, pois são contemporâneos
de Sócrates, que na maioria dos diálogos é o protagonista.

Essa ausência de uma história da filosofia na filosofia de Platão também


parece se relacionar com a concepção platônica do pensamento como diálogo.
Isso significa que para ele não haveria pensamentos passados ou ultrapassados:
cada um mereceria ser examinado agora, nesse presente que é o do diálogo. Seus

21
Cf. M. Dixsaut e A. Brancacci, “Introduction” (op. cit.), p. 13.
22
Cf. M. Dixsaut e A. Brancacci, “Introduction” (op. cit.), p. 14.
23
A Carta Sétima é o único texto platônico ostensivamente autobiográfico. Mas ela tem a
autenticidade contestada por muitos, que a consideram provavelmente espúria. Cf., por exemplo,
Terence Irwin, “Plato: The Intellectual Background”, in The Cambridge Companion to Plato
(Cambridge: Cambridge University Press, 1992), p. 51-89.
22

encontros com outros pensadores seriam então precisamente encontros, e


engendrariam um exame filosófico e não uma exposição histórica. Nesse sentido,
o que Platão vê nos discursos dos que o precederam são, não doutrinas antigas, e
sim questões e soluções que devem ser retomadas e postas à prova. Talvez, para
Platão, conhecer bem textos e doutrinas de outros autores signifique sobretudo
lhes emprestar algo que, mesmo sem desenvolver explicitamente, esses textos e
doutrinas permitem pensar. Talvez signifique reconduzir cada tese aos seus
pressupostos e mostrar suas conseqüências, mesmo sabendo que seu autor não as
enxergou forçosamente. Platão não busca simplesmente encontrar e transmitir a
sabedoria dos antigos, e sim procura extrair, daquilo que eles dizem, sua
inteligência de aspectos da realidade. Nesse sentido, pode-se dizer até que Platão
não tem predecessores; ele só tem interlocutores. Mas, ainda que Platão utilize,
distorça, recrie, desdobre e se aproprie do pensamento de outros autores, ele ao
mesmo tempo é fonte indispensável – e não apenas secundária – para o nosso
conhecimento desses mesmos autores.

1.4

O que buscar na leitura platônica de Heráclito

Por mais que divirjam em suas interpretações, todos os estudiosos de


Platão reconhecem que Heráclito teve uma influência decisiva na formulação da
filosofia platônica, principalmente em sua concepção de mundo físico. Alguns
intérpretes consideram que Heráclito e Parmênides foram lidos por Platão como
elaboradores de doutrinas muito radicais e inteiramente opostas, e crêem que
desses dois antecessores e antagonistas Platão herdou elementos fundamentais
para sua própria filosofia. Uma corrente de interpretação da teoria das idéias de
Platão enxerga, tanto na separação entre as idéias e as coisas sensíveis quanto na
caracterização desses dois tipos de entidade, uma fusão do imobilismo e do
monismo de Parmênides com o mobilismo e o pluralismo de Heráclito. As idéias
ou formas inteligíveis, para Platão, seriam simplesmente uma pluralidade de seres
possuidores dos mesmos “atributos do ser” de Parmênides, enquanto o mundo
23

físico seria tal como Heráclito e os heraclíticos descrevem a realidade em sua


teoria do fluxo.

Segundo essa leitura, a distinção platônica entre ser e devir também seria
fruto de uma adoção e fusão das filosofias de Parmênides e Heráclito: o domínio
do ser consistiria em coisas que, similares ao ser de Parmênides, nunca mudam em
nenhum sentido, e o domínio do devir seria constituído pelas coisas sensíveis,
que, tal como teria dito Heráclito, não são estáveis de nenhum modo.24 Essa
interpretação da influência do pensamento de Heráclito na filosofia de Platão pode
ser considerada correta ou incorreta, razoável ou exagerada, rica ou restritiva;
independentemente disso, porém, ela nos mostra que a importância da leitura
platônica de Heráclito não está somente no que essa leitura tem a contribuir para o
conhecimento da filosofia de Heráclito, mas também no que ela pode revelar
acerca da própria filosofia de Platão.

Mais de um objetivo, portanto, pode dirigir uma investigação sobre a


leitura platônica das idéias heraclíticas. Um desses objetivos pode ser verificar se
Platão concordou com as teses de Heráclito, ou com parte delas, tal como as
entendeu. Há, na literatura acadêmica sobre o tema da recepção platônica de
Heráclito, um enorme interesse e muita controvérsia a esse respeito.
Particularmente no diálogo Teeteto, há duas leituras antagônicas muito comuns:
enquanto uma sugere que Platão concorda com a doutrina heraclítica do fluxo no
que concerne às coisas e qualidades sensíveis, a outra sugere que Platão
absolutamente não concorda com Heráclito, e que é o jovem Teeteto quem precisa
se comprometer com a doutrina heraclítica na primeira parte do diálogo, por só
assim conseguir sustentar sua definição de conhecimento. Mas, embora o tema da
aprovação ou reprovação, da adoção ou rejeição das teses de Heráclito por parte
de Platão seja um assunto muito relevante e seja inevitável abordá-lo, não é o
principal objetivo da tese discuti-lo. Menos ainda é objetivo da tese tomar como
ponto de partida uma posição definida sobre o modo como Platão julgou
Heráclito. Uma das razões disto é que me parece questionável a crença de que se

24
Esta é a leitura defendida, por exemplo, por Francis M. Cornford, em Plato’s Theory of
Knowledge: The Theaetetus and the Sophist of Plato (Nova York: Dover, 2003 [1957]).
24

deve tomar posição sobre se Platão concordou ou discordou de Heráclito de


antemão, fazendo essa decisão funcionar como uma estratégia prévia de leitura
que dá unidade e coesão aos argumentos apresentados em um ou mais de um
diálogo, antes de percorrê-los um a um. Creio, ao contrário, que toda tomada de
posição a respeito do modo como Platão julgou Heráclito deve ser fruto de uma
leitura passo a passo de qualquer texto platônico em que as teses heraclíticas são
discutidas.

Outro objetivo de um exame da recepção de Heráclito por Platão pode


ser a verificação de quais teses imputadas a Heráclito num ou noutro diálogo
platônico podem ser atribuídas a Heráclito historicamente. Mesmo considerando
que Platão não foi um historiador da filosofia, me parece ser inevitável buscar
pensar se – e em que medida – a transmissão que ele fez do pensamento de
Heráclito é historicamente verídica ou sobretudo filosoficamente relevante; se, do
ponto de vista histórico, sua transmissão é abrangente, multifacetada e rica ou
excessivamente seletiva, parcial, unidimensional. O problema de uma abordagem
dirigida por esse propósito é que ela pode pretender partir de um conhecimento
prévio e impecável do “Heráclito histórico”, para julgar se Platão chegou a
compreender Heráclito ou não. E pretender ter mais acesso ou competência para
compreender bem Heráclito do que Platão seria evidentemente uma atitude
equivocada e infrutífera. Todavia, o recurso a fontes e leituras de Heráclito
distintas das de Platão não precisa ser feito com o intuito de julgar se Platão
entendeu Heráclito “corretamente ou não”, se foi “fiel historicamente” ou não.
Além disso, esse recurso pode ser muito proveitoso quando o objetivo for ver o
que Platão enfatizou e o que ele deixou de lado ou tratou mais brevemente no
pensamento de Heráclito, enfim, que imagem de Heráclito ele desenhou e
transmitiu, e com que propósito. É neste sentido que procurarei ver se há uma
correspondência substancial entre o testemunho platônico e aquilo que podemos
saber a partir dos fragmentos de Heráclito e de outros testemunhos. Mas, se este é
um dos objetivos desta tese, não será também por esta questão que ela se guiará
inicialmente.

Nesta investigação sobre o modo como Platão compreendeu e transmitiu


o pensamento de Heráclito, o que mais importa inicialmente é que Platão atribuiu
25

determinadas teses a Heráclito e a seus adeptos, examinou e criticou essas teses tal
como elas apareceram a seus olhos, e julgou fundamental fazer essa exposição e
essa crítica para construir sua própria filosofia. Além disso, importa que
freqüentemente se disseminou uma visão caricatural da leitura platônica de
Heráclito, visão esta que formou uma das imagens mais correntes do Efésio: a do
mobilista radical cuja ontologia implicaria a impossibilidade do conhecimento e
da linguagem. Portanto, meu primeiro e também principal objetivo nesta tese é
examinar a interpretação que Platão constrói dos discursos e idéias heraclíticas de
que ele fala. É ver os diferentes modos e contextos em que Heráclito é trazido à
tona, compreendido, criticado. É investigar como Platão interpretou, transpôs e
transmitiu suas idéias.

1.5

Tomando o Teeteto como fio condutor

Platão, quando se refere a seus antecessores, raramente os cita e nem


sempre os nomeia. No caso de Heráclito, as citações textuais ou quase textuais são
pouquíssimas25 e as referências explícitas não são muitas,26 mas as alusões
indiretas, os reflexos e os ecos de expressões heraclíticas são numerosos.27 Para
trabalhar o tema da leitura platônica de Heráclito, pode-se partir da idéia ainda

25
Platão conservou dois dos fragmentos de Heráclito listados na edição mais usada dos
fragmentos, a de Diels e Kranz: os fragmentos 82 e 83, que se encontram em Hípias Maior (289a-
b). Mas há também versões platônicas quase idênticas a versões dos fragmentos conservadas por
outros autores e listadas por Diels e Kranz. Este é o caso, por exemplo, dos fragmentos 91 – que
aparece como tendo sido citado por Plutarco, mas também o foi por Platão, no Crátilo (402a) – e
10 – que aparece como tendo sido citado por Pseudo-Aristóteles, mas também o foi por Platão, no
Sofista (242d). Cf. H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (7ª ed., Zürich,
Weidmann, 1954).
26
As menções diretas a Heráclito aparecem em quatro diálogos: Teeteto (152e, 160d, 179d, 179e),
Crátilo (401d, 402a, 402b, 402c, 440c, 440e), Banquete (187a), Hípias Maior (289a, 289b),
República VI (498b).
27
Mondolfo e Tarán, por exemplo, ao fornecer uma espécie de catálogo dos fragmentos de
Heráclito que encontraram alusão ou eco, mais ou menos significativo, em Platão, listam mais de
cinqüenta passagens de 15 diálogos platônicos. Cf. R. Mondolfo e L. Tarán. Eraclito:
Testimonianze e Imitazioni (op. cit.), p. CL-CLVI.
26

mais abrangente de que o pensamento de Heráclito impregna o todo do


pensamento de Platão. De fato, num certo sentido, Heráclito está em todo lugar,
assim como Parmênides, Sócrates, os sofistas e outros também estão. Platão
parece tê-los incorporado, e com eles nutrido todo o seu pensamento. Essa é uma
das razões pelas quais é praticamente impossível determinar precisa ou
exaustivamente a relação que sua filosofia tem com Heráclito e outros
antecessores e contemporâneos.

Ao planejar e realizar este exame da presença do pensamento heraclítico


nos diálogos de Platão, busquei resistir à heraclitização sistemática de Platão,
evitando a generalização e a indistinção dessa presença. Por essa razão – e por
outras razões que serão apresentadas adiante –, nesta tese, em lugar de partir do
exame da totalidade das referências diretas e indiretas a Heráclito nos muitos
diálogos platônicos, decidi que o ponto de partida e o fio da meada de toda a
discussão seria o exame de um único diálogo, o Teeteto, em que Heráclito é
discutido explícita e extensamente. Não deixo de utilizar, em alguns momentos,
dados de outros diálogos que se referem aos mesmo assuntos, que se assemelham
ou produzem contraste, que complementam ou articulam os passos do Teeteto.
Todavia, sempre que outros diálogos são introduzidos na discussão, isso é feito a
partir do percurso de leitura do Teeteto.

Mas qual é a outra razão para eleger o Teeteto como centro da


investigação da leitura platônica de Heráclito? Para quem faz uma primeira leitura
do Teeteto com interesse em observar o que lá é dito sobre o pensamento de
Heráclito, o que chama logo a atenção é que, ali, Heráclito é apresentado como
defensor do fluxo universal e, ao menos aparentemente, como símbolo de uma
visão de mundo que nada sabe sobre a unidade e a identidade das coisas, em
contraste com Parmênides, defensor de uma realidade estável e fixa. Mas se, por
um lado, de Heráclito o Teeteto costuma formar principalmente a imagem do
pensador do fluxo, e em grande medida a imagem do filósofo que, em virtude das
conseqüências de sua ontologia e de seu mobilismo radical, teria trazido à tona
uma interdição incontornável ao conhecimento e à linguagem, por outro, se lemos
os fragmentos de Heráclito, vemos que vários elementos mostram que a questão
27

do conhecimento foi tematizada expressamente por ele, e que a possibilidade e a


importância do conhecimento e da linguagem foram por ele afirmadas.

Já que uma primeira leitura do Teeteto pode facilmente produzir a


estranha impressão de que a imagem de Heráclito ali desenhada não corresponde à
imagem que se forma a partir do que restou de seu próprio texto, esse
estranhamento pode e deve se converter num desafio para a leitura de Platão e de
Heráclito: afinal, Platão estaria de fato atribuindo um mobilismo extremo a
Heráclito, no Teeteto? Ou será que sua exposição da tese heraclítica do fluxo, no
Teeteto, ao ser realizada em etapas que progressivamente vão apresentando
versões mais e mais radicais desse mobilismo, se refere apenas inicialmente a
Heráclito, para depois referir-se exclusivamente a seus seguidores extremados? E,
além disso, será que o Teeteto está atribuindo a Heráclito somente a tese do fluxo
universal, isolando assim um aspecto de sua filosofia até o ponto de produzir uma
imagem muito parcial de seu pensamento? Ou será que ali Platão está
apresentando uma imagem multidimensional de Heráclito, considerando outras
teses de peso, como por exemplo a doutrina da unidade dos opostos, como teses
de autoria do Efésio? Enfim, estas questões suscitadas pelo Teeteto só fizeram
reiterar minha idéia de que esse é um diálogo extremamente fértil para quem
busca um ponto de partida para examinar a leitura platônica de Heráclito.

1.6

Roteiro da tese

No primeiro capítulo desta tese, apresento de maneira sintética a


trajetória de estudos que me levou a estranhar a leitura platônica de Heráclito no
Teeteto e a enxergar, neste diálogo, um desafio e um campo fértil para a reflexão
sobre a recepção de Heráclito por Platão. Parto do exame dos fragmentos em que
Heráclito tematiza explicitamente a questão do conhecimento e, com base nas
conclusões desse exame, mostro como o Heráclito pretensamente apresentado no
Teeteto como um mobilista radical pode parecer estar sendo extremamente
28

distorcido, de modo a instigar uma releitura, mais minuciosa, da primeira parte do


diálogo, na qual as opiniões heraclíticas são extensamente discutidas.

No segundo capítulo, inicio o exame do Teeteto, tratando primeiro da


cronologia da composição, dos personagens, da divisão e do tema central do
diálogo. Em segundo lugar, passo a acompanhar os passos do diálogo que
antecedem as menções a Heráclito e aos heraclíticos. Seguindo o curso da
primeira parte do Teeteto, apresento e examino a definição de conhecimento
formulada por Teeteto, bem como a doutrina protagórica do “homem-medida”
citada e interpretada por Sócrates, preparando o terreno para a associação, feita
em seguida, dessa definição e dessa doutrina com as teses heraclíticas.

No terceiro capítulo, apresento e interpreto as seções do diálogo em que


as teses heraclíticas são primeiramente expostas e em seguida criticadas e
refutadas. Busco refletir sobre a associação das teses de Heráclito e dos
heraclíticos com a questão do conhecimento, com a identificação feita por Teeteto
entre conhecimento e sensação, e com a tese do homem-medida de Protágoras.
Examino o modo como Platão interpretou e transmitiu o pensamento de Heráclito
na primeira parte do Teeteto, e busco distinguir as passagens do diálogo em que
Platão está claramente discutindo um mobilismo que ele atribui a Heráclito das
passagens em que ele está expondo e criticando um mobilismo estendido ou
radicalizado que não é mais imputado a Heráclito, e sim a seus adeptos.
Finalmente, mostro que, no Teeteto, Platão não atribui a Heráclito apenas a tese
do fluxo universal, mas também outras três teses, articulando-as e apresentando,
portanto, uma imagem multifacetada da filosofia de Heráclito.

No quarto capítulo, apresento e discuto a tese, sustentada por alguns


estudiosos, de que Platão interpretou mal e atribuiu um peso exagerado à
concepção de fluxo de Heráclito. Para tanto, investigo se é ou não provável que a
doutrina do fluxo universal, que Platão discute na primeira parte do Teeteto e
considera ser de autoria de Heráclito, tenha efetivamente origem nos fragmentos
autênticos do Efésio. Esse exame é feito com base na literatura acadêmica que
discute a autenticidade e o significado dos mais célebres “fragmentos do fluxo”,
os três “fragmentos do rio”. Busco mostrar que a hipótese que parece ser a mais
correta é a de que Heráclito formulou de fato uma doutrina do fluxo universal, e
29

de que sua defesa não foi a de um fluxo extremado, e sim a de um fluxo


moderado, com medida, ordem e padrão.

Finalmente, nas considerações finais, busco articular as principais


questões e conclusões expostas ao longo da tese, para mostrar que é razoável
sustentar três afirmações a respeito da recepção de Heráclito por Platão. A
primeira é que Platão, no Teeteto, não transmitiu de Heráclito a imagem
exagerada de um mobilista radical, e sim distinguiu as teses mais moderadas do
Efésio das opiniões mais extremadas de seus adeptos. A segunda é que, se tudo
indica que Heráclito nunca dissociou a tese do fluxo universal de outras teses
suas, como por exemplo a da unidade dos opostos, Platão por sua vez nem
enfatizou em excesso, nem isolou a tese do fluxo universal, de modo que não se
deve considerar que ele atribuiu a Heráclito uma versão excessivamente reduzida
ou distorcida do heraclitismo. A terceira é que, tenham ou não razão os estudiosos
que afirmam que Platão concordou com versões mais ou menos extremadas do
mobilismo heraclítico em períodos mais ou menos longos de sua vida, o fato é
que, no Teeteto, Platão critica somente o heraclitismo exagerado, dando a
entender que está aceitando e considerando respeitável a versão moderada da
teoria do fluxo universal, tal como defendida por Heráclito.
30

2.

Heráclito e o conhecimento: o conflito aparente


entre os fragmentos e o testemunho de Platão

2.1

A questão do conhecimento em Heráclito

A leitura de Heráclito feita por Platão em seus diálogos pode provocar,


num primeiro momento, uma enorme admiração e muito estranhamento. No
Teeteto, por exemplo, a interpretação dada à teoria do fluxo leva a filosofia
heraclítica a fornecer fundamentos ao relativismo de Protágoras e a implicar, no
fim das contas, a impossibilidade do conhecimento e da linguagem. O
estranhamento é produzido quando vemos que aquilo que Heráclito, em seus
fragmentos, exige de “comum” ao conteúdo de nossos conhecimentos, aquilo que
ele afirma ser o único objeto possível de conhecimento, mostra que, ao contrário,
ele mais provavelmente se aliaria a Platão contra o relativismo de Protágoras e o
radicalismo dos auto-intitulados heraclíticos, e a favor da idéia de que o
conhecimento e a linguagem são possíveis.

Em minha dissertação de mestrado, estudei os fragmentos de Heráclito


com o objetivo de compreender a visão heraclítica acerca da possibilidade, do
objeto e do processo de aquisição do conhecimento.28 Vários fragmentos mostram
que a questão do conhecimento foi tematizada explicitamente por Heráclito e que

28
Ver Ana Flaksman, A Questão do Conhecimento em Heráclito (Rio de Janeiro, Puc-Rio,
Dissertação de Mestrado, 2001).
31

a possibilidade e a importância do conhecimento foram por ele afirmadas. Se, por


um lado, o exame da questão do conhecimento em Heráclito diz respeito à
formulação de sua ontologia, ao mobilismo nela presente, e aos efeitos desse
mobilismo para o conhecimento, por outro, ele também diz respeito aos
fragmentos em que o problema do conhecimento é expressamente chamado à
baila. E foi principalmente nesses fragmentos que me concentrei.

De fato, um grande número dos fragmentos de Heráclito se refere


diretamente à sabedoria e à ignorância, à compreensão e reconhecimento do lógos,
à função cognitiva da alma, à importância – mas também à insuficiência – dos
sentidos e da sensação para o conhecimento. E os fragmentos mostram que
Heráclito afirmou a possibilidade do saber, criticou veementemente a ignorância
dos homens e formulou enunciados para sustentar sua pretensão e reivindicação
de conhecimento.

Reconheci em minha dissertação – e penso ser bom lembrar aqui – que


Heráclito não formulou as questões relativas à cognição isolando-as ou separando-
as das questões éticas ou ontológicas, por exemplo. Portanto, quando trato da
“questão do conhecimento” em Heráclito, esse “recorte temático” é feito com a
consideração de que diversas noções epistemológicas têm também significado
ético e ontológico, como, por exemplo, as noções heraclíticas fundamentais de
sophía e lógos.

Neste capítulo, retomarei e apresentarei alguns elementos do exame dos


fragmentos de Heráclito que realizei em minha dissertação, para deles procurar
extrair a visão heraclítica a respeito da possibilidade, do objeto e do processo de
aquisição do conhecimento. Feito isto, buscarei mostrar de que modo essa visão
de Heráclito contrasta com o relativismo e o “ceticismo”29 que são vinculados às
teses heraclíticas apresentadas no Teeteto. Esse contraste tornará patente a

29
É claro que Platão não se refere (pois sequer poderia fazê-lo) ao ceticismo e à tradição cética
propriamente ditos. Entretanto, numa primeira leitura do Teeteto, pode-se muito bem pensar que
ele aponta para aspectos da filosofia heraclítica que, mais tarde, seriam considerados parte da
temática cética. Vale lembrar que, mesmo que Sexto Empírico tenha buscado, em suas obras,
distinguir o ceticismo “autêntico” (pirrônico ou suspensivo) de “ceticismos” impropriamente
denominados, houve outras concepções e versões de ceticismo no próprio seio da tradição cética:
mesmo a afirmação ou conclusão de que o conhecimento é impossível (que seria tomada como
uma forma de dogmatismo negativo pelos pirrônicos) poderia ser considerada parte da via cética
por outros.
32

necessidade de uma análise mais detalhada deste diálogo, bem como de uma
distinção entre as teses expressamente formuladas por Heráclito ou a ele
atribuídas, as teses sustentadas pelos seguidores que distorceram e estenderam
muito suas idéias, e as teses que podem ser ou deduzidas a partir das doutrinas
heraclíticas ou a elas filiadas, por encontrarem nessas doutrinas ao menos uma de
suas condições e um de seus fundamentos.

2.2

O lógos heraclítico

Quando nos defrontamos com os fragmentos de Heráclito, percebemos


logo a necessidade de investigar a natureza, os significados e as dificuldades
encontradas na interpretação e tradução do termo lógos. Muitos intérpretes
oferecem em seus estudos pequenos sumários dos significados de lógos, desde sua
origem etimológica até seus usos correntes na época de Heráclito. Essas
observações não são suficientes para esgotar os significados de lógos em
Heráclito, mas são importantes para a sua compreensão, pois, por mais que
Heráclito o torne um conceito peculiar de sua filosofia, ele não o dissocia de seu
uso ordinário.

A raiz da palavra lógos, leg-, implica basicamente os sentidos de


“colher” e “selecionar”. Daí viria o significado de lógos como “cálculo”, e então
os sentidos de “medida” e “proporção”. Esse grupo de significados seria ao
menos tão primário quanto as acepções de “enunciado” ou “discurso”. Outro
desenvolvimento levaria aos sentidos de “fórmula”, “plano” ou “lei”.30 E haveria
ainda mais sentidos correntes do termo lógos no tempo de Heráclito, tais como
“valor”, “reputação”, “fama”, “causa”, “motivo”, “argumento” e “a verdade sobre
uma questão”.31

30
Cf. o sumário de significados apresentado por G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments
(op. cit.), p. 38.
31
Cf. W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 1, p. 420-424.
33

De fato, parece haver consenso entre os estudiosos que no fragmento 39


de Heráclito32 – “Em Priene nasceu Bias, filho de Teutames; seu lógos é maior
que o dos demais.33” – lógos está evidentemente ligado aos sentidos de “valor”,
“fama” e “reputação”. A grande maioria dos autores traduz e/ou interpreta lógos
neste fragmento recorrendo a um desses termos, ou a um sinônimo qualquer. Não
há também muita polêmica ou dificuldade em torno da tradução e interpretação de
lógos no fragmento 31, que diz: “Transformações do fogo: primeiro, mar; do mar,
metade terra, metade ardência. O mar distende-se e mede-se no mesmo lógos, tal
como era antes de se tornar terra.”34 O lógos, aqui, é em geral traduzido e
interpretado como “medida” e “proporção”.

Os intérpretes de Heráclito em geral – tanto aqueles que consideraram a


ordenação do discurso heraclítico um elemento fundamental para a apreensão de
seu significado total, dividindo-o e organizando-o com o fim de favorecer sua
concepção como um todo orgânico, quanto aqueles que, como Diels, acreditaram
no estilo aforístico da obra heraclítica e na ausência de uma ordem deliberada que
ligasse os aforismos uns aos outros – concordam que o fragmento numerado por
Diels35 como fragmento 1, por sua composição e conteúdo, constituía a abertura
ou proêmio do livro de Heráclito. O livro de Heráclito, portanto, começaria assim:

Deste lógos, sendo sempre, são os homens ignorantes tanto


antes de ouvir como depois de o ouvirem; todas as coisas vêm a ser
segundo este lógos, e ainda assim parecem inexperientes, embora se
experimentem nestas palavras e ações, tais quais eu exponho,
distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se

32
Nesta tese, utilizarei a numeração e a edição dos fragmentos de Heráclito estabelecidas por
Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (op. cit.), bem como utilizarei
a tradução dos fragmentos realizada e publicada por Alexandre Costa, Heráclito: Fragmentos
Contextualizados (Rio de Janeiro, Difel, 2002). Toda alteração por mim realizada nesta tradução
dos fragmentos será indicada em nota.
33
Fragmento 39: e)n Prih/nv Bi¿aj e)ge/neto o( Teuta/mew, ou ple/iwn lo/goj hÄ tw½n
aÃllwn.
34
Fragmento 31: puro\j tropaiì: prw½ton qa/lassa, qala/sshj de\ to\ me\n hÀmisu gh=, to\
de\ hÀmisu prhsth/r. qa/lassa diaxe/etai kaiì metre/etai ei¹j to\n au)to\n lo/gon o(koiÍoj
pro/sqen hÅn hÄ gene/sqai gh=.
35
H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (op. cit.), p. 150.
34

comporta. Aos outros homens, encobre-se tanto o que fazem


acordados, como esquecem o que fazem dormindo.36

Uma das primeiras dificuldades que se apresentam na interpretação deste


fragmento está relacionada à sua construção sintática. Já Aristóteles notou a
ambigüidade ali presente, sem porém resolvê-la.37 A dificuldade a que Aristóteles
se refere está presente na possibilidade de ligarmos o advérbio sempre (aeì) tanto
ao particípio sendo (eóntos) quanto ao adjetivo ignorantes (axýnetoi). Ou seja, não
é fácil definir se Heráclito teria afirmado que o lógos é sempre ou que os homens
são sempre ignorantes. Na tradução apresentada, o advérbio aeì está sendo ligado
ao particípio eóntos, o que me parece se justificar se relacionarmos o fragmento 1
a outros fragmentos.

Antes de estabelecer essa relação, porém, partamos para a interpretação


da tradução do fragmento apresentada. Atentando para as primeiras palavras do
fragmento, “Deste lógos” (toû dé lógou), vemos que a expressão é uma auto-
referência, uma introdução da própria obra.38 O lógos, portanto, ao designar as
palavras, ou a obra cuja exposição se iniciava, teria primeiramente o sentido de

36
Fragmento 1: tou= de\ lo/gou tou=d’ e)o/ntoj a)ei\ a)cu/netoi gi¿nontai aÃnqrwpoi kaiì
pro/sqen hÄ a)kou=sai kaiì a)kou/santej to\ prw½ton: ginome/nwn ga\r pa/ntwn kata\ to\n
lo/gon to/nde a)pei¿roisin e)oi¿kasi, peirw¯menoi kai\ e)pe/wn kaiì eÃrgwn toioute/wn,
o(koi¿wn e)gwÜ dihgeu=mai kata\ fu/sin diaire/wn eÀkaston kaiì fra/zwn oÀkwj eÃxei.
tou\j de\ aÃllouj a)nqrw¯pouj lanqa/nei o(ko/sa e)gerqe/ntej poiou=sin, oÀkwsper o(ko/sa
euÀdontej e)pilanqa/nontai.
37
Aristóteles diz o seguinte: “É uma regra geral que uma composição escrita deva ser fácil de ler e
portanto fácil de transmitir. Isso não pode ocorrer onde há muitas palavras ou expressões
conectivas, ou onde a pontuação é difícil, como nos escritos de Heráclito. Pontuar Heráclito não é
tarefa fácil, pois freqüentemente não podemos dizer se uma palavra determinada está ligada à que
a precede ou à que a segue. Assim na abertura de seu livro ele diz [segue o fragmento 1]”. ὅλως
δὲ δεῖ εὐανάγνωστον εἶναι τὸ γεγραµµένον καὶ εὔφραστον· ἔστιν δὲ τὸ αὐτό· ὅπερ οἱ
πολλοὶ σύνδεσµοι οὐκ ἔχουσιν, οὐδ’ ἃ µὴ ῥᾴδιον διαστίξαι, ὥσπερ τὰ Ἡρακλείτου. τὰ
γὰρ Ἡρακλείτου διαστίξαι ἔργον διὰ τὸ ἄδηλον εἶναι ποτέρῳ πρόσκειται, τῷ ὕστερον ἢ
τῷ πρότερον, οἷον εἶναι ποτέρῳ πρόσκειται, τῷ ὕστερον ἢ τῷ πρότερον, οἷον ἐν τῇ ἀρχῇ
αὐτῇ τοῦ συγγράµµατος· φησὶ γὰρ (Aristóteles, Retórica, 1407 b11).
38
Muitos comentadores concordam que o fato de Heráclito iniciar seu discurso falando “desse
lógos” indica que ele está se referindo a seu próprio lógos, à sua própria obra, a seu próprio
discurso. A expressão poderia ser interpretada como “Este discurso que estou agora iniciando...”.
Vale sublinhar que a tradição literária da historie jônica costumava fazer referência ao próprio
discurso na apresentação das obras. Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.),
p. 66-67).
35

“discurso”, “expressão verbal”, “palavra”. Esse discurso, por sua vez, seria a
expressão peculiar do pensamento de um homem particular, a saber, Heráclito.
No fragmento 108, “De quantos ouvi os lógous nenhum chega a ponto de
conhecer o que, de todas as coisas apartado, é sábio”,39 também podemos
observar o uso do termo lógos com o sentido claro e consensual de “discurso” ou
“expressão verbal”. Portanto, até este ponto podemos afirmar que o termo lógos é
usado por Heráclito reiteradamente com o sentido de “discurso”.

Entretanto, quando seguimos analisando o fragmento 1, nos deparamos


com as palavras eóntos aeì, que vão apresentar aquele mesmo lógou – que foi
antecedido pelo pronome demonstrativo “este” – como aquilo “que é sempre”. Se
observávamos há pouco que o lógos é a palavra contingente expressa por um
homem particular, agora nos deparamos com a afirmação de que ele é eterno.
Além disso, o fragmento também afirma que “todas as coisas vêm a ser segundo
este lógos”. Muito embora observemos novamente a ocorrência do pronome
demonstrativo “este”, o fato de a passagem afirmar que “todas as coisas vêm a ser
segundo este lógos” retira-lhe todo o caráter contingente e particular. Um lógos
que determina o vir a ser de todas as coisas não pode ser senão comum e, como o
fragmento explicita, eterno.40

Outro ponto importante a ser observado no fragmento 1 é a afirmação de


que os homens são ignorantes “tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem”.
Se tomarmos o lógos neste trecho simplesmente como o discurso de Heráclito,
não poderemos responder à seguinte questão: como os homens poderiam tê-lo
compreendido antes de o terem ouvido? O lógos, para poder ter sido
compreendido pelos homens antes de o discurso de Heráclito ser proferido, teria

39
Fragmento 108: o(ko/swn lo/gouj hÃkousa, ou)deiìj a)fiknei=tai e)j tou=to, wÐste
ginw¯skein oÀti sofo/n e)sti pa/ntwn kexwrisme/non. Em nota referente à sua tradução deste
fragmento, na qual, em vez de “lógous” , se lê “discurso”, Alexandre Costa (Heráclito.
Fragmentos Contextualizados, op. cit.) declara ter aberto uma exceção à sua resolução de não
traduzir o termo lógos, afirmando que “o contexto torna evidente o sentido de ‘discurso’”.
Concordo com Costa, mas prefiro manter lógos sempre na forma original, apresentando seu
sentido não em traduções, mas em comentários.
40
Nesta abordagem do fragmento 1 e da tensão entre dois lógoi distintos, um particular e um
comum, devo muito a uma série de textos, especialmente a Alexandre Costa, Thánatos: Da
Possibilidade de um Conceito de Morte a partir do Lógos Heraclítico (Porto Alegre, EdPUCRS,
1999), cap. 1.
36

de ter estado disponível e acessível a eles, independentemente de um discurso


particular. Portanto, o lógos não pode ser somente o discurso de Heráclito.

Vemos, então, que há um contraste e uma tensão entre os dois lógoi que
se mostram presentes no fragmento 1, isto é, entre o lógos particular (de
Heráclito) e o lógos comum e eterno. Será possível conciliá-los? Parece que sim,
pois o contraste entre a natureza de ambos os lógoi não implica uma discordância
ou incompatibilidade. Se considerarmos que o lógos de Heráclito é fruto e
portador de sua compreensão efetiva do lógos comum, “segundo o qual todas as
coisas vêm a ser”, concordaremos que seu discurso particular estará de acordo
com o lógos comum; não estará simplesmente com ele contrastado, mas antes,
estará unido a ele, e até certo ponto com ele fundido e identificado. Portanto, já
vemos a insinuação de que os lógoi comum e particular podem concordar em seu
conteúdo e que, se são distintos em sua natureza, não são por isso simplesmente
opostos e excludentes. Quando Heráclito critica os homens por não
compreenderem o lógos, parece estar fazendo uma dupla advertência: em
primeiro lugar, mesmo sendo o lógos aquilo segundo o que todas as coisas vêm a
ser, os homens falham em compreendê-lo; em segundo lugar, mesmo com
Heráclito expressando o lógos comum em palavras, ainda assim os homens
falham em sua compreensão.

Voltando à questão da ambigüidade apontada por Aristóteles, se


atribuirmos aeì a eóntos, veremos que a implicação desta afirmação, a saber, de
que o lógos é sempre, será confirmada pelo fragmento 1 em conjunto com os
fragmentos 75 e 30. Diz o fragmento 75: “Os que dormem são operários e
cooperadores nas coisas que vêm a ser no cosmo.”41 O fragmento 1 diz que as
coisas vêm a ser segundo o lógos, e o fragmento 75 afirma que as coisas vêm a
ser no cosmo. Se for possível afirmar que o cosmo é sempre, isto é, que as coisas
vêm a ser sempre, tornar-se-á evidente que o lógos terá de ser sempre, pois como
todas as coisas poderiam sempre vir a ser, se aquilo sob cuja medida elas vêm a
ser não fosse também sempre? E, como veremos, a afirmação de que o cosmo é
sempre é feita no fragmento 30: “O cosmo, o mesmo para todos, não o fez

41
Fragmento 75: tou\j kaqeu/dontaj (oiåmai o( ¸Hra/kleitoj) e)rga/taj eiånai le/gei kaiì
sunergou\j tw½n e)n t%½ ko/sm% ginome/nwn.
37

nenhum dos deuses nem nenhum dos homens, mas sempre (aeì) foi, é e será fogo
sempre vivo, acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.”42

Por outro lado, creio não ser preferível associar aeì a axýnetoi, pois,
embora entenda que se pode compreender esse “sempre ignorantes” em um
sentido não literal, fatalista ou universal, há fragmentos suficientes que destacam e
criticam a ignorância humana, sem dar margem, como essa expressão daria, à
idéia de uma impossibilidade de compreensão própria da natureza humana.
Vejamos dois fragmentos, 116 e 113, em que Heráclito afirma a possibilidade
cognitiva comum aos homens. Diz o fragmento 116: “Em todos os homens está o
conhecer (ginóskein) a si mesmo e bem-pensar (sophronein).”43 O conhecer a si
mesmo e o bem-pensar pertencem a todo homem, mas isso não impede que
poucos se interessem em efetivar tais capacidades e que raros sejam os que
realmente atingem o resultado de tais atividades, a saber, o autoconhecimento e o
pensamento sensato. As capacidades de pensar sensatamente e de se autoconhecer
podem permanecer irrealizadas, adormecidas, esquecidas. O fragmento 113, ao
afirmar que “O pensar (phronéein) é comum a todos”,44 também indica que o
pensar é de todo homem “por direito”, o que não garante que os homens o
exercitem de modo adequado, do único modo que pode caracterizar a
compreensão do lógos. Mais adiante serão analisados outros fragmentos em que o
termo “pensar” também aparece, e nos quais veremos ainda mais indícios de que,
se uma tal capacidade é dada ao homem, impedindo qualquer visão determinista
sobre sua ignorância, a realização dessa capacidade requer um empenho
específico, do qual o homem pode ou não se esquivar e do qual sua compreensão
do lógos dependerá.

Podemos observar, na análise do fragmento 1 e nas palavras de alguns


comentadores, a dificuldade implicada na tradução da palavra lógos, pois ela
parece designar duas “coisas” distintas em sua natureza.45 Se o lógos for traduzido

42
Fragmento 30: ko/smon, to\n au)to\n a(pa/ntwn, ouÃte tij qew½n ouÃte a)nqrw¯pwn
e)poi¿hsen, a)ll' hÅn a)eiì kaiì eÃstin kaiì eÃstai pu=r a)ei¿zwon, a(pto/menon me/tra
kaiì a)posbennu/menon me/tra.
43
Fragmento 116: a)nqrw¯poisi pa=si me/testi ginw¯skein e(wutou\j kaiì swfroneiÍn.
44
Fragmento 113: cuno/n e)sti pa=si to\ frone/ein.
45
Kirk, Gurthrie e Berge mantêm a palavra lógos, no fragmento 1, sem tradução, enquanto Kahn a
38

simplesmente por “discurso”, como fazem alguns, corre-se o risco de dar a


entender que o lógos é apenas o discurso verbal, particular, contingente de
Heráclito. Entretanto, há quem o faça com esse propósito deliberado. Conche,46
por exemplo, além de afirmar que em todos os fragmentos é possível entender o
termo lógos como “discurso”, diz que na maior parte dos fragmentos é possível
entendê-lo como “discurso verdadeiro”. Esse autor não atribui ao lógos nenhum
sentido próximo dos de “lei”, “fórmula”, “estrutura” ou “princípio regulador” das
coisas que vêm a ser – como fazem muitos outros autores, na tentativa de resumir
e expressar o significado do lógos comum do fragmento 1. O conteúdo objetivo
do discurso verdadeiro não seria o lógos, e sim a “lei” da unidade dos opostos,
tema diversas vezes mencionado por Heráclito. Para Conche, não há problema em
afirmar que Heráclito declarou que “todas as coisas vêm a ser segundo este
discurso”, pois aí não estaria dito que todas as coisas vêm a ser em função ou sob
a medida de um discurso contingente, mas que vêm a ser exatamente do mesmo
modo como o discurso contingente descreve ou expressa. Essa concepção do
lógos é a que, podemos assim dizer, lhe atribui uma natureza “lingüística”. Ou
seja, o lógos não teria realidade independente, nem se distinguiria dos discursos
contingentes e verbais. Seria sempre um discurso verbal e descreveria, se
verdadeiro, a lei da unidade dos contrários, que seria, esta sim, o princípio
regulador de todas as coisas.

Há, entretanto, quem veja a questão com outros olhos. Muitos intérpretes
vão afirmar a tensão e diferença entre o lógos que é discurso verbal e o lógos que
não se pode restringir a ele, que é dele independente, que regula, dirige e governa
o vir a ser das coisas e que, ao ser compreendido, revela a “lógica”, a
“racionalidade”, a “estrutura”, o “princípio ordenador” em função dos quais todas
as coisas vêm a ser. Nesse sentido, o lógos pode ser concebido como uma “lei”,

traduz por account. Cf. G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 35; W. K. C.
Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 1, p. 424; Damião Berge, O Logos
Heraclítico (Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1969), p. 62-89; e Charles H. Kahn, The
Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 93-100. Bollack e Wissmann traduzirão lógos, no
fragmento 1, por “discurso”, mas dirão que o termo grego guarda, neste fragmento, dois aspectos
em tensão: o discurso ou a palavra contingente, e o conteúdo objetivo e eterno desse discurso. Cf.
Jean Bollack e Heinz Wismann, Héraclite ou la Séparation (Paris, Minuit, [1972] 1995), p. 59-64.
46
Cf. Marcel Conche, Héraclite: Fragments (op. cit.), p. 23-28.
39

que pode ser descoberta, nomeada e descrita pelos homens (assim como, grosso
modo, a lei da gravidade ganha compreensão, nome e descrição em um discurso
científico contingente), mas que existe e sempre existiu independentemente deles
e que, aliás, os engloba. Esta seria, como Conche propõe chamar, a interpretação
“ontológica” do lógos.47

Com base nas análises precedentes do fragmento 1, creio que o lógos,


nesse fragmento, não apresenta uma natureza nem puramente “lingüística”, nem
puramente “ontológica”. E essa complexidade de sua natureza aparecerá
novamente no fragmento 2: “Embora sendo o lógos comum, a massa vive como se
tivesse um pensamento (phrónesin) particular.”48 Neste fragmento, vemos que a
palavra lógos vem seguida pelo adjetivo comum (xynoû), que a qualifica de
acordo com a “universalidade” ou comunidade também observada no fragmento
1. Novamente parece que Heráclito afirma que o lógos não pode se restringir à
particularidade ou contingência de uma natureza puramente lingüística. Vale
notar, entretanto, que, se Heráclito determina a natureza desse lógos fazendo-o ser
acompanhado por um adjetivo, deve supor a existência de uma espécie distinta de
lógos, a saber, de um lógos de tipo contingente, particular.

Se Heráclito alude aqui à existência de um lógos particular, vemos que


ele faz, ainda neste fragmento, um jogo de oposição explícita, usando os adjetivos
comum e particular. Mas já não é o lógos que é qualificado como particular, e sim
a phrónesis, o pensamento. O que está em jogo nesse contraste entre o lógos
comum e o pensamento particular é novamente a crítica à ignorância, pois
Heráclito sustenta mais uma vez que os homens podem compreender o lógos
comum, isto é, podem pensar de acordo com esse lógos, mas não se interessam em
compreendê-lo, não filiam suas idéias à comunidade representada pelo lógos, e
consideram que seus pensamentos são privados, independentes e não-referidos ao
lógos comum. Se este fragmento trata explicitamente do lógos comum – objeto
por excelência do conhecimento – e da ignorância – o pensamento equivocado –,
trata também, implicitamente, do lógos particular – que pode concordar ou

47
Cf. M. Conche, Héraclite: Fragments (op. cit.), p. 23.
48
Fragmento 2: tou= lo/gou d' e)o/ntoj cunou= zw¯ousin oi¸ polloiì w¨j i¹di¿an eÃxontej
fro/nhsin.
40

discordar do lógos comum – e do pensamento consoante com o lógos –


pensamento particular na medida em que é humano, mas que não se toma por
privado (idían), posto que não ignora o lógos comum. Vemos então mais uma vez
que, se por um lado os pensamentos e discursos dos homens são por natureza
particulares e contingentes, não estão fadados ao equívoco, nem ao relativismo,
perspectivismo ou parcialidade, mas podem carregar e expressar, em sua
particularidade, a “universalidade” do lógos comum.

Todavia, se o entendimento e as palavras dos homens não são


equivocados por uma fatalidade, ainda assim a possibilidade do conhecimento não
fornece uma garantia de sua efetivação. Essa impossibilidade de implicação do
comportamento compreensivo na capacidade de pensamento de todo homem é
confirmada pelo fragmento 17: “Não pensam (phronéousi) tais coisas aqueles que
as encontram (enkyrseúousin), nem mesmo quando aprendidas (mathóntes) as
reconhecem (ginóskousin), mas a si mesmos lhes parece (dokéousi).”49 Embora o
pensar seja comum a todos, os homens não pensam as coisas que encontram.

Este fragmento confirma a idéia de que a capacidade de pensar não


garante sua efetivação, e vai ainda além. O que são as coisas que os homens
encontram? São as coisas que vêm a ser segundo o lógos (fragmento 1) e que
podem assim ser reconhecidas se, além de simplesmente encontradas ou
aprendidas, forem também pensadas. O verbo “encontram”, como indicam muitos
autores, sugere o contato físico e, portanto, a apreensão sensível resultante desse
tipo de contato. Já o termo “aprendidas”, que também aparece nos fragmentos 55
e 40, sugere não apenas uma apreensão sensível, mas um entendimento dela
derivado. Esse entendimento, no entanto, não significa necessariamente uma
compreensão efetiva do lógos. Portanto, por mais que os homens sintam e
aprendam coisas, não conseguem reconhecê-las. Eles não pensam adequadamente
as coisas que encontram, mas formam uma opinião sobre elas, produzindo um
entendimento que não é consoante com a compreensão do lógos.

Em uma de suas críticas à ignorância dos homens, Heráclito torna a


afirmar que o aprendizado não garante que dele resulte saber, inteligência,

49
Fragmento 17: ou) frone/ousi toiau=ta polloi,ì o(ko/soi e)gkurseu/ousin, ou)de\ maqo/ntej
ginw¯skousin, e(wutoiÍsi de\ doke/ousi.
41

conhecimento. Nessa crítica, entretanto, Heráclito não fala da massa dos homens
anônimos, e sim de algumas das maiores autoridades entre os gregos, de homens
reconhecidos por sua sabedoria em toda a Grécia. Diz o fragmento 40: “Muito
aprendizado não ensina saber, pois teria ensinado a Hesíodo e a Pitágoras,
também a Xenófanes e a Hecateu.”50 O fragmento se inicia justamente afirmando
que o aprendizado, mesmo que realizado ininterruptamente, em grande quantidade
e variedade, não ensina o tipo de entendimento que caracteriza a inteligência, o
saber. Além de afirmar que a compreensão do lógos, o único tipo de cognição que
pode levar ao efetivo saber, ao efetivo conhecimento, não pode ser conquistada
pelo mero acúmulo de experiências, nem por um tipo desarrazoado de idéias delas
extraídas, o fragmento indica que o homem não se deve fiar nas autoridades por si
mesmas ou por terem elas legado aquilo que é tido pela coletividade como o mais
alto conhecimento. Heráclito não parece temer ou hesitar em recusar e criticar os
“saberes”, os “tesouros”, os discursos dos grandes mestres da tradição.

No fragmento 50, Heráclito anuncia o que deve ser feito para alcançar a
sabedoria. O fragmento diz: “Ouvindo não a mim, mas ao lógos, é sábio
concordar ser tudo um.”51 Aqueles que entendem que o lógos é o discurso de
Heráclito, e nada mais, consideram que a advertência “ouvindo não a mim mas ao
lógos” significa que ele está mostrando que a verdade de seu discurso não deve
ser atribuída à sua autoridade, à sua pessoa. Os homens devem desconsiderar tal
autoridade e, aí sim, dar ouvidos ao seu discurso, que, por revelar a verdade
objetiva e comum, vale por si mesmo. Por outro lado, há interpretes – e é nesse
grupo que me incluo – que enxergam nesse lógos novamente a tensão e fusão do
discurso de Heráclito com o lógos comum, afirmando que a oração “ouvindo não
a mim mas ao lógos” indica tanto que Heráclito exorta os homens a ouvir um
discurso independentemente da autoridade de quem o enuncia, quanto que ele os
conclama a ouvir o lógos “segundo o qual todas as coisas vêm a ser” (fragmento
1), que, por ser comum, é a única “coisa” a que os homens devem dar ouvidos.

50
Fragmento 40: polumaqi¿h no/on ou) dida/skei: ¸Hsi¿odon ga\r aÄn e)di¿dace kaiì
Puqago/rhn, auÅti¿j te Cenofa/nea/ te kaiì ¸EkataiÍon.
51
Fragmento 50: ou)k e)mou= a)lla\V tou= lo/gou a)kou/santaj o(mologei=n sofo/n e)stin
e(\n pa/nta ei=)nai. Alexandre Costa traduz hén pánta por “tudo-um” e explica, em nota, o uso
do hífen entre os dois termos. Preferi, todavia, manter as duas palavras separadas, lado a lado, sem
42

O homem é ou não é sábio em função de sua escuta e de sua disposição


após a escuta. Ouvir o lógos é o que leva o homem a concordar, a fazer a coisa
sábia, a tornar-se sábio, a alcançar a sabedoria. Portanto, a sabedoria se dá e se
revela na concordância com o lógos. Ao falar da concordância (homología),
Heráclito explicita uma possibilidade de conformação do pensamento e do
discurso humanos ao lógos comum. A palavra homología e a ação de homologar
expressam a capacidade própria do homem de dizer “o mesmo que o lógos
comum”.

Atentemos agora para o uso heraclítico do verbo “ouvir”, que aparece em


diversos fragmentos, entre eles o fragmento 1 – “tanto antes de ouvir como depois
de o ouvirem” – e o fragmento 50 – “ouvindo não a mim mas ao lógos”. No caso
dos intérpretes que sustentam que o lógos é apenas o discurso de Heráclito, não
parece haver nenhum problema em considerar que o lógos deve ser ouvido.
Entretanto, se entendemos que o lógos em jogo nesses fragmentos é também o
lógos que não pode se restringir a um discurso verbal, torna-se evidente que o
verbo “ouvir” está sendo usado em outro sentido que não o de perceber
sensivelmente os sons ou a voz em que são enunciadas determinadas palavras.

Esse impasse é resolvido, por alguns, com o recurso à polissemia do


verbo akoúo, que também pode significar “obedecer” e “acolher”, o que levaria à
idéia de que os homens devem atentar para o lógos comum, acatá-lo e acolhê-lo.
De todo modo, mesmo quando se interpreta o lógos como um discurso verbal, o
“ouvir” a que Heráclito se refere não pode designar somente o exercício da
audição, entendida como a faculdade sensível de perceber sons. Heráclito, tanto
no fragmento 1 quanto no fragmento 50, não só indica o que deve ser ouvido, a
saber, o lógos comum e o discurso que o expressa, como também mostra que há
modos de ouvir, a saber, há um tipo de audição que leva à compreensão, à
sabedoria, e um outro tipo de audição que não leva a conhecimento algum. Essa
argumentação se confirmará se observarmos o fragmento 34: “Ignorantes:
ouvindo, parecem surdos; o dito lhes atesta: presentes, estão ausentes.”52 A

conectivos ou sinais entre elas, como no original grego.


52
Fragmento 34: a)cu/netoi: a)kou/santej kwfoiÍjin e)oi¿kasi: fa/tij au)toiÍsin martureiÍ:
pareo/ntaj a)peiÍnai.
43

ignorância é definida aqui como a audição que, não levando a compreensão


alguma, vale tão pouco quanto a ausência de audição dos surdos. Portanto,
podemos concluir que Heráclito afirma que a superação da ignorância, isto é, a
escalada em direção à sabedoria e ao conhecimento envolve mais do que o
simples ouvir: envolve saber a que se deve “dar ouvidos” – ou seja, distinguir o
objeto ou fonte preeminente de conhecimento – e “saber ouvir” – um ouvir
inteligente, que vá além da mera afirmação da sensação momentânea e que
conduza à compreensão do que se ouve.

O fragmento 72 enuncia: “Do lógos com que constantemente lidam,


divergem, e as coisas que a cada dia encontram revelam-se-lhes estranhas.”53
Podemos ver aqui a confirmação de que o convívio e a lida dos homens com o
lógos é constante e inevitável. Portanto, é inadequado não só afirmar que os
homens são ignorantes por uma fatalidade, destino ou Moira, como supor ou
sustentar que alguns homens têm, por natureza, independentemente de seu
empenho, acesso privilegiado ao lógos, que o lógos se aproxima apenas de alguns
para contar em seus ouvidos, ou revelar de outro modo, algum segredo.

O contato com o lógos é irrevogável, pois os homens vivem – assim


como todas as coisas – no cosmo (fragmento 30), e ambos, homens e coisas, vêm
a ser segundo o lógos (fragmento 1). Portanto, em tudo o que o homem encontra e
em tudo aquilo com que lida, ele estará irremediavelmente se encontrando e
lidando com o lógos. Todavia, a relação do homem com o lógos – e por
conseguinte com todas as coisas –, como vimos, pode ser marcada pela
compreensão ou pela ignorância, pela concordância ou pela divergência, e por isso
o fragmento afirma, dos homens ignorantes, que eles estranham as coisas que
encontram – ou, como se vê no fragmento 17, não as reconhecem.

Atentemos agora para o fragmento 114, que diz: “Para falar com saber é
necessário apoiar-se sobre a comunidade de todas as coisas, como a cidade sobre a
lei e ainda mais vigorosamente. Porque todas as leis humanas são alimentadas por
uma lei una, a divina; pois exerce seu domínio tão longe quanto se consente, e

53
Fragmento 72: %Ò ma/lista dihnekw½j o(milou=si lo/g%, t%½ ta\ oÀla dioikou=nti,
tou/t% diafe/rontai, kaiì oiâj kaq' h(me/ran e)gkurou=si, tau=ta au)toiÍj ce/na fai¿netai.
44

basta e envolve a todas as outras.”54 Este fragmento carrega, logo em sua abertura,
um jogo de palavras bastante sugestivo: “com saber”, em grego xýn nóo, indica
uma equivalência, por sua semelhança fonética, com o “comum”, em grego xyvoû.
Levando em conta essa indicação, podemos crer que o falar inteligente será
sempre similar ao falar de acordo com o lógos comum. O próprio fragmento
confirma a insinuação presente no trocadilho: “Para falar com saber é preciso
apoiar-se sobre a comunidade de todas as coisas” – leia-se, é preciso apoiar-se
sobre o lógos comum.

Se continuamos nos atendo ao que diz o fragmento 114, podemos ainda


notar uma comparação também muito sugestiva a respeito do modo como o
homem deve se apoiar sobre o comum: “como a cidade sobre a lei”. O fragmento
ainda diz que “todas as leis humanas são alimentadas por uma lei una, a divina”. E
nos dá uma boa pista para uma possível interpretação do lógos comum: a lei da
qual todas as leis humanas se nutrem, e sobre a qual as cidades – com suas leis
particulares – e os homens – com suas idéias e discursos particulares – se devem
apoiar. Não é à toa, portanto, que diversos estudiosos tendem a tentar resumir,
definir ou traduzir o lógos comum usando a palavra “lei” ou termos e expressões
similares ou relacionadas como, por exemplo, “princípio regulador”, “fórmula”,
“estrutura”, “plano”, “princípio ordenador”.

Considerando as análises desses fragmentos que versam sobre o lógos,


podemos concluir que Heráclito exortou os homens a superar sua ignorância,
asseverou a existência de um lógos comum e a possibilidade de o homem
compreendê-lo e, ainda, afirmou que a pura afirmação da sensação, isto é, do que
se ouve, vê, sente, se não for integrada a um discernimento inteligente, não será
suficiente para a sua compreensão. Além disso, vimos também que, apesar de o
lógos comum não ser um objeto sensível, ele pode ser compreendido a partir de
uma percepção sensível, como por exemplo a observação acurada das coisas que
se comportam segundo sua “lei”, sua “ordenação”, ou a escuta de um discurso
verdadeiro, isto é, um discurso que seja com ele consoante. Vamos agora ver o

54
Fragmento 114: cu\n no/% le/gontaj i¹sxuri¿zesqai xrh\ t%½ cun%½ pa/ntwn, oÀkwsper
no/m% po/lij kaiì polu\ i¹sxurote/rwj. tre/fontai ga\r pa/ntej oi¸ a)nqrw¯peioi no/moi u(po\
e(no\j tou= qei¿ou: kratei= ga\r tosou=ton o(ko/son e)qe/lei kaiì e)carkei= pa=si kaiì
perigi¿netai.
45

que Heráclito tem a nos dizer sobre a psyché e seu papel na aquisição de
conhecimento.

2.3

A psyché em Heráclito

A concepção dominante de psyché antes de Heráclito era a concepção


homérica. Em Homero, a psyché é a força vital dos homens, é aquilo que os
anima, que os mantém vivos. O significado do substantivo psyché está
diretamente relacionado ao sentido do verbo psýchein, “soprar”, “respirar” e,
portanto, é basicamente “sopro”, “alento”, “princípio vital”. Entretanto, a psyché é
usada em Homero, antes de mais nada, para designar aquilo que abandona o
homem na hora da morte, aquilo que faz dele um ser mortal, e não aquilo que nele
está presente durante a vida. A psyché distingue o homem vivo do cadáver e se,
por um lado, significa “sopro vital”, “vida”, constitui mais enfaticamente o signo
da mortalidade humana, o “sopro” que é expirado pela boca do homem na morte e
que voa então para o Hades. Homero, portanto, se refere antes à psyché dos
mortos que à psyché dos vivos.55

Nem o lugar onde a psyché reside nem o modo como ela atua nos
homens vivos é tematizado nos poemas homéricos, mas, segundo Snell, a psyché
pode ser considerada quase como um órgão que se encontra no homem, assim
como o thymós e o nóos.56 O thymós seria responsável por suscitar os movimentos
e as reações, e estaria referido às emoções, enquanto o nóos seria responsável por

55
Muitos são os autores que tratam desse uso “negativo” de psyché em Homero. Cf., por exemplo,
Bruno Snell, A Descoberta do Espírito (Lisboa, Edições 70, [1975] 1992), p. 28-30; David J.
Furley, “The Early History of the Concept of Soul”, in T. Irwin (ed.), Classical Philosophy:
Collected Papers (New York & London: Garland Publishing, 1995), vol. 1, p. 112; Martha C.
Nussbaum, “Psyché in Heraclitus, I”, in T. Irwin (ed.), Classical Philosophy: Collected (op. cit.),
vol. 1, p. 201-2; Maura Iglésias, “Platão: A Descoberta da Alma”, Boletim do CPA (Campinas,
Unicamp, ano 3, n. 5/6, jan./dez. de 1998), p. 14; e Edward Hussey, “Heraclitus”, in A. A. Long
(ed.), The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy (Cambridge, Cambridge University
Press, 1999), p. 101.
56
B. Snell, A Descoberta do Espírito (op. cit.), p. 28-30.
46

receber impressões, guardar imagens e conhecer, estando referido não


propriamente ao esforço com vista ao conhecimento, mas simplesmente a insights
momentâneos, à percepção que inclui a ocorrência espontânea de um
entendimento. Portanto, vemos que as sedes da emoção e do conhecimento não
pertencem, para Homero, à esfera da psyché, e que esta não pensa ou sente. Essas
diversas atividades humanas são concebidas separadamente, e não como poderes
interconectados, formadores de uma unidade. Também não são referidas ou
relacionadas a uma sede central que as conjugue e reúna.

Os poetas líricos continuaram a usar o termo psyché para designar o


poder animador dos corpos humanos, mas abriram caminho para o surgimento de
uma nova concepção de psyché, como centro ou fonte da personalidade humana.
Na lírica, os poetas surgem pela primeira vez como personalidades, falam de si, de
seus sentimentos pessoais, de conflitos entre emoções.57 Mas, se Homero só via
na psyché o princípio de vida nos homens, e se a poesia lírica valorizou a
personalidade e as tensões da intimidade, sem ainda vinculá-las explicitamente à
psyché, Heráclito apresenta uma nova concepção da psyché a que se atribui, com
razão, uma grande originalidade. No fragmento 67a ele expõe com extrema
clareza o papel central que a psyché desempenha no homem vivo:

Assim como a aranha no centro da teia logo sente quando uma


mosca rompe qualquer fio de sua teia, e, deste modo, corre pressurosa
para lá, como se temesse pela integridade do fio, também a alma do
homem, lesada qualquer parte do corpo, dirige-se rapidamente para lá,
como se não suportasse a lesão do corpo a que está unida firme e
proporcionalmente.58

Heráclito faz uso desta analogia para que possamos entender o modo

57
Ver, para mais considerações sobre a poesia lírica e a noção de psyché, C. H. Kahn, The Art and
Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 126-127; e B. Snell, A Descoberta do Espírito (op. cit.), p. 81-
120.
58
Sicut aranae, ait, stans in medio talae sentit quam cito musca aliquem filum suum corrumpit
itaque illuc celeriter currit quase de fili perfectione dolens, sic hominis anima aliqua parte
corporis laesa, illuc festine meat, quasi impatiens laesionis corporis, cui firme et proportionaliter
iuncta est.
47

como a psyché atua no homem vivo, para que notemos que a psyché não é
simplesmente uma sede “passiva” ou receptiva das impressões corpóreas, e sim o
centro ativo, emanador da ação humana. O exemplo que ele apresenta é a situação
em que essa ação visa a salvaguardar a integridade do corpo, respondendo a uma
lesão corporal. Todos os estímulos e as experiências do corpo estão, para
Heráclito, referidos à psyché, e, portanto, a uma única sede que garante a unidade
e a integridade do indivíduo. Entretanto, a concepção heraclítica da alma não se
restringe à idéia de uma sede meramente central e passiva, e sim remete a uma
sede ou centro extensivo, ativo.

Se as interpretações sobre a noção de psyché baseadas no fragmento 67a


não são unânimes, visto que o fragmento é considerado dúbio ou inautêntico por
alguns autores, a idéia de que Heráclito desenha uma analogia entre o papel do
fogo no cosmo e o da psyché no homem é um ponto sobre o qual há consenso
geral. Mas, antes de tratar dessa analogia, é preciso tematizar, ainda que
resumidamente, o papel do fogo no pensamento de Heráclito.

No fragmento 30, lê-se: “O cosmo, o mesmo para todos, não o fez


nenhum dos deuses nem nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será fogo
sempre vivo, acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.”59
O que podemos notar primeiramente neste fragmento é que o cosmo é descrito
como um fogo, ou seja, é com o fogo identificado. O fato de o fogo se acender e
se apagar segundo medidas mostra que ele se relaciona com, e manifesta, a “lei”
ou “medida” do cosmo. Ou seja, se, de um lado, o fogo se transforma de algum
modo, pois possui a dinâmica do apagar-se e acender-se, de outro, sua dinâmica se
dá segundo medidas, explicitando assim o caráter ordenado da diversidade do
cosmo. O fogo, nesse sentido, equivale à unidade, à totalidade e à ordem do
cosmo.

Por outro lado, se observamos a existência de um apagar-se e acender-se,


vemos insinuar-se a idéia da mudança, das transformações do fogo. O fogo, como
veremos, não só representa a unidade do cosmo, como também é o responsável

59
Fragmento 30: ko/smon, to\n au)to\n a(pa/ntwn, ouÃte tij qew½n ouÃte a)nqrw¯pwn
e)poi¿hsen, a)ll' hÅn a)eiì kaiì eÃstin kaiì eÃstai pu=r a)ei¿zwon, a(pto/menon me/tra kaiì
a)posbennu/menon me/tra.
48

por sua multiplicidade e diversidade de características. Pois é disso que fala o


fragmento 31: “Transformações do fogo: primeiro, mar; do mar, metade terra,
metade ardência. O mar distende-se e mede-se no mesmo lógos, tal como era
antes de se tornar terra.”60 Este fragmento afirma que a diversidade dos
constituintes do cosmo não é nada além de fruto das transformações do fogo.
Todos os elementos são modificações, estágios, graus ou estados distintos do fogo
em seu processo, apagando-se e acendendo-se. Portanto, toda a diversidade se
resume na unidade do fogo. O fogo é o elemento fundamental de todas as coisas, e
pode ser encontrado no cosmo, tanto em sua forma paradigmática quanto em
todos os seus graus, estados ou estágios de menor ardência.

Diversos comentadores consideraram que há uma correspondência entre


a psyché e o fogo em Heráclito com base na analogia evidente entre os processos
descritos nos fragmentos 36 e 31. Diz o fragmento 36: “Para as almas, tornar-se
água é morte; para a água, tornar-se terra é morte; mas da terra nasce água, da
água, alma.”61 No fragmento 36, a seqüência de mortes é alma/psyché-água-terra,
enquanto no fragmento 31, é fogo/pyr-água-terra. A psyché, em um fragmento,
ocupa exatamente o lugar que o fogo tinha no outro. Esse paralelo parece oferecer,
entre outras coisas, grande evidência para a afirmação da natureza ígnea da
psyché.

Mas há também uma relação entre a psyché e a água. O fragmento 118,


“Brilho: alma seca, a mais sábia e melhor”,62 confirma que a água e a psyché são
de alguma maneira opostas, de modo que a água tem um poder deletério sobre a
psyché. Entretanto, este fragmento indica que nem todas as psychai são
completamente ígneas. Portanto, a psyché não é necessariamente ígnea em

60
Fragmento 31: puro\j tropaiì: prw½ton qa/lassa, qala/sshj de\ to\ me\n hÀmisu gh=, to\
de\ hÀmisu prhsth/r. qa/lassa diaxe/etai kaiì metre/etai ei¹j to\n au)to\n lo/gon o(koiÍoj
pro/sqen hÅn hÄ gene/sqai gh=.
61
Fragmento 36: yuxv=sin qa/natoj uÀdwr gene/sqai, uÀdati de\ qa/natoj gh=n gene/sqai,
e)k gh=j de\ uÀdwr gi¿netai, e)c uÀdatoj de\ yuxh»/. Alexandre Costa traduz, neste
fragmento, psychêsin e psychés por “vapores” e “vapor”. Preferi seguir as traduções de G. S. Kirk
(Heraclitus. The Cosmic Fragments, op. cit., p. 339), de C. H. Kahn (The Art and Thought of
Heraclitus, op. cit., p. 237) e de M. Conche (Héraclite. Fragments, op. cit., p. 327), pois creio que
neste fragmento a noção de alma não deixa de estar em jogo nem se dissocia do sentido de psyché.
62
Fragmento 118: au)gh\: chrh\ yuxh\, sofwta/th kaiì a)ri¿sth.
49

Heráclito, mas só idealmente ou possivelmente ígnea. Haveria então gradações da


alma, assim como do fogo.

Quando a psyché for úmida, isso implicará sempre, para o homem, uma
perda proporcional de vitalidade, de autocontrole e de inteligência. É o que
confirma o fragmento 117: “O homem, quando bêbado, é levado por uma criança
impúbere, trôpego, não notando para onde anda, tendo úmida a alma.”63 Este
fragmento oferece forte evidência da associação da psyché com o autocontrole e o
conhecimento. A embriaguez é um estado de reduzidos autocontrole, atenção e
discernimento. Heráclito pode estar empregando uma metáfora, pois nem todo
bêbado é conduzido de fato por uma criança, isto é, por uma criança de carne e
osso. Isso indicaria que o homem bêbado é guiado por uma “criança interna”, a
saber, sua própria faculdade de discernimento num estado de capacidade
diminuída. Isso mostra que, para Heráclito, os homens são guiados por uma sede
ou entidade interna, a saber a psyché, que pode ser mais ou menos competente,
mais ou menos sábia.

O fragmento 117 sugere que a sabedoria da psyché varia em proporção


inversa à sua umidade, enquanto a conexão entre a secura da alma e sua
inteligência é atestada pelo fragmento 118, em que é dito que a alma seca é a mais
sábia e a melhor. Vemos, portanto, que o conhecimento, ou a sabedoria, é
correlato da secura da alma, enquanto a ignorância é correlata da umidade
psíquica. Mas Heráclito parece fazer uma analogia entre a psyché e o fogo não
apenas por sua semelhança de natureza, a natureza ígnea, mas também por ambos
desempenharem o papel de princípio de vida, de integridade e unidade. O fogo
sempre vivo anima o cosmo, ou antes é o cosmo, considerado um ser animado,
assim como a psyché é o princípio vital dos homens.

Essa analogia entre a psyché e o fogo pode ser entendida como uma
analogia entre microcosmo e macrocosmo, isto é, como a identidade de duas
totalidades ígneas e vivas, se tomadas proporcionalmente em suas diferentes
escalas. A analogia do microcosmo e do macrocosmo supõe a idéia de que

63
Fragmento 117: a)nh\r o(ko/tan mequsqv=, aÃgetai u(po\ paido\j a)nh/bou sfallo/menoj,
ou)k e)pai¿+wn oÀkh bai¿nei, u(grh\n th\n yuxh\n eÃxwn.
50

pessoas ou outros fenômenos particulares são de algum modo similares ou


isomórficos a alguma estrutura mais ampla à qual pertencem, especialmente o
cosmo. Em Heráclito, esse princípio de semelhança ou isomorfismo parece
desempenhar um papel muito importante não apenas na relação da psyché com o
fogo, mas também em sua relação com o lógos. Como foi visto, a psyché sábia é
ígnea, enquanto a psyché ignorante é úmida. Vimos também que a psyché sábia é
sábia em virtude de sua apreensão do lógos. O lógos, por sua vez, é a lei do cosmo
ígneo, é a lei segundo a qual o fogo se acende e apaga, o lógos é ele mesmo
intimamente associado ao fogo, é a ele imanente. Mas onde Heráclito fala
explicitamente da associação entre a psyché e o lógos?

Dois fragmentos falam da psyché em conexão com o lógos. O fragmento


115 afirma: “Da alma é um lógos que a si mesmo aumenta.”64 Este fragmento é de
interpretação muito difícil e variada, mas é certo que atribui lógos à psyché. O
aumento do lógos por si mesmo é referido, por uns, por exemplo, ao aumento da
racionalidade em uma psyché cuja proporção de fogo está crescendo; por outros, à
autonomia da psyché, que pode, sem o auxílio dos deuses, se superar em termos
de conhecimento. O fragmento 45 diz: “Não encontrarias os limites da alma,
mesmo todo o caminho percorrendo, tão profundo lógos possui.”65 A primeira
coisa que salta à vista é a ausência de limites da psyché. A outra parte deste
fragmento afirma que a impossibilidade de se encontrar os limites da alma tem
como causa a extrema profundidade do lógos que ela possui. Tal como no
fragmento 115, aqui também a psyché é intimamente associada ao lógos, pois ela
possui lógos, o lógos é a ela imanente. Portanto, vemos que a psyché tem uma
estrutura semelhante à estrutura daquilo que a engloba e que ela pode buscar
conhecer, a saber, do cosmo que, assim como ela, possui lógos.

Um dos fragmentos que mencionam a psyché é de importância capital


para a compreensão do modo como Heráclito concebeu a relação da psyché com o
lógos e com os sentidos. O fragmento é o 107: “Para homens que têm almas

64
Fragmento 115: yuxh=j e)stiì lo/goj e(auto\n auÃcwn».
65
Fragmento 45: yuxh=j pei¿rata i¹wÜn ou)k aÄn e)ceu/roio, pa=san e)piporeuo/menoj
o(do/n: ouÀtw baqu\n lo/gon eÃxei.
51

bárbaras, olhos e ouvidos são más testemunhas.”66 Ao afirmar que homens com
almas bárbaras têm olhos e ouvidos que são más testemunhas (kakoì mártyres),
este fragmento sugere que os homens cujas almas não são bárbaras têm olhos e
ouvidos que são boas testemunhas.

Vale notar que o fragmento 34, anteriormente citado, diz: “Ignorantes:


ouvindo, parecem surdos; o dito lhes atesta: presentes, estão ausentes.” A
incompreensão característica dos ignorantes é explicada em termos de uma
audição que não lhes garante um conhecimento mais preciso do que o dos surdos,
aqueles que nada ouvem. O dito de Heráclito testemunha (martyreî) a ignorância,
a falha epistemológica desses homens. Olhos e ouvidos são más testemunhas
quando os homens se satisfazem simplesmente com as informações por eles
obtidas sem integrá-las ao discernimento inteligente, quando formam opiniões nas
quais simplesmente expressam essas informações e dão testemunho dessas
informações como se elas fossem o próprio conhecimento, acabado e total, da
realidade.

Os olhos e os ouvidos só fornecem testemunho impreciso para aqueles


que não entendem que devem articular, interpretar e compreender esse
testemunho; ou seja, fornecem informações precisas, as quais, se forem tomadas
como equivalentes à efetivação do conhecimento, constituirão então testemunhos
muito imprecisos, muito insuficientes. Portanto, o que está em jogo neste
fragmento não é uma crítica aos sentidos, e sim uma crítica aos homens que
pretendem que o conhecimento lhes seja dado exclusivamente pelos sentidos e
pelo entendimento que os sentidos isoladamente podem produzir.

Somente essa hipótese, a saber, de que olhos e ouvidos devem fornecer


informações acuradas que são, no entanto, mal interpretadas pela psyché permite a
dependência do “testemunhar mal” a “ter uma alma bárbara”, que é evidente no
fragmento. Então, a função da psyché – função esta que a psyché bárbara falha em
levar adiante – é interpretar propriamente a informação confiável, porém
insuficiente, oferecida pelos sentidos. Sexto Empírico, que conservou este
fragmento, diz, antes de citá-lo em Contra os Matemáticos (VII, 126):

66
Fragmento 107: kakoi\ ma/rturej a)nqrw/poisin o)fqalmoi\ kai\ w=)ta barba/rouj yuxa\ς
e)xo/ntwn.
52

Heráclito, tendo considerado que o homem [é dotado] de dois


elementos para o conhecimento da verdade, aísthesis e lógos, diz, a
exemplo dos físicos anteriormente mencionados, que a aísthesis não é
confiável, e adota [portanto] o lógos como critério. A aísthesis,
contudo, censura expressamente, dizendo: [segue o fragmento 107].67

Sexto Empírico afirma que Heráclito teria dito que a sensação (aísthesis)
não é confiável e a teria censurado. Esta interpretação parece ir em direção diversa
da que Heráclito aponta, a saber, de que a sensação e o entendimento que ela
imediatamente produz não são enganosos ou pouco confiáveis, mas devem ser
dimensionados, articulados e interpretados de forma inteligente para que
produzam conhecimento. Além disso, a censura de Heráclito não se dirige à
sensação, e sim aos homens cujas almas são bárbaras.

Em Heráclito, de fato, não há a consideração de que a sensação é algo


naturalmente ignóbil. Ao contrário, Heráclito a valoriza explicitamente no
fragmento 55: “Do que há visão, audição, aprendizado, eis o que eu prefiro.”68 A
visão e a audição, funções e sensações daqueles mesmos olhos e ouvidos do
fragmento 107, não são rejeitados ou censurados por Heráclito, e sim o oposto
disso. Portanto, vemos que Heráclito atribui um papel importante e primário aos
sentidos no processo de obtenção do conhecimento. Mas, se os sentidos
constituem um elemento ou ingrediente importante nesse processo, não podem
oferecer mais do que um de seus elementos necessários.

Muitos comentadores tomaram a expressão “psychai bárbaras” como


uma referência à habilidade lingüística,69 de modo que o fragmento é interpretado
como “olhos e ouvidos são más testemunhas para os homens, se eles têm almas

67
o( de\ (Hra/kleitoj, e)pei\ pa/lin e)do/kei dusi\n w)rganw=sqai o( a)/nqrwpoj pro\j
th\n th=j a)lhqei/aj gnw=sin, ai)sqh/sei te kai\ lo/g%, tou/twn th\n me\n ai)/sqhsin
paraplhsi/wj toi=j proeirhme/noij fusikoi=j a)/piston ei=)nai neno/miken, to\n de\
lo/gon u(poti/qetai krith/rion. a)lla\ th\n me\n ai)/sqhsin e)le/gxei le/gwn kata\ le/cin
[...]. (Contra os Matemáticos, VII, 126).
68
Fragmento 55: o(/swn o)/yiς a)koh\ ma/qhsij, tau=ta e)gw\ protime/w.
69
Essa interpretação se baseia no uso antigo de bárbaroi, para designar as pessoas que não falam
ou não compreendem a língua grega, e nas associações lingüísticas do lógos.
53

que não compreendem a linguagem”. Mas fica ainda por decidir que linguagem
está sendo mencionada. Segundo uma concepção, a linguagem, aqui, deve ser
entendida como uma metáfora: aqueles com almas bárbaras são aqueles que
falham em compreender a “linguagem da natureza”70 ou a “linguagem dos
sentidos”.71 Segundo outra concepção, a linguagem deve ser tomada literalmente,
de modo que os homens com almas bárbaras são aqueles que não compreendem a
língua grega, mesmo sendo gregos.72 Há também algumas concepções mistas.73

Penso que tanto a interpretação metafórica quanto a literal são úteis para
a compreensão da noção de “alma bárbara”. A interpretação metafórica supõe que
o lógos comum é uma espécie de discurso – um discurso entendido
metaforicamente como a manifestação da “gramática”, da lógica, ou da lei
reguladora de todos os acontecimentos – que pode ser “ouvido” no
comportamento de todas as coisas que vêm a ser. Nesse sentido, a alma, para não
ser bárbara, deve buscar compreender a “gramática” das coisas, que envolve mais
do que as múltiplas experiências apreendidas pelos sentidos; envolve seu
contexto, sua trama ou articulação, a unidade do seu “discurso”. A interpretação
literal, por sua vez, se atém mais fortemente à compreensão dos discursos verbais,
que, mais do que a atenção às meras palavras, deve envolver aquilo que
caracteriza o poder de compreender e aprender uma língua: reconhecer que ela é
um todo complexo e articulado, composto de uma pluralidade de elementos, a
saber, palavras. A língua é, como o cosmo, um fenômeno unitário que engloba e
organiza uma vasta pluralidade de fenômenos subordinados. Então, a
incompreensão da natureza da própria língua, em maior escala, equivale à
incompreensão da natureza do cosmo.

De todo modo, parece que a linguagem que os homens de almas bárbaras


falham em compreender se refere, em ambas as interpretações, ao lógos comum,

70
Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 107; e Jonathan Barnes, The
Presocratic Philosophers (London, Routledge and Kegan Paul, 1982), p. 148.
71
Cf. E. Hussey, “Epistemology and Meaning in Heraclitus”, in M. Schofield e M. C. Nussbaum
(eds.), Language and Logos (Cambridge, Cambridge University Press, 1982), p. 34.
72
Cf. M. C. Nussbaum, “Psyché in Heraclitus, I” (op. cit.), p. 209-210.
73
Cf. W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 1, p. 415 e 429; e Hermann
Fränkel, “A Thought Pattern in Heraclitus”, in A. P. D. Mourelatos (ed.), The Pre-Socratics (New
York, Garden City, 1974), p. 217, n. 6.
54

que não precisa ser considerado de forma puramente literal ou puramente


metafórica. A compreensão do lógos revela, como mostra o fragmento 50, que
saber é concordar que tudo é um, que a unidade se encontra no seio da
multiplicidade. Certamente a psyché bárbara é aquela que não compreende que os
opostos são unificados ou que tudo é um. A psyché bárbara é aquela que falha em
apreender a conexão entre as informações dos sentidos, em atentar para a natureza
simultaneamente una e múltipla das coisas transitórias, portadoras de aspectos
diversos e opostos. Para fazer isso, uma psyché deve compreender o lógos. E
compreender o lógos significa conhecer a lei que regula o vir a ser de todas as
coisas, lei que não pode se manifestar em outro “mundo”, mas que é imanente ao
cosmo, podendo portanto ser apreendida por meio da observação acurada do
comportamento das coisas, contanto que cada aspecto desse “comportamento” não
seja considerado instantânea e isoladamente, e sim de modo detido e conectado.

Uma das indicações mais fortes de que Heráclito acredita que, ao menos
em parte, o conhecimento deve ser construído sobre a experiência sensível está no
fato de que ele apresenta, em diversos fragmentos, exemplos primeiramente
perceptíveis da unidade dos opostos. Portanto, Heráclito apresenta, em exemplos
recorrentes, o modo como se deve considerar as informações dadas pelos sentidos:
nunca em sua dimensão meramente diversa e desconectada, mas sim atentando
para sua unidade, complementaridade, interconexão ou interdependência.

Podemos ver, em tudo o que foi dito, que a psyché heraclítica é,


primeiramente e pela primeira vez, uma entidade capaz de atingir o conhecimento,
a saber, do lógos, que confere sabedoria. A possibilidade de analogia da psyché
com o fogo, o paralelo entre microcosmo e macrocosmo, bem como o fato de a
psyché possuir lógos mostram que o conhecimento do que é comum, isto é, o
conhecimento do lógos, é humanamente possível. Antes de Heráclito, entendia-se
que os deuses possuíam conhecimento “universal”, e que os mortais não o
possuíam. Heráclito parece concordar que um certo tipo de conhecimento é
essencialmente divino; entretanto, ele sustenta que esse tipo de conhecimento é
também disponível aos mortais, imputando às psychai um princípio divino de
inteligência, a saber, o lógos.
55

Na concepção homérica, o conhecimento humano era caracterizado como


extremamente limitado em contraste com o conhecimento dos deuses.74 Entre as
bases dessa concepção de conhecimento estava a idéia de que uma das relações
capazes de produzir conhecimento é a relação de contato direto entre aquele que
conhece e o objeto do conhecimento. Essa relação era concebida primariamente
em termos de visão, de modo que os objetos do conhecimento seriam
paradigmaticamente aquilo que alguém vê. O paradigma da visão se devia à
distinção entre o conhecimento mais seguro e preciso da testemunha ocular e o
“ouvir dizer”, isto é, o conhecimento indireto ou de “segunda mão” transmitido
por alguém que foi uma testemunha ocular. “Conhecer”, portanto, significava,
antes de mais nada, “ter visto”.

Uma conseqüência do paradigma da visão é que pessoa mais sábia é


aquela que viveu mais, viu mais, experimentou mais. Entretanto, mesmo o
conhecimento do homem mais sábio é limitado. O homem mais sábio é ainda
mortal, e pode apenas experimentar uma pequena fração da totalidade dos
fenômenos e acontecimentos. Portanto, somente os deuses, que são imortais e
vêem todas as coisas, são verdadeiramente conhecedores e verdadeiramente
sábios. Em Homero, Zeus e Hélio, onividentes, são chamados para testemunhar a
fidelidade dos juramentos. As Musas, para Homero, presenciam e sabem tudo;
elas são superiores ao homem pelo fato de serem imortais e de presenciarem tudo
o que acontece.

Outra característica desse modelo de contato direto é que o


conhecimento, o entendimento, a opinião ou a compreensão que um homem
atinge eram concebidos simplesmente como apresentações imediatas e
espontâneas da visão. Não havia nenhuma necessidade de distinguir a percepção
sensível de uma outra faculdade cognitiva, como por exemplo o julgamento, o
pensamento ou a razão, e a experiência sensível era tomada como a espécie única

74
Nesta abordagem da concepção homérica do conhecimento, devo muito aos textos de Joel
Wilcox, The Origins of Epistemology in Early Greek Thought: A Study of Psyche and Logos in
Heraclitus (New York, The Edwin Mellen Press, 1994, p. 131-135), B. Snell (A Descoberta do
Espírito, op. cit., p. 179-194) e J. H. Lesher (“Early Interest in Knowledge”, in A. A. Long (ed.),
The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy, op. cit., p. 225-49).
56

e suficiente de cognição.75 Snell nota que, em Homero, o vocabulário


epistemológico diverso – que contém tanto palavras aparentemente referidas ao
pensamento, como por exemplo noeîn, quanto palavras referidas claramente à
visão, como horân e ideîn – não vai contra essa generalização.76 Palavras como
nóos, em Homero, podem ser usadas para designar a experiência sensível, que,
como já foi dito, leva imediatamente, e sem nenhum esforço ou atividade
espiritual, a um entendimento, uma compreensão, uma idéia clara de algo.

Além desse tipo de conhecimento, baseado na experiência pessoal


limitada, no contato direto e no modelo da visão, há também em Homero, e
marcadamente em Hesíodo, o conhecimento transmitido aos homens pelos deuses,
que tudo sabem. A intervenção e a inspiração divinas constituem a concessão,
feita pelos deuses e pelas Musas, de informações ou poderes que fazem com que
os homens – poetas, sacerdotes ou adivinhos – passem a conhecer o que está para
além de sua experiência ordinária. Os poetas não possuem, em si mesmos, a fonte
do conhecimento daquilo que dizem, não falam a partir de sua experiência pessoal
e direta, e sim cantam o que ouviram das Musas, o que estas acharam por bem
lhes revelar.

Na concepção homérica, então, o conhecimento humano é possível, mas


é limitado ao que se experimenta sensivelmente e ao que os deuses decidem
revelar. Além disso, não há nenhuma distinção entre a sensação e qualquer outra
faculdade ou processo cognitivo. A Odisséia vê as aparências como algo que, às
vezes, pode encobrir a realidade. Entretanto, essas aparências enganosas são, ou
disfarces, que não trazem à tona a questão geral da veracidade da percepção ela
mesma, ou o resultado de uma neblina ou bruma divina que obscurece a realidade,
o que mostra que a intervenção de um deus pode garantir ou impedir a percepção
de uma coisa ou situação.

75
Wilcox argumenta que, se de um lado a Odisséia apresenta o tema do engano e do
reconhecimento, e cria uma distinção entre “percepção em geral” e “conhecimento”, de outro,
tanto o engano quanto o conhecimento são concebidos como tipos de percepção, e a aquisição do
conhecimento (ou a falta dele) é sempre condicionada externamente, por aquilo que alguém
encontra e vê. Por exemplo, o disfarce de uma pessoa produz engano, enquanto a verdadeira
aparência de uma pessoa produz reconhecimento. Cf. J. Wilcox, The Origins of Epistemology (op.
cit.), p. 133.
76
Cf. Snell , A Descoberta do Espírito, op. cit., p. 19-46.
57

Se, então, o conhecimento e a percepção de aparências são em parte


distinguidos, mas não atribuídos a faculdades distintas em Homero, ocorre que a
possibilidade do conhecimento é posta em dúvida assim que a distinção entre a
aparência de uma coisa e sua verdadeira natureza é aplicada, não apenas às coisas
que se apresentam “disfarçadas”, e sim a todas as coisas. E é isso o que acontece
em Xenófanes, que afirma redondamente, no fragmento 34:

Ninguém sabe (íden), ou jamais saberá (eidós), a verdade sobre


os deuses e sobre tudo aquilo de que falo: pois, ainda que, por acaso,
alguém dissesse toda a verdade, mesmo assim não se daria conta
(oîde) disso; mas a aparência (dókos) está forjada sobre todas as
coisas.77

Este fragmento de Xenófanes é provavelmente o mais controverso de


todos, o mais ardorosamente disputado desde a Antiguidade e o mais
freqüentemente estudado. Alguns autores afirmam que é possível excluir o próprio
Xenófanes do “ninguém” a que ele atribui a possibilidade de conhecer, tentando
romper sua ligação com o “ceticismo”.78 Entretanto, a maioria dos intérpretes
modernos sustenta que Xenófanes está dizendo, neste fragmento, que todos os
homens, incluindo-se aí ele mesmo, ignoram a verdade “sobre os deuses e sobre
tudo aquilo” de que ele fala.

Para muitos comentadores, a tese de Xenófanes sobre a impossibilidade –


ou, segundo alguns, as limitações irremediáveis – do conhecimento humano surge

77
Fragmento 34, segundo a numeração de H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker:
            
            
         
 A tradução dos fragmentos de Xenófanes citados nesta tese foi retirada de G. S. Kirk e J. E.
Raven, Os Filósofos Pré-Socráticos (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979), p. 180. Vale
notar que alguns autores dókos, neste fragmento, por “crença”, e outros, por
“opinião”. É possível que Xenófanes acreditasse que a crença é atribuída a todas as coisas ou que a
opinião é inevitável precisamente por causa do “véu” ou da parcialidade das aparências. A
diferença entre a interpretação de dókos como “aparência” e essas duas outras traduções parece
estar na ênfase dada, pela primeira, à causa da ignorância humana, em vez do destaque ao efeito
dessa ignorância.
78
Cf. S. Yonezawa, “Xenophanes: His Self-Conciousness as a Wiseman and Fr. 34”, in K. J.
Boudouris (ed.), Ionian Philosophy (op. cit.), p. 432.
58

a partir do seu “empirismo”.79 Segundo essa leitura, duas são as razões da crítica
de Xenófanes às opiniões, crenças e teorias humanas. De um lado, essa crítica se
deve ao fato de que tais opiniões e teorias vão além da evidência usada para as
formar e verificar, podendo fazer projeções sobre fenômenos não vistos e podendo
falar sobre acontecimentos cuja natureza está além da observação.80 De outro
lado, o problema está em que, para um homem, cada nova observação pode mudar
sua compreensão de uma situação ou de uma coisa. Para conhecer uma coisa ou
situação, ele teria de ver tudo o que nela é relevante. Mas não há nada na
experiência sensível que indique quando todas as informações relevantes foram
adquiridas. Portanto, mesmo que um homem saiba e diga a verdade, não terá
como saber que o fez.

Já o deus, segundo Xenófanes, conhece todas as coisas, o que pode ser


notado se observarmos os fragmentos 23 e 24.81 O deus de Xenófanes
experimenta todas as coisas. Não há nada fora de sua experiência e, portanto, nada
pode surgir de novo que refute o que ele antes pensava. O termo noeîn e seus
derivados só são usados em Xenófanes para descrever o conhecimento divino, e
nunca para descrever o conhecimento humano. Como vimos, em Homero, o verbo
noeîn era usado para designar a visualização ou compreensão instantânea e
completa de uma situação, e não o uso do raciocínio que, gradualmente, nos
levaria a uma tal visualização. Mas Homero não usou noêin como representativo

79
Este exame do problema do conhecimento em Xenófanes se baseia principalmente nos
trabalhos de M. McCoy, “Xenophanes’ Epistemology: Empiricism Leading to Skepticism”, in K.
J. Boudouris (ed.), Ionian Philosophy (Athens, International Association for Greek Philosophy,
1989), 235-240; J. H. Lesher, “Xenophanes’ Scepticism”, in J. P. Anton (ed.), Essays in Ancient
Greek Philosophy (Albany, State University of New York Press, 1983), vol. 2, p. 20-40, e C. J.
Classen, “Xenophanes and the Tradition of Epic Poetry”, in Ionian Philosophy, op. cit., p. 91-10.
80
Testemunhos antigos, como o de Hipólito, mostram que Xenófanes tentou evitar qualquer
postulado concernente a entidades que estão além de nossa experiência. Para ele, não seria válido
atribuir qualquer natureza a uma coisa que está além de nossa possibilidade de observação. No
fragmento 34, as ações representadas pelo grupo de palavras íden (viu/sabe), eidós (saberá/terá
visto), oîde (sabe/se dá conta/viu) revelariam que nenhum homem tem um conhecimento completo
das coisas.
81
Fr. 23: “Existe um só deus, o maior dentre os deuses e os homens, em nada semelhante aos
mortais quer no corpo quer no pensamento”.      

        Fr. 24: “Todo


ele vê, todo ele pensa (noeî), e todo ele ouve.”
        
59

de um tipo imparcial de conhecimento; um homem “vê” o que está diante dele


como uma oportunidade ou como uma ameaça. Por isso, o nous é sempre plural
para cada situação, e não está ligado a uma verdade única, visto que o prejuízo
para um homem consiste em lucro para outro.

Xenófanes abandona o noeîn homérico, que está ligado a interesses e


perspectivas, em favor de um noeîn que é baseado em uma “perspectiva” total,
imparcial, “universal”. Para atribuir a deus esse noeîn universal, Xenófanes não
lhe imputou apenas a totalidade das experiências, mas também a imparcialidade, o
que explica, ao menos em parte, o abandono dos deuses homéricos, que disputam
entre si e tomam diferentes partidos nas disputas humanas. O deus de Xenófanes
não tem vários nóoi, intenções e perspectivas; ele tem uma única “perspectiva”,
que é total, universal e imparcial.

Em Homero a limitação do conhecimento humano se deve ao fato de que


o homem é mortal, e por isso não pode conhecer todas as coisas e acontecimentos.
Já em Xenófanes, além dessa limitação, o homem não tem a garantia de conhecer
sequer uma coisa ou situação em sua totalidade, pois só tem, em suas
experiências, perspectivas ou apreensões parciais e momentâneas, sem ter o
critério que garanta que suas perspectivas são suficientes, isto é, são tais que lhe
apresentam a totalidade dos dados relevantes para uma apreensão completa. A
idéia de Xenófanes de que a percepção não apreende a realidade como ela
verdadeiramente é – isto é, de que “a aparência/opinião está em toda parte” – e de
que os homens não são dotados de nóos o leva a afirmar que nenhum homem
atingiu o conhecimento ou a verdade. O conhecimento escapa aos homens, pois o
critério último de verdade está fora de seu alcance, de modo que eles não podem
aplicá-lo em sua compreensão da realidade.

As sínteses supracitadas das concepções de conhecimento de Homero e


Xenófanes permitem que o pensamento de Heráclito seja compreendido em
relação a uma parte, ao menos, de seu contexto histórico. Heráclito certamente
conheceu e criticou as idéias de Homero e Xenófanes, o que fica claro em suas
menções explícitas a esses dois autores. No fragmento 56, lemos: “Ludibriados
são os homens no conhecimento das coisas aparentes, como Homero, que foi o
mais sábio de todos os helenos. Pois ludibriaram-no meninos, a matar piolhos,
60

falando-lhe: ‘quantas coisas vimos e catamos, largamo-las; quantas não vimos


nem pegamos, levamo-las’.” E o fragmento 40 diz: “Muito aprendizado não
ensina saber, pois teria ensinado a Hesíodo e a Pitágoras, também a Xenófanes e a
Hecateu”. Para Heráclito, a polimathia não ensina sabedoria (fragmento 40), e não
se pode alcançar o conhecimento apenas por meio de uma ampla experiência.

Heráclito concorda com Homero e Xenófanes num ponto: o homem não


pode ser uma testemunha ocular “universal” (posto que não é onipresente nem
imortal). Mas isso não impõe limitações irrevogáveis, nem impossibidade ao seu
conhecimento. Em lugar do ideal da “experiência irrestrita”, que garante o
conhecimento divino e impede o conhecimento humano em Homero e Xenófanes,
Heráclito assevera o conhecimento do lógos, universalmente presente, que torna
possível a compreensão crucial de que cada coisa é uma unidade de opostos e de
que a multiplicidade e o movimento, com lei e medida, conferem, ao cosmo,
unidade e permanência. Portanto, podemos dizer que Heráclito faz entrar em
colapso a distinção entre a extrema limitação humana e a onisciência divina,
distinção esta em que um certo “pessimismo” e “ceticismo” tradicionais se haviam
baseado.

Heráclito, em contraste com Xenófanes e Homero, atribui um nóos


comum ao homem, afirmando, no fragmento 114, que o homem pode “falar com
saber” (xýn nóo). Ele também rejeita a idéia de que o conhecimento é
necessariamente limitado e se reduz ao que se experimenta com os sentidos ou às
opiniões que simples e isoladamente expressam ou afirmam o que se
experimentou com os sentidos. No fragmento 1, Heráclito mostra que, para que
um homem possa fornecer uma explicação acurada de cada coisa, ele deve tanto
conhecer o lógos segundo o qual todas as coisas vêm a ser, quanto distinguir cada
coisa segundo a phýsis (natureza). Além das afirmações de Heráclito a respeito do
lógos comum, seus enunciados sobre a escuta da phýsis e a distinção das coisas
segundo a phýsis podem nos ajudar a entender o porquê de Heráclito considerar
que os homens são capazes de obter conhecimento, e não apenas um entendimento
privado e limitado sobre o mundo.
61

2.4

Heráclito e a escuta da phýsis

O fragmento 112 de Heráclito diz que “bem-pensar é a maior virtude, e


sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza (phýsis),
escutando-a”.82 Assim como, no fragmento 50, o lógos é aquilo a que se deve dar
ouvidos, aqui é a phýsis que deve ser escutada. É ouvindo a phýsis que o homem
age e fala com sabedoria. Um bom ponto de partida para examinarmos a
concepção de Heráclito de que é possível ouvir, compreender e distinguir a
natureza (phýsis) das coisas é o fragmento 1. Ali ele afirma que, ao contrário dos
outros homens, que parecem inexperientes em suas palavras e ações embora as
experimentem, distinguirá “cada coisa segundo a natureza, enunciando como se
comporta”. Embora a noção de phýsis em Heráclito e nos demais pré-socráticos
seja de suma importância83 e de difícil resumo, vale oferecer uma interpretação
breve e razoável desse termo, para que entendamos ao menos algumas
conseqüências da afirmação de Heráclito de que ele distinguirá as coisas segundo
a phýsis.

A palavra phýsis é traduzida em geral por “natureza”, e é derivada do


verbo phyomai/phyô, que na voz média significa “crescer”, “brotar”, “nascer”,
“vir a ser” e na voz ativa “fazer brotar”, “fazer nascer”, “produzir”. Seu sufixo -
sis significa a realização do ato verbal de “nascer”, “brotar”, “constituir-se”, e não
o simples resultado desse ato. Por isso a palavra phýsis, de acordo com sua
etimologia, contém a idéia de devir e implica a noção dinâmica de uma força
produtiva, geradora. Sua tradução latina é natura, que designa a ação de fazer
nascer, a nascença, o nascimento.

82
Fragmento 112: swfroneiÍn a)reth\ megi¿sth, kaiì sofi¿h a)lhqe/a le/gein kaiì poieiÍn
kata\ fu/sin e)pai¿+ontaj
83
O termo phýsis, que só aparece uma vez em Homero e nenhuma em Hesíodo, será encontrado
em mais de duzentas passagens dos fragmentos dos pré-socráticos. Cf. Henrique G. Murachco, “O
Conceito de Physis em Homero, Heródoto e nos Pré-Socráticos”, Hypnos (São Paulo, Educ/ Palas
Athena, ano 1, n. 2, 1996), p. 11-22.
62

Como muitos notaram, esse sentido básico de phýsis se conecta com o


anseio dos pré-socráticos de encontrar a explicação sobre a origem e a
constituição do cosmo e de seus fenômenos múltiplos, não mais em forças ou leis
externas ao cosmo, transcendentes aos fenômenos naturais, e determinadas pelo
“capricho” dos deuses, e sim em leis imanentes, intrínsecas ao próprio cosmo.
Mas vale também observar que, se de um lado todos os pré-socráticos definem a
phýsis guardando um certo parentesco com o sentido original do termo e
apresentando afinidades entre si, de outro lado cada pré-socrático especializa e
concebe de forma distinta o seu significado.

Conche oferece um sumário das traduções e interpretações de phýsis nos


fragmentos de Heráclito, mostrando que, segundo diferentes intérpretes, o termo
deve ser entendido como a “natureza essencial”, a “essência”, “aquilo que uma
coisa foi, é e será sempre”, a “constituição de cada coisa”, o “conjunto de
elementos ou aspectos que compõe o todo que é uma coisa”. Mas esse autor
também lembra, com toda razão, que, embora a idéia de devir possa não estar em
primeiro plano em todos os fragmentos de Heráclito onde o termo phýsis é
mencionado, há fragmentos – como, por exemplo, o 123, “Natureza ama ocultar-
se”84 –, em que phýsis claramente acentua a noção de um dinamismo constituinte,
e não a idéia de uma essência ou constituição fixa ou fixada. Quando o fragmento
123 diz que a phýsis ama, busca ou tende a ocultar-se, isso envia a uma atividade
da phýsis. A phýsis se oculta, ocultando o seu gesto, a sua operação produtiva,
constituinte, e mostra, na imediatidade de nossa lida com as coisas, apenas o
resultado desse gesto.85

Segundo essas considerações, a phýsis para Heráclito seria a constituição


de cada coisa – sua estrutura ou natureza –, não apenas entendida como “os seus
elementos constituintes”, mas também como a sua dinâmica própria, as
possibilidades do seu devir e do seu comportamento, enfim, aquilo que determina
o que uma coisa é de fato, e não apenas circunstancialmente. Quando Heráclito
afirma conhecer e poder distinguir “cada coisa” segundo a phýsis, parece evidente
que ele está afirmando que pode conhecer a realidade e que seu conhecimento

84
Fragmento 123: fu/sij kru/ptesqai fileiÍ.
85
Cf. M. Conche, Héraclite: Fragments (op. cit.), p. 253-254.
63

não pode ser limitado pelo perspectivismo ou por qualquer outro impedimento à
“comunidade” ou “universalidade”. Entretanto, temos de examinar o modo como
Heráclito justifica a possibilidade de conhecer a phýsis das coisas.

Como vimos, o fragmento 123 enfatiza que a phýsis tende a se esconder,


encobrir, ocultar. Já o fragmento 54, “Harmonia inaparente mais forte que a do
aparente”,86 sugere, como a maioria dos intérpretes nota, que a harmonia
inaparente ou invisível se refere à phýsis, e a harmonia aparente se refere ao
cosmo, que é visível, tangível e ordenado. O fato de uma harmonia ser mais forte
do que a outra nos remete à idéia de que a ordem visível do cosmo é determinada
e “causada” por sua phýsis, sua natureza, sua constituição. Portanto, a harmonia
aparente é um “efeito” da harmonia inaparente.

Harmonia é um conceito muito caro a Heráclito, e se refere a um dos


temas mais recorrentes nos fragmentos: a unidade dos opostos. O fragmento 8, um
dos que versam sobre a harmonia, diz: “Ignoram como o divergente consigo
mesmo concorda: harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira.”87
O arco tensiona as cordas da lira e, como resultado dessa tensão de forças, salta a
música, a mais bela harmonia. Heráclito afirma, em diversos fragmentos – usando
e considerando correlatas as noções de “harmonia” e “guerra” –, a existência de
uma tensão ou luta que une os opostos, torna-os interdependentes,
complementares, mas ainda assim múltiplos e distintos. Se a phýsis é a harmonia
inaparente do cosmo – o que parece ser uma interpretação razoável dos
fragmentos 123 e 54 tomados conjuntamente –, podemos dizer que a phýsis é a
tensão entre forças opostas, tensão que determina o comportamento de cada coisa.

Se a phýsis ou harmonia inaparente tende a se esconder, deve haver algo


com que se cubra, algo por trás do que se encubra. Portanto, Heráclito parece
aceitar a idéia de que as aparências tendem a encobrir a realidade, a real
constituição das coisas, a sua phýsis. Entretanto, como foi visto no capítulo
anterior, Heráclito não parece afirmar que o que percebemos com os sentidos, a

86
Fragmento 54: a(rmoni/h a)fanh\j fanerh=j krei/ttwn.
87
Fragmento 8: ou) cunia=sin o(/kwς diafero/menon e(wut%= o(mologe/ei pali/ntropoj
a(rmoni/h o(/kwsper to/cou kai\ lu/rhj.
64

saber, as aparências, seja por si só necessariamente enganoso. O fragmento 55,


como havíamos visto, mostra que Heráclito tem os sentidos em alta conta. Poder-
se-ia esperar que a aceitação de que “as aparências tendem a esconder a realidade”
implicaria a negação de que “as aparências não são enganosas e são a base do
conhecimento”. Se a verdadeira natureza das coisas está escondida, camuflada,
então há uma diferença entre o que é simplesmente percebido e o que é realmente
o caso. Mas Heráclito não condenará, por isso, a sensação. Portanto, como
conciliar a aparência – fruto da sensação – e a phýsis?

Uma das maneiras de se compreender essa conciliação é seguindo os


indícios, já vistos, de que o lógos e a phýsis são imanentes ao cosmo. Portanto,
não há outro “mundo” em que possam se manifestar. Se o fragmento 123 afirma
que “a phýsis ama ocultar-se”, não assevera, entretanto, que ela é completamente
oculta, inacessível, incognoscível. Muito pelo contrário, como mostra o fragmento
1, Heráclito usará seu conhecimento da phýsis para descrever o comportamento de
cada coisa. Portanto, se a phýsis deve, de algum modo, se manifestar, ela só
poderá fazê-lo no, e por meio do, cosmo, o único mundo, o mundo comum.

Se Heráclito afirma que a phýsis de cada coisa equivale à harmonia


marcada pela unidade dos opostos, podemos notar o porquê de a sensação (que
inclui as opiniões imedia e isoladamente produzidas, que nada mais fazem além
de afirmar as informações apreendidas pelos sentidos) ser insuficiente para a
aquisição do seu conhecimento. As sensações, se tomadas isoladamente, dão
apenas informações parciais, instantâneas, sobre as coisas; e a compreensão que
não consistir em nada mais que a afirmação das sensações constituirá, também,
uma compreensão parcial, privada, e alheia à tensão entre os diferentes aspectos
das coisas.

Heráclito não considera que a totalidade das experiências seja adquirível


pelo homem, e afirma que a quantidade de experiências não gera saber. Vale
lembrar o que o fragmento 40 afirma sobre a polimathia. Entretanto, se grande
quantidade de experiências e perspectivas sobre uma coisa não garante o seu
conhecimento, alguma parcela de experiências garante ao menos algumas
informações acuradas sobre instantes diversos de seu comportamento. E, para
entender que as diferentes perspectivas informam, na verdade, a complexidade
65

natural das coisas e o jogo de opostos permanentemente determinante de suas


diferenças circunstanciais, o homem precisa, além dessas informações parciais e
fragmentárias, dirigir seu pensamento para a phýsis e para o lógos, isto é, para a
estrutura e o arranjo das coisas em seu movimento, suas transformações e sua
tensão, para a compreensão da unidade dos opostos, a unidade de tudo o que é. A
identidade de uma coisa, visto que toda coisa é uma unidade de opostos, só pode
se manifestar fragmentariamente a uma percepção sensível desprovida de
inteligência; só pode ser apreendida efetivamente, em sua totalidade e natureza,
por um tipo de compreensão ou de pensamento capaz de apreender a unidade dos
opostos, capaz de apreender a conexão entre os diversos fragmentos da sensação.

É tentador afirmar que Heráclito, ao contrário de todos os poetas e


filósofos anteriores, já estabeleceu claramente uma distinção entre a faculdade da
sensação e a faculdade do pensamento ou da razão, entre sensação e julgamento
ou opinião, isto é, entre uma capacidade de apreensão que não envolve nenhum
tipo de afirmação ou negação, de pretensão de verdade ou de julgamento, e uma
outra capacidade de apreensão que se efetiva de forma ativa e sempre envolve
julgamento. Em minha dissertação de mestrado, foi essa visão, que atualmente
considero “exagerada” e problemática, que defendi.

Mas, hoje, creio tratar-se de um exagero afirmar que Heráclito faz, em


seus fragmentos, uma distinção clara e detalhada entre tais tipos de faculdade
cognitiva. É verdade que ele indica, como vimos, que há mais atividade que
passividade envolvida na compreensão do lógos. Ele também mostra que o objeto
por excelência do conhecimento, o lógos, não é o que se poderia chamar de um
“objeto sensível”. Nesse sentido, ele parece estar se aproximando muito desse tipo
de distinção. Mas, mais do que abolir a confusão ou fusão que havia entre as
noções de sensação e opinião ou julgamento, entre uma apreensão que não
envolve afirmação ou negação e outra que envolve, e mais que explicar que
mecanismos estão envolvidos nesses dois tipos de apreensão, o que Heráclito
mostra é que há uma distinção clara entre dois tipos de
sensação/pensamento/opinião/julgamento: um que constitui tanto o processo
quanto a efetivação do conhecimento, e um outro que só produz ignorância.
66

Essa questão foi explorada por alguns intérpretes de Heráclito, que


sustentaram diversos pontos de vista. Uns afirmaram que Heráclito distinguiu
claramente sensação de razão em seus fragmentos. Robinson, por exemplo,
afirmou que Heráclito atribuiu um papel para uma faculdade da “razão” que
“corrige a evidência dos sentidos”.88 Outros afirmaram ser um equívoco atribuir-
se a Heráclito a distinção entre duas faculdades cognitivas: a sensação e o
pensamento. Moyal, por exemplo, considera que a percepção é a única faculdade
intelectiva reconhecida por Heráclito, desde que por ela se entenda não apenas a
apreensão de objetos físicos e qualidades sensíveis, mas também a atenção ou
compreensão do processo, arranjo ou estrutura desses objetos e qualidades, isto é,
da realidade. Esse autor também afirma que, quando Heráclito usa os diversos
termos que traduzimos em geral por “pensamento” ou “compreensão”, ele se
refere, não a uma faculdade, e sim a um processo ou à efetivação desse processo.

Mesmo assim, Moyal admite que não podemos atribuir a Heráclito uma
concepção “empirista” ou “sensualista” do conhecimento, e que podemos entrever
traços de um “racionalismo” heraclítico, irrefutável quando se tomam sua visão a
respeito do que é cognoscível (o lógos, que é o tipo de objeto do conhecimento
que não pode ser dado na percepção sensível como comumente a concebemos) e
sua visão do modo como o que é cognoscível vem a ser conhecido (por meio da
atividade da alma, e não apenas de sua “passividade” ou receptividade de
impressões, em que se revela um esforço deliberado para discernir a estrutura da
realidade, o arranjo das coisas sensíveis). 89

O fragmento 17, citado anteriormente, mostra que Heráclito reconhecia


uma distinção entre dois modos de se conhecer o mundo: “Não pensam
(phronéousi) tais coisas aqueles que as encontram, nem mesmo quando
aprendidas (mathóntes) as reconhecem (ginóskousin), mas a si mesmos lhes
parece (dokéousi).” A expressão “não pensam as coisas que encontram” pode

88
John M. Robinson, An Introduction to Early Greek Philosophy (New York, Houghton Mifflin,
1968), p. 107.
89
Cf. Georges J. D. Moyal, “On Heraclitus’ Misanthropy” (Revue de Philosophie Ancienne,
Bruxelles, Éditions Ousia, t. 7, n. 2, 1989), p. 131-48 e “The Unexpressed Rationalism of
Heraclitus” (Revue de Philosophie Ancienne, op. cit.), p. 298-303.
67

parecer implicar a distinção de alguma coisa como o pensamento e alguma coisa


como a sensação. Entretanto, o que este fragmento está distinguindo e opondo
claramente são dois grupos de termos: de um lado, pensar e reconhecer, e, de
outro, encontrar, aprender e parecer. O que está em jogo, portanto, é a oposição
entre um modo de pensar (leia-se, de sentir e pensar) que leva ao reconhecimento
das coisas (em sua relação com o lógos), e um modo de encontrar e aprender (leia-
se, de sentir e pensar) que leva, ao contrário, a um mero parecer, uma mera
opinião (equivocada, posto que alheia ao lógos).

Portanto, Heráclito reconhece dois modos de se compreender a realidade,


dos quais um oferece o conhecimento efetivo do lógos e o outro não. Essa
distinção está no coração de sua concepção do conhecimento. Heráclito dá lugar
ao engano, ao erro, à ignorância, falando em termos da compreensão que não
ultrapassa a aparência e a opinião passivas, momentâneas, parciais e privadas. O
problema do conhecimento não está na sensação e no entendimento imediato que
ela produz, e sim na consideração de que a sensação somente, desprovida de
inteligência ou discernimento, seria suficiente para a aquisição do conhecimento.
Portanto, Heráclito não considera que a realidade é em si mesma incognoscível, e
sim localiza o problema do conhecimento na má utilização da
percepção/pensamento. A cognição falha é o entendimento que submerge na mera
sensação/opinião imediata e passiva, e a cognição correta é aquela que não se
exime de interpretar a sensação/opinião de acordo com o lógos, com a “lei”, que é
a da unidade dos opostos.

Heráclito oferece uma explicação para o conhecimento da verdadeira


natureza das coisas falhar. Entretanto, tal falha é pessoal, e não se deve a nenhum
aspecto impessoal ou necessário do cosmo. Em Heráclito, a origem do engano
está nos indivíduos. Mas, embora a ignorância do lógos seja muito disseminada,
ela não é universal. Heráclito parece capaz de caracterizar o tipo de
percepção/opinião não-confiável somente como aquela a que se segue uma
completa ausência de atenção, de interpretação, de atividade da psyché, e não
como uma percepção falha ou enganosa em si mesma. De acordo com essa
concepção, toda percepção é fundamentalmente confiável.
68

Mas Heráclito enfatiza a comunidade do lógos, que revela a totalidade e


o funcionamento do cosmo. Em muitos fragmentos, é dito ou implicado que o
lógos é xynós (comum). O significado “comum” sugere que o lógos é presente,
isto é, é imanente a todo o cosmo. E, ao afirmar que o conhecimento do lógos é
humanamente possível, Heráclito está sustentando que o homem pode ter um
conhecimento isento de relativismos e idiossincrasias.

Heráclito insiste em que o reconhecimento ou conhecimento do lógos é a


exceção e não a regra, pois a cognição humana é habitualmente privada e
idiossincrática. Em outras palavras, a cognição privada ou relativa não é mais um
aspecto necessário do cosmo, mas é agora um fato contingente, cuja causa reside
numa falha humana muito freqüente. Heráclito atribui a falha epistêmica ao
pensamento privado e imputa nóos ao homem. Diz que a massa tem um
entendimento particular a despeito da comunidade do lógos e de sua possibilidade
de apreender tal comunidade. Há, portanto, considerável evidência de que o
contraste de Heráclito entre o entendimento comum e o privado foi uma tentativa
de caracterizar o conhecimento do lógos comum e de diferenciá-lo da opinião
privada e relativa.

Se a cognição privada, idiossincrática, relativa da realidade não é mais


uma necessidade, e sim uma possibilidade, uma contingência, então a cognição
não-privada, não-fragmentada, não-relativa e, portanto, acertada – posto que
concordante com a realidade – deve ser possível. E Heráclito explica como uma
psyché pode, em princípio, alcançar o conhecimento do objeto crucial do
conhecimento, o lógos, o que significa que o conhecimento por ele pretendido e
justificado é aquele da estrutura da realidade como um todo.

2.5

Platão e Heráclito poderiam ser aliados no Teeteto?

Podemos ver, a partir deste exame, que Heráclito poderia ter participado
da crítica platônica, realizada no Teeteto, ao relativismo de Protágoras e à
69

interdição do conhecimento e da linguagem implicada no mobilismo extremado.


Pois o que Heráclito afirma, em suma, é que o conhecimento é possível, e possível
somente a respeito daquilo que é “comum”, o lógos. O conhecimento não pode ser
nem interditado, nem formado à luz de condições ou preferências individuais.
Heráclito viu na “comunidade” do lógos a condição do conhecimento, e, na
parcialidade do julgamento que só considera o testemunho momentâneo, isolado e
passivo das sensações/opiniões, a fonte do erro e da ignorância.

No entanto, se atentarmos para o Teeteto, veremos que ali Platão


encontrou motivos para atribuir a Heráclito uma doutrina do fluxo que foi
identificada com uma das bases do relativismo de Protágoras e do sensualismo de
Teeteto, isto é, de duas teses que afirmam que o conhecimento é sempre privado,
que não há nenhum padrão objetivo e comum que possa ser usado para corrigir ou
julgar os conhecimentos privados, e que, por essa razão, os conhecimentos
privados são sempre infalíveis e verdadeiros. Mas foi precisamente no
reconhecimento de que a sensação e o julgamento privado não bastam para dar
aos homens o conhecimento que insistiram tanto Heráclito quanto Platão. Por que,
então, Platão não reconheceu essa semelhança, essa afinidade, essa herança, essa
aliança com relação ao pensamento de Heráclito?

Podemos imaginar simplesmente que, no Teeteto, não importava muito


para Platão o fato de Heráclito poder ser seu aliado contra o relativismo de
Protágoras, pois o que interessava realmente a Platão era que um aspecto da
filosofia heraclítica, a saber, o seu mobilismo, servia para fundamentar o
relativismo de Protágoras, podendo ser identificado como a fonte, ou uma das
fontes, desse relativismo. E esse relativismo, somente depois de ser construído
sobre determinadas bases, poderia ser finalmente criticado ou refutado.90

O problema é que, mesmo que algumas passagens do Teeteto pareçam


atribuir a Heráclito uma versão exagerada do mobilismo, versão esta que levaria,
não apenas ao relativismo, mas também ao total colapso do conhecimento, parece
ao menos dubitável que seja o próprio Heráclito quem Platão ataca no Teeteto. Em
muitas passagens, este diálogo parece se referir apenas aos seguidores de

90
Cf. Georges J. D. Moyal, “Did Plato Misunderstand Heraclitus? (Revues des Études Anciennes,
Talence, 1988, n. 90), p. 89-98.
70

Heráclito, e parece atribuir somente a eles a versão extremada da doutrina do


fluxo. Se isso significar que Platão relutou em atacar diretamente a doutrina de
Heráclito, dirigindo-se na verdade às distorções feitas pelos heraclíticos, então
Heráclito não foi de fato criticado ou refutado no Teeteto. Por ora, entretanto, tudo
isso só pode permanecer uma conjectura. É preciso proceder a um exame
minucioso da primeira parte do Teeteto, para que todas essas questões se
elucidem.
71

3.

Considerações iniciais sobre o Teeteto

3.1

O Teeteto na cronologia da obra platônica

Muito embora esta tese vá se concentrar no exame do Teeteto, em muitos


momentos ela considerará este diálogo em relação a outras obras platônicas, tanto
para esclarecer e completar o que ali é dito, quanto para pôr seus temas,
problemas e afirmações numa perspectiva mais ampla. Nas comparações com
outros diálogos, é útil considerar a ordem cronológica em que a obra platônica foi
composta, ainda que esse assunto dê margem a controvérsias e conjecturas e não
deva ser tratado aqui de forma muito extensa e detalhada.

O Teeteto é, ao lado de Parmênides, Sofista e Político, um dos chamados


diálogos “críticos” ou “metafísicos”, isto é, aqueles que introduzem o último dos
três períodos em que se costuma dividir a filosofia de Platão: o período tardio ou
da velhice.91 Hoje, a posição mais geralmente aceita é a de que esses quatro

91
Alguns intérpretes, partindo da crítica às idéias ou formas no Parmênides e da ausência de
referências às formas no Teeteto, concluíram que Platão ou abandonou ou revisou
substancialmente a teoria das idéias no início da velhice. Daí esse período ser chamado de
“crítico” pelos que defendem esse desenvolvimento na obra de Platão. Cf., por exemplo, Jorgen
Mejer, “Plato, Protagoras and the Heracliteans: Some Suggestions Concerning Thaetetus 151d-
186e”, Classica et Mediaevalia, n. 29 (Copenhage, 1968), p. 40, e W. K. C. Guthrie, A History of
Greek Philosophy (op. cit.), vol. 5, p. 1. Mas esse conjunto de diálogos recebeu também outras
designações, como, por exemplo, a de “metafísicos”. Cf. Auguste Diès, “Notice Générale sur les
Dialogues Métaphysiques”, in Platon, Ouvres Complètes, Tome VIII, Ire Partie: Parménide (Paris,
Les Belles Lettres, 1950), p. V-XIX
72

diálogos foram compostos antes do Filebo, do Timeu92 e das Leis, e depois dos
diálogos do período médio ou da maturidade, que incluem, entre outros, o Mênon,
o Crátilo, o Fédon, o Banquete, a República e o Fedro. Mas, se há bastante
acordo com relação à seqüência dos grupos de diálogos, já não há tanto consenso
com relação à ordenação cronológica interna a esses grupos.

Voltemo-nos brevemente para a história das investigações e discussões


acerca da cronologia dos diálogos de Platão:93 até o início do séc. XIX, as
tentativas modernas de determinar a seqüência cronológica dos diálogos
platônicos partiam de critérios basicamente doutrinais, apoiando-se no exame do
desenvolvimento das idéias de Platão. Essa abordagem levou a diversas
controvérsias e não produziu acordo entre os vários estudiosos, que chegaram a
resultados muito díspares. Em 1867, Lewis Campbell, ao publicar sua edição do
Sofista e do Político, identificou particularidades lingüísticas nos dois diálogos,
dando origem à pesquisa estilística. Para determinar quais elementos de estilo
estavam presentes em alguns diálogos e ausentes em outros, ele comparou, entre
outras coisas, o vocabulário, o uso mais ou menos freqüente de terminologia
técnica, o ritmo da prosa e a ordenação das palavras.

Somente depois da publicação do trabalho de Campbell percebeu-se a


utilidade da análise estilística para se estabelecer a ordem cronológica dos
diálogos de maneira mais rigorosa que antes, e a partir de então muitas pesquisas
estilométricas passaram a ser feitas, refeitas e reunidas com esse propósito. Na
virada para o século XX, os estudos sobre o estilo de Platão tinham sido bem-
sucedidos em separar e classificar os diálogos em três grupos cronológicos, mas
tinham falhado em determinar a ordem interna aos grupos. Esse arranjo interno,

92
A posição do Timeu é, ainda assim, muito debatida, e esse debate tem reflexos nas interpretações
do Teeteto. De um lado, a estilometria – método do qual falarei mais adiante – concluiu que o
Timeu está estreitamente associado ao Filebo, e faz parte do grupo de diálogos composto no
período da velhice. De outro, G. E. L. Owen (no artigo intitulado “The Place of Timaeus in Plato’s
Dialogues”, de 1953) contestou a evidência estilométrica sobre o Timeu, afirmou que o Timeu foi
escrito antes do Parmênides e do Teeteto, e assim iniciou um debate que não se esgotou até hoje.
93
Os textos que levei em conta aqui, neste breve tratamento da cronologia da obra platônica,
foram os de Leonard Brandwood, “Stylometry and Chronology”, in The Cambridge Companion to
Plato (Cambridge, Cambridge University Press, 1992), p. 90-120; Auguste Diès, “Notice Générale
sur les Dialogues Métaphysiques” (op. cit.), p. V-XIX; W. K. C. Guthrie, “The Dialogues:
Chronology”, in A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 4, p. 41-55; e David Bostock,
“Chronology”, in Plato’s Theaetetus (New York, Oxford University Press, [1988] 2005), p. 1-9.
73

portanto, precisava ser estabelecido a partir de outras abordagens. Teríamos de ter


o direito, por exemplo, de usar as indicações que Platão fornecia em sua própria
obra para ordená-la. Mas, como Guthrie bem observou, os diálogos platônicos
raramente fazem referências explícitas uns aos outros ou mencionam eventos
históricos particulares, provendo assim muito poucas evidências úteis ao
estabelecimento de sua cronologia.94

Uma exceção à escassez de evidências internas aos diálogos é constituída


pelo grupo dos diálogos “críticos” ou “metafísicos”, nos quais são encontradas
muitas referências cruzadas, alguma referência a eventos externos e outros
indícios úteis para o estabelecimento de sua ordenação. Assim, no que toca à
cronologia desses diálogos, hoje, mais de cem anos após a publicação das
pesquisas de Campbell, todos concordam que o Sofista é imediatamente seguido
pelo Político, mas ainda há controvérsia no que concerne à posição do
Parmênides e do Teeteto no início desse grupo.

Quando o que estiver em questão for determinar a ordem de leitura


sugerida por Platão em seus próprios diálogos,95 serão encontradas indicações
claras de que o Parmênides é o primeiro do grupo dos diálogos críticos, sendo
seguido por Teeteto, Sofista e Político – estes três pertencentes a uma tetralogia
incompleta, que seria composta também por um quarto diálogo, o Filósofo, nunca
escrito. Tal ordenação se baseia nas seguintes referências: enquanto o Parmênides
consiste na descrição de um encontro entre Sócrates, Parmênides e Zenão, o
Teeteto (183e) alude a esse encontro como se já tivesse ocorrido há tempos, e o
Sofista (217c) também nos faz lembrar dele como coisa de um passado distante.

O Teeteto, por sua vez, termina (210c) com a marcação de um encontro


para o dia seguinte, que é mencionada e mantida no início do Sofista (216a). E se
o Sofista é o diálogo em que o Estrangeiro é apresentado a Sócrates, e em que a
questão sobre a definição do sofista, do político e do filósofo é colocada (216a-
217a), ainda que apenas a definição do sofista seja formulada, o Político, por seu
turno, se apresenta abertamente como a seqüência imediata do Sofista: logo em

94
Cf. W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 4, p. 52.
95
Cf., por exemplo, A. Diès, “Notice Générale sur les Dialogues Métaphysiques” (op. cit.), p. XII-
XIII, e F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. I.
74

seu início (257a), Sócrates agradece a Teodoro por ter-lhe apresentado o


Estrangeiro, e Teodoro explicita a continuidade temática dos dois diálogos ao
dizer que Teeteto e o Estrangeiro, que já haviam elaborado o retrato do sofista,
completarão então o retrato do político e do filósofo.

Além disso, Sócrates, no Político (258a), deixa claro que a conversação


reproduzida no Sofista ocorrera pouco tempo antes, naquele mesmo dia, e que o
diálogo transcrito no Teeteto acontecera na véspera. Quanto à posição do Filósofo,
o que indica que ele deveria dar seqüência ao Político é o fato de que o
Estrangeiro escolhe falar primeiro do político, e Sócrates sugere (Político, 258a)
que depois ele próprio substituirá o Estrangeiro na tarefa de interrogar o jovem
Sócrates, seu homônimo, acerca da definição do filósofo.

Se essas referências cruzadas encontradas nos diálogos críticos podem


ser consideradas, além de indícios da ordem na qual Platão quis que lêssemos seus
diálogos, evidências internas da ordem de sua composição, elas fornecem razões
para se pensar que a ordem em que os diálogos críticos foram escritos é:
Parmênides, Teeteto, Sofista e Político.96

Outro argumento forte que se pode usar para defender a anterioridade do


Parmênides com relação ao Teeteto parte da informação, dada no prólogo (143c),
de que Euclides transcreveu o diálogo que será lido – e que constituirá todo o
texto do Teeteto após o prólogo – na forma de diálogo direto, e não de uma
narrativa ou relato indireto. Essa informação é acrescida de uma justificativa
explícita, segundo a qual deve-se renunciar ao diálogo indireto, pois o uso das
fórmulas introdutórias implicado nesse tipo de diálogo sobrecarrega o texto.
Brandwood, por exemplo, observa que parece improvável, então, que qualquer
obra platônica escrita em forma indireta seja posterior ao Teeteto.97 Na última
parte do Parmênides a forma do diálogo é direta, mas em sua primeira parte é
indireta, o que não faria sentido se ele tivesse sido escrito depois do Teeteto.

96
No caso do Teeteto, outra evidência interna de sua cronologia é a alusão, feita no prólogo, a uma
batalha em Corinto, batalha em que Teeteto lutara, ferindo-se muito e adoecendo em seguida.
Tendo em vista que, durante a vida de Platão, houve duas batalhas em Corinto, e que a última
delas ocorreu em 369 a.C., parece haver motivo suficiente para se afirmar que o diálogo, ou ao
menos o prólogo, não poderia ter sido escrito antes dessa data.
97
Cf. L. Brandwood, “Stylometry and Chronology” (op. cit.), p. 90.
75

Nessa perspectiva, o Parmênides, que somente em sua segunda parte adotou


implicitamente a renúncia ao diálogo indireto, teria sido escrito antes do Teeteto,
que declarou explícita e irreversivelmente a adoção dessa prática. De todo modo,
como observamos antes, embora haja muitas evidências para sustentar essa
ordenação dos diálogos “críticos”, não há unanimidade a esse respeito. Um
exemplo das nuances que perpassam essa discussão é a posição de Cornford, que,
mesmo não se opondo em seus traços mais gerais à ordem aqui apresentada,
sugere, ao observar que houve uma mudança de estilo na última parte do Teeteto,
que essa parte foi produzida muitos anos depois da parte inicial, e que o
Parmênides foi composto nesse intervalo de tempo.98

3.2

O prólogo e o diálogo introdutório

O Teeteto, do início ao fim, apresenta uma grande discussão do problema


do conhecimento, ou, se prefirirmos, da ciência (epistéme). O diálogo é dividido
em um prólogo, um diálogo introdutório99 e mais três partes que compõem o
diálogo principal. Todas as partes do diálogo principal apresentam investigações
minuciosas provocadas por uma mesma questão colocada por Sócrates: “O que é
conhecimento?”. Cada parte começa com uma definição formulada pelo jovem
Teeteto para responder a essa questão, e se desenvolve numa discussão com
Sócrates, que ajuda Teeteto a esclarecer e fundamentar sua resposta, para em
seguida refutá-la. A primeira definição do jovem Teeteto é que “conhecimento
nada mais é que sensação (aísthesis)”; a segunda é que “conhecimento é opinião
verdadeira (alethès dóxa)”; a terceira é que “conhecimento é opinião verdadeira

98
Cf. F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 1.
99
Muitos autores preferem dividir o diálogo apenas em um prólogo e mais três partes, muito
embora reconheçam que a seção que chamam de prólogo possui duas partes muito distintas, que
correspondem a conversas mantidas em tempos e lugares diversos, por personagens diferentes.
76

acompanhada de explicação racional (lógos)”.100 O diálogo termina em aporia,


depois que cada resposta é criticada e refutada por Sócrates.

O prólogo do Teeteto (142a-143c) apresenta o encontro e a conversa


mantida entre Euclides – um dos chamados socráticos menores, fundador da
escola megárica – e Terpsião – a cujo respeito a única notícia que se tem é que foi
mencionado no Fédon como um dos que presenciaram a morte de Sócrates. Eles
estão em Mégara, onde falam sobre a viagem recente de Euclides, durante a qual
este encontrou Teeteto – então um matemático famoso – sendo transportado de
Corinto para Atenas muito ferido e doente. Ambos elogiam Teeteto, e Euclides
diz ter-se lembrado com admiração que Sócrates profetizara acertadamente,
quando Teeteto ainda era um adolescente, que aquele jovem fatalmente se tornaria
célebre caso chegasse à idade adulta. Sócrates havia conhecido Teeteto e, após
conversar com ele, ficara encantado com sua natureza.

A menção à capacidade de Sócrates de profetizar, prever, antecipar,


adivinhar parecerá já se relacionar com o problema do conhecimento, se
pensarmos que em tal capacidade o que está em jogo é saber o curso que alguma
coisa tomará, o que ela será, em que se tornará, o que acontecerá. Esse tema
retornará em outras passagens do diálogo, ganhando a uma certa altura muita
importância. Uma dessas passagens é a que, não muito adiante, abrirá o diálogo
entre Sócrates e Teodoro: ali, Sócrates aludirá a essa mesma capacidade de
previsão ao perguntar a Teodoro quais entre seus jovens pupilos se destacarão
futuramente. Em outra passagem, já em plena discussão da primeira definição de
conhecimento dada por Teeteto, Sócrates usará o célebre “argumento do futuro” –
que se refere justamente a um conhecimento que diz respeito ao porvir – para
refutar Protágoras e sua definição de “sábio”. Não parece ser um exagero afirmar,
portanto, que a passagem em que Euclides elogia o dote profético de Sócrates, ao
apresentar o tema do conhecimento dos acontecimentos futuros pela primeira vez,
começa a fazer do prólogo, mais que a pura apresentação de uma cena inicial, um
texto filosoficamente significativo.

100
As citações do Teeteto presentes nesta tese foram retiradas da tradução brasileira de Carlos
Alberto Nunes publicada em Platão, Teeteto – Crátilo (Belém, EdUFPA, 3ª ed., 2001). Em muitas
citações, introduzirei alterações na tradução, indicando em nota quando isso tiver ocorrido.
77

Na época em que conheceu Teeteto, Sócrates contou detalhadamente a


Euclides a conversa que teve com esse jovem, e Euclides redigiu tudo de que se
lembrava, estudou para redigir mais e consultou Sócrates várias vezes, mostrando
não ter medido esforços até registrar praticamente todo o diálogo. Terpsião, ao
saber disso, sugere que leiam o diálogo, e Euclides, após concordar, explica ter
dado ao texto a feição de um diálogo direto, e não a de um relato ou discurso
indireto, como o que ouvira de Sócrates.

O diálogo transcrito por Euclides passa a ser lido em seguida. Seus


personagens são Sócrates – então prestes a morrer pela cicuta –, Teodoro de
Cirene – na ocasião um velho e renomado matemático – e Teeteto – na época um
jovem e brilhante aluno de Teodoro. Sua parte inicial (143c-151d), que costuma
ser chamada de diálogo introdutório por anteceder a primeira definição de
conhecimento formulada por Teeteto,101 é aberta com Sócrates pedindo a Teodoro
que lhe diga quais jovens atenienses revelam mais probabilidade de se distinguir
no futuro. Esta passagem (143d), vale então lembrar, é a que introduz pela
segunda vez no diálogo o tema do conhecimento sobre o futuro, o porvir, o devir.

Teodoro, atendendo ao pedido de Sócrates, fala a respeito do adolescente


Teeteto, que se parece fisicamente com Sócrates e não é nada belo, mas possui a
mais maravilhosa natureza. Teeteto, logo em seguida, aparece e junta-se a ambos.
Sócrates imediatamente começa a interrogá-lo, e suas questões já dizem respeito à
identificação do conhecimento, ou, mais especificamente, à noção de
“conhecimento especializado”:102 visto que Teodoro havia afirmado que Teeteto
se parecia fisicamente com Sócrates, este quer saber se Teeteto concorda que,
antes de se dar crédito ao que Teodoro afirma, é preciso certificar-se de que ele
entende do assunto e tem autoridade para falar (144e). Como Teodoro não é

101
Costuma-se chamar de “primeira parte do diálogo” e de “parte inicial do diálogo principal” a
seção que começa com a primeira definição dada por Teeteto, segundo a qual “conhecimento nada
mais é que sensação”. Assim também denominarei esta seção do diálogo ao longo desta tese, sem
querer com isso dizer que a primeira definição corresponde à primeira resposta formulada por
Teeteto, ou que todas as passagens do diálogo que precedem a primeira definição constituem
apenas preliminares para a posterior discussão sobre o conhecimento. Para um exame bastante
completo da relevância das páginas que antecedem a primeira definição para a compreensão do
diálogo, cf. Michel Narcy, “Introduction”, em Platon, Théétète (Paris, Flammarion, 1995), p. 7-
121.
102
Cf. Myles Burnyeat, The Theaetetus of Plato (Indianapolis, Hackett, 1990), p. 3-4.
78

pintor, não se deve atribuir muita importância ao que ele afirmou sobre a
semelhança física. Mas se ele falasse da sabedoria da alma de alguém, suas
palavras deveriam ser levadas a sério, e quem quer que fosse por ele elogiado
nesse sentido deveria ser examinado. É preciso então examinar Teeteto, pois
nunca Teodoro fez elogios mais calorosos a alguém.

É portanto em conexão com o conhecimento especializado, isto é, com o


entendimento e a autoridade para falar de um assunto específico, que Sócrates
perguntará o que é o conhecimento em geral. Depois de indagar se aprender
significa tornar-se sábio, e se sabedoria (sophía) e conhecimento (epistéme) são a
mesma coisa, obtendo resposta afirmativa de Teeteto (145d-e), Sócrates
finalmente pergunta o que será, propriamente, o conhecimento (146a). Dirige a
pergunta primeiro a Teodoro, mas ele se esquiva e sugere que Sócrates interrogue
Teeteto. Será que Teeteto poderia definir conhecimento?

3.3

Começa a discussão sobre o conhecimento

Quando Teeteto dá sua primeira resposta, o que ele oferece é uma lista de
especialidades ou áreas de conhecimento teórico e prático (146c-d). Sócrates
insiste na diferença entre uma pluralidade de exemplos de conhecimentos
especializados, que apenas determina o objeto de cada um desses conhecimentos,
e a definição unitária do que é o conhecimento em si mesmo. E afirma ainda mais
enfaticamente que ninguém pode conhecer exemplos de conhecimento, ou seja,
ninguém compreenderá o que é o conhecimento disto ou daquilo, até que saiba o
que o próprio conhecimento é. Isso significa que todo conhecimento especializado
se torna problemático se o próprio conhecimento é problemático: daí a
necessidade de passar do tema dos conhecimentos particulares para o tema do
conhecimento em geral.

Teeteto entende melhor o problema e o compara com outra questão,


apresentada a ele recentemente por Teodoro, e para a qual encontrou uma
79

resposta: trata-se do problema matemático das potências, “cuja solução consistiu


em reuni-las numa única, que serviria para designar todas” (147d-e). Entretanto,
ele acha que não conseguirá fazer o mesmo com a questão do conhecimento, ou
seja, não será capaz de reunir todos os conhecimentos em um único
conhecimento, em uma única definição. Sócrates, buscando animá-lo, oferece uma
longa e célebre caracterização da maiêutica (148e-151d), reconhecendo em
Teeteto as dores do parto.

Apresentando-se como parteiro, explica acompanhar as almas dos


homens em seu trabalho de parto e distinguir, depois de nascido o fruto, se ele é
um “produto falso e enganoso” (pseudê kaì eídola) ou um “produto verdadeiro”
(toû alethoûs) (150e). Sem nunca apresentar opinião pessoal sobre nenhum
assunto e sem nunca ensinar nada a ninguém, só o que faz é interrogar os outros,
ajudando-os a descobrir em si mesmos as idéias que darão à luz e a verificar se
tais idéias são ou não um produto legítimo, jogando-as fora se forem meros
pensamentos extravagantes. De fato, Sócrates apresenta nesta passagem a técnica
que utilizará em sua discussão com Teeteto: ele irá interrogá-lo, irá ajudá-lo a dar
à luz as definições do conhecimento e irá verificar que tais definições não passam
de fantasmagorias, descartando-as uma a uma. Esta passagem, portanto, oferece
uma explicação sobre o método filosófico de Sócrates e serve também de
introdução à discussão sobre o conhecimento que virá em seguida.

Mas a descrição da maiêutica talvez se conecte com a questão do


conhecimento também de outra forma: muito embora, em diversas passagens,
Sócrates declare expressamente que é estéril em matéria de sabedoria, que não
pode apresentar um só pensamento que tenha sido dado à luz por sua alma, e que
não estão nele as coisas belas que seus interlocutores concebem e põem no
mundo, parece haver indicações de que a maiêutica se relaciona não apenas com o
método que orientará toda a discussão sobre o conhecimento, mas também com a
identificação do conhecimento. Isso porque, se observarmos toda a longa
caracterização da maiêutica, veremos que se trata de uma arte que envolve uma
série de “saberes”, de capacidades para discernir melhor que os outros, entre as
quais as mais elevadas são: saber melhor que qualquer um que uniões gerarão os
80

frutos mais perfeitos – sendo este o saber de que mais se envaidecem as parteiras
– e saber distinguir o verdadeiro do falso.

Essas características me fazem suspeitar, por exemplo, de que a própria


arte de partejar envolve um conhecimento sobre o futuro, sobre o devir; afinal, é
isso que está em jogo quando se sabe quais são as uniões que podem vir a gerar
mais utilidade. E elas me permitem concluir também que no diálogo introdutório,
enquanto exorta Teeteto a definir o conhecimento, Sócrates tanto pressupõe que
há distinção entre pensamentos e discursos falsos e verdadeiros quanto supõe que
quem sabe fazer tal distinção melhor que qualquer outro é esse parteiro muito
especial, que parteja almas e não corpos.

3.4

A primeira definição de Teeteto

Animado pelas exortações feitas por Sócrates após a exposição sobre a


maiêutica, Teeteto afirma primeiro que “quem sabe alguma coisa sente o que
sabe”, e então formula assim a sua primeira definição de conhecimento:
“conhecimento (epistéme) não é mais que sensação (aísthesis)” (151e).103

Antes de tudo, a definição elaborada por Teeteto pode causar algum


estranhamento, pois esse jovem interlocutor de Sócrates, que define conhecimento
em primeiro lugar como sensação, é um estudante de matemática considerado
brilhante por seu mestre e um futuro matemático famoso. Sendo um matemático,
pode-se supor que Teeteto seja um daqueles que, segundo a célebre passagem da
Linha Dividida, contida no final do livro VI da República (509d-511e), devem

103
“Teeteto – Realmente, Sócrates, exortando-me como o fazes, fora vergonhoso não esforçar-me
para dizer com franqueza o que penso. Parece-me, pois, que quem sabe alguma coisa sente o que
sabe. Minha opinião, pois, é que quem sabe alguma coisa sente o que sabe. Assim, o que me
aparece neste momento é que conhecimento não é mais que sensação”. ΘΕΑΙ. – Ἀλλὰ µέντοι, ὦ
Σώκρατες, σοῦ γε οὕτω παρακελευοµένου αἰσχρὸν µὴ οὐ παντὶ τρόπῳ προθυµεῖσθαι ὅτι
τις ἔχει λέγειν. δοκεῖ οὖν µοι ὁ ἐπιστάµενός τι αἰσθάνεσθαι τοῦτο ὃ ἐπίσταται, καὶ ὥς γε
νυνὶ φαίνεται, οὐκ ἄλλο τί ἐστιν ἐπιστήµη ἢ αἴσθησις. (Teeteto, 151e)
81

pensar e raciocinar sobre o inteligível (noetón) e devem tratar todo visível


(horatón) e todo sensível (aisthetoî) como imagem do inteligível.

De fato, se for verdade que o Teeteto foi escrito após a República, obra
em que Platão discerne os vários tipos de apreensão da alma e seus objetos
próprios, distingue sensível e inteligível, apresenta uma clara diferença entre
opinião e conhecimento, descreve a geometria como propedêutica à dialética e
afirma que o conhecimento do ser e do inteligível adquirido pela dialética é o
conhecimento mais claro que podemos obter, será inevitável que o Teeteto
provoque surpresa: pois começa apresentando uma definição de conhecimento
como sensação, não ultrapassa em nenhum momento o domínio da opinião, não
faz referência às idéias ou formas inteligíveis e nunca menciona a dialética como
resposta à questão sobre o conhecimento. Além disso, o diálogo é aporético e
apresenta uma forma de argumentação semelhante à do elenchus socrático, forma
esta característica dos diálogos platônicos do período inicial.

Vê-se, portanto, que o Teeteto suscita logo de início muitas questões


desafiadoras: por exemplo, como entender o retorno do diálogo à reflexão sobre a
relação entre sensação e conhecimento?104 E como compreender que, num diálogo
platônico, um matemático defina o conhecimento como sensação? Há maneiras
distintas de se buscar responder a essas questões. Uma delas pode ser esclarecer
que tipo de matemática é feita pelo jovem que define conhecimento como
sensação. Outra pode ser esclarecer que sentidos o termo aísthesis (sensação)
tinha no tempo de Platão. Ambas constituem modos de verificar se a definição de
conhecimento como sensação poderia, não estranhamente e sim naturalmente, ser
proposta por um matemático num diálogo platônico.

O primeiro caminho foi explorado Narcy, que argumentou que a


matemática de Teodoro e de Teeteto não corresponde à matemática apresentada

104
Como bem observou Marcelo Pimenta Marques, só é possível falar em “retorno” à reflexão
sobre a relação entre sensação e conhecimento, quando está em jogo a hipótese – que me parece
plausível, ainda que seja questionável –, de que o Teeteto foi escrito depois da República. Nesse
sentido, este “estranhamento” ou “surpresa” produzido pelo Teeteto, para ser aceitável, depende
inteiramente de se ter em vista um outro diálogo, e de se partir de considerações sobre a cronologia
e o desenvolvimento da obra de Platão. Ainda assim, se deixamos de lado as considerações sobre a
anterioridade da República para pensarmos o Teeteto somente a partir de si mesmo, permanece o
interesse em buscar entender qual é o sentido, nele, da proposta de definição de conhecimento
como sensação. E isso será feito mais adiante.
82

na República.105 Haveria boas e más matemáticas, assim como bons e maus


matemáticos, e Teodoro e Teeteto estariam entre os últimos. No que toca a
Teodoro, o Teeteto mostra que ele é, tal como Protágoras, um estrangeiro de
passagem por Atenas, que faz muito sucesso entre os jovens dessa cidade. Além
disso, mostra que Teodoro foi amigo de Protágoras e que, em lugar de usar
discursos em suas demonstrações, usa desenhos e construções, “fazendo aparecer”
(apophaínon) para dizer “o que é”.106 Portanto, na geometria de Teodoro, para
“dizer o que é” basta “fazer ver”, “fazer aparecer”, de modo que “ser” e
“aparecer” coincidem, tal como acontecerá na tese do homem-medida de
Protágoras. Esses seriam indícios de que está sendo feita uma analogia entre
Teodoro e Protágoras, e de que Teodoro está sendo apresentado como uma
espécie de “Protágoras da geometria”.

Como lembra Narcy, na República (510d-511a) Platão diz que a figura


sobre a qual o geômetra raciocina (por exemplo, o quadrado em si mesmo) é
distinta da figura que ele traça, figura esta que é uma imagem da primeira e serve
de acessório para o que ele realmente faz. O que o geômetra produz são discursos,
e não figuras. A geometria é concebida por Platão como propedêutica à dialética,
porém há geômetras que ignoram a subordinação da geometria à dialética, fazem
geometria “à mão” e não tomam as figuras que traçam por imagens das formas
inteligíveis existentes em si. Teodoro mostra ser um desses, quando deixa claro
que prefere desenhar e fazer aparecer e quando se esquiva de falar. Numa

105
Para a argumentação de Narcy que aqui será apresentada de forma resumida, cf. M. Narcy,
“Introduction”, in Platão, Théétète (op. cit.), p. 30-69.
106
“Teeteto – A respeito de algumas potências, Teodoro, aqui presente, fez desenhos, fazendo
aparecer que a de três pés e a de cinco, consideradas segundo seu comprimento, não são
comensuráveis com a de um pé. E assim foi estudando uma após a outra, até a de dezessete pés.
Não sei por que parou aí. Ocorreu-nos, então, já que é infinito o número dessas potências, reuni-las
numa única, que serviria para designar todas.” ΘΕΑΙ. Περὶ δυνάµεών τι ἡµῖν Θεόδωρος ὅδε
ἔγραφε, τῆς τε τρίποδος πέρι καὶ πεντέποδος [ἀποφαίνων] ὅτι µήκει οὐ σύµµετροι τῇ
ποδιαίᾳ, καὶ οὕτω κατὰ µίαν ἑκάστην προαιρούµενος µέχρι τῆς ἑπτακαιδεκάποδος· ἐν δὲ
ταύτῃ πως ἐνέσχετο. ἡµῖν οὖν εἰσῆλθέ τι τοιοῦτον, ἐπειδὴ ἄπειροι τὸ πλῆθος αἱ δυνάµεις
ἐφαίνοντο, πειραθῆναι συλλαβεῖν εἰς ἕν, ὅτῳ πάσας ταύτας προσαγορεύσοµεν τὰς
δυνάµεις. (Teeteto, 147d-e). Alterei a tradução brasileira nos trechos “fez desenhos”, “fazendo
aparecer” e “consideradas em seu comprimento”, com base nas traduções francesas de A. Diès e
de M. Narcy: no primeiro caso, para solucionar a ausência de tradução do termo égraphe, no
segundo, para substituir a tradução de apophaínon como “mostrar” e, no terceiro, para tornar mais
claro o texto em português.
83

passagem do Teeteto, ele estaria até mesmo invertendo o curso proposto na


República, ao sugerir que se passe da dialética à geometria: “Nós estávamos mais
prontos para deixar os argumentos abstratos (tôn psilôn lógon) pela geometria”
(165a).107 Por essas razões, Narcy crê que é legítimo supor que a geometria
ensinada por Teodoro não recebe a aprovação de Platão, e que não é
absolutamente surpreendente que um discípulo de Teodoro, que aprendeu
matemática “vendo desenhos”, defina conhecimento como sensação.

Mas Narcy sabe que se pode alegar que, embora Teodoro seja um mau
matemático aos olhos de Platão, e portanto um matemático do qual não se pode
esperar sucesso na definição de conhecimento, seu pupilo Teeteto já não pode ser
tido como um mau geômetra, visto que propõe, não exemplos ou construções, e
sim a reunião das infinitas potências numa unidade, e visto que recebe elogios
calorosos não apenas de Teodoro, mas também de Sócrates. Em resposta a essas
alegações, Narcy afirma que há muito mais motivos para se acreditar que Teeteto
não se aproxima de Sócrates e do geômetra platônico, e sim de Protágoras e de
Teodoro, do que o contrário. A fala sobre a disenteria funesta e a morte sem glória
de Teeteto seriam prenúncios de seu fracasso. Os elogios de Sócrates poderiam
muito bem ser interpretados como pura ironia. E atribuir-se-ia erroneamente a
Teeteto um progresso com relação à geometria de Teodoro, pois a definição de
potência oferecida por Teeteto (por seu vocabulário; por definir as potências no
plural como uma coleção e não como uma acepção geral; por definir
determinando a coisa de que a potência é potência e nunca a própria potência
independentemente; por definir identificando a potência com a linha
incomensurável, isto é, com uma figura visível) ressaltaria a geometria aprendida
com Teodoro e condenada por Sócrates na República. Por isso, esse autor vê
sentido em que saia da boca de Teeteto a definição de conhecimento como
sensação, assim como vê sentido na assimilação que é feita quase imediatamente
entre essa definição e a doutrina de Protágoras.

107
A tradução desta passagem foi inteiramente alterada, com base na tradução de A. Diès. A
passagem não menciona explicitamente a dialética, mas Narcy sustenta que os “argumentos
abstratos” – que ele traduz como “palavras abstratas” – mencionados na passagem designam as
demonstrações em que estão ausentes quaisquer figuras, e que isto é o que Sócrates entende por
dialética na República.
84

Vale notar que o caminho aberto por Narcy (o exame da matemática


realizada por Teodoro e Teeteto para entender por que Platão, num diálogo da
velhice, voltou a refletir sobre a relação entre sensação e conhecimento), levou
também a outras respostas. Anachoretta, por exemplo, sustenta que, se Teodoro
não realizou a matemática aprovada por Platão, Teeteto o fez. A apresentação da
definição de potência proposta por Teeteto, bem como os elogios de Sócrates, não
teriam por que ser lidos como uma crítica e uma ironia. E não se deveria
desconsiderar o depoimento dos historiadores da matemática, que mais
freqüentemente atribuíram a Teeteto a definição de potência, a criação da teoria
dos irracionais e, portanto, um importantíssimo avanço nesse campo da
matemática. Se Teeteto é, então, um bom matemático, como entender que ele
defina conhecimento como sensação?

Primeiro, a noção matemática de potência (dýnamis) poderia estar


mostrando que é possível que um irracional, ao ser multiplicado por si mesmo,
isto é, em seu devir e em sua progressão, ganhe racionalidade. Além disso, essa
noção poderia estar revelando que cada irracional é potência apenas de uma
determinada configuração geométrica ou progressão, de forma que cada número
irracional, tomado como potência, manteria uma “regularidade” no seu devir.
Então, pela boca de Teeteto – mesmo que ele não soubesse extrair de sua
definição o seu valor filosófico –, Platão estaria apresentando a noção de potência
como “determinação” e “medida” que se realizam no devir. E, se houver uma
relação entre a noção de dýnamis na matemática e a noção de dýnamis na teoria da
sensação apresentada mais adiante no Teeteto (155d-157c), essa noção poderá
estar conferindo alguma regularidade ao domínio da sensação e do sensível, e ao
devir que lhe é característico. A isso se soma a lembrança de que, no final da
primeira parte do Teeteto, a concepção extremada do devir é expressamente
criticada e refutada. Por todas essas razões, o retorno do diálogo à sensação, tendo
como pano de fundo a matemática, poderia ser entendido como uma forma
encontrada por Platão para criticar a concepção radical do fluxo universal e para
85

indicar uma visão mais moderada do devir, que incluiria a existência de medida,
regularidade e, por conseguinte, alguma racionalidade.108

Outra maneira de buscar entender por que encontramos um matemático


definindo conhecimento como sensação num diálogo platônico é, não examinar o
tipo de matemática realizado por Teeteto, e sim, como já foi mencionado,
investigar o que Teeteto poderia querer dizer com o termo aísthesis (sensação)
quando o utilizou para definir epistéme (ciência). O exame dos sentidos dos
termos aísthesis e aisthánesthai disponíveis no tempo de Platão e, portanto,
disponíveis ao jovem Teeteto, pode ser muito proveitoso para isso. Nessa época,
esses termos são usados, em geral, quando alguém percebe algo pelos sentidos,
isto é, sente algo; quando alguém percebe, se põe a par ou compreende algo por
meio da percepção sensível (em oposição a simplesmente supor, conjecturar ou
ouvir dizer); e quando simplesmente nossa alma se dá conta, se torna ciente de
algo. Frede diz o seguinte, em um artigo claro e sucinto:

Parece que todos os casos de dar-se conta de algo são


compreendidos e construídos segundo o paradigma da visão,
exatamente porque ninguém vê diferença radical entre o modo como a
mente capta e compreende algo e o modo como os olhos vêem algo.
Supõe-se que ambos envolvem algum contato com o objeto, em
virtude do qual, através de um mecanismo desconhecido para nós, nos
tornamos cientes dele.109

Talvez Teeteto esteja definindo conhecimento como sensação


porque ele, assim como qualquer homem de seu tempo, se baseia na noção
corrente de aísthesis, que não se restringe à percepção sensível entendida como
pura captação de qualidades sensíveis, nem tampouco a casos de dar-se conta que
envolvem o corpo e consistem em dar-se conta de algo corpóreo. Quando afirma
que conhecimento não é nada além de aísthesis, Teeteto pode muito bem estar

108
Cf. Maria Inês S. Anachoretta, O Teeteto de Platão e a dynamis (Rio de Janeiro, PUC-Rio,
Dissertação de Mestrado, 1998).
109
Cf. Michael Frede, “Observations on Perception in Plato’s Later Dialogues”, in Essays in
Ancient Philosophy (Oxford, Clarendon, 1987), p. 4.
86

querendo dizer algo muito geral, como, por exemplo, que o conhecimento é um
dar-se conta, um compreender da alma que não se confunde com as meras
suposições, conjecturas ou opiniões de segunda mão, e sim se caracteriza como
um dar-se conta direto, claro e, por isso, mais evidente e seguro.

Mas, será que Teeteto não está mesmo querendo dizer aquilo que
nós entendemos por “percepção sensível” quando fala de aísthesis? Poderíamos
nos certificar disso no texto do diálogo, e não apenas em exames extrínsecos a
ele, como por exemplo este, que recorreu ao conjunto de usos correntes do termos
aísthesis? Enfim, é possível saber se Teeteto está de fato se baseando nesse
sentido amplo, geral, corrente de aísthesis? Parece que sim, mas somente se não
tomarmos a definição de Teeteto isoladamente, e sim considerando toda a fala em
que ele a formula. Teeteto diz:

Minha opinião (dokeî), pois, é que quem sabe (epistámenós)


alguma coisa sente (aisthánesthai) o que sabe. Assim, o que me
aparece (phaínetai) neste momento é que conhecimento (epistéme)
não é mais que sensação (aísthesis). (Teeteto, 151e)110

Nesta fala de Teeteto, quatro termos de grande importância para o


diálogo são mencionados e relacionados: são eles dóxa, epistéme, aísthesis e
phaínetai.111 Que relação está sendo estabelecida entre esses termos e o que tal
relação pode revelar? Teeteto começa a formular sua definição de conhecimento
nos termos de uma opinião (dóxa): a opinião segundo a qual quem sabe sente o
que sabe. Essa opinião o conduz a sustentar algo que pode ser tomado como uma
outra opinião, e que é apresentado como “o que me aparece (phaínetai) neste
momento”: que conhecimento não é mais que sensação. “Minha opinião” se
conecta, portanto, com “o que me aparece”, a ponto de ambos se equivalerem, se

110
Inseri alterações nesta citação da passagem 151e, para deixar mais evidente, com as palavras
“opinião” e “o que me aparece”, a presença dos termos dokeî e phaínetai na formulação da
primeira definição de conhecimento de Teeteto.
111
Toda a exposição que se segue sobre a relação entre os quatro termos (dóxa, epistéme, aísthesis,
phaínetai) na passagem 151e, bem como o exame que proponho dos significados atribuídos no
Teeteto aos termos aísthesis e phaínetai, devem muito ao trabalho de Anachoretta, O Teeteto de
Platão e a dynamis (op. cit.), p. 89, e a outros que serão citados ao longo do texto.
87

identificarem. Está formado um par em que os termos se correspondem: opinião e


aparecer ou aparência.

Mas qual o conteúdo da opinião de Teeteto, disso que aparece para ele
nesse momento? É que quem sabe sente o que sabe, logo, conhecimento
(epistéme) é sensação (aísthesis). Formou-se assim um novo par cujos termos
foram identificados: conhecimento e sensação. Porém como os dois pares se
relacionam entre si? Uma boa solução para esta questão pode ser encontrada
quando imaginamos o que aconteceria se Sócrates perguntasse a Teeteto como ele
apreendeu o que apareceu a ele naquele momento, isto é, como ele formou sua
opinião: uma das respostas possíveis – e não apenas possível, mas a mais
condizente com a definição de conhecimento que o próprio Teeteto acabou de
formular – é que ele apreendeu sentindo. Mas, se a opinião de Teeteto, isto é, o
que apareceu a ele naquele momento, é o que ele sentiu (dóxa = phaínetai =
aísthesis), e se conhecimento não é mais que sensação (epistéme = aísthesis),
então a opinião e a aparência também são conhecimento (dóxa = phaínetai =
epistéme)!

Vemos assim que nesta fala de Teeteto há pouca ou nenhuma distinção


entre termos muito importantes, pois ali os quatro termos facilmente se
confundem, se equivalem, se emaranham. Será, então, mera coincidência o rumo
que o Teeteto tomará? Ou faz todo sentido, a partir desta fala de Teeteto, que
Sócrates passe imediatamente a buscar esclarecimentos e distinções, examinando
a identificação entre sensação e conhecimento, explorando a correspondência
entre sentir e aparecer, analisando a relação entre opinião e conhecimento?
Sócrates de fato precisará fazer uma investigação detalhada, tanto para corrigir a
identificação de sensação com aparecer e com opinião, quanto para refutar a
identificação de conhecimento com sensação, com aparecer (ou fazer aparecer) e
com opinião; e é isso, principalmente, o que ele fará nas três partes do diálogo.

Ao fazer essa investigação, Sócrates buscará determinar de maneira mais


clara, e em seguida criticar, o sentido atribuído por Teeteto aos quatro termos em
questão. Veremos que o primeiro passo dado nessa tentativa de esclarecer a
definição de conhecimento como sensação será relacionar aísthesis com
phaínetai, a partir da assimilação da definição de Teeteto com a doutrina do
88

homem-medida de Protágoras. Mas tanto aísthesis quanto phaínetai são termos


ambíguos, e o diálogo passará então a indicar a que sentido de phaínetai Teeteto
está se referindo, bem como a explorar a ambigüidade do termo aísthesis tal como
Teeteto o emprega, até apontar para uma restrição de seu significado.

Se começarmos atentando para as ambigüidades de aísthesis, veremos


que os sentidos do termo são muitos, tanto em seu uso ordinário quanto em seu
uso no Teeteto. No uso comum, como vimos, estão incluídos muitos significados
como: a sensação; a apreensão de qualidades sensíveis; a consciência de objetos
externos, de fatos, de sentimentos e emoções; o discernimento ou o dar-se conta
direto da alma.112 A primeira questão que se coloca é: Teeteto está se referindo, e
dando o mesmo peso, a todos esses sentidos quando diz que conhecimento não é
mais que sensação? Em 156b, muitos são os tipos de aísthesis listados e nomeados
por Sócrates, além de que é dito por ele que infinitos são os tipos de aísthesis
anônimos: “visões, audições, olfações, frio e quente, e também prazeres, dores,
desejos, temor e muitos outros”. Mesmo que nesta lista apenas alguns sentidos de
aísthesis sejam contemplados, nela a aísthesis ainda pode se referir à apreensão de
muitos tipos de objeto, tanto externos (sejam os objetos físicos, sejam as
qualidades sensíveis desses objetos físicos), quanto internos (as afecções da alma,
tais como as emoções e os sentimentos).

Mas não nos é dito, no diálogo, que quando Teeteto define conhecimento
como aísthesis ele está restringindo o sentido de aísthesis à apreensão desses
objetos externos e internos, nem muito menos que ele o está restringindo a apenas
um desses tipos de objeto. Em compensação, o que fica muito claro na seqüência
do diálogo, a partir dos exemplos do vento (152b) e da cor branca (153d), é que
Sócrates levará Teeteto a tratar principalmente, senão exclusivamente, da
apreensão de objetos externos, isto é, da apreensão de objetos físicos e de suas
qualidades sensíveis. Ou seja, mesmo que Teeteto tenha querido dizer algo muito
mais geral (e menos estranho, sendo ele o matemático que é), Sócrates limita o
termo aísthesis a esse sentido (o de sensação de objetos externos) e conduz a
discussão a partir dessa limitação.

112
Cf. F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 30; e M. Frede, “Observations on
Perception in Plato’s Later Dialogues” (op. cit.), p. 3.
89

Todavia, se a ambigüidade de aísthesis com relação a seu objeto ser


interno ou externo se mostra rapidamente resolvida por Sócrates, uma outra
ambigüidade do termo se apresenta no diálogo e não ganha uma solução rápida:
trata-se de uma ambigüidade que se relaciona com a forma de apreensão do objeto
e com o tipo de objeto externo apreendido. Vimos que a aísthesis, entendida como
a apreensão de objetos externos, se refere tanto à apreensão de objetos físicos
quanto à de suas qualidades, e podemos ver, como sublinha Nakhnikian,113 que o
texto do diálogo faz distinção entre as coisas físicas e as qualidades que essas
coisas possuem. A partir dessa distinção, podemos pensar em três tipos de
apreensão de objetos externos: um tipo de apreensão cujo objeto é uma coisa
física, como, por exemplo, “uma mesa”; um tipo de apreensão cujo objeto é uma
qualidade sensível, como, por exemplo, “a cor branca”, e um tipo de apreensão
cujo objeto é uma coisa física que classificamos ou qualificamos, reconhecendo
nela e atribuindo a ela uma certa propriedade sensível (“uma mesa [que é]
branca”).

Como diz Burnyeat,114 o exemplo do vento, que parece ser frio para uma
pessoa, e quente para outra deixa claro – como muitos outros exemplos dados no
Teeteto também deixam – que o tipo relevante de aísthesis, até quase o final da
primeira parte do diálogo, é aquele em que uma coisa física é percebida como
tendo uma determinada qualidade sensível. De fato, no diálogo, há algumas
alusões à apreensão de qualidades sensíveis em que só se faz menção às próprias
qualidades, sem se fazer referência às coisas físicas que possuem tais qualidades.
Mas, ao contrário, toda menção à apreensão de uma coisa física faz referência a
alguma qualidade sensível nela apreendida (cf., por exemplo, 156e, 166e, 178d).
Nas palavras de Burnyeat, isso significa que “a percepção que está em questão
aqui é a percepção de que isso e aquilo é o caso”.115

De fato, no uso corrente de nossa língua, falamos tanto de perceber


objetos e qualidades sensíveis quanto de perceber que uma coisa é assim, ou que
uma coisa é o caso. Esse tipo de construção não difere do outro apenas em termos

113
Cf. George Nakhnikian, “Plato’s Theory of Sensation, I” (The Review of Metaphysics, n. IX,
Sept. 1955), p. 129-31.
114
Cf. M. Burnyeat, The Theaetetus of Plato (op. cit.), p. 11-12.
115
Cf. M. Burnyeat, The Theaetetus of Plato (op. cit.), p. 11.
90

de objeto, mas também no que toca à forma de apreensão do objeto. Pois, quando
percebemos que uma coisa é o caso, nossa apreensão não se limita à captação de
uma qualidade sensível ou à tomada de consciência de um objeto físico, mas já
envolve alguma forma de julgamento, algum conteúdo proposicional. Mais
adiante (179c, 184b-ss), essa decisão sobre como a aísthesis deve ser entendida se
mostrará problemática, e então o papel do julgamento na sensação será discutido,
e a compreensão de Teeteto a respeito da aísthesis será corrigida.

Na refutação final da primeira definição (184b-187a), ficará claro que até


ali Teeteto e Sócrates mantiveram o tempo todo a ambigüidade do termo aísthesis,
de modo a confundir sentir e julgar, perceber e pensar. E, quando Sócrates
finalmente levar Teeteto a compreender que o uso de aísthesis deve ser restrito a
um tipo de apreensão que não envolve julgamento, ou seja, a uma afecção
puramente passiva na alma, ele também mostrará que, justamente por isso, a
aísthesis não atinge o conhecimento, pois o conhecimento envolve no mínimo o
julgamento verdadeiro, e o julgamento, por sua vez, envolve a atividade da alma
(186c-d). Essa conclusão não significa apenas que a sensação (aísthesis) não é
idêntica ao conhecimento, mas também que nenhum caso de sensação, como tal, é
um caso de conhecimento.

Parece, então, que um dos propósitos de Platão ao restringir a noção de


aísthesis, é mesmo “desemaranhar” a mistura de sensação, aparência, opinião e
conhecimento em meio à qual a definição de Teeteto foi formulada. Parece
também que outro propósito seu é contribuir positivamente para o fim de dois
erros graves: o erro, cometido pela filosofia, de confundir a sensação com o
pensamento, a crença, a opinião ou o julgamento, e o erro, cometido pela sofística,
de afirmar que as opiniões, as crenças e, pior, os conhecimentos que temos são
questão apenas de como as coisas, de modo sempre infalível e verdadeiro, nos
atingem, deixam em nós uma impressão, aparecem para nós.

Num trabalho de Lee, encontramos a afirmação de que Aristóteles deve a


Platão a visão, expressa na Metafísica (1009b 12-18), de que seus predecessores
erraram ao fundir sensação e opinião numa só coisa, sem entender a opinião, o
pensamento ou o julgamento como algo distinto da sensação. Mas o erro de
confundir pensamento com sensação e de supor que adquirimos nossos juízos,
91

crenças e opiniões do mesmo modo que temos sensações poderia ser encontrado
“inclusive no Fédon e na República, onde Platão trata opinião (dóxa, dokeîn,
doxázein), aparência (phaínesthai) e sensação (aisthánestai) como virtualmente
equivalentes”.116

Frede também sublinha que, mesmo que no Fédon e na República Platão


faça um uso bastante restrito de aísthesis, limitando-o às apreensões que
envolvem o corpo e que consistem na apreensão de objetos corpóreos, ainda assim
aísthesis está sendo usado ali de maneira intercambiada com dokeîn e doxázein.
Nesses diálogos, é dito que a opinião, ao contrário do conhecimento, diz respeito
ao mundo corpóreo com o qual estamos em contato corporal. O resultado desse
contato é que o mundo aparece para nós de um certo modo, e a conseqüência
disso é que temos certas opiniões sobre ele.117 Ambos os autores enfatizam que é
somente no Teeteto que Platão critica esse erro de confundir sensação com
julgamento ou opinião, e que, portanto, seu alvo nessa crítica não é
exclusivamente o jovem Teeteto ou Protágoras, nem apenas o conjunto de seus
predecessores e contemporâneos, mas é também o próprio Platão, naquilo que
escreveu em obras anteriores.

De fato, no final da primeira parte do Teeteto, Sócrates submeterá a


concepção de sensação (aísthesis) de Teeteto a um exame tal que levará este,
primeiro, a admitir que se equivocara ao pensar que o homem apreende as
qualidades sensíveis (isto é, tem aísthesis) com os órgãos sensíveis. Sócrates o
fará ver que é com uma outra coisa – que ele sugere chamar de alma – que o
homem atinge as qualidades sensíveis. A alma, ponto de convergência de todas as
diferentes sensações, usa os órgãos corpóreos como instrumentos, e é com ela, e
não com eles, que sentimos. Além disso, Sócrates conduzirá Teeteto à conclusão
de que há certas noções comuns (koiná), pertencentes a sensações de tipos
diferentes, que a alma apreende por si mesma, sem o intermédio dos órgãos
sensíveis, e que é ao apreender essas noções comuns – de ser, não-ser,
semelhança, dessemelhança, diferença, identidade, unidade, pluralidade – e ao

116
Cf. Mi-Kyoung Mitzi Lee, “Thinking and Perception in Plato’s Theaetetus” (Apeiron, n. 32,
1999, p. 37-54), p. 38.
117
Cf. M. Frede, “Observations on Perception in Plato’s Later Dialogues” (op. cit.), p. 4.
92

raciocinar, relacionando as impressões sensíveis com o ser e o útil, que se atinge


a essência (ousía), a verdade (alétheia) e o conhecimento (epistéme).

Se um tipo de apreensão corresponde ao processo em que a alma sente,


por meio dos órgãos corpóreos, as qualidades sensíveis, somente ele deve reter o
nome de sensação (aísthesis). O outro tipo de apreensão, que consiste em afirmar
o que é sentido e em raciocinar a respeito das qualidades sensíveis e dos koiná,
deixa de ser confundido com a sensação (aísthesis) e passa a receber o nome de
julgar (doxázein). Isso mostra que, se no início do diálogo o uso de aísthesis se
refere tanto a uma apreensão de objetos externos que não envolve julgamento
quanto a uma que envolve, esse uso será submetido ao exame e à correção, e
ficará restrito a uma mera captação do sensível – feita pela alma, é bem verdade,
por meio dos sentidos –, ainda desprovida de qualquer afirmação ou raciocínio.

Nas edições em português, inglês e francês do diálogo Teeteto, o termo


aísthesis costuma ser traduzido ora por “sensação/sensation” ora por “percepção/
perception”. Como vimos, uma das acepções mais primárias e importantes do
termo – encontrada, portanto, em qualquer bom dicionário de grego – corrobora
sua tradução tanto por sensação quanto por percepção: segundo o dicionário de A.
Bailly, aísthesis é a “faculdade de perceber pelos sentidos, sensação”, o que
também se explica como “ter a sensação ou a percepção de alguma coisa”.118

De todo modo, vale notar que há algumas diferenças em nosso uso


ordinário dos termos “percepção” e “sensação”: o termo “percepção” possui a
mesma ambigüidade que está presente no uso de aísthesis até quase o final da
primeira parte do Teeteto; ele significa tanto a mera captação ou impressão
sensível, quanto uma apreensão que já envolve uma afirmação com pretensão de
verdade, um julgamento. Essa ambigüidade já não se vê tão facilmente no termo
“sensação”, que tem, no uso comum, o sentido mais restrito de apreensão sensível
sem julgamento, sentido este que é atribuído ao termo aísthesis no final da
primeira parte do diálogo.

Se levarmos em conta que nossa língua prevê o uso de “percepção” para


designar ambos os tipos de apreensão, e de “sensação” para designar mais
especificamente a pura impressão sensível, ficará claro que, mesmo que ambas as
93

traduções de aísthesis sejam fiéis ao texto platônico, há uma razão pela qual
alguns escolhem usar o termo “sensação” (ou também “percepção sensível”, em
lugar de simplesmente “percepção”): é que assim se evita traduzir aísthesis por
um termo que sempre evocará a ambigüidade que o texto do próprio diálogo
tratará de desfazer. De outro lado, traduzir aísthesis por percepção tem a
vantagem de deixar em aberto essa ambigüidade que Sócrates vai explorar até
quase o final do exame da primeira definição de conhecimento. Trata-se portanto
de escolher entre duas alternativas justificáveis. Aqui, optei por traduzir aísthesis
por sensação, tanto para seguir a tradução brasileira que é fonte das citações desta
tese e as traduções francesas consultadas constantemente neste trabalho, quanto
por querer ressaltar a vantagem que essa tradução tem de favorecer a compreensão
da distinção entre aísthesis e julgamento, crença ou opinião, que será realizada no
final da primeira parte do diálogo.

Voltemo-nos então para a ambigüidade de phaínetai. Este verbo tem


várias acepções, e dois de seus sentidos mantêm uma relação estreita, embora
muito distinta, com o verbo ser (eînai). Num de seus significados, phaínetai tem
uma relação de oposição com eînai, sendo um sinônimo de dokeîn em seu sentido
de “parecer” em contraste com “ser”, de “parecer assim” ao julgamento, ou de
“ser crido assim”, em oposição a “ser realmente assim”.119 Segundo Kahn, a
concepção platônica de ser, tal como se apresenta a partir do Fédon, se define
entre outras coisas pela oposição entre ser (eînai) e parecer (phaínetai).120 Na
República, ele observa, a distinção entre as formas inteligíveis e as coisas
particulares é correlata à oposição entre ser e parecer. Para Platão, portanto, ser é
sobretudo ser realidade verdadeira, em contraste com ser mera aparência.

Porém, em outro de seus sentidos, phaínetai mais se associa do que se


opõe a eînai: pois phaínetai, em alguns contextos, pode significar “ser
manifestamente”, “aparecer”, “se mostrar”, “se manifestar”, e pode desempenhar

118
A. Bailly, Dictionnaire Grec Français (Paris, Hachette, 1963), p. 49-50.
119
Cf. Édouard des Places, Lexique de la Langue Philosophique et Religieuse de Platon, em
Platon, Ouvres Complètes (Paris, Les Belles Lettres, tome XIV, vol. 2), p. 529-530.
120
Cf. Charles H. Kahn, “Alguns Usos Filosóficos do Verbo ‘Ser’ em Platão”, em Sobre o Verbo
Ser e o Conceito de Ser (Puc-Rio, Cadernos de Tradução, n. 1, Série Filosofia Antiga, 1997), p.
118-121.
94

a função de enunciar o fato de que algo “é manifestamente assim”.121 Nesse


sentido, o verbo phaínetai se aproxima do verbo ser, se assemelha e coincide com
ele, não mais expressando o que se opõe ao ser e se manifesta em lugar dele, e sim
designando a manifestação do próprio ser. Kahn mostra que Platão, na primeira
parte do Teeteto, trabalha com o contraste entre phaínetai e eînai e com a “nuance
veritativa” daí decorrente.122 Mas esse contraste entre ser e parecer não impede
que Sócrates reconheça em Teeteto uma visão segundo a qual eînai e phaínetai
coincidem, na medida em que Teeteto concorda com Protágoras que “tal como as
coisas aparecem (phaínetai) a mim em cada caso, tal elas são (éstin) para mim – e
são realmente”. Teeteto de fato parece entender phaínetai não apenas como o que
aparece ou parece ser, e sim como o que é, o que realmente é. E isso fica claro
quando ele concorda com o dito de Protágoras, assimilando sua definição de
conhecimento à célebre doutrina do homem-medida deste sofista.

3.5

A associação com Protágoras

Na passagem seguinte àquela em que Teeteto define conhecimento como


sensação, Sócrates diz a Teeteto que sua resposta foi bela e corajosa, mas propõe
que examinem juntos se ela consiste ou não em um “feto viável” (151e). Sócrates,
então, assimila a definição de Teeteto à doutrina do homem-medida de
Protágoras:

Talvez tua definição de conhecimento tenha algum valor; é a


definição de Protágoras; por outras palavras ele dizia a mesma coisa.
Afirmava que o homem é a medida de todas as coisas; das que são,

121
Cf. A. Bailly, Dictionnaire Grec Français (op. cit.), p. 49-50.
122
Kahn explica que surge uma nuance veritativa no uso copulativo do verbo eînai quando esse
verbo tem “a função de chamar atenção para a pretensão de verdade que está implícita em toda
frase declarativa”, o que ocorre “sempre que há um contraste entre ser assim e parecer assim”. Cf.
C. H. Kahn, “Alguns Usos Filosóficos do Verbo ‘Ser’ em Platão” (op. cit.), p. 118. Para a
passagem em que Kahn comenta o contraste entre ser e parecer no Teeteto, cf. p. 131.
95

que elas são, e das que não são, que elas não são. Decerto já leste isso?
(Teeteto, 152a)123

Sócrates, nesta passagem, não interpreta, detalha ou reconstitui com suas


palavras a “doutrina do homem-medida” de Protágoras – coisa que fará logo em
seguida –, e sim cita a sentença de Protágoras, sentença esta que Teeteto
reconhece prontamente, por já tê-la lido mais de uma vez.124 Aqui ainda não fica
suficientemente nítido se Sócrates está afirmando que a doutrina de Protágoras
em nada se distingue da definição de Teeteto, a ponto de ambas constituírem na
verdade uma única tese, ou se ele apenas está indicando que essas duas
formulações convergem, se assemelham e podem gerar esclarecimentos se forem
associadas. Será preciso, mais adiante, colher outras indicações para ver mais
claramente que relação Sócrates está buscando estabelecer entre as teses de
Teeteto e Protágoras. De todo modo, o que vemos é que, imediatamente após citar
a sentença de Protágoras, Sócrates oferece uma interpretação dela, na qual,
primeiro, será declarada a coincidência entre ser (eînai) e aparecer (phaínetai) e,
segundo, será feita a identificação entre aparecer (phaínetai) e sentir
(aisthánesthai):

Sócrates – Não quererá ele, então, dizer que as coisas são para
mim conforme me aparecem, como serão para ti segundo te
aparecerem?125 Pois eu e tu somos homens.

123
ἐπιστήµης, ἀλλ’ ὃν ἔλεγε καὶ Πρωταγόρας. τρόπον δέ τινα ἄλλον εἴρηκε τὰ αὐτὰ
ταῦτα. φησὶ γάρ που “πάντων χρηµάτων µέτρον” ἄνθρωπον εἶναι, “τῶν µὲν ὄντων ὡς
ἔστι, τῶν δὲ µὴ ὄντων ὡς οὐκ ἔστιν.” ἀνέγνωκας γάρ που; (Teeteto, 152a). Alterei a parte
final da tradução desta passagem com base em diversas traduções – entre elas a de M. J. Levett,
em M. Burnyeat, The Theaetetus of Plato (op. cit.), p. 272 –, pois nelas encontrei a opção pelo
verbo “ser” em lugar de “existir”, opção que creio estar plenamente justificada, por exemplo, no
trabalho intitulado “Alguns Usos Filosóficos do Verbo ‘Ser’ em Platão” (op. cit.), em que Charles
Kahn reconhece o veritativo nessa citação da frase de Protágoras, de tal modo que a tradução
poderia se apresentar assim: “O homem é a medida de todas as coisas, do que é (assim) que é
(assim), do que não é que não é”.
124
Esta sentença de Protágoras foi catalogada por Hermann Diels e Walter Kranz, em Die
Fragmente der Vorsokratiker (op. cit.), como fragmento 1, e tem como fonte, além de Sexto
Empírico em uma passagem de Contra os Matemáticos, justamente esta passagem do Teeteto de
Platão.
125
Vale notar que esta “tradução socrática” da tese de Protágoras, que estabelece a coincidência
96

Teeteto – É isso, precisamente, o que ele diz.

Sócrates – Ora, é de presumir que um sábio não fale


aereamente. Acompanhemo-lo, pois. Por vezes não acontece, sob a
ação do mesmo vento, um de nós sentir frio e o outro não? Um de
leve, e o outro intensamente?

Teeteto – Exato.

Sócrates – Nesse caso, como diremos que seja o vento em si


mesmo: frio ou não frio? Ou teremos de admitir com Protágoras que
ele é frio para o que sentiu arrepios e não o é para o outro?

Teeteto – Parece que sim.

Sócrates – Não é dessa maneira que ele aparece a um e a outro?

Teeteto – É.

Sócrates – Ora, este aparecer não é o mesmo que ser sentido?

Teeteto – Perfeitamente.

Sócrates – Logo, aparência e sensação se equivalem com


relação ao calor e às coisas do mesmo gênero; tal como cada um as
sente, é como elas talvez sejam para essa pessoa.

Teeteto – Talvez. (Teeteto, 152a-c)126

entre ser e aparecer e garante assim a verdade do que aparece, repete textualmente uma passagem
do Crátilo (386a).
126
ΣΩ. – Οὐκοῦν οὕτω πως λέγει, ὡς οἷα µὲν ἕκαστα ἐµοὶ φαίνεται τοιαῦτα µὲν ἔστιν
ἐµοί, οἷα δὲ σοί, τοιαῦτα δὲ αὖ σοί· ἄνθρωπος δὲ σύ τε κἀγώ;
ΘΕΑΙ.– Λέγει γὰρ οὖν οὕτω.
ΣΩ. – Εἰκὸς µέντοι σοφὸν ἄνδρα µὴ ληρεῖν· ἐπακολουθήσωµεν οὖν αὐτῷ. ἆρ’ οὐκ
ἐνίοτε πνέοντος ἀνέµου τοῦ αὐτοῦ ὁ µὲν ἡµῶν ῥιγῷ, ὁ δ’ οὔ; καὶ ὁ µὲν ἠρέµα, ὁ δὲ
σφόδρα;
ΘΕΑΙ. – Καὶ µάλα.
ΣΩ. – Πότερον οὖν τότε αὐτὸ ἐφ’ ἑαυτοῦ τὸ πνεῦµα ψυχρὸν ἢ οὐ ψυχρὸν φήσοµεν;
ἢ πεισόµεθα τῷ Πρωταγόρᾳ ὅτι τῷ µὲν ῥιγῶντι ψυχρόν, τῷ δὲ µὴ οὔ;
ΘΕΑΙ. – Ἔοικεν.
ΣΩ. – Οὐκοῦν καὶ φαίνεται οὕτω ἑκατέρῳ;
ΘΕΑΙ. – Ναί.
ΣΩ. – Τὸ δέ γε “φαίνεται” αἰσθάνεσθαί ἐστιν;
ΘΕΑΙ. – Ἔστιν γάρ.
97

Vemos nesta passagem que o dito de Protágoras – que se refere ao


homem como medida (métron) de todas as coisas, e por isso é comumente
chamado de “doutrina do homem-medida” –, logo após ser citado por Sócrates, é
por ele interpretado, de modo que a “medida (métron) do que é (éstin)” é
entendida em termos de “ser tal como aparece para” cada homem. Quando Teeteto
concorda com essa interpretação socrática, ele mostra entender que, para
Protágoras, ser (eînai) e aparecer (phaínetai) coincidem. Sócrates sugere, então,
que examinem juntos o pensamento de Protágoras e oferece um exemplo para
desenvolver sua interpretação. O exemplo é o do vento, que pode agir sobre dois
homens, fazendo um deles sentir frio e o outro não (152b). O problema é: quando
os homens não sentem o mesmo acerca de uma única coisa, como dizer o que é a
coisa em si mesma? De acordo com Protágoras, diz Sócrates, a coisa aparece e é
realmente de um modo para um, e de outro modo para outro. E, continua Sócrates,
aparecer (phaínetai) é o mesmo que ser sentido (aisthánesthai); logo, aparência
(phantasía) e sensação (aísthesis) se equivalem, especialmente com relação às
qualidades sensíveis, como o calor e outras similares (152c).

Como Burnyeat observa, a idéia de que “isto lhe aparece” significa “ele
sente isto” é aceita por Teeteto sem argumentos. O exemplo do vento deixou claro
que a sensação (aísthesis) está sendo concebida não como a pura sensação de um
objeto físico em si mesmo, e sim como a sensação que engloba um julgamento
sobre como o objeto é. Isso significa que o “aparecer” que está em jogo aqui, ao
ser identificado com “sensação”, ganha também o sentido ambíguo de aparecer
sensível e de aparecer judicativo. Podemos concluir que, ao se estabelecer a
coincidência entre ser e aparecer, garante-se a verdade do que aparece. E ao se
estabelecer a identidade entre ser, aparecer e sensação, garante-se a verdade da
sensação e do julgamento nela envolvido. E é exatamente disso que Sócrates trata

ΣΩ. – Φαντασία ἄρα καὶ αἴσθησις ταὐτὸν ἔν τε θερµοῖς καὶ πᾶσι τοῖς τοιούτοις. οἷα
γὰρ αἰσθάνεται ἕκαστος, τοιαῦτα ἑκάστῳ καὶ κινδυνεύει εἶναι.
ΘΕΑΙ. – Ἔοικεν. (Teeteto, 152a-c)
98

em seguida, quando diz: “A sensação é sempre sensação do que é, sendo, pois,


infalível, visto ser conhecimento” (Teeteto, 152c).127

Nesta passagem, o que Sócrates afirma claramente é que há duas


condições que a sensação deve satisfazer para que possa ser conhecimento: ela
deve ser sempre sensação do que é (toû óntos aeí estin), e deve ser sempre
infalível (apseudés). Mas o que significa ser sensação do que é? Podemos
enxergar aqui ao menos três sentidos, e essa multiplicidade de significados
possíveis gerou de fato grandes divergências nas traduções e interpretações desta
passagem. Afinal, Sócrates afirmou o quê? Que todo conhecimento tem de ser
uma apreensão de coisas que existem, ou de coisas estáveis, ou de como as coisas
realmente são?

Uma tradução possível desta passagem é a que diz que “a sensação é


sempre sensação do que existe”, e esta tradução dá margem principalmente à
interpretação de que o que está em jogo aqui é o puro uso existencial do verbo
eînai, ou o puro contraste entre existir e não-existir. Esta leitura, no entanto,
parece não se sustentar por várias razões; a principal delas é que nem pouco antes
nem logo depois desta passagem o que está em foco são este uso e este contraste,
de modo que não parece proceder a idéia de que a sensação é apresentada aqui
simplesmente como um critério para determinar a existência das coisas que
existem (e a não-existência das que não existem).

A segunda interpretação desta passagem, que pode se basear tanto nesta


mesma tradução – “a sensação é sempre sensação do que existe” – quanto em
outra – “a sensação é sempre sensação do que é” – é a que diz que o essencial aqui
é o contraste entre, de um lado, o que é permanente, imutável, uniforme, constante
e, de outro, o que devém, torna-se, vem a ser, muda. Esse contraste está muito
presente em Platão, cuja concepção de ser, como Kahn observa, se define pela
confluência de duas oposições: a oposição de ser e parecer – que, como vimos,
explora o valor de verdade de eînai contrastando-o com a aparência (phaínetai) –
e a oposição de ser e devir – que explora o valor de estabilidade e eternidade de

127
ΣΩ. – Αἴσθησις ἄρα τοῦ ὄντος ἀεί ἐστιν καὶ ἀψευδὲς ὡς ἐπιστήµη οὖσα (Teeteto,
152c). Modifiquei aqui a tradução brasileira em dois pontos, com base nas traduções já
mencionadas de A. Diès e de M. J. Levett: na tradução de apseudés, usei infalível em vez de não
ilusória; e, na tradução de estin, inseri é em lugar de existe.
99

eînai, contrapondo-o à mudança, à instabilidade de gígnesthai (vir a ser, tornar-


se).128 Mas, no Teeteto, o contraste entre eînai e gígnesthai não aparece
explicitamente em nenhuma passagem até o ponto do texto a que chegamos. Não
há, portanto, nas passagens anteriores à que estamos examinando, nada que
justifique afirmar tal contraste. Todavia, logo adiante no diálogo, Sócrates
associará a doutrina do homem-medida de Protágoras à tese segundo a qual “em
rigor nada é (estin), tudo devém (gígnetai)” (152d); e esse contraste se tornará
então evidente.

Alguns intérpretes lêem toda a primeira parte do Teeteto (ou seja, a que
trata da primeira definição de conhecimento) como uma argumentação cujo
objetivo é sustentar a visão (apresentada, por exemplo, no Fédon) segundo a qual
a verdadeira realidade – a única que é objeto de conhecimento – é o domínio não-
sensível das idéias, seres imutáveis, constantes e uniformes.129 Nessa
argumentação, a passagem em que é dito que a sensação é sempre sensação do
que é seria muito importante, pois, ao dizer que só há conhecimento do que é
estável e não devém, prepararia o terreno para a sensação ser descartada como
conhecimento: de fato, se uma das condições que a sensação deve satisfazer para
que possa ser conhecimento é ser sempre sensação do que é estável, então a
sensação do que devém não pode constituir conhecimento. Embora não creia que
toda a primeira parte do Teeteto consiste numa argumentação voltada unicamente
para dar suporte à visão de que onde há devir e não há formas inteligíveis não há
conhecimento, penso que o contraste entre ser e devir, pode, sim, ser uma das
oposições indicadas nesta passagem, tendo em vista que logo em seguida esse
mesmo contraste será enfatizado.

De todo modo, há uma terceira distinção que pode ser encontrada nesta
passagem (152c), na tradução que diz que “a sensação é sempre sensação do que
é”: a distinção entre entre ser e parecer ou, mais precisamente, entre “o que é
realmente assim” e “o que é só aparentemente assim”. Esse é o contraste que
vimos estar presente na citação da sentença de Protágoras e na interpretação

128
Cf. C. H. Kahn, “Alguns Usos Filosóficos do Verbo ‘Ser’ em Platão” (op. cit.), p. 118-119.
129
O mais representativo deles é F. M. Cornford, em seu clássico comentário ao Teeteto intitulado
Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.).
100

socrática desse dito (152a), ou seja, é a oposição que saltou à vista nas passagens
imediatamente anteriores a esta. Estando presente também aqui, essa oposição nos
faz ver que a sensação é sempre sensação de como uma coisa é, isto é, a sensação
é um critério para determinar como as coisas são, no sentido de quais qualidades
lhes devem ser atribuídas, quais predicados lhes devem ser aplicados.

Kahn indica que, nesta passagem, pode ser reconhecida uma cópula
incompleta, com força veritativa, de tal modo que poder-se-ia até propor a
seguinte tradução: “a sensação é sempre sensação do que é realmente assim”.130
Lee também mostra dar ênfase à força veritativa ao propor que este passo quer
dizer que “a sensação é sempre verdadeira” e ao sugerir para ele a seguinte
tradução: “a sensação é sempre do que é o caso”.131 Mesmo crendo que o
contraste entre ser e devir pode estar sendo indicado nesta passagem, penso, pelas
razões apresentadas, que a oposição mais marcante é aquela entre ser e parecer, de
modo que o que a passagem afirma é sobretudo que a sensação é sempre “do que
é realmente tal como é sentido”, sendo infalível e constituindo conhecimento.

O que mais importa aqui, portanto, é a afirmação de que as sensações


como tais são verdadeiras e infalíveis. Isso significa que cada sensação, tal como
ocorre em cada indivíduo e em cada ocasião, é incorrigível – não pode nunca ter
sua falsidade demonstrada nem pode nunca ser corrigida com base em qualquer
outro critério, nem mesmo por meio da comparação com a sensação de outra
pessoa ou outra sensação do mesmo indíviduo em um momento distinto.

Mas uma coisa que está sendo suposta o tempo todo na passagem que diz
que “a sensação é sempre sensação do que é, sendo, pois, infalível, visto ser
conhecimento”, é que ser verdadeiro e ser infalível são as duas condições ou
exigências incontornáveis para que haja conhecimento. Se era de se esperar que o
diálogo “partisse do zero” em sua busca por elaborar uma resposta à pergunta “o
que é conhecimento?”, podemos ver aqui que não é isso o que acontece. Pois duas
características ou condições, que nos informam sobre a natureza do conhecimento,
isto é, que começam a responder a pergunta sobre o que ele é, são dadas sem
maiores explicações, como se fossem pressupostas, evidentes, já sabidas: o

130
Cf. C. H. Kahn, “Alguns Usos Filosóficos do Verbo ‘Ser’ em Platão” (op. cit.), p. 132, n. 25.
131
Cf. M.-K. M. Lee, “Thinking and Perception in Plato’s Theaetetus” (op. cit.), p. 42.
101

conhecimento é apreensão sempre infalível e verdadeira. Portanto, se já se sabe


tanto a respeito do que é o conhecimento, parece que a pergunta sobre o que ele é,
neste diálogo, nos leva mais à busca de uma definição do processo ou tipo de
apreensão que o constitui (que processo leva a apreensões sempre infalíveis e
verdadeiras?) do que a uma definição geral de conhecimento que nada pressupõe.

3.6

O problema do Protágoras histórico

Vimos que a sentença do “homem-medida” de Protágoras é citada por


Sócrates e, em seguida, é por ele interpretada. Teeteto concorda com a
interpretação socrática, segundo a qual o que está sendo dito por Protágoras é que
as coisas são para cada um conforme aparecem para cada um. Até esta passagem,
não há muita controvérsia sobre a fidelidade de Platão ao Protágoras histórico. Os
estudiosos de Protágoras costumam considerar que, até aqui, Platão primeiro cita
ipsis litteris a doutrina do homem-medida e em seguida oferece uma interpretação
que em nada distorce o que Protágoras teria de fato dito e escrito.132

Mas o diálogo segue com Sócrates oferecendo o exemplo do vento e


afirmando que aparecer é o mesmo que ser sentido. Nesta interpretação, o vento
aparece e é realmente quente para quem sente calor, e frio para quem sente frio.
Neste ponto, já começam a surgir dúvidas: haveria, nos escritos e ditos de
Protágoras, fundamentos para Platão considerar o phaínetai (aparecer) como se
ele se aplicasse à sensação, ou exclusivamente a ela? Essa dúvida é só a primeira
entre muitas incertezas a respeito da fidelidade de Platão, no diálogo Teeteto, ao
Protágoras histórico.

Como já foi dito, Platão não é um historiador da filosofia, e sua


preocupação, ao tratar das teses de predecessores e contemporâneos, não é de

132
Essa mesma “continuação” da sentença do homem-medida, que diz que o que aparece para cada
um é o que é para cada um, é apresentada no Crátilo (386a) e é confirmada por Aristóteles
(Metafísica, 1062 b13) e por Sexto Empírico (Contra os Matemáticos VII 60), o que reforça a
idéia de que devia fazer parte da doutrina do próprio Protágoras.
102

caráter histórico. Nesse sentido, com relação aos escritos de Protágoras, Platão
poderia muito bem estar completando, constrangendo, extraindo conseqüências e
explorando associações e afinidades que o próprio Protágoras não teria
enxergado.133 Mas, se de um lado temos razões para supor que é muito provável
que Platão tenha distorcido e extrapolado os ditos de Protágoras, de outro
precisamos também ter em mente que os escritos de Protágoras eram bem
conhecidos, e que muitos dos argumentos e críticas de Platão perderiam a força, se
ele não expressasse suas teorias fielmente, ao menos até um certo ponto.134 Além
disso, é preciso notar que, no Teeteto, Platão parece ter se esforçado para deixar
claro quando ele está indo além da obra de Protágoras. Finalmente, vale lembrar
que as obras de Protágoras se perderam, que o contexto em que suas sentenças
foram escritas não pode ser recuperado, e que uma de nossas principais fontes de
informação a seu respeito é a obra de Platão. Por isso, a discussão da doutrina de
Protágoras no Teeteto costuma ser considerada de suma importância para, entre
outras coisas, a reconstrução do que Protágoras efetivamente disse e escreveu.

No que toca à primeira dúvida, já mencionada, o que podemos ver é que


na doxografia sobre Protágoras há outros testemunhos, além do de Platão, que
afirmam que a sentença do homem-medida se refere, entre outros tipos de
julgamento, àqueles que têm origem na sensação e que dizem respeito a objetos e
qualidades sensíveis.135 A confirmação dada por outras fontes pode ser
considerada um motivo para se crer que Platão não estava alterando a doutrina de
Protágoras ao vinculá-la aos julgamentos relativos à sensação. Mas isso não
significa que Platão teria encontrado razões, nos escritos de Protágoras, para
afirmar que a doutrina do homem-medida se referia exclusivamente aos
julgamentos sobre objetos e qualidades sensíveis.

133
Cf., por exemplo, Maura Iglésias, Platon et la These Sophistique de L’Impossibilité du Faux
(Paris, Université de Paris IV – Sorbonne, 1981, Tese de Doutorado), p. 117.
134
Cf. J. Mejer, “Plato, Protagoras and the Heracliteans” (op. cit.), p. 41, e G. B. Kerferd, “Plato’s
Account of the Relativism of Protagoras” (Durham University Journal, n. 42, 1949), p. 20.
135
Ver, por exemplo, DK 80 A16: “[Protágoras dizia que] o homem é limite e juízo dos objetos, de
modo que aqueles objetos que caem sob sua percepção existem, e os que não caem, não existem
entre as formas do ser” (Hérmias, Irrisão dos Filósofos Pagãos IX); e DK 80 A17: “Com efeito,
não haverá nada frio nem quente, nem doce nem nenhuma outra qualidade sensível, se não existe
quem as perceba. De modo que se encontraram defendendo o argumento de Protágoras”
(Aristóteles, Metafísica 1047a 4).
103

Quando Sócrates diz que “aparecer é o mesmo que ser sentido” (152b),
ele mostra que a sensação ganha um sentido amplo, na medida em que passa a
envolver um reconhecimento, um julgamento ou uma crença. Mas, por outro lado,
a identificação com “sensação” restringe o sentido de “aparência”, pois, por mais
crença e julgamento que a sensação envolva, ela só produz julgamentos a respeito
de objetos sensíveis, julgamentos de um tipo restrito.136 E sabemos que é legítimo
dizer: “me parece que tal coisa é assim”, mesmo quando a “aparência” não tem
nada a ver com a sensação, com objetos físicos e com qualidades sensíveis. Ou
seja, a aparência pode envolver julgamentos de outros tipos, como por exemplo
julgamentos sobre valores e sobre outros julgamentos. Será então que Platão, no
Teeteto, estaria negligenciando o fato de que a aparência “protagórica” tem esse
sentido mais amplo, e estaria distorcendo a doutrina de Protágoras ao restringir a
aparência à “aparência sensível”?

Não parece ser isso o que acontece. É verdade que, inicialmente, não
apenas o uso de “aparência” como também toda a discussão sobre a doutrina do
homem-medida ficam restritos à aplicação dessa doutrina às aparências sensíveis.
E é verdade também que esse uso restrito não exaure todo o significado do dito de
Protágoras. Mas o uso mais amplo de “aparecer” vai figurar mais adiante, quando
a doutrina do homem-medida for relacionada justamente com os julgamentos
sobre valores e sobre acontecimentos futuros. Por isso, muitos intérpretes de
Protágoras crêem que não há nenhum sinal de “infidelidade” platônica quando, no
Teeteto, Sócrates propõe que a doutrina do homem-medida seja examinada,
apenas inicialmente, a partir do exemplo do vento e de suas qualidades sensíveis.

Nesta passagem (152b), Sócrates pergunta: “Nesse caso, como diremos


que seja o vento em si mesmo: frio ou não frio?”. Se a resposta começasse com
algo como “diremos que ele em si mesmo é frio e não frio”, ou “diremos que ele
em si mesmo não é nem frio nem não frio”, ou ainda “diremos que o meu vento é
frio e o seu não é”, não haveria dificuldade. Mas a resposta proposta por Sócrates
e aceita por Teeteto é a de que “teremos de admitir com Protágoras que ele é frio
para o que sentiu arrepios e não o é para o outro”.137 Como Kerferd observa,

136
Cf. D. Bostock, Plato’s Theaetetus (op. cit.), p. 43.
137
ἢ πεισόµεθα τῷ Πρωταγόρᾳ ὅτι τῷ µὲν ῥιγῶντι ψυχρόν, τῷ δὲ µὴ οὔ; (Teeteto, 152b).
104

quando Sócrates oferece esse exemplo do vento, fica muito claro que a doutrina
do homem-medida envolve a rejeição da opinião corrente de que o vento em si
mesmo é ou quente ou frio, e de que, se há conflito entre dois indivíduos, um
deles está errado e o outro está certo.138 Mas, se esse exemplo indica nitidamente
que visão está sendo rejeitada, já não deixa tão claro que visão está sendo
sustentada.

O que Protágoras queria dizer quando adicionou as qualificações “para


um” e “para outro” às afirmações de que o vento é frio e quente? Qual é o status
das coisas das quais o homem é medida? Qual é a natureza do vento, no exemplo
apresentado por Platão? Como as qualidades sensíveis (quente e frio) se
relacionam com o objeto físico (o vento)? Há diferenças entre a natureza que é
atribuída às coisas pelo Protágoras histórico e aquela que é atribuída pelo
Protágoras personagem? Ao menos três respostas a essas questões têm sido
defendidas por intérpretes modernos.

Segundo uma resposta, o que Platão atribuiu com razão ao Protágoras


histórico foi que há um único vento, um vento público ou comum, e esse vento é
em si mesmo, simultaneamente, frio e não-frio, frio e quente. Frio e quente são
duas qualidades ou propriedades que podem coexistir no mesmo objeto físico. O
que ocorre é que uma pessoa sente uma dessas qualidades, e outra pessoa sente a
outra. Isso acontece em virtude de a “disposição” de cada pessoa ser diferente, e
de cada “ato de conhecimento” ser necessariamente parcial, fazendo o objeto
físico aparecer, a cada vez, apenas sob um certo aspecto. Mas todos os aspectos do
vento existem nele prévia e independentemente, e não derivam da sua interação
com os indivíduos que o sentem. A afirmação de que “o vento é frio” é em geral
tomada como se implicasse que esse mesmo vento não é quente. Mas, como na
verdade ele é frio e quente, acrescentam-se as qualificações “para um” e “para
outro”, querendo-se com isso apenas deixar claro que um indivíduo está ciente de
uma propriedade do vento, enquanto o outro está ciente da outra. Tanto a
afirmação de que “o vento é frio para um” quanto a asserção de que “o vento é

138
G. B. Kerferd, O Movimento Sofista (São Paulo, Loyola, 2003), p. 148; e “Plato’s Account of
the Relativism of Protágoras” (op. cit.), p. 20.
105

quente para outro” são verdadeiras, porque ambas atribuem ao vento propriedades
que ele realmente possui em si mesmo.

Para Cornford, que é um dos muitos defensores dessa primeira resposta, a


doutrina do homem-medida assim concebida tanto se vincula com a tese de
Heráclito segundo a qual os opostos coexistem inseparavelmente, quanto se
sustenta no testemunho de Sexto Empírico.139 Se esse era o sentido da doutrina de
Protágoras, ela não deveria ser considerada subjetivista, nem estritamente
relativista, pois as qualidades sensíveis opostas pertenceriam ao objeto físico em
si mesmo, independentemente de todo e qualquer indivíduo que as sentisse.140

Vamos agora à segunda resposta: segundo ela, o que Protágoras disse, e o


que Platão atribuiu corretamente a ele, foi que há, sim, um único vento, um vento
comum, mas ele em si mesmo não é nem frio nem quente. A frieza do vento só
existe privadamente para mim quando eu sinto frio. O vento mesmo existe
independentemente de mim e de minha sensação de frio, mas sua frieza não. A
minha sensação de frio, por sua vez, deriva e depende do vento, desse vento que é
público, mas isso não significa que a frieza exista previamente no vento. As
qualidades sensíveis não têm existência independente da sensação, e sim vêm a
existir para mim como um objeto privado, isto é, como um resultado do impacto
do vento em mim, como um produto do qual só eu posso estar ciente. A simples
afirmação de que “o vento é frio” é em geral tomada como se significasse que ele
é frio em si mesmo e que ele absolutamente não é quente. Mas, como na verdade
ele em si mesmo não é nem frio nem quente, acrescentam-se as qualificações
“para um” e “para outro”, querendo-se com isso dizer que ele se torna quente na
interação particular e momentânea com alguém, com um “sentiente”, e se torna
frio na interação com outro. Tanto a afirmação de que “o vento é frio para um”
quanto a asserção de que “o vento é quente para outro” são verdadeiras, porque

139
Cf. Sexto Empírico, Hipotiposes Pirrônicas I 216: “[Protágoras] afirma também que as causas
inteligíveis de todos os fenômenos radicam na matéria, pois a matéria, na medida em que estes
dependem dela, é em potência tudo quanto a todos se revela. Mas os homens apreendem às vezes
umas propriedades e outra, outras, segundo suas diferentes disposições. Assim, o que se encontra
numa disposição conforme à natureza apreende das propriedades que estão na matéria aquelas que
podem revelar-se aos que se encontram em uma disposição conforme à natureza; quem se encontra
num estado contrário à natureza, aquelas que podem revelar-se a quem se encontra num estado
contrário à natureza.” (DK 80 A14)
140
Cf. M. F. Cornford, Plato’s Theory of Knowledege (op.cit.), p. 35.
106

ambas atribuem ao vento, nas suas relações com determinados indivíduos,


propriedades que ele realmente possui nessas relações.

Guthrie, um dos defensores dessa resposta, segundo a qual a doutrina de


Protágoras é uma doutrina estritamente relativista, contesta a argumentação de
Cornford, de um lado dizendo que a linguagem de Sexto141 é tão tardia que chega
a tornar suspeito seu conteúdo, e de outro alegando que Protágoras não poderia
estar de acordo com Heráclito, e com sua tese da co-presença dos opostos, pois
Heráclito “urgiu aos homens que seguissem o lógos que era comum a todos e os
desprezou por viverem como se cada um tivesse sua própria sabedoria privada”.142
Os problemas relativos ao testemunho de Sexto Empírico parecem de fato
insolúveis, pois todos os estudiosos, inclusive Cornford, reconhecem que ele pode
ter se baseado principalmente no Teeteto de Platão.143 No que toca ao vínculo com
Heráclito, parece-me que Guthrie está deixando de fazer uma distinção
importante: pois uma coisa é Protágoras concordar com a doutrina ontológica da
co-presença de opostos de Heráclito, ao afirmar que o vento é simultaneamente
quente e frio, e outra é Protágoras divergir das teses epistemológicas de Heráclito,
ao afirmar que dois enunciados que atribuem propriedades opostas a um mesmo
objeto físico são ambos integralmente verdadeiros e incorrigíveis. Parece ser mais
provável, pelo que vimos sobre a concepção de conhecimento de Heráclito, que
ele enfatizasse, no caso de dois enunciados “conflitantes” sobre o mesmo vento,
que cada enunciado diz somente “parte da verdade”, parte esta que não deve ser
tomada pelo todo, pois a “verdade inteira” – e os homens não estão condenados a
ter apreensões apenas parciais das coisas que possuem múltiplos aspectos – não é
nem que “o vento é exclusivamente quente” (ou melhor, “é exclusivamente quente
para um”) nem que “o vento é apenas frio” (ou melhor, “é apenas frio para
outro”), e sim que “o vento é quente e frio”.

Na disputa entre os defensores da primeira e da segunda resposta,


Aristóteles também é chamado a depor, mas seus testemunhos são usados para a

141
Cf. DK 80 A14, citado anteriormente.
142
Cf. W. K. C. Guthrie, Os Sofistas (São Paulo, Paulus, 1995), p. 175.
143
Cornford, ainda assim, considera este testemunho confiável. Argumentando que “Sexto sem
dúvida foi influenciado pelo Teeteto, mas parece ter tido fontes independentes também”. Cf. F. M.
Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 35.
107

defesa de ambas as posições. Guthrie, por exemplo, para apoiar sua interpretação,
lembra que Aristóteles negou expressamente que Protágoras tenha defendido a
teoria de que uma substância ou matéria contém propriedades que podem ou não
ser percebidas.144 Já Kerferd – para quem Platão atribui ao Protágoras histórico a
visão de que o vento é em si mesmo quente e frio – lembra que Aristóteles sempre
trata Protágoras como um dos que romperam com o princípio de não-contradição,
e alega que isso só seria possível se Protágoras tivesse de fato afirmado que as
coisas possuem em si mesmas propriedades opostas.145

A terceira resposta às questões relativas ao princípio de Protágoras e à


natureza do vento afirma que Platão está atribuindo a Protágoras, e com razão, a
tese de que não há um único vento, e sim dois ventos privados: o meu vento, que é
frio, e o seu vento, que não é frio. Não haveria um vento público, pertencente a
um mundo comum, mas, ao contrário, dois mundos, duas realidades estritamente
individuais que não possuiriam sequer um constituinte comum. A simples
afirmação de que “o vento é frio” costuma ser tomada como se estivesse se
referindo a um vento comum. Mas, adicionam-se as qualificações “para um” e
“para outro”, para que fique claro que na verdade ele é privado. Tanto a afirmação
de que “o vento é frio para um” quanto a de que “o vento não é frio para outro”
são verdadeiras porque cada uma está falando de um vento real que pertence a um
mundo privado.

Essa terceira resposta, até onde sei, teve um único defensor: Taylor.146
Ela recebeu críticas contundentes, entre as quais destacarei uma, que me parece
razoável: trata-se da crítica feita por Cornford e por Kerferd, que afirmam que a
linguagem desta passagem do Teeteto vai claramente contra essa interpretação,
pois não há sugestão nenhuma de dois ventos.147 De fato, Sócrates primeiro

144
Cf. Aristóteles, Metafísica 1047a 4, já citado anteriormente.
145
Cf. W. K. C. Guthrie, Os Sofistas (op. cit.), p. 175; e G. B. Kerferd, “Plato’s Account of the
Relativism of Protágoras” (op. cit.), p. 21.
146
Cf. A. E. Taylor, Plato the Man and his Work (Dover, 2001), p. 326.
147
Cf. F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 34; e G. B. Kerferd, “Plato’s
Account of the Relativism of Protágoras” (op. cit.), p. 20.
108

pergunta o que acontece quando duas pessoas estão “sob a ação do mesmo vento”
e em seguida pergunta como essas pessoas dirão que é “o vento em si mesmo”. 148

Vê-se que a passagem que apresenta o exemplo do vento, se tomada


isoladamente, deixa em aberto mais de uma possibilidade de interpretação. As
argumentações em favor de uma ou de outra interpretação passam então a ser
elaboradas pelos diversos comentadores com base em fontes externas ao diálogo
platônico e também a partir da conexão desta passagem com o restante do Teeteto
e com outros diálogos platônicos. Logo em seguida ao exemplo do vento, Sócrates
sugere que Protágoras teria falado por meio de enigmas para o público em geral,
mas teria dito a verdade secretamente para seus discípulos. Sócrates começa a
explicar no que consiste essa “doutrina secreta” afirmando que ela sustenta
inicialmente, entre outras coisas: que nenhuma coisa é una em si mesma; que nada
é, mas tudo devém; que coisas como a cor branca não têm existência própria, em
caráter estável, em nenhum lugar determinado; que o que chamamos de cor é algo
intermediário entre quem sente e o que é sentido; que a cor forma-se como
resultado do encontro dos olhos de alguém com o movimento particular que a
engendra, sendo peculiar a cada indivíduo.

Não resta dúvida de que ao menos parte dessa exposição inicial da


doutrina secreta, e justo a parte que fala explicitamente da sensação e das
qualidades sensíveis, está em conformidade com a segunda visão sobre o estatuto
do vento – aquela segundo a qual o vento em si mesmo não é nem frio nem
quente, e sim vem a ser, por exemplo, frio como resultado de sua interação com
um “sentiente”. Mas os intérpretes que crêem que essa visão não estava sendo
exposta no exemplo do vento afirmam que ela só entra em cena no diálogo a partir
da exposição da teoria da sensação, constituindo uma distorção platônica, e não
uma tese do Protágoras histórico.149 Já os que crêem que essa visão estritamente
relativista está sendo exposta e atribuída a Protágoras desde o exemplo do vento, e

148
Vale notar que Bostock, embora não defenda a resposta proposta por Taylor, também não
concorda com a idéia de que a linguagem dessa passagem vai contra ela. Segundo ele, o que
Sócrates mostra claramente, nessa passagem, quando sugere que o vento é quente para uma pessoa
e frio para outra, é que “não devemos perguntar o que ele é em si mesmo”. Cf. D. Bostock, Plato’s
Theaetetus (op. cit.), p. 58.
149
Cf. F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 34-36; e G. B. Kerferd, “Plato’s
Account of the Relativism of Protágoras” (op. cit.), p. 21.
109

absolutamente não é uma distorção platônica, afirmam que há distorção na


doutrina secreta, mas ela está presente em outros elementos, e não neste.150

Os comentadores, então, são unânimes apenas num ponto: partes da


doutrina secreta extrapolam os ditos e escritos de Protágoras, e têm como autores
ou o próprio Platão, ou outros filósofos, como, por exemplo, Heráclito e os
heraclíticos. A conclusão geral, portanto, é de que na apresentação da doutrina
secreta Platão atribui a Protágoras idéias que ele jamais escreveu e publicou. Mas,
como veremos com mais detalhe no próximo capítulo, isso não significa que
Platão esteja, de maneira dissimulada ou desapercebida, distorcendo o que
Protágoras de fato disse. Toda distorção, aqui, parece ser feita às claras e de forma
consciente, visto que o próprio Platão indica, no início da exposição da doutrina
secreta, que ela consiste numa doutrina que não poderia ser encontrada no livro de
Protágoras.

Quem defende a primeira interpretação do exemplo do vento – aquela


segundo a qual o vento é em si mesmo frio e quente –, tem razão para crer que
esse exemplo já contém e antecipa um elemento da doutrina secreta: a
inseparabilidade ou coexistência dos opostos, que nessa doutrina seria afirmada na
frase “nenhuma coisa é una em si mesma” (152d).151 De outro lado, tem motivos
para considerar que o exemplo do vento não antecipa em nada a tese do fluxo
universal, tese esta que a doutrina secreta introduz pela primeira vez, expressando-
a, por exemplo, na frase “em rigor nada é, tudo devém” (152e).152 Se é verdade

150
Cf. D. Bostock, Plato’s Theaetetus (op. cit.), p. 43-44 ; e M. Burnyeat, “Protagoras and Self-
Refutation in Later Greek Philosophy” (The Philosophical Review, vol. LXXXV, n. 1, January
1976), p. 46.
151
Embora aqui, por ora, somente o exame da doutrina secreta seja mencionado, os argumentos
usados para defender as diferentes interpretações do princípio do homem-medida com base no
Teeteto não se restringem a ele. Para citar apenas um exemplo, Kerferd afirma que as razões mais
fortes para se crer que a visão correta é a de que o vento em si mesmo é simultaneamente frio e
quente são encontradas em passagens posteriores, especialmente na Defesa de Protágoras e na
parte da crítica conhecida como Peritropé. Cf. G. B. Kerferd, O Movimento Sofista (op. cit.), p.
180-183.
152
Cornford afirma não haver razão para crer que Protágoras devesse sustentar uma doutrina do
fluxo tal como a apresentada na doutrina secreta, embora Sexto diga: “Afirma este [Protágoras]
que a matéria é fluida e que, ao fluir, se produzem constantemente adições que vêm a substituir as
perdas (...)”. Cf. F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 36; e Sexto Empírico,
Hipotiposes Pirrônicas, I 216-ss. Vale entretanto citar um trecho do texto de Mondolfo e Tarán
acerca dos “ecos” de Heráclito em autores anteriores a Platão: “Outro pensador indubitavelmente
influenciado por Heráclito é o concidadão de Demócrito, Protágoras, no qual deve-se considerar
110

que Heráclito sustentou ambas as teses – a da coexistência dos opostos e a do


fluxo – pode-se entender então que, na apresentação da doutrina secreta, Platão
está mostrando – e tem razão ao mostrar – que um ponto real de contato entre
Protágoras e Heráclito é a tese da co-presença dos opostos, e que a distorção da
doutrina histórica de Protágoras só se inicia quando essa doutrina é combinada
com a tese heraclítica do fluxo.153

Já os que defendem a segunda interpretação do exemplo do vento – a que


diz que o frio e o calor não existem no vento em si mesmo, mas se formam, isto é,
vêm a ser quando são sentidos – têm motivos para crer que esse exemplo também
já contém, ainda que implicitamente, um elemento da doutrina secreta: o fluxo. E
têm uma razão para considerar que a doutrina secreta introduz pela primeira vez a
tese da coexistência dos opostos, que, se fosse entendida como a tese de que
coexistem num mesmo objeto propriedades fixas e independentes, nada teria a ver
com a doutrina de Protágoras apresentada até então. Nesse caso, se é verdade que
Heráclito sustentou ambas as teses, pode-se entender que, ainda que a doutrina
secreta vá além da doutrina histórica de Protágoras no que afirma sobre a
inseparabilidade dos opostos, há um ponto real de contato, ou de afinidade, entre
Protágoras e Heráclito, que, mesmo não tendo sido registrado ou publicado por
Protágoras, está de algum modo por detrás da sua doutrina do homem-medida: o
fluxo, o devir.

Como vimos, uns acham que Platão, no Teeteto, distorce a doutrina de


Protágoras desde o momento em que a aplica à sensação, e outros acham que essa
distorção só se inicia na exposição da doutrina secreta, e é avisada por Platão. Uns
acham que a doutrina secreta extrapola a tese do homem-medida introduzindo
certos elementos, e outros acham que são elementos distintos os que geram
distorção. Não há dúvida de que é difícil reconstituir o que o Protágoras histórico
de fato escreveu e disse, assim como é difícil saber se isso difere do que Platão
transmite aqui ou ali sobre Protágoras. Vimos o porquê dessas dificuldades: o
texto de Protágoras se perdeu, muitas fontes indiretas podem ser consideradas

uma derivação de Heráclito a concepção da hýle rheusté (DK 80 A14)”. Cf. R. Mondolfo e L.
Tarán. Eraclito: Testimonianze e Imitazioni (op. cit.), p. LXXI.
153
Este é o ponto de vista de Cornford, por exemplo. Cf. F. M. Cornford, Plato’s Theory of
Knowledge (op. cit.), p.38.
111

pouco confiáveis, o próprio Platão é uma das principais fontes para nosso
conhecimento do Protágoras histórico, e o sentido do que Platão disse a respeito
de Protágoras é disputado. Mas, mesmo enquanto essa disputa fica em aberto, o
que essas as interpretações “rivais” nos mostram é que o exemplo do vento e a
introdução da doutrina secreta explicam e justificam, seja de um modo, seja de
outro, a associação de Protágoras com Heráclito, que, como será visto, é uma
associação feita explicitamente por Platão.

O foco principal deste trabalho não é a reflexão sobre a recepção


platônica de Protágoras, nem a reconstituição das doutrinas históricas de
Protágoras, e isso já justifica a decisão de, aqui, deixar em aberto a disputa e esse
respeito. É verdade que eu gostaria de explorar, de extrair as conseqüências e de
verificar se é plausível uma leitura que não é proposta pelos intérpretes do Teeteto
e que não deixa de me ocorrer: a de que Platão oferece deliberadamente um
exemplo ambíguo quando fala do vento, bem como apresenta deliberadamente
dois pontos de contato ou de afinidade entre Protágoras e Heráclito na doutrina
secreta, mostrando com isso que a tese do homem-medida do próprio Protágoras
é, tal como foi formulada originalmente, pouco clara, ambígua, e pode engendrar
interpretações e associações diversas. Se essa leitura puder ser sustentada, não
será preciso decidir por uma das interpretações antagônicas, como se Platão só
pudesse estar explorando um dos dois sentidos disponíveis na tese de Protágoras,
e não ambos. Porém, essa investigação não cabe aqui e precisa ser deixada para
outra ocasião.

Mas, ainda que continuem abertas possibilidades distintas de


interpretação do que teria dito o Protágoras histórico, o que muito me interessa e
instiga é que mesmo as interpretações mais discrepantes – a que lê Protágoras
como exclusivamente vinculado a uma tese segundo a qual propriedades opostas
podem ser co-presentes numa mesma coisa, e a que o vê vinculado somente a uma
teoria mobilista – justificam a associação de Protágoras com Heráclito, tenha ou
não havido clara influência ou eco das teses de Heráclito sobre a doutrina do
homem-medida do Protágoras histórico.

O exemplo do vento (152b-c) precede imediatamente a primeira menção


de Sócrates a Heráclito. Antes de iniciar a etapa da crítica à primeira definição de
112

Teeteto, todo o texto que se segue a esse exemplo trata de expor as teses
heraclíticas, de associá-las a Protágoras e a Teeteto, e de construir, a partir dessa
associação, uma teoria da sensação. Devemos começar, portanto, o exame da
leitura platônica de Heráclito no Teeteto. E é com essa tarefa que iniciarei o
próximo capítulo.
113

4.

Platão lendo Heráclito no Teeteto

4.1

As referências a Heráclito e a outros filósofos

Entre as mais importantes características formais e filosóficas dos


primeiros diálogos da velhice de Platão, está o fato de que eles dão muito espaço e
ênfase à discussão de teorias de filósofos mais antigos e também contemporâneos,
algumas vezes mencionados pelo nome (como no Parmênides e no Teeteto),
outras, apenas descritos ou sugeridos por outros tipos de indicação (como no
Sofista, onde, ao lado da menção direta a Parmênides, abundam referências
indiretas a diversos filósofos).154 No Teeteto, além de outros nomes citados ou
apenas sugeridos, tanto Protágoras e seu princípio do homem-medida, quanto
Heráclito, os heraclíticos e a doutrina do fluxo universal são mencionados e
examinados extensamente.

De fato, no Teeteto, Platão mostra ter conhecido e ter levado a sério a


doutrina do fluxo universal, que é uma das teses mais discutidas na primeira parte
do diálogo. Essa doutrina é ali atribuída a muitos pensadores, mas especialmente a
Heráclito e seus seguidores. Para quem faz uma primeira leitura do Teeteto com o
interesse de observar o que ali é dito sobre o pensamento de Heráclito, o que
chama logo a atenção é que, segundo o diálogo, Heráclito afirmou o fluxo
universal em contraste com Parmênides, defensor de uma realidade estável e fixa
114

(152e). Essa interpretação formou uma das imagens mais célebres de Heráclito: a
do pensador mobilista, opositor do imobilismo eleata. Todavia, numa leitura mais
detida da primeira parte do Teeteto, percebe-se que a tese do fluxo universal não é
apresentada de uma só forma ao longo do texto, nem é o tempo todo atribuída, ao
menos não explicitamente, a Heráclito. Percebe-se também que a tese do fluxo
universal não é a única, e sim uma das teses atribuídas a Heráclito, além de não
ser apresentada de forma isolada, e sim conectada com ao menos mais duas
doutrinas: a tese da unidade dos opostos e a tese da ilegitimidade dos nomes
unívocos.

O primeiro objetivo deste capítulo, portanto, é examinar o modo como


Platão interpretou e transmitiu o pensamento de Heráclito, localizando no Teeteto
as passagens em que Platão está claramente se referindo ao mobilismo que ele
atribui ao Efésio e aquelas em que ele está tratando de um mobilismo estendido ou
radicalizado que não é mais imputado a Heráclito, e sim a seus adeptos. Outro
objetivo do capítulo é mostrar como, ao tratar das teses de Heráclito, Platão não
discute apenas a doutrina do fluxo universal, mas também outras teses, de modo a
desenhar o pensamento heraclítico de maneira mais rica e multifacetada do que
muitas vezes se supõe.

4.2

A primeira menção a Heráclito

Até o ponto do diálogo que já examinamos de perto (152c), a doutrina do


homem-medida de Protágoras é analisada por Sócrates e Teeteto muito
brevemente. Na interpretação de Sócrates, essa doutrina afirmaria que as coisas
são realmente tal como aparecem para quem as sente e, desse modo, ela garantiria
a verdade e a infalibilidade da sensação, mostrando-se muito útil na defesa da
definição de conhecimento oferecida por Teeteto. De fato, em meio à exposição
socrática, Teeteto afirma concordar com a doutrina do homem-medida,

154
J. Mejer, “Plato, Protagoras and the Heracliteans: Some Suggestions Concerning Thaetetus
115

consentindo em vinculá-la à sua própria definição. Mas, após tão rápido exame
dessa doutrina, Sócrates, ainda que sem perdê-la de vista, retira dela o foco da
análise, associando-a a uma outra tese, a chamada doutrina secreta:

Sócrates – Então, em nome das Graças, não teria Protágoras, esse


poço de sabedoria, falado por enigmas para a multidão sem-número,
na qual nos incluímos, porém dito em segredo a verdade para seus
discípulos?

Teeteto – Que queres dizer com isso, Sócrates?

Sócrates – Vou explicar-me, e não será argumento sem valor, a


saber: que nenhuma coisa é una em si mesma e que não há o que
possas denominar com acerto ou dizer como é constituída. Se a
qualificares como grande, ela parecerá também pequena; se pesada,
leve, e assim em tudo o mais, de forma que nada é uno, ou algo
determinado ou como quer que seja. Da translação das coisas, do
movimento e da mistura de umas com as outras é que se forma tudo o
que dizemos ser, sem usarmos a expressão correta, pois em rigor nada
é, tudo devém.155 Sobre isso, com exceção de Parmênides, todos os
sábios, por ordem cronológica, estão de acordo: Protágoras, Heráclito
e Empédocles, e, entre os poetas, os pontos mais altos dos dois
gêneros de poesia: Epicarmo, na comédia, e Homero, na tragédia.
Quando este se refere Ao pai de todos os deuses eternos, o Oceano e a
mãe Tétis, dá a entender que todas as coisas se originam do fluxo e do
movimento. Não achas que é isso mesmo o que ele quer dizer?

Teeteto – É também o que eu penso. (Teeteto, 152d)156

151d-186e” (op. cit.), p. 40.


155
De acordo com os comentários já feitos sobre o significado do verbo “ser” nessas passagens do
Teeteto, alterei este trecho da tradução brasileira, de modo que onde aparecia “existir” inseri “é”, e
onde aparecia “é ou existe” mantive apenas “é”.
156
ΣΩ. – Ἆρ’ οὖν πρὸς Χαρίτων πάσσοφός τις ἦν ὁ Πρωταγόρας, καὶ τοῦτο ἡµῖν µὲν
ᾐνίξατο τῷ πολλῷ συρφετῷ, τοῖς δὲ µαθηταῖς ἐν ἀπορρήτῳ τὴν ἀλήθειαν ἔλεγεν
ΘΕΑΙ. – Πῶς δή, ὦ Σώκρατες, τοῦτο λέγεις;
ΣΩ. – Ἐγὼ ἐρῶ καὶ µάλ’ οὐ φαῦλον λόγον, ὡς ἄρα ἓν µὲν αὐτὸ καθ’ αὑτὸ οὐδέν
ἐστιν, οὐδ’ ἄν τι προσείποις ὀρθῶς οὐδ’ ὁποιονοῦν τι, ἀλλ’ ἐὰν ὡς µέγα προσαγορεύῃς,
καὶ σµικρὸν φανεῖται, καὶ ἐὰν βαρύ, κοῦφον, σύµπαντά τε οὕτως, ὡς µηδενὸς ὄντος
116

Vemos, no início desta passagem, que Sócrates justifica a apresentação


de uma nova doutrina afirmando que a tese do homem-medida era obscura, era
uma fala “por enigmas”, e sugerindo que ela poderia ser esclarecida por meio da
exposição de uma doutrina apresentada em segredo para os seus discípulos. Nesse
sentido, a associação de Protágoras com a doutrina secreta cumpre a mesma
função que a associação de Teeteto com a sentença do homem-medida: esclarecer
aquilo que na tese anteriormente exposta permanecia vago, obscuro, enigmático.

Em uma primeira abordagem, bastante resumida, da doutrina secreta tal


como apresentada neste trecho, podemos ver que ela envolve ao menos três teses,
e não apenas uma: segundo a primeira delas, nenhuma coisa é una em si mesma,
pois qualquer coisa que aparece de um modo determinado também aparece do
modo oposto – e já se concordou que o que parece é realmente tal como parece
ser. De acordo com a segunda tese, tendo em vista que nenhuma coisa é una em si
mesma, nenhuma coisa pode ser denominada corretamente ou qualificada com
justeza, pois, se uma coisa recebe um nome ou qualificação de acordo com uma
aparência determinada, ela também recebe o nome ou a qualificação oposta, de
acordo com sua aparência oposta. Estas duas teses não envolvem – ao menos não
explicitamente – a mudança ou o movimento das coisas ao longo do tempo, e sim
mostram que, simultaneamente, uma mesma coisa pode aparecer, ser nomeada e
ser qualificada de maneiras opostas, devendo por isso ser considerada múltipla e
não una.157 A terceira tese é a que postula explicitamente o movimento e a

ἑνὸς µήτε τινὸς µήτε ὁποιουοῦν· ἐκ δὲ δὴ φορᾶς τε καὶ κινήσεως καὶ κράσεως πρὸς
ἄλληλα γίγνεται πάντα ἃ δή φαµεν εἶναι, οὐκ ὀρθῶς προσαγορεύοντες· ἔστι µὲν γὰρ
οὐδέποτ’ οὐδέν, ἀεὶ δὲ γίγνεται. καὶ περὶ τούτου πάντες ἑξῆς οἱ σοφοὶ πλὴν Παρµενίδου
συµφερέσθων, Πρωταγόρας τε καὶ Ἡράκλειτος καὶ Ἐµπεδοκλῆς, καὶ τῶν ποιητῶν οἱ
ἄκροι τῆς ποιήσεως ἑκατέρας, κωµῳδίας µὲν Ἐπίχαρµος, τραγῳδίας δὲ Ὅµηρος, <ὃς>
εἰπών — Ὠκεανόν τε θεῶν γένεσιν καὶ µητέρα Τηθύν πάντα εἴρηκεν ἔκγονα ῥοῆς τε καὶ
κινήσεως· ἢ οὐ δοκεῖ τοῦτο λέγειν;
ΘΕΑΙ. – Ἔµοιγε. (Teeteto, 152d)
157
Vale lembrar que o exemplo do vento, apresentado por Sócrates um pouco antes, parece, até
aqui, se relacionar muito mais com estas teses, da simultaneidade de aparências e qualidades
opostas num mesmo objeto, do que com a tese do movimento e mudança das qualidades de um
objeto ao longo do tempo, pois o mesmo vento, segundo o exemplo, pode parecer quente e frio
117

mudança das coisas ao longo do tempo como a origem de tudo o que


erroneamente supomos ser, mas que na verdade não é, e sim devém.

A doutrina secreta, que de diversas formas se conecta com a tese


protagoreana de que uma mesma coisa pode parecer ter qualidades opostas, de
que essa oposição de qualidades não gera contradição, e de que está garantido que
ambas as qualidades opostas são verdadeiras qualidades da mesma coisa, é
atribuída por Sócrates não apenas a Protágoras e Heráclito, mas também a todos
os sábios e poetas, com a única exceção de Parmênides. Nesse sentido, a
associação feita entre a doutrina do homem-medida de Protágoras e as idéias de
Heráclito é apresentada de forma bem diversa da associação que fora feita entre a
definição de Teeteto e a doutrina de Protágoras. Enquanto na associação de
Teeteto com Protágoras a conexão com a tese de um só pensador era explícita, o
pensador em questão era expressamente nomeado, e declarava-se que a tese
estava sendo citada literalmente, agora, na exposição da doutrina secreta de
Protágoras, a ligação é feita com uma doutrina defendida por diversos filósofos e
poetas, e nem todos esses defensores são nomeados, além do que não há nenhuma
indicação de que a doutrina esteja sendo citada, o que sugere que ela, na melhor
das hipóteses, está sendo reconstruída por Platão.

Penso, concordando com muitos intérpretes desta passagem de


apresentação da doutrina secreta, que o objetivo de Platão ao qualificá-la como
“secreta” ou “dita em segredo” era justamente deixar claro que tal doutrina nunca
fora escrita e apresentada ao público por Protágoras. Conectando esta passagem
com aquela em que ele enfatizava que a doutrina do homem-medida estava sendo
citada, creio que Platão dá, aqui, não a primeira, mas a segunda demonstração de
cuidado na reconstituição e na discussão do pensamento de Protágoras,
distinguindo os pressupostos e desdobramentos de seus escritos – que poderiam
inclusive não ter sido percebidos pelo Protágoras histórico – das palavras que
estavam realmente presentes nesses escritos. Mas vale notar que dizer que Platão
tinha cuidado não é o mesmo que dizer que seu interesse era histórico, pois muito
mais plausível parece ser supor que, já que os leitores do seu tempo tinham
acesso aos escritos de Protágoras, uma distorção excessiva sobre a qual esses

num mesmíssimo momento.


118

leitores não fossem alertados retiraria a força de qualquer crítica ou refutação das
doutrinas desse sofista.

Mas, se a doutrina secreta está sendo explicitamente atribuída a vários


filósofos e poetas, por que é tão comum falar-se dela, sem maiores explicações,
como se ela se vinculasse especialmente com as teses defendidas por Heráclito e
pelos heraclíticos? Por que se destaca Heráclito, se incluem os heraclíticos – que
sequer foram mencionados nesta passagem – e praticamente se deixam de lado os
outros defensores da doutrina secreta? Há muitas outras passagens do diálogo em
que, novamente, a doutrina secreta é atribuída a vários nomes, e não exclusiva ou
prioritariamente a Heráclito e aos heraclíticos.158 Mas, por outro lado, há uma
passagem que mostra muito claramente que os heraclíticos estão sendo tomados
como os exemplos paradigmáticos da teoria do fluxo universal, que é, de toda a
doutrina secreta, a parte mais extensamente discutida no diálogo: “Os sectários de
Heráclito são os mais ardorosos defensores de tal doutrina” (179d).159

O fato é que a interpretação mais comum da doutrina secreta (e,


principalmente, da teoria do fluxo) no Teeteto, interpretação esta segundo a qual
Platão aqui trata especialmente das teorias de Heráclito e dos heraclíticos, parece
se justificar se pensarmos que o que Platão está indicando é que a teoria do fluxo
dos heraclíticos se funda numa determinada interpretação da teoria de Heráclito, a
qual, por sua vez, se funda ela própria sobre uma tradição muito antiga, que tem

158
Cito algumas das passagens em que a doutrina secreta é atribuída novamente, mesmo que de
forma vaga, a diversos autores. Vale notar, no entanto, que essa atribuição só não é vaga no que
diz respeito a Homero e Heráclito, que são repetidamente mencionados: “E quem se atreveria a
lutar contra um exército tão forte e um general como Homero, sem cair no ridículo?” (153a); “E
não me ficarás agradecido, se te ajudar a patentear o sentido oculto do pensamento de um homem
famoso, ou melhor, de vários homens famosos?” (155d-e); “Outros há engenhosíssimos, cujos
segredos pretendo revelar-te. Para esses, o princípio de que pende tudo o que acabamos de expor é
que só há movimento e que, fora disso, nada existe (...)” (156a); “Por isso mesmo, tinhas carradas
de razão, quando disseste que o conhecimento não passa de sensação, o que vem a dar,
precisamente, nisto de Homero e de Heráclito e de toda a tribo de seus acompanhantes.” (160d);
“Porém discutir com seriedade, Sócrates, doutrinas heraclitianas, ou, como disseste, homéricas, se
não forem ainda mais velhas, com aquela gente de Éfeso que se apresenta como conhecedora dela
(...).”(179e); “E esse problema, não o recebemos dos antigos velado pela poesia, para melhor
escondê-lo das multidões, que Oceano e Tétis, geradores do resto das coisas, são corrente d’água, e
que nada é imóvel?” (180d).
159
οἱ γὰρ τοῦ Ἡρακλείτου ἑταῖροι χορηγοῦσι τούτου τοῦ λόγου µάλα ἐρρωµένως
(Teeteto, 179d).
119

sua fonte em Homero e nos velhos mitos.160 Parece-me que Platão está sugerindo
que a maioria dos filósofos acreditou em algum tipo de teoria do fluxo, que quem
mais a desenvolveu foi Heráclito, que seus defensores mais apaixonados eram os
seguidores de Heráclito e que a única exceção era a escola eleática. Além disso,
se a doutrina do fluxo é claramente atribuída a Homero e a muitos outros
pensadores, e a eles é repetidamente imputada no diálogo, o mesmo não ocorre
com as outras teses envolvidas na doutrina secreta – a co-presença dos opostos e a
ilegitimidade dos nomes unívocos. Se ficar claro – como espero que fique, ao
longo desta tese – que essas duas outras teses são teses genuína e tipicamente
heraclíticas, será mais que plausível crer que Platão, embora também indique que
muitos são os defensores da doutrina secreta, destaca e opera principalmente com
as teorias de Heráclito e dos heraclíticos, e estará justificada a tentativa de
examinar o significado da doutrina secreta com referência a estes filósofos.

4.3

A relação entre as três teses em diversas leituras

A questão que se coloca agora, e que muito ocupa os intérpretes do


Teeteto, é aquela que pergunta o que Platão quer dizer quando põe na boca de
Protágoras a doutrina secreta, a doutrina do fluxo, logo após a afirmação da
doutrina do homem-medida. Qual é, afinal, a relação exata entre a doutrina secreta
e a doutrina do homem-medida de Protágoras na primeira parte do Teeteto? Assim
como não havia sido inteiramente esclarecida a relação que Sócrates estava

160
E nisto concordo com René Schaerer, “Héraclite Jugé par Platon”, em J. Mansfield & L. Rijk
(eds.), Mélanges C. J. de Vogel (Assen, Van Gorcum, 1975), p. 12. Vale notar também a
observação de Mondolfo, que lembra que Platão, nesta passagem do Teeteto, destaca somente as
afinidades entre os autores mencionados, deixando de lado as diferenças, mesmo quando elas eram
assinaladas pelas polêmicas entre eles, tais como as de Heráclito contra Homero. Mas Platão, que
no Crátilo expressa essa mesma vinculação entre Heráclito e Homero (402a-b), não ignora essas
polêmicas, e mostra isso claramente ao apresentar Heráclito zombando de Homero por ter
identificado a lei universal com o sol (Crátilo, 413b-c). Cf. Rodolfo Mondolfo, “Dos textos de
Platón sobre Heráclito”, Notas y Estudios de Filosofia, n. 4 (Tucumán, Argentina, 1953), p. 241-
242.
120

buscando estabelecer entre a definição de conhecimento de Teeteto e a sentença


de Protágoras, tampouco é imediatamente clara a relação que Sócrates institui
entre a sentença de Protágoras e as teses de Heráclito e dos heraclíticos.

Vários foram os intérpretes que buscaram, de maneiras muito diversas,


esclarecer a relação entre essas três teses: a definição de Teeteto do conhecimento
como sensação; a doutrina de Protágoras de que o homem é a medida de todas as
coisas; a doutrina secreta que contém a teoria heraclítica do fluxo. Cabe portanto
discutir, mesmo que de forma resumida, algumas linhas interpretativas da relação
entre as três teses. Duas leituras rivais são as mais comumente referidas na
literatura acadêmica sobre Platão, muito embora não sejam as únicas leituras
possíveis, nem as únicas levadas a cabo pelos seus intérpretes. Buscarei expor
essas duas leituras em suas linhas gerais, bem como apresentar algumas das
principais críticas que foram a elas dirigidas – críticas estas que fazem parte,
muitas vezes, de interpretações alternativas sobre a relação entre as três teses.

Uma das mais célebres leituras sobre a relação entre as teses de Teeteto,
Protágoras e Heráclito tem em Francis M. Cornford um de seus maiores
representantes.161 Cornford foca seu comentário nas semelhanças e diferenças
entre as posições do próprio Platão e as de Heráclito e Protágoras. Sua idéia é que
Platão faz uma combinação dialética, tanto entre a definição de Teeteto e a
doutrina de Protágoras, quanto entre a doutrina de Protágoras e a tese de
Heráclito, com o propósito mais imediato de formular uma teoria da sensação e,
assim, esclarecer a definição vaga dada por Teeteto. Nas palavras de Cornford, “o
que realmente aconteceu foi que Platão deu uma explicação sobre a natureza da
percepção que envolve elementos tirados de Protágoras e de Heráclito – elementos
que o próprio Platão aceita como verdadeiros quando são guardados e limitados
com as necessárias qualificações”.162

Segundo essa leitura, na crítica que Platão apresenta logo após ter aceito
certos elementos das teses de Heráclito e Protágoras e ter formulado sua própria
teoria da sensação, ele mostraria aquilo que não aceita das teses protagórica e

161
O resumo das posições de F. M. Cornford exposto a seguir foi feito a partir de seu texto Plato’s
Theory of Knowledge (op. cit), p. 5-13, 30-40 e 97-101.
162
F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 31.
121

heraclítica, e também deixaria claro que, justamente pelo fato de a sensação


operar tal como ele terá acabado de mostrar, ela não pode constituir
conhecimento. Mas, se ao derrubar a definição de Teeteto Platão, por um lado,
estaria fazendo cair junto uma parte das teses de Protágoras e de Heráclito, por
outro lado, ele estaria retendo e mantendo intacta sua própria teoria da sensação,
bem como uma outra parte das teses de Protágoras e Heráclito. Por isso, como diz
Burnyeat, segundo essa primeira leitura da relação entre as três teses, “não se pode
pensar seriamente que as três teses coincidam ou se impliquem mutuamente a
ponto de caírem por terra ou se manterem de pé sempre juntas”.163

Para Cornford, o propósito de Platão, no Teeteto, ao excluir toda menção


às formas inteligíveis e examinar a tese segundo a qual nosso conhecimento é
sensação, é mostrar que sem as formas inteligíveis não pode haver conhecimento.
Ele afirma que uma das principais origens da teoria das idéias de Platão é sua
aceitação da doutrina heraclítica do fluxo tal como aplicada às coisas sensíveis: as
coisas sensíveis, estando em perpétua mudança, não poderiam ser conhecidas. Por
isso, Platão diria que deve haver seres separados, as formas inteligíveis, que
sempre são o que são, que não podem sofrer nenhuma mudança, e que podem ser
conhecidas pela alma. Para Cornford, Platão, ao declarar no Fédon, na República
e no Timeu que há fluxo no mundo sensível, não está fazendo nada além de
concordar com a doutrina de Heráclito. Por outro lado, Platão deixaria claro no
Teeteto que concorda, sim, mas não integralmente, com a tese heraclítica, pois tal
tese falharia ao defender, sem nenhuma restrição, que “todas as coisas estão
sempre mudando”. Platão somente aceitaria de Heráclito uma parte de sua tese,
aquela que afirma que “todas as coisas sensíveis”, e não todas as coisas sem
exceção, estão em perpétua mudança.

Quanto à doutrina do homem-medida de Protágoras, Cornford também


afirma que Platão concorda e retém alguns de seus elementos, mas discorda e
rejeita outros. Platão não aceitaria a posição protagórica tal como aplicada
irrestritamente pelo sofista; ou seja, não concordaria que cada homem é a medida
incorrigível das coisas quando realiza julgamentos que vão além de suas

163
Cf. M. Burnyeat, The Theaetetus of Plato (op. cit.), p. 10.
122

sensações imediatas e presentes. Mas, no campo mais restrito da sensação


presente, imediata e privada, Platão teria adotado a mesma posição de Protágoras.

Muitas foram as críticas dirigidas à leitura de Cornford e daqueles que


com ele concordaram ao menos nos pontos mais relevantes. Numa dessas críticas,
Irwin mostra por que discorda de duas idéias centrais dessa leitura, a saber, a idéia
de que Platão adota a doutrina heraclítica do fluxo nas coisas sensíveis tal como
apresentada no Teeteto (não apenas em sua versão moderada, mas também em sua
versão extrema), e a idéia de que essa doutrina heraclítica do fluxo fornece os
principais argumentos apresentados por Platão para defender a separação das
formas inteligíveis.164

Para que os diálogos platônicos dessem suporte a essas duas idéias,


segundo Irwin, seria preciso que eles apresentassem evidências para confirmar os
seguintes pontos: Platão aceitou as opiniões heraclíticas segundo as quais as
coisas sensíveis estão em fluxo constante; por causa desse fluxo Platão inferiu que
não poderia haver conhecimento das coisas sensíveis; desde que Platão supôs
haver conhecimento de alguma coisa, esse conhecimento tinha de ser de coisas
separadas dos sensíveis; as opiniões heraclíticas sobre o fluxo fornecem razões
para a separação das formas inteligíveis.

Com o propósito de refutar a primeira idéia, Irwin sustenta que Platão


nunca endossa a visão extremada do fluxo, nem no Teeteto nem em qualquer
outro diálogo. Ele recorre ao diálogo O Banquete (208a-b) para argumentar que,
ao contrário, o próprio Platão se opõe à visão do fluxo extremo exposta no
Teeteto: ali, Diotima mostra que um homem muda constantemente (em
comparação com ele mesmo num tempo anterior), mas permanece o mesmo
homem ao longo de sua vida.

Para recusar a segunda idéia – segundo a qual Platão parte da doutrina do


fluxo para argumentar a favor da separação das formas inteligíveis –, Irwin
observa que o Teeteto não contém nenhuma inferência de que formas separadas
são requeridas para resolver os problemas que resultam do fluxo extremado. Irwin
também argumenta que, mesmo que Platão mencione, como faz no Teeteto e em

164
Cf. Terence H. Irwin, “Plato’s Heracleiteanism” (The Philosophical Quarterly, vol. 27, n. 106,
Jan. 1977), p. 1-23.
123

outros diálogos, o fluxo heraclítico – entendido como a mudança de uma coisa


com relação a ela mesma num momento anterior –, ele nunca o menciona em seus
argumentos pró-separação das formas inteligíveis, e sim em algumas conclusões
sobre as características das coisas sensíveis e das formas inteligíveis.

Além disso, Irwin busca mostrar que há duas espécies muito diversas de
fluxo heraclítico, e que, se Platão usa, nos diálogos da fase intermediária, algum
tipo de fluxo heraclítico para argumentar a favor da separação das formas
inteligíveis, o fluxo em questão não é aquele primeiro, que é o mais extensamente
explorado no Teeteto, e sim um outro tipo de fluxo ou de instabilidade, a saber, o
fluxo incluído na tese heraclítica da unidade dos opostos e causado pelo fato de
uma coisa poder possuir propriedades opostas e receber predicados contrários em
diferentes situações ou comparações, sem para isso precisar mudar com relação a
si mesma ao longo do tempo. Para Irwin, Platão se mostra muito mais preocupado
com este tipo de fluxo do que com o primeiro, pois, por exemplo, no caso de
propriedades relativas – como “igual” ou “grande” –, todas as coisas sensíveis que
possuem uma propriedade possuem também, simultaneamente, a propriedade
oposta, podendo receber predicados contrários que não podem ser definidos ou
explicados por referência a propriedades sensíveis.

Não apenas Irwin, mas também outros intérpretes afirmam que as


principais razões para a afirmação platônica das formas inteligíveis separadas não
estão na adoção da doutrina heraclítica do fluxo universal, e sim em preocupações
bastante distintas. Nehamas,165 por exemplo, argumenta que, se de um lado não há
por que discordar que Platão acreditou que as coisas sensíveis são imperfeitas em
comparação com as formas inteligíveis, de outro lado, uma tradição desenhou uma
figura equivocada do modo como essa imperfeição se manifesta. Essa tradição
afirma que, para Platão, as coisas sensíveis não podem ser conhecidas, pois elas
são mutáveis e imperfeitas; de modo que, para haver conhecimento, é preciso
haver coisas imutáveis e perfeitas.

165
Cf. Alexander Nehamas, “Plato and the Imperfection of the Sensible World” (American
Philosophical Quarterly, vol. 12, n. 2, April 1975), p. 105-117.
124

Se a mudança incessante das coisas sensíveis seria uma das razões para
que Platão afirmasse a existência de formas inteligíveis separadas e imutáveis,
outra razão seria a imperfeição das coisas sensíveis, entendida como a
incapacidade de encarnar exatamente as qualidades ou propriedades que
atribuímos às formas inteligíveis. Segundo essa tradição, as coisas sensíveis são
imperfeitas, pois, ao contrário das formas inteligíveis, elas nunca são exatamente,
e sim apenas aproximadamente, qualquer coisa que digamos que elas são: as
coisas particulares que dizemos ser iguais ou circulares são só aproximadamente
iguais ou circulares, assim como pessoas belas ou ações justas são só
aproximadamente belas ou justas. Segundo essa visão, portanto, as coisas
particulares seriam imperfeitas na medida em que suas propriedades seriam
encarnações defeituosas, incompletas, inexatas das formas inteligíveis.

Nehamas se opõe a essa visão e propõe que Platão foi levado a formular
a teoria das idéias a partir, não do mobilismo, nem da imperfeição das coisas
sensíveis tal como entendida por essa tradição, e sim dos problemas criados por
um grupo de termos, entre os quais se destacam os termos que designam as
virtudes morais e aqueles que envolvem comparação e mensuração. A
preocupação platônica com esses termos se justificaria quando se observasse que
tanto eles quanto seus contrários podem ser aplicados aos mesmos objetos,
simultaneamente, sem gerar contradição. Assim, uma mesma pessoa pode (em
diferentes contextos, mas sem sofrer nenhuma mudança nela mesma) ser descrita
tanto como bela quanto como feia, grande ou pequena, corajosa ou covarde. Além
disso, a definição desses termos é problemática, pois o que poderia definir um
deles (a coragem) numa situação poderia definir seu contrário (a covardia) noutra
situação.

Ao postular as formas inteligíveis, Platão estaria introduzindo, segundo


Nehamas, um novo tipo de objeto que tornaria possível conhecer o que a beleza, a
justiça e a grandeza são nelas mesmas. Diferentemente das coisas sensíveis, que
possuem suas propriedades (perfeitas e exatas, e não apenas aproximadas) de
forma acidental, circunstancial, relativa (isto é, de modo imperfeito), a forma da
beleza é essencialmente bela, isto é, é bela em si mesma, em todo e qualquer
contexto, independentemente das circunstâncias e das relações com outras coisas.
125

A imperfeição das coisas sensíveis não estaria, então, nas suas propriedades, e sim
no modo como essas propriedades são possuídas. Nehamas, nessa abordagem, se
aproxima de Irwin e se afasta de Cornford, ao discordar da idéia de que Platão
tanto adota a doutrina heraclítica do fluxo universal como um dos princípios mais
representativos de sua concepção de mundo físico quanto parte dessa doutrina
para elaborar sua teoria das idéias. Além disso, Nehamas também se aproxima de
Irwin ao argumentar que há uma doutrina que preocupa muito mais Platão, nos
diálogos intermediários, do que a doutrina heraclítica do fluxo universal: e esta é a
doutrina (também heraclítica) da unidade ou da co-presença de opostos.

Se Irwin e Nehamas discordam de Cornford e de toda uma linha


interpretativa quando defendem que Platão nunca adotou a doutrina heraclítica do
fluxo universal como centro de sua concepção do mundo físico ou como razão
para a postulação das formas inteligíveis, já Bolton166 sustenta que Platão adotou a
tese do fluxo em sua versão extrema nos diálogos intermediários, e que neles essa
tese foi central. Entretanto, Bolton afirma que Platão, no Teeteto e nos diálogos da
velhice, deixou de lado a versão extrema da doutrina do fluxo, de modo que seria
equivocada a visão de Cornford de que Platão, no Teeteto, ainda estaria adotando
a mesma doutrina do fluxo, restringindo-a somente para que ela não pretendesse
se referir às coisas em sua totalidade, e sim somente às coisas sensíveis.

Bolton investiga o desenvolvimento da distinção platônica entre ser


(ousía) e devir (génesis), e diverge de Cornford e de outros que pensaram que
Platão sempre sustentou uma versão dessa distinção em que a esfera do ser é o
âmbito das coisas que nunca mudam em nenhum sentido, e a esfera do devir é o
âmbito das coisas sensíveis, que não são estáveis de nenhum modo. Ele também
discorda de outras interpretações predominantes sobre a distinção platônica entre
ser e devir: tanto daquela segundo a qual Platão sempre sustentou uma mesma
versão moderada dessa distinção, quanto daquela segundo a qual Platão adotou a
visão extrema do devir e da distinção ser-devir nos diálogos intemediários, mas

166
Cf. Robert Bolton, “Plato’s Distinction Between Being and Becoming” (The Review of
Metaphysics, n. 29, 1975-76), p. 66-95.
126

depois descobriu que toda e qualquer distinção entre essas duas categorias era
incoerente.

Sua posição é a de que a distinção entre ser e devir foi muito modificada
ao longo da obra de Platão, mas nunca deixou de existir nem de ser
suficientemente forte para sustentar a teoria platônica dos diferentes “graus de
realidade”. Para Bolton, Platão sustentou a doutrina extrema do fluxo em diálogos
intermediários, mas alterou sua visão original no Teeteto e nos diálogos seguintes,
onde passou a adotar uma versão moderada do devir e uma versão correspondente
da distinção génesis-ousía. Bolton mostra que é no Teeteto (181b-183c) que se
encontra uma das duas passagens dos diálogos tardios onde os intérpretes de
Platão enxergam um ataque à distinção completa entre ser e devir. Nessa
passagem, Platão não estaria desafiando a versão moderada do heraclitismo –
segundo a qual há coisas que só têm características em devir, mas cujo devir tem
uma direção ou padrão contínuo, possuindo portanto alguma estabilidade. O que
ele estaria atacando é a alegação de que um objeto não pode reter ao longo do
tempo nenhuma característica ou qualidade, nem se essa característica for um
fluxo ou um padrão de fluxo (pois mesmo o fluxo ou o padrão devem permanecer
por algum tempo). E esse seria o absurdo, pois não pode haver um objeto que não
possa ter absolutamente nenhuma característica.

Bolton então argumenta que essa passagem do Teeteto, que ataca o


heraclitismo extremo, fala também contra uma doutrina encontrada em diálogos
platônicos anteriores. Além de Aristóteles (Metafísica I, 6, 987a32-b5) ter
testemunhado a favor da idéia de que Platão sustentou a doutrina extrema do fluxo
mesmo depois de sua juventude, para Bolton, no Fédon e na República Platão se
compromete claramente com a tese forte de Crátilo e dos heraclíticos. Na
República, Platão sustentaria a tese da indeterminação das coisas sensíveis com
base em sua adoção de uma doutrina do fluxo extrema. No Fédon, Platão também
adotaria a tese extrema do fluxo, o que ficaria claro na oposição estabelecida entre
coisas que nunca admitem nenhuma mudança em nenhum sentido e coisas que
não são nunca, em nenhum sentido, imutáveis e estáveis. Em ambos os diálogos,
essa visão extrema do devir viria acompanhada das seguintes considerações
epistemológicas: não seria possível haver opinião verdadeira nem nenhum tipo de
127

conhecimento sobre os objetos sensíveis e, em última instância, sobre o mundo


físico.

Todavia, Platão refutaria de tal maneira o heraclitismo extremo no


Teeteto, que nos diálogos posteriores ele deixaria de falar como falava no Fédon e
na República, modificando sua descrição do devir e a caracterização de seu status
epistêmico, de forma a evitar justamente as críticas presentes no Teeteto. Bolton
busca mostrar, entretanto, que não são todas as visões do devir que são evitadas
nos diálogos posteriores ao Teeteto, e sim exclusivamente a visão extrema. No
Filebo, no Timeu e no Sofista, por exemplo, Platão estaria sustentando uma visão
do devir que seria considerada respeitável à luz do Teeteto, uma visão mais
moderada, nem absurda nem incoerente. Além disso, no Filebo e no Timeu, Platão
estaria abrindo espaço para a afirmação de que é possível haver opinião acurada e
verdadeira sobre as coisas sensíveis em mudança constante, isto é, sobre as coisas
em devir (gignómena).

Mas, além da interpretação que Cornford ofereceu para explicar a relação


entre as teses de Teeteto, Protágoras e Heráclito, e das críticas já mencionadas à
sua interpretação, há uma outra leitura da ligação entre as três teses muito
discutida na literatura acadêmica sobre o Teeteto. Essa outra leitura tem em
Burnyeat um de seus principais elaboradores e representantes.167 Burnyeat
considera que, antes de se iniciar uma leitura passo a passo da primeira parte do
Teeteto, é preciso tentar dar um sentido unitário a toda a discussão que está ali
contida. Para ele, essa compreensão prévia da estratégia geral de toda a primeira
parte do diálogo consiste justamente na compreensão da relação entre as três teses
que estão ali em jogo. No entender de Burnyeat, ao contrário do que Cornford diz,
Platão não aceita as teorias de Protágoras e Heráclito em nenhum momento do
Teeteto. Para ele, o jovem Teeteto é que tem de se comprometer com essas teorias,
pois, para que sua definição de conhecimento como sensação seja boa, é preciso
que ele adote uma epistemologia protagórica, a qual, por sua vez, o força a adotar
uma ontologia heraclítica.

Mas Burnyeat não crê apenas que as teses de Protágoras e Heráclito


fornecem boas bases para a definição de conhecimento como sensação. Pois, se

167
Cf. M. Burnyeat, The Theaetetus of Plato (op. cit.), p. 7-10.
128

assim fosse, ele estaria pensando com Cornford que a definição de Teeteto poderia
cair por terra mais adiante, sem que as teses de Protágoras e de Heráclito ruíssem
junto, inteiramente. Ao contrário, para Burnyeat, cada uma das três teses força
quem a sustenta a sustentar também as outras. A teoria da sensação que Sócrates
ajuda Teeteto a elaborar, a partir de sua definição de conhecimento como
sensação, é uma tese que engloba as teorias de Protágoras e Heráclito e que
constitui uma tese “três-em-um”, de tal forma que ou todas as três se sustentam ou
todas caem juntas. Portanto, para Burnyeat, ao apresentar, no fim da primeira
parte do diálogo, a refutação à definição de conhecimento de Teeteto, Platão não
estaria deixando intacta, nem muito menos adotando, nenhuma parte das teorias
de Protágoras e Heráclito.

A leitura de Burnyeat sobre o modo como Platão vê as interrelações das


três teses também sofreu críticas variadas. Lee,168 por exemplo, crê que nem a
leitura de Cornford, nem tampouco a de Burnyeat exaurem as possibilidades de
compreensão do que Platão quer quando relaciona as teses de Teeteto, Protágoras
e Heráclito. Ele acha que é melhor se distanciar de Cornford, adiando a questão do
compromisso do próprio Platão com as três teses, e entende que é exatamente com
esse propósito que Burnyeat enfatiza que as teses são equivalentes e igualmente
vulneráveis às mesmas críticas e refutações. Mas ele discorda da visão de
Burnyeat segundo a qual as três teses se implicam mutuamente, de modo a serem
todas dependentes umas das outras. Ele não crê, como faz Burnyeat, que a
definição de Teeteto é refutada por meio de uma série de reduções ao absurdo, em
que as duas primeiras reduções são feitas indiretamente, via a refutação de
Protágoras e Heráclito.

Para começar, Lee afirma que Platão não mostra que a tese de Teeteto
implica a de Protágoras, e argumenta que isso fica claro quando Sócrates precisa
esperar que Teeteto consinta com a tese de Protágoras, antes de seguir em frente.
Afirma também que Platão não mostra que a tese de Protágoras implica a de
Heráclito, argumentando que, ainda que a tese heraclítica possa ajudar a defender

168
O resumo das posições de Mi-Kyoung Lee exposto a seguir foi feito a partir de seus textos
“Thinking and Perception in Plato’s Theaetetus” (op. cit.), p. 41-43, e “The Secret Doctrine:
Plato’s Defense of Protagoras in the Theaetetus” (Oxford Studies in Ancient Philosophy, vol. XIX,
Winter 2000, p. 47-86), p. 50-54.
129

o relativismo de Protágoras, ela não é necessária, isto é, indispensável para que


haja relativismo ou protagorismo.169 O que Platão mostra, no entender de Lee, é
que a doutrina do homem-medida de Protágoras ajuda a sustentar a tese de
Teeteto, assim como a doutrina secreta oferece algum suporte à tese de
Protágoras.

Segundo Lee, portanto, a razão que faz Platão introduzir as teses de


Protágoras e de Heráclito é outra que não aquela alegada por Burnyeat. Não é
porque, estando implicadas na definição de Teeteto, se elas são falsas, então a tese
de Teeteto tem de ser falsa também. É porque a definição de Teeteto precisa de
esclarecimentos, assim como a doutrina do homem-medida de Protágoras também
precisará em seguida. E uma estratégia útil para esclarecê-las é a substituição da
tese vaga e obscura por outra, mais clara e precisa. Se essa estratégia pode ser
usada com a finalidade de sabotagem em contextos erísticos – pois aí o que se
tenta é refutar uma definição fazendo o oponente abandonar a tese em questão,
susbtituindo-a por outra tese que se está mais bem preparado para atacar –, Lee
crê que ela é usada por Sócrates, no Teeteto, como um movimento não hostil, e
sim maiêutico.

Assim, no entender de Lee, Sócrates introduz a doutrina de Protágoras


para substituir e, assim, esclarecer a definição de Teeteto. Sócrates argumenta que
a doutrina de Protágoras dá suporte à definição de Teeteto, e aguarda que Teeteto
consinta com a nova tese. Quando Teeteto concorda com Protágoras, Sócrates
pode supor que Teeteto aceitará qualquer argumento que sustente a doutrina de
Protágoras como um suporte para a sua própria definição também. Sócrates então
introduz a doutrina secreta com este propósito: o de sustentar e desenvolver a
doutrina de Protágoras, explicando o que significa dizer que nada é algo
determinado em si mesmo e que qualquer coisa só é algo em relação a algum
“sentiente”.

169
Isso porque seria possível haver relativismo sem haver fluxo ou instabilidade constantes: por
exemplo, se parecer para alguém, por toda a sua vida, que uma certa pedra é negra, então o
relativista dirá que ela é negra para esse alguém durante todo esse tempo; mas a permanência de
sua negritude não tornará essa qualidade uma propriedade não-relativa, independente do
“sentiente”.
130

Como se pode observar neste resumo de algumas das diversas


interpretações sobre a relação entre as três teses, são numerosas, amplas e difíceis
as questões que elas suscitam, e muitos (senão todos) são os diálogos platônicos a
que elas se referem. Um pequeno sumário dessas questões seria: Platão aceita ou
não a tese extrema do fluxo no Teeteto e nos diálogos anteriores e posteriores a
ele? Platão adota ou não a tese moderada do fluxo antes, durante e depois do
Teeteto? A doutrina do fluxo é ou não é central na formulação da teoria platônica
das idéias? O principal objetivo do Teeteto é mostrar que sem idéias não pode
haver conhecimento, ou é outro o seu propósito? Platão sempre esteve mais
preocupado com a co-presença de propriedades opostas nas coisas sensíveis do
que com a mudança delas no tempo, ou não? Na primeira parte do Teeteto, as três
teses que são associadas se vinculam numa implicação mútua ou num outro tipo
de relação? As teses heraclíticas são introduzidas no Teeteto com que propósito e
função?

Embora todas essas questões me pareçam tão instigantes que deixar


qualquer uma delas para outra ocasião não seja providência nada fácil, não é meu
propósito investigá-las todas aqui. Por isso, é hora de desenhar meu foco nesse
debate, iniciando por distinguir, entre as questões levantadas por todos os
intérpretes mencionados, aquelas que serão investigadas nesta tese e aquelas que
serão deixadas de fora, por extrapolarem o recorte deste trabalho. Uma questão
levantada por essas leituras é a que pergunta se e quando Platão adotou uma
doutrina extrema do fluxo e se e quando ele adotou uma doutrina moderada do
devir. Não investigarei aqui se Platão sustentou, nos diálogos anteriores ou
posteriores ao Teeteto, uma ou outra visão do devir, mas buscarei mostrar que, no
Teeteto, Platão está atacando a versão extrema da doutrina do fluxo e deixando
intacta a versão moderada dessa mesma doutrina.

Outra questão levantada aqui se refere aos propósitos e contribuições do


Teeteto: são eles apenas negativos, ou seja, consistem somente em deixar as
formas inteligíveis de fora para mostrar que o conhecimento não é possível sem
elas? Buscarei mostrar que, embora esse propósito negativo possa ser identificado
no Teeteto, restringir os objetivos e contribuições do diálogo a isso é
problemático, pois ele também oferece outras contribuições, de caráter mais
131

positivo, como por exemplo a distinção clara e original entre sensação e


julgamento, e a legitimação de uma concepção moderada do devir no mundo
físico.

Mais uma das questões propostas pede que se diga se Platão sempre
esteve mais preocupado com a co-presença de propriedades opostas nas coisas
sensíveis do que com a mudança delas no tempo. Não caberá aqui extrapolar o
Teeteto e examinar com o que Platão sempre esteve mais preocupado, mas
buscarei mostrar que, neste diálogo, muito embora Platão trate mais extensamente
do problema do fluxo no tempo, ele indica tanto que se preocupa com esses dois
aspectos da realidade sensível quanto que os concebe como aspectos de algum
modo ligados entre si.

Finalmente, no que toca à questão de se as três teses – de Teeteto,


Protágoras e Heráclito – se implicam mutuamente ou se relacionam de outro
modo, que não o da implicação lógica, buscarei mostrar que há razões para se
pensar que, no Teeteto, Heráclito não é introduzido simplesmente porque sem ele
não haveria protagorismo, e sim porque, além de oferecer algum suporte ao
protagorismo, sua presença e a dos seus adeptos permitem distinguir uma
concepção respeitável e outra inaceitável do devir. E Protágoras não é introduzido
porque sem ele a definição de Teeteto não se sustentaria, e sim porque, além de
oferecer algum suporte à teoria de Teeteto, sua presença numa discussão sobre o
conhecimento permite formular, senão uma refutação, ao menos uma crítica e uma
restrição do relativismo extremo que ele representa.

4.4

A exposição da doutrina secreta e da teoria da sensação

Voltemos, então, para o texto do Teeteto. Vimos que, na passagem em


que a doutrina secreta é exposta pela primeira vez (152d), não uma, mas três teses
– a co-presença de opostos, a ilegitimidade dos nomes unívocos e o fluxo
universal – estão em jogo, e todas as três remetem a Heráclito. Mesmo que não
fique imediatamente claro se a tese da coexistência dos opostos se aplica aqui à
co-presença de qualidades opostas com existência independente num mesmo
132

objeto físico, ou se ela se aplica antes à co-presença de qualidades opostas com


existência dependente e relativa a outras coisas, fica nítido que, quando faz sua
primeira exposição da doutrina secreta, Platão mostra que a teoria da co-presença
dos opostos está longe de ser incompatível e contraditória com a teoria do fluxo
universal. Muito pelo contrário, a passagem indica que Platão considera que essas
duas teorias estão conectadas no pensamento de Heráclito – para quem o fato de
cada coisa ser uma unidade de opostos implica a um só tempo sua persistência e
seu devir no tempo.170

Mas essa passagem do Teeteto é importante não apenas por fazer essa
conexão, e sim também por vincular essas duas teses heraclíticas com a doutrina
da correção (orthótes) dos nomes, que é o tema central do Crátilo e que, tal como
interpretada por Heráclito, revela a impossibilidade de se dar corretamente a
qualquer coisa um único nome unívoco. O Teeteto liga o fluxo e a mudança à
afirmação de que nada é uno em si mesmo, mas tudo é também o seu contrário; e
também liga a correção dos nomes à tese de que as coisas não são unas em si
mesmas, mostrando que é impossível nomear corretamente as coisas com nomes
unívocos.

Heráclito assinalou em diversos fragmentos essa impossibilidade de


encontrar uma orthótes dos nomes num significado unívoco. Por exemplo, o
fragmento 32 diz: “Um, o único sábio, consente e não consente em ser chamado
pelo nome de Zeus”.171 A etimologia de Zeus (Zenós) mostra que este nome
remete univocamente ao princípio do viver (Zên). Mas Zeus é tanto princípio do
viver quanto do morrer, e por isso quer e não quer ser chamado por este nome. O
nome unívoco, ao atribuir a uma coisa uma determinação fixa e exclusiva, exclui

170
Como Irwin e Bostock observam, diálogos anteriores ao Teeteto já mostram que o próprio
Platão pensava haver alguma conexão entre as doutrinas que dizem que “todo caso de X é também
simultaneamente um caso de não-X” e “tudo está em fluxo constante”. Isso fica muito evidente no
Fédon (74b) e na República (479a-480a), onde, como já foi dito, o argumento em favor da
existência das idéias parte da constatação de que as coisas sensíveis manifestam propriedades
simultaneamente opostas, mas a diferença entre essas coisas e as idéias é caracterizada, em seguida
(Fédon 78d-e, República 485b), em termos de fluxo e mudança: as idéias são imutáveis e as coisas
sensíveis estão sempre mudando. Cf. T. H. Irwin, “Plato’s Heracleiteanism” (op. cit.), p. 4; e D.
Bostock, Plato’s Theaetetus (op. cit.), p. 46.
171
Fragmento 32: eÁn to\ sofo\n mou=non le/gesqai ou)k e)qe/lei kaiì e)qe/lei Zhno\j
oÃnoma.
133

dela a presença ou potencialidade da determinação contrária e da mudança


recíproca, e por isso é ilegítimo e incorreto. Já o fragmento 48 diz: “O nome do
arco (biós), vida (bíos); sua obra, morte”.172 Um mesmo nome, bios, significa
“vida” e também “o instrumento que tem a morte como resultado”.173 O nome,
para ser correto (orthós), tem de poder significar uma coisa e o seu contrário,
como bios faz.

Creio valer mencionar aqui, ainda que resumidamente, a argumentação


de Mondolfo, com a qual tendo a concordar, segundo a qual este passo do Teeteto
pode inclusive oferecer a chave para uma interpretação justa do drama
representado no Crátilo. O Crátilo apresenta investigações etimológicas que têm
um caráter filosófico porque supõem que cada palavra corresponde à natureza da
coisa significada, e não a uma convenção arbitrária; quer dizer, supõem que os
nomes têm uma correção (orthótes) natural. Compreender a etimologia dos nomes
significaria, portanto, compreender a natureza das coisas. Em Heráclito, a teoria
da unidade dos opostos e a teoria do fluxo entre os opostos acarretam a exigência
de que também nos nomes se apresentem a coexistência e o trânsito dos contrários
que existem nas coisas. Os próprios nomes teriam de poder ter sentidos opostos, e
nisso consistiria sua correção natural. Por causa da coexistência e do trânsito dos
contrários nos nomes, a teoria da exatidão natural dos nomes pode se conciliar, em
Heráclito, com a teoria do fluxo da realidade, que é precisamente trânsito de um a
outro contrário. Afinal, os opostos podem ser expressos ou relacionados com um
mesmo nome, contanto que este nome seja polissêmico, ambíguo.

Mas essa possibilidade de conciliação parece ter-se perdido com Crátilo,


que já vê o fluxo separado da unidade dos opostos (da qual, para Heráclito, ele era
indissolúvel), e também já não considera que a exatidão do nome consiste em sua
capacidade de expressar os opostos. A teoria da orthótes dos nomes, interpretada
por Crátilo no sentido de um significado único e invariável das palavras (sentido
que esta passagem do Teeteto está declarando não ser orthós para Heráclito),
aparece no Crátilo como incompatível com a teoria do fluxo universal. O fluxo,

172
Fragmento 48: t% to/c% o)/noma bi/oj, e)/rgon de\ qa/natoj.
173
As palavras arco e vida aparecem diferenciadas pela acentuação no léxico do séc. IX d.C. do
qual se extraiu este fragmento. Mas, no tempo de Heráclito, não havia o acento escrito, e essas
duas palavras eram grafadas exatamente da mesma forma: bios.
134

que para Crátilo não permite a mais remota permanência do mesmo ser que passa
pelos estados opostos, não permite nem o conhecimento das coisas nem sua
indicação por meio de palavras. A defesa cratiliana da teoria da correção natural
dos nomes e sua associação com a teoria do fluxo provocam, por isso, uma crise.
E o diálogo Crátilo nos mostraria justamente o processo dessa crise.174

Retornando à passagem de apresentação da doutrina secreta, o que


podemos ver agora é que, para quem porventura alegar que há testemunhos
platônicos sobre Heráclito que só divulgam o aspecto da mudança e do fluxo, e
deixam de lado outros aspectos indissociáveis de sua filosofia, já poderemos
responder que, ainda que haja testemunhos unilaterais em textos de Platão, para
interpretá-los corretamente talvez seja preciso relacioná-los com outros
testemunhos platônicos, e especialmente com esse do Teeteto, que conecta a
doutrina do fluxo com duas outras doutrinas heraclíticas, em lugar de apresentá-la
isoladamente. Vê-se, portanto, que essa passagem do Teeteto é muito importante
para quem busca examinar a interpretação platônica de Heráclito, pois ela mostra
que dizer que, para Platão, a filosofia de Heráclito se reduz à teoria do fluxo é
uma simplificação e, mais que isso, um erro.

Após afirmar que todos os sábios exceto Parmênides estão de acordo


sobre a doutrina secreta, que diz que “nenhuma coisa é una em si mesma”, que
“não há o que se possa denominar com acerto” e que “do movimento é que se
forma tudo o que dizemos ser, enquanto em rigor nada é, tudo devém”,175 Sócrates
cita Homero, mostrando que ele dá a entender que todas as coisas se originam do
fluxo e do movimento. Ele segue então apresentando uma série de “provas” de
que o movimento (kínesis) é a causa de tudo o que parece ser, de todo devir, e de
que o repouso é a causa de todo não-ser e perecer (153a-d). Essas provas
consistem numa série de exemplos: o fogo – que gera e coordena todas as coisas –

174
Cf. R. Mondolfo, “Dos textos de Platón sobre Heráclito” (op. cit.), p. 234-235.
175
ΣΩ. – Ἐγὼ ἐρῶ καὶ µάλ’ οὐ φαῦλον λόγον, ὡς ἄρα ἓν µὲν αὐτὸ καθ’ αὑτὸ οὐδέν
ἐστιν, οὐδ’ ἄν τι προσείποις ὀρθῶς οὐδ’ ὁποιονοῦν τι, ἀλλ’ ἐὰν ὡς µέγα προσαγορεύῃς,
καὶ σµικρὸν φανεῖται, καὶ ἐὰν βαρύ, κοῦφον, σύµπαντά τε οὕτως, ὡς µηδενὸς ὄντος ἑνὸς
µήτε τινὸς µήτε ὁποιουοῦν· ἐκ δὲ δὴ φορᾶς τε καὶ κινήσεως καὶ κράσεως πρὸς ἄλληλα
γίγνεται πάντα ἃ δή φαµεν εἶναι, οὐκ ὀρθῶς προσαγορεύοντες· ἔστι µὲν γὰρ οὐδέποτ’
οὐδέν, ἀεὶ δὲ γίγνεται.
135

é gerado por fricção; os seres vivos são gerados por movimento; o corpo se
deteriora com o repouso e a preguiça, e se conserva com a ginástica e o
movimento; a alma ou nada aprende ou esquece o que aprendeu com o repouso,
enquanto adquire e conserva conhecimentos com o estudo e o exercício.

Alguns intérpretes enxergam, na apresentação desses exemplos, um tom


mais cômico do que sério. De fato, que tais exemplos sejam realmente capazes de
provar que a doutrina heraclítica do fluxo é verdadeira não é uma coisa óbvia, mas
também não parece ser essa a preocupação central de Platão nesse momento. O
que parece ser mais importante para ele é o modo como a doutrina secreta será
aplicada à visão e à sensação em geral, tanto porque essa aplicação será
fundamental para estabelecer uma determinada ligação entre as doutrinas de
Protágoras e de Heráclito, quanto porque ela permitirá ver que a doutrina do fluxo
é não só plausível como requerida, quando se trata das operações dos sentidos.
Mas, para quem busca ver que elementos da filosofia de Heráclito estão sendo
mencionados e vinculados à teoria do fluxo por Platão, um outro ponto tem
importância nessa série de exemplos: trata-se da menção ao fogo como aquilo que
gera e governa todas as coisas, o que, como vimos no capítulo 1, é um dos temas
mais caros a Heráclito, presente em um grande número de seus fragmentos.

É verdade que Sócrates enuncia que “o fogo gera e coordena todas as


coisas” como se fosse uma afirmação feita por muitos, sem nenhuma referência a
um autor particular. Mas é significativo o fato de sua enunciação ser introduzida
em estreita ligação com a doutrina do fluxo, numa passagem muito próxima
daquela em que outras duas teses heraclíticas haviam sido mencionadas. Além
disso, é razoável supor que Platão não vinculou a doutrina do fogo ao nome de
Heráclito de maneira explícita, pois o leitor de seu tempo não precisava dessa
designação, por saber muito bem a quem essa doutrina pertencia. Se, então, antes
afirmávamos que Platão, no Teeteto, conecta a doutrina do fluxo com mais duas
doutrinas heraclíticas – a da orthotés natural dos nomes e a da unidade dos
opostos –, agora podemos dizer que ele na verdade a conecta também com mais
uma doutrina de Heráclito: a do fogo como princípio universal. Temos então mais
136

uma razão para afirmar que Platão, em sua obra, não isola a doutrina heraclítica
do fluxo, e sim oferece uma imagem multidimensional da filosofia de Heráclito.176

Sócrates passa, em seguida, a apresentar uma teoria da sensação (153d).


Usando o exemplo da vista e da cor branca, ele sustenta que uma cor não é algo
com existência própria, nem dentro nem fora dos olhos, nem em qualquer lugar
determinado, pois ela não existe em caráter estável e sim devém, forma-se, vem a
ser, sem nunca ganhar um pouso fixo, uma existência fixa. Isso é uma
conseqüência da doutrina secreta, visto que ela requer que tudo venha a ser (e que
nada, em rigor, seja). Sócrates sugere que, se Teeteto e ele acompanharem o
argumento apresentado antes, de que “nenhuma coisa é una em si mesma”, ambos
verão que uma cor resulta do encontro dos olhos com um movimento (uma certa
translação que, presume-se, parte do objeto físico e vem ao encontro dos olhos), e
que toda cor é algo intermediário entre o sentiente e o movimento que o atinge,
sendo peculiar a cada indivíduo.

As coisas então não aparecem do mesmo modo para observadores


diferentes, pelo fato de serem o produto de um encontro privado de cada
indivíduo; e também não aparecem do mesmo modo para o mesmo observador em
momentos diferentes, pelo fato de ele não permanecer igual a si próprio. Se os
objetos físicos possuíssem em si mesmos, como propriedades fixas e únicas,
qualidades como as de ser grandes, quentes ou brancos, eles não poderiam mudar
– ou seja, eles não poderiam dar origem a sensações diferentes, parecendo ser
pequenos, frios ou não-brancos – somente por entrar em contato com outra coisa
(presume-se, com um observador diferente). Pois, nesse caso, para mudar, eles
teriam de sofrer alguma alteração interna, isto é, alguma mudança com relação ao
que eles mesmos eram antes.

Por outro lado, se os observadores possuíssem em si mesmos, como


propriedades fixas, a grandeza, o calor ou a brancura, eles também não poderiam

176
Mondolfo e Tarán notam que houve quem achasse que Platão nunca mencionou a doutrina
heraclítica do fogo como princípio universal, ignorando-a ou deixando-a inteiramente de lado.
Entretanto, Platão fala da doutrina do fogo, não apenas no Teeteto, mas também em outros
diálogos (cf. Fédon, 96b, e Crátilo, 412c). Cf. R. Mondolfo e L. Tarán. Eraclito: Testimonianze e
Imitazioni (op. cit.), p. CXX.
137

mudar – ou seja, eles não poderiam ser observadores de qualidades diferentes,


como a pequenez, o frio ou qualquer cor diferente do branco – simplesmente por
entrar em contato com outra coisa (presume-se, com qualquer objeto físico). Mas,
visto que as qualidades sensíveis são produtos do encontro entre um observador e
um movimento proveniente do objeto físico, e já que esses objetos e os indivíduos
que os observam não possuem suas qualidades como propriedades fixas, os
objetos físicos podem mudar – isto é, ser sentidos, aparecer e, portanto, ser
diferentes – sem que precisem sofrer uma mudança interna, ou uma mudança no
tempo.

As qualidades sensíveis, portanto, são um produto sempre instável do


movimento; e os objetos físicos e os sujeitos do conhecimento (os olhos, no caso
da visão) estão sujeitos à mudança e ao devir, seja com relação ao que eles eram
antes (mudança interna ao longo do tempo), seja com relação ao que eles são num
mesmo momento (mudança de aparência em atos de sensação simultâneos). De
fato, sendo assim, nada em rigor é, mas tudo devém!

A aplicação da doutrina secreta à teoria da sensação mostra com clareza


que, a partir de agora, o princípio do homem-medida de Protágoras está sendo
interpretado estritamente como um princípio relativista. De um lado, se antes
ainda era possível dizer que Platão talvez estivesse lendo, na tese de Protágoras, a
afirmação de que um mesmo objeto parece e é frio para mim, e parece e é quente
para você simplesmentente porque frio e quente são propriedades estáveis que
coexistem no objeto em questão, agora não é mais possível falar em qualidades
sensíveis estáveis, prévias ou independentes nos objetos físicos. Por outro lado, se
antes era possível dizer que Platão talvez estivesse vendo a tese da co-presença
dos opostos como o único ponto de contato entre Protágoras e Heráclito, agora é
evidente que está em jogo também a tese heraclítica do fluxo ou do devir, que
envolve a mudança e o movimento no tempo.

Mesmo nos casos que não dependem de nenhuma passagem de tempo


entre um e outro ato de sensação, como, por exemplo, o caso das coisas que
aparecem simultaneamente de maneiras opostas para observadores diferentes, o
fluxo no tempo é requerido pelo próprio ato da sensação, pois as impressões
sensíveis são um resultado de movimentos realizados no tempo. E é esta tese do
138

fluxo ou do movimento no tempo que, servindo de base para a concepção das


qualidades sensíveis como produtos do movimento (produtos que, por sua vez,
vêm a ser, mas nunca são estáveis), garante que cada sensação seja concebida
como relativa, privada, verdadeira e infalível. Portanto, agora, a afirmação de que
“nenhuma coisa é una em si mesma” não pode mais corresponder à asserção de
que “as coisas são múltiplas em si mesmas”. Agora, nada é seja lá o que for “em si
mesmo”. As coisas são múltiplas em suas múltiplas relações com outras coisas.

Sócrates segue dando exemplos para esclarecer o que quis dizer quando
afirmou que, já que os objetos físicos e os observadores não têm em si mesmos
qualidades fixas, eles podem mudar – dar origem a sensações e aparências
múltiplas, e até opostas – sem sofrer mudanças internas. O primeiro exemplo é o
dos ossinhos de jogar (154c): se há seis ossinhos num lugar, e ao lado deles
colocarmos outros quatro, os seis serão mais (que quatro); mas se ao lado deles
pusermos outros doze, os seis serão menos (que doze). O segundo exemplo é o do
tamanho de Sócrates (155b): Sócrates, com a idade e a altura que tem, é agora
maior que Teeteto, que é um garoto. Porém, no decurso de um ano, ficará menor
que Teeteto, e não porque ele mesmo terá sofrido qualquer alteração, mas porque
Teeteto terá crescido.

O que Sócrates mostra então é que esses exemplos, bem como as


conclusões a que eles levam, entram em conflito com três postulados que
costumamos aceitar: 1) “jamais alguma coisa ficou maior, seja em volume seja em
quantidade, enquanto se manteve igual a si mesma”; 2) “uma coisa a que nada se
acrescente e de que nada se tire não aumentará nem diminuirá, porém continuará
sempre igual”, e 3) “o que não era antes não poderia ser sem se formar ou ter sido
formado”. De fato, segundo os exemplos, tanto os ossinhos de jogar quanto
Sócrates se tornarão “menos” ou ficarão “menores” (isto é, mudarão e serão
aquilo que não eram) sem terem sofrido qualquer mudança ou devir com relação
ao que eles mesmos eram antes. As diferentes aparências dos ossinhos e de
Sócrates, o “tornar-se menos ou menor” de ambos, devem-se às diferentes
relações em que eles estão sendo inseridos, às diferentes comparações que estão
sendo feitas. Nesses casos, se os ossinhos ou Sócrates fossem comparados com
“eles mesmos, em si mesmos”, eles não poderiam se tornar nem “menos” nem
139

“menores” sem sofrer acréscimo ou diminuição. Mas eles estão sendo comparados
com outras coisas. Do mesmo modo, se quisermos lembrar do exemplo do vento,
o que se vê agora é que ele não é nem quente nem frio em si mesmo, e sim se
torna quente, assim como se torna frio, em virtude das diferentes relações em que
é inserido: ou da relação com dois observadores distintos, ou da relação com um
observador em momentos distintos.177

Os três postulados mencionados por Sócrates parecem então expressar as


únicas “leis do devir e da mudança” que são compatíveis com uma visão segundo
a qual qualidades como “mais”, “maior”, “frio”, “branco” etc. residem de maneira
estável no interior dos objetos físicos. Se os objetos possuírem suas qualidades
dessa maneira, será preciso de fato que eles percam tais qualidades imanentes ou
ganhem outras, sofrendo mudanças internas, para que possam mudar e apresentar
múltiplas aparências. Mas, se os objetos físicos possuírem suas qualidades “à
moda protagórico-heraclítica”, isto é, se não as possuírem como propriedades
internas e estáveis, e sim como propriedades relativas e instáveis, sua mudança

177
Bostock começa a interpretar a doutrina secreta perguntando como a tese heraclítica do fluxo
poderia estar por trás do relativismo protagórico e do enunciado segundo o qual “qualquer coisa
que se disser ser X também parecerá ser não-X, logo nenhuma coisa é una em si mesma”. Para ele,
aparentemente surge um problema na doutrina secreta, pois poderíamos imaginar três casos em
que uma coisa é X e não-X, sendo que só um desses casos envolveria a tese do fluxo: 1) quando a
coisa parece X para um indivíduo e não-X para outro; 2) quando a coisa é X numa comparação e
não-X em outra; 3) quando a coisa é X num momento e não-X em outro. Acontece que Platão não
estaria apresentando a doutrina do fluxo como um desses três casos, e sim como a explicação para
todos os casos a que a tese de que “nenhuma coisa é una em si mesma” se aplica. E nisso Platão
estaria aparentemente fazendo uma confusão, pois tanto o exemplo do vento quanto o dos ossinhos
seriam casos de presença simultânea de opostos, e não casos de fluxo, devir ou mudança no tempo.
Em seguida, Bostock afirma que essa aparente confusão de Platão pode ser na verdade fruto de
uma má interpretação da doutrina secreta. Com isso concordo inteiramente, pois me parece no
mínimo implausível que Platão não tivesse se dado conta de que não é preciso haver mudança no
tempo, entre dois atos de sensação, para que o vento ou os ossinhos apareçam como X e não-X.
Mas então Bostock afirma que, na verdade, o que a doutrina secreta diz é somente que “tudo vem a
ser como um resultado da mudança”, e que isso não corresponde à visão pela qual Heráclito é
tradicionalmente citado, a saber, a visão de que “tudo está sempre mudando”. Neste ponto,
discordo de Bostock: a doutrina secreta inicialmente inclui e associa quatro teses heraclíticas,
como vimos. Após apresentar essa conexão, ela de fato se concentra na tese segundo a qual “tudo
vem a ser como um resultado do movimento”, mas nunca deixa de lado a tese segundo a qual
“tudo está sempre mudando”. Ao contrário, as qualidades sensíveis são ditas tanto resultados da
mudança quanto coisas que nunca são – nem mesmo depois de terem sido engendradas – mas
sempre devêm. Além disso, tanto os sujeitos quanto os objetos físicos são concebidos como coisas
que estão sempre mudando. Cf. D. Bostcok, Plato’s Theaetetus (op. cit.), p. 44-47.
140

não será interna, e sim uma mudança que ocorre fora deles, num lugar
intermediário entre os objetos e os observadores. Ou seja, de acordo com a teoria
da sensação apresentada agora, as “leis do devir” são outras: visto que as
qualidades sensíveis devêm segundo certas relações, e que os objetos físicos
mudam em virtude de suas relações, é verdadeiro afirmar que um objeto pode se
tornar “maior”, “menor”, “quente” ou “frio” sem perder nem ganhar qualquer
qualidade imanente. Em si mesmo, à parte do observador e do devir implicado no
ato da sensação, um objeto não é nem branco nem preto, assim como em si
mesmo, à parte da comparação com outro objeto e, novamente, do devir implicado
no ato da sensação, nenhum objeto é maior ou menor.

Depois de ver como os três postulados correntes sobre o devir entram em


conflito com os exemplos dos ossinhos e do tamanho de Sócrates, Teeteto afirma
sentir vertigens ao considerar tudo o que ouviu, e diz não perceber a relação disso
tudo com a proposição que ambos atribuíram a Protágoras. Sócrates se oferece
para tornar patente o pensamento oculto de Protágoras e de “vários homens
famosos” (155c-e), e começa então uma nova exposição da teoria da sensação,
desta vez numa versão mais detalhada, além de mais claramente impregnada de
mobilidade e relatividade.

Até aqui, a teoria da sensação já mostrou que as qualidades sensíveis, os


sujeitos do conhecimento e os objetos físicos estão sujeitos ao devir e à mudança.
Nesse sentido, ela já mostrou que, se a tese atribuída inicialmente a Protágoras
dizia que “as coisas são para mim tal como me aparecem”, agora essa tese deve
ser melhor compreendida: ela na verdade diz que “as coisas devêm para mim tal
como me aparecem”. Mas onde a exposição se concentrou foi na caracterização da
natureza das qualidades sensíveis como algo que devém, tanto por ser produto do
movimento, quanto por não ganhar estabilidade depois de ser produzido. A partir
de agora, a exposição se concentrará em mostrar que os sujeitos do conhecimento
e os objetos físicos não são coisas fixas ou estáveis, nem em sua existência
independente dos atos de sensação, nem, muito menos, em sua atuação como
pacientes e agentes das sensações, atuação que depende da relação entre paciente
e agente para ocorrer. Essa mobilidade e relatividade dos pacientes e agentes da
sensação, bem como dos produtos por eles engendrados, é que garantirá que
141

qualquer sensação, não importa a condição em que ocorra, é verdadeira para o


indivíduo que a experimenta.

Sócrates começa a nova exposição dizendo que, para certos homens


iniciados, o princípio do qual depende tudo o que foi exposto antes é que “só há
movimento (kínesis) e que, afora isso, nada existe” (156a). As realidades que
chamamos de órgãos sensíveis e objetos físicos constituem na verdade dois tipos
de movimento lento, com potência ativa (dýnamin poieîn) e/ou potência passiva
(dýnamin páschein). Quando o movimento lento que constitui um objeto sensível
entra no raio de ação de um outro movimento lento que constitui um órgão
sensível, esses movimentos se atualizam como efetivos agentes e pacientes. Da
união e fricção desses dois movimentos nasce, aos pares, prole de número infinito:
um dos termos é a qualidade sensível (aisthetón) e o outro é a própria sensação
(aísthesis). A cada sensação corresponde, sempre, uma qualidade sensível, que é
como sua “irmã gêmea”, pois ambas são geradas simultaneamente pelos mesmos
“pais”. Ambos os produtos constituem também movimentos, mas esses
movimentos são mais rápidos e, ao contrário dos lentos, têm na mudança de
posição (phorá) o seu movimento natural.

Podemos nos perguntar aqui se os movimentos ou realidades que


costumamos chamar de órgãos sensíveis e objetos físicos têm ou não algum tipo
de existência independente e prévia aos atos de sensação. Este é um tema que gera
controvérsias, mas não creio haver elementos no texto que sustentem a tese de que
essas realidades dependem dos atos de sensação para existir e, por outro lado,
penso haver razões para sustentar a tese contrária.178 O que o texto afirma é que,
quando o olho e o objeto físico geram a brancura e a sua visão (que jamais teriam
sido produzidas se o olho ou o objeto físico tivessem tomado direção diferente), o
olho se enche de visão e se torna olho que vê. Por outro lado, o objeto se enche de
brancura e se torna coisa branca (156c-d). Não apenas as qualidades sensíveis, em
si e por si mesmas, nada são, como também o elemento ativo e o passivo não são
unidades fixas e independentes. Isso ocorre por duas razões: primeiro, o paciente
não pode ser paciente sem a prévia união com o agente e vice-versa. Além disso, o

178
Neste ponto, concordo com M. F. Cornford, Plato’s Theory of Knowledege (op.cit.), p. 50-51, e
com G. Nakhnikian, “Plato’s Theory of Sensation, I” (op. cit.), p. 133-142.
142

que num caso é passivo em outras conexões se torna ativo (o olho, por exemplo,
pode tanto ver quanto ser visto) (156e-157a).

O que claramente não pode existir antes e independentemente dos atos de


sensação são o agente e o paciente enquanto tais, pois para que algo possa ser
chamado de agente ele precisa estar se relacionando com um paciente, e o inverso
também. Mas o agente não é simplesmente “o objeto físico” (ou o movimento
lento que costumamos chamar de objeto físico), e sim “o objeto físico quando se
encontra com o olho”. Do mesmo modo, o paciente não é simplesmente “o olho”
(ou o movimento lento que costumamos chamar de olho), e sim “o olho quando se
encontra com o objeto físico”. Isso significa que, fora dos atos de sensação, não
existem agentes e pacientes, não há nada efetivamente agindo ou sofrendo ação,
mas isso não significa que não existam também objetos físicos, órgãos sensíveis
ou movimentos com certas capacidades ou potências de agir e sofrer, ou seja,
realidades com propriedades que, embora não sejam sensíveis nem tampouco
estáticas, são as causas ou os componentes primários que dão origem às nossas
sensações.

Podemos supor, portanto, que antes e independentemente dos atos de


sensação há objetos físicos e órgãos sensíveis, ou melhor, movimentos ou
processos lentos, que constituem uma espécie de fundo não sentido das coisas que
apreendemos sensivelmente. Esse fundo, no entanto, não é fixo nem estável, mas
é ele mesmo um processo, um fluxo, um movimento. Há, portanto, processos e
movimentos contínuos, e as “situações epistemológicas” em que os objetos
entram são eventos que ocorrem na história desses processos. A questão que se
coloca então é se esses objetos físicos e órgãos sensíveis que existem previamente
aos atos de sensação são ou não processos que envolvem um tipo de mudança tão
completo, rápido e desregrado, que já podem ser considerados elementos de uma
teoria extrema do fluxo. Mas a resposta a esta questão não surge imediatamente.

O texto do diálogo segue afirmando que é preciso eliminar de toda parte


a expressão ser (157a-b), e que a rigor nunca deveríamos empregar expressões ou
designações (como “alguma coisa” ou “aquilo”) que fixem determinada coisa.
Devemos falar das coisas como coisas que devêm, formam-se, destroem-se ou se
alteram, sem nunca afirmar a estabilidade do que quer que seja, sem nunca
143

afirmar que as coisas são (157b). Como vimos, que as coisas (os objetos físicos,
os órgãos sensíveis, os agentes, os pacientes, as sensações e as qualidades
sensíveis) sejam coisas que devêm e nunca são estáveis é o que já vinha sendo
mostrado. Os objetos físicos e os órgãos sensíveis são movimentos, os agentes e
pacientes são também movimentos que vêm a ser um para o outro, e as qualidades
sensíveis e as sensações devêm como produtos do movimento e não deixam de
devir depois de engendradas.

O problema que passa a ser examinado em seguida é o da infalibilidade


da sensação. Teeteto aceita a tese de que nada é e tudo se acha num perpétuo devir
(157d). Sócrates fala então dos sonhos, das doenças, da loucura e das alterações
da vista, casos nos quais se costuma pensar que as sensações são falsas e as coisas
não são como aparecem. Em todas as situações e estados diferentes nos quais
podemos nos encontrar (sono e vigília, loucura e lucidez, doença e saúde), nossa
alma sustenta que as crenças do momento presente são verdadeiras, de modo que
ora sustentamos a verdade de certas crenças acerca de um objeto, ora a de outras
contrárias, sempre com a mesma convicção (158d). Os sonhos, as doenças, a
loucura e as alterações da vista, comumente entendidos como casos de aberrações
ou ilusões dos sentidos, poderiam servir para refutar a tese de que a sensação é
sempre infalível e, por conseguinte, de que conhecimento é sensação (157e).

Como se poderia defender, contra esse tipo de refutação, o princípio de


que todas as coisas são verdadeiras para quem as representa como tal? Da seguinte
maneira: mostrando que, quando um agente se une a pacientes dessemelhantes,
atua sobre eles de formas diferentes, dando origem a produtos diferentes (159a-b).
Se o agente (por exemplo, o vinho) se une, num determinado momento, a
“Sócrates são”, ele estará se unindo a um todo (um conjunto de órgãos sensíveis
num determinado estado e, portanto, com uma determinada capacidade ou
potência de sofrer ação e de sentir) dessemelhante e, por conseguinte, diferente de
“Sócrates doente”, e isso dará origem a produtos diferentes (amargor ou doçura),
o que por sua vez alterará o próprio agente (que, ao engendrar novos produtos em
conexão com agentes diferentes, também muda, tornando-se doce ou amargo)
(159b-160a).
144

De um lado, em cada ato de sensação, o estado em que um indivíduo se


encontra determina o paciente que ele é (isto é, determina sua capacidade ou
potência de sentir), de modo que, se seu estado muda, mesmo que ligeiramente, o
paciente muda inteiramente, torna-se outro paciente. Por outro lado, em cada ato
de sensação, o paciente (seja lá qual for a condição ou estado que determina sua
capacidade de sentir) coopera na produção das qualidades sentidas, de forma que
todos os atos de sensação que envolvem pacientes diferentes dão origem a
produtos (qualidades sensíveis) diferentes.

O fato de que todo e qualquer paciente coopera igualmente na produção


da qualidade sentida garante a infalibilidade de toda e qualquer sensação. Então,
se se costuma acreditar que o homem são, desperto e lúcido é a única medida do
que é (isto é, é o único que sente as coisas como elas realmente são), agora está
sustentada a tese de que o homem doente, adormecido ou louco não está
apreendendo mal as qualidades do objeto. Afinal, o objeto não tem nenhuma
qualidade sensível fixa e imanente, e todo e qualquer paciente se associa
igualmente ao objeto (ou melhor, ao agente) na produção da qualidade sentida.
Quando se diz que alguma coisa é ou devém (leia-se, devém amarga ou doce, ou
devém agente ou paciente), é preciso acrescentar que ela é ou devém para alguém
ou com relação a alguma coisa. Nada devém ou se torna por si mesmo (160b).

Se o agente que atua sobre alguém só se relaciona com este alguém, e


com mais ninguém, decorre daí que só este alguém o sente, e mais ninguém. Por
isso, conclui Sócrates, a sensação de cada um é verdadeira para cada um, e cada
sentiente é o único juiz capaz de dizer que as coisas que são ou devêm para ele são
ou devêm mesmo, e também que as coisas que não são ou não devêm para ele não
são ou não devêm mesmo (160c). Se ninguém nunca erra em seus pensamentos
acerca do que é ou devém, não é possível sustentar que não se tem conhecimento
daquilo de que se tem sensação (160d). Neste ponto do diálogo com Teeteto,
Sócrates então afirma:

Sócrates – Por isso mesmo, tinhas carradas de razão, quando


disseste que o conhecimento não passa de sensação, o que vem a dar,
precisamente, nisto de Homero e de Heráclito e de toda a tribo de seus
145

acompanhantes: Tudo se movimenta como um rio; ou, segundo a


fórmula do sapientíssimo Protágoras: O homem é a medida de todas
as coisas, que é também a de Teeteto, o qual concluiu disso que há
perfeita identidade entre conhecimento e sensação. Não é assim
mesmo, Teeteto? Não estamos autorizados a dizer que nisso tudo
temos um feto dado por ti à luz agora mesmo, com a ajuda dos meus
conhecimentos de parteiro? Ou como te parece?

Teeteto – Necessariamente, Sócrates, terá de ser como disseste.

(Teeteto, 160d-e)179

Vemos então que a exposição da primeira definição de Teeteto, isto é, o


seu primeiro “parto”, é aqui tida por Sócrates como concluída. Ao fazer essa
consideração, Sócrates menciona, pela segunda vez no diálogo, o nome de
Heráclito, e associa-o, novamente, tanto com Homero e com o grande grupo de
defensores do fluxo universal, quanto com Protágoras e Teeteto. Sócrates, tanto ao
iniciar a segunda parte da exposição da teoria da sensação, quanto ao encerrá-la,
deixa claro que está em jogo uma teoria do fluxo que está sendo atribuída a muitos
autores, entre os quais Heráclito é explicitamente referido. Uma questão que se
coloca agora é a seguinte: será que a esta altura da discussão a teoria do fluxo já
está sendo apresentada em sua versão extremada? Esta questão é importante, pois,
caso sua resposta seja positiva, a conseqüência imediata será que Platão está
atribuindo a Heráclito um mobilismo extremado. E essa atribuição, até aqui, seria
nitidamente feita a Heráclito e não aos seus seguidores exagerados, pelo fato de
esses seguidores, os heraclíticos, não terem sido ainda sequer mencionados.

Como Reshotko ressalta, o que Sócrates está buscando fazer no fim da


segunda exposição da teoria da sensação é sustentar a incorrigibilidade da

179
ΣΩ. – Παγκάλως ἄρα σοι εἴρηται ὅτι ἐπιστήµη οὐκ ἄλλο τί ἐστιν ἢ αἴσθησις, καὶ εἰς
ταὐτὸν συµπέπτωκεν, κατὰ µὲν Ὅµηρον καὶ Ἡράκλειτον καὶ πᾶν τὸ τοιοῦτον φῦλον
οἷον ῥεύµατα κινεῖσθαι τὰ πάντα, κατὰ δὲ Πρωταγόραν τὸν σοφώτατον πάντων ρηµάτων
ἄνθρωπον µέτρον εἶναι, κατὰ δὲ Θεαίτητον τούτων οὕτως ἐχόντων αἴσθησιν ἐπιστήµην
γίγνεσθαι. ἦ γάρ, ὦ Θεαίτητε; φῶµεν τοῦτο σὸν µὲν εἶναι οἷον νεογενὲς παιδίον, ἐµὸν δὲ
µαίευµα; ἢ πῶς λέγεις;
ΘΕΑΙ. – Οὕτως ἀνάγκη, ὦ Σώκρατες. (Teeteto, 160d-e)
146

sensação.180 Para isso, não é preciso afirmar um fluxo extremado, isto é, não é
preciso dizer que os indivíduos são completamente diferentes em cada ato de
sensação, nem que não há nenhuma identidade ou continuidade num indivíduo ao
longo do tempo. Como vimos, ser homem, ou indivíduo, ou conjunto de órgãos
sensíveis, ou olho, não é o mesmo que ser paciente. Um homem ou um olho se
tornam pacientes no ato de sensação, e nunca fora dele. Fora desse ato, eles são
movimentos ou processos lentos, e nada requer que sejam descontínuos ou que
constituam uma série de homens e olhos instantâneos e inteiramente diferentes.
Entretanto, se um mesmo indivíduo, num certo momento, se encontra numa
determinada condição e se torna paciente, e noutro momento e condição se torna
paciente novamente, ele se torna então um outro paciente, um todo inteiramente
diferente do primeiro, que cooperará na produção de uma impressão sensível
diferente.

Em suma, parece-me que aqui não está sendo dito que o homem ou o
indivíduo Sócrates não permanece o mesmo, em nenhum sentido, ao longo de sua
vida. Não há, portanto, ainda, nenhuma versão extrema do fluxo heraclítico, coisa
que haverá, mais adiante, quando se fizer a afirmação de que “tudo sempre muda
em todos os sentidos” (181e).181 É preciso lembrar que o contexto aqui é o do
funcionamento da sensação, e que o propósito é mostrar que todo ato de sensação
é incorrigível. As afirmações que estão sendo feitas só poderiam ser consideradas
equivalentes à fórmula “todas as coisas sempre mudam em todos os sentidos” se
elas fossem muito além do que foi dito antes e do que precisaria ser dito para que
a objeção contra a incorrigibilidade fosse efetivamente combatida.

O que está em jogo aqui é que nunca pode ser um erro meu que “me
parece que estou sentada nesta cadeira agora” ou que “me parece que o mel é

180
Cf. Naomi Reshotko, “Heraclitean Flux in Plato’s Theaetetus”, History of Philosophy Quarterly
(Ohio, n. 11, 1994), p. 143-144.
181
Muitos outros autores sustentam a tese de que não há fluxo extremo no Teeteto antes da
apresentação da fórmula “tudo se move sempre em todos os sentidos” (181e). Cf., por exemplo, R.
Bolton, “Plato’s Distinction Between Being and Becoming” (op. cit.), p. 69; F. M. Cornford,
Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 55-56; G. Nakhnikian, “Plato’s Theory of Sensation, I”
(op. cit.), p. 135. Há, entretanto, diversos autores que já enxergam nesta passagem a apresentação
de uma versão radical do fluxo heraclítico. Cf., por exemplo, M. Burnyeat, The Theaetetus of Plato
(op. cit.), p. 17; A. Diès, “Notice Générale sur les Dialogues Métaphysiques” (op. cit.) p. 131-132;
e T. Irwin, “Plato’s Heracleiteanism” (op. cit.), p. 5-6.
147

amargo”. Ou seja, nunca posso errar acerca de meu estado sensorial presente, de
forma que o conteúdo momentâneo da sensação é sempre incorrigível. Como diz
Cornford, a palavra aísthesis ainda está sendo usada num sentido amplo o
suficiente para incluir a consciência de sentimentos e sensações internos, e
também as imagens dos sonhos. E, como a distinção entre a consciência imediata
e as opiniões também ainda não foi desenhada, não há sequer como pretender
distinguir entre a infalibilidade da consciência imediata e a falibilidade da crença,
do pensamento ou da opinião.182

Vale adiantar que, bem mais adiante, Protágoras vai alegar exatamente
que a sensação (e a opinião), seja a do homem são ou a do homem doente, é
sempre infalível, quando disser que o médico muda a disposição do paciente não
porque ela o deixa menos apto a ter uma sensação (e opinião) verdadeira, e sim
porque ela o deixa menos apto a sentir o que é melhor (166e-167b). Por isso,
sustentar a infalibilidade da sensação é tão importante: pois, segundo a leitura de
Platão, ela é fundamental para dar suporte às posições de Protágoras. Não há
ainda, então, interesse ou necessidade de afirmar uma versão radical do devir, e
sim o propósito de garantir a infalibilidade da sensação, assegurando a pertinência
da identificação entre conhecimento e sensação.

Outra razão para não crer que aqui já há heraclitismo extremo é bem
apresentada por Nakhnikian, que mostra que, enquanto o fluxo extremo será
apresentado como a sujeição simultânea a todas as formas de movimento – a
translação (phorá) e a alteração (alloíosis) –, de tal maneira que tudo sofre sempre
todos os tipos de movimento, mudando em todos os sentidos, os movimentos que
dão origem aos atos de sensação são apresentados, na exposição da teoria da
sensação até aqui, como movimentos lentos cuja natureza é não se deslocar, não
sofrer translação. Ou seja, trata-se de um movimento bem diferente do que é
descrito como movimento extremo.

O mundo físico descrito na teoria da sensação poderia, então, ser


concebido como um mundo de processos cuja estrutura se mantém, cuja forma é
unitária, cujos movimentos são ordenados e coordenados, cujas potencialidades já
estão determinadas; um mundo que, se não é inteligível, tampouco constitui o

182
Cf. F. M. Cornford, Plato’s Theory of Knowledge (op. cit.), p. 53.
148

mundo sem lei e sem medida dos heraclíticos, no qual é impossível haver
conhecimento e linguagem.183

4.5

Começa a crítica às três teses

Sócrates afirma que agora, após terminado o trabalhoso parto da


definição de Teeteto, é preciso envolver o “recém-nascido” em raciocínio, para
ver se ele é uma definição verdadeira ou se não passa de um grande embuste
(160e-161a). Sócrates começa então a testar a “criança” de Teeteto, e passa a
dirigir críticas às teses de Protágoras, de Heráclito e de Teeteto sucessivamente.
Ele inicia a crítica às três teses apresentando objeções à doutrina do homem-
medida de Protágoras, numa longa passagem que costuma ser dividida em três
seções.184

Na primeira seção, são feitas algumas objeções preliminares a Protágoras


(161b-164c). A primeira delas é que qualquer animal capaz de sensações, e não
apenas o homem, deveria ser considerado medida de todas as coisas. A segunda é
que todos os indivíduos formam sozinhos opiniões sempre verdadeiras, de
maneira que não haveria razão nem para Protágoras ser considerado sábio e digno
de ensinar os outros, nem para qualquer um ser considerado ignorante e ter de
freqüentar suas aulas. Essa segunda objeção, ao contrário da primeira, se mostrará
grave, e muito da argumentação que virá mais adiante se referirá a ela. Mas, nessa
altura, essas duas objeções recebem reprovações, e Sócrates aparentemente aceita
as censuras que são feitas, partindo para outra linha de ataque.

Ele então mostra que, quando sentimos (vemos ou ouvimos) as palavras e


frases de uma língua que nunca aprendemos, não compreendemos seu significado,

183
G. Nakhnikian, “Plato’s Theory of Sensation, I” (op. cit.), p. 134-135.
184
Apresentarei uma exposição e um exame bastante resumidos da crítica à doutrina do homem-
medida de Protágoras. Creio que fazer um exame extenso e detalhado não cabe neste trabalho, e
penso que este resumo é útil e suficiente para produzir o encadeamento necessário ao exame da
recepção platônica de Heráclito e dos heraclíticos no final da primeira parte do diálogo, que
constitui o próximo objetivo deste capítulo.
149

o que implica que a sensação não é suficiente para a obtenção de conhecimento.


Mas a isso Teeteto responde dizendo que nós conhecemos, a respeito dessas
palavras e frases, todos os aspectos delas que podemos sentir, e o fato é que
Sócrates prefere não levantar objeções à resposta de Teeteto, seguindo adiante.
Sócrates ataca de novo, oferecendo o exemplo da memória: se alguém que se
lembra de uma coisa que viu (e da qual, portanto, adquiriu conhecimento) conhece
essa coisa mesmo que não a tenha presentemente diante dos olhos, será preciso
concluir que a sensação não é necessária para o conhecimento, pois a memória
terá se mostrado uma alternativa suficiente. Mas Sócrates, que a princípio trata
essa objeção como se fosse conclusiva, passa a dizer que ainda não é hora de
cantar vitória sobre Protágoras, e sugere que também a objeção da memória é
capciosa.

Antes de iniciar a segunda seção da passagem que contém as críticas a


Protágoras, Sócrates afirma que este sofista, se estivesse vivo, saberia defender
sua doutrina do homem-medida. Alegando que tudo o que ele e Teeteto fizeram
até agora foi maltratar essa doutrina, em razão de ela ser órfã e de ninguém ter
saído em sua defesa, Sócrates diz que eles mesmos terão de socorrê-la (164e).
Nesse interlúdio, Sócrates ainda apresenta algumas objeções à identificação entre
conhecimento e sensação, mas trata-as como objeções erísticas, que não devem
ser consideradas graves. Começa então o discurso de Sócrates que é conhecido
como a Defesa de Protágoras (166a-168c). Esta defesa, que tem três partes, mostra
primeiro que Protágoras poderia responder facilmente à objeção baseada na
memória. Em seguida, apresenta uma resposta à objeção de que a doutrina de
Protágoras parece implicar que nenhum homem pode ser mais sábio do que outro.
Nesta resposta, Protágoras define o sábio como aquele que é capaz de produzir
nas pessoas e nas cidades uma condição melhor e opiniões melhores, embora não
mais verdadeiras do que as que elas já têm. Finalmente a defesa apresenta uma
exortação para que não sejam mais apresentadas perguntas capciosas, para que
não se recorra apenas ao sentido usual das expressões, e para que se busque
mostrar ao adversário apenas os erros que ele de fato cometeu.

Na terceira seção da crítica a Protágoras, duas objeções importantes ao


sofista são apresentadas (169d-172b e 177c-179b), sendo separadas por uma
150

passagem conhecida como Digressão. Sócrates consegue fazer Teodoro participar


da discussão, e passa a apresentar um argumento (conhecido como Peritropé)
segundo o qual a doutrina de Protágoras se auto-refuta: Protágoras sustenta a tese
de que “o que aparece para cada um é realmente como lhe aparece”. Mas muitos
homens pensam que essa tese de Protágoras é falsa. Já que Protágoras admite que
a opinião de todos os homens é verdadeira, ele terá de reconhecer, então, que é
verdadeira a opinião segundo a qual o próprio princípio do homem-medida é
falso. A verdade de Protágoras, portanto, não será verdadeira nem para ele
próprio. Essa objeção parece incorreta, quando se considera que a doutrina do
homem-medida diz que tudo o que um homem crê é verdadeiro para ele.
Protágoras, assim, poderia reconhecer que é verdade que sua doutrina é falsa para
outras pessoas (e que é verdadeiro para outras pessoas que a sua doutrina é falsa),
sem isso implicar que ela seja falsa também para ele. Muitos intérpretes do
Teeteto pensaram ser preciso explorar outros elementos dessa objeção para
considerá-la uma objeção séria à doutrina de Protágoras, e a leitura dessa
passagem gera muita controvérsia.

A última objeção à doutrina do homem-medida de Protágoras, conhecida


como Argumento do Futuro, começa a ser formulada ainda antes da Digressão.
Ali, primeiro é confirmado que muita coisa é o que parece ser para cada um:
quente, seco, doce e todas as coisas do mesmo tipo. Do mesmo modo, é
consentido que muita coisa é o que parece ser para cada cidade: belo e feio, justo e
injusto, pio e ímpio. Mas, no que toca a muitas outras coisas, uns homens sabem
mais que os outros, assim como umas cidades sabem mais que as outras. Por
exemplo, só se pode dizer que cada cidade tem opiniões sempre verdadeiras e
nunca falsas a respeito de toda e qualquer coisa, se se admite que, em matéria de
vantagem e proveito, está ao alcance de qualquer cidade determinar aquilo que
infalivelmente lhe será vantajoso no futuro.

O problema indicado no Argumento do Futuro é que qualquer


acontecimento futuro, ou “aparecer” futuro, ou julgamento futuro é algo que não
faz parte, presentemente, da experiência de ninguém, de forma que a doutrina do
homem-medida não pode garantir que cada homem ou cidade seja o único e
infalível juiz de tais acontecimentos. Se eu julgo hoje que uma determinada coisa,
151

lei ou ação será vantajosa para mim amanhã, a verdade deste julgamento
dependerá de minha experiência, amanhã, confirmar a vantagem que eu hoje
prevejo. Mas nada garante que amanhã me parecerá de fato vantajoso o que hoje
julgo que assim será. Os julgamentos sobre o futuro, portanto, estão sujeitos a erro
e a verificação, e no que diz respeito a eles, é preciso concordar que é possível
haver verdade e falsidade.

Quando a doutrina do homem-medida de Protágoras foi exposta pela


primeira vez no Teeteto, ela estava restrita às sensações presentes e às opiniões
derivadas dessas sensações. Mas, à medida que as críticas a Protágoras são
apresentadas, torna-se cada vez mais nítido que a doutrina do sofista não se limita
mais à sensação e aos julgamentos correlatos, e sim se refere a todo e qualquer
tipo de opinião, crença ou julgamento. A doutrina do homem-medida, portanto,
passa a ser tratada como uma tese sobre todas as crenças, e não somente sobre
aquelas que se baseiam nas sensações de alguém. O Argumento do Futuro é bem-
sucedido ao atacar a doutrina do homem-medida com relação a um determinado
tipo de julgamento: aquele que diz respeito à vantagem e à utilidade, a
acontecimentos e julgamentos futuros. Mas a doutrina da infalibilidade da
sensação permanece intacta mesmo após as críticas a Protágoras. Nas palavras de
Sócrates, “quando se trata das impressões presentes de alguém, fontes de
sensações e de opiniões correlatas, é mais difícil demonstrar que não são
verdadeiras” (179c).

4.6

A crítica ao heraclitismo extremo

Depois de dizer que a tese da incorrigibilidade da sensação talvez


seja inatacável, Sócrates começa a questioná-la, voltando a examinar a doutrina
heraclítica do fluxo. Ele propõe esse reexame sem deixar claro, inicialmente, se
está se referindo à doutrina original de Heráclito ou à versão radical de seus
adeptos, pois só o que diz é que se refere à inspeção “dessa realidade em
movimento” (tèn pheroménon taúten ousían) (179d). Em seguida, Sócrates afirma
152

que a batalha travada ao redor dessa realidade móvel “não é de importância


secundária nem mobiliza pouca gente” (179d). Teodoro responde que essa batalha
de fato está longe de carecer de importância; na Jônia, principalmente, ela se
desenvolve a olhos vistos. “Os sectários de Heráclito”, completa Teodoro, “são os
mais ardorosos defensores de tal doutrina” (179d).

Como se verá um pouco adiante, o fato de ter mencionado a Jônia não


significa que Teodoro esteja se referindo ao próprio Heráclito. Os partidários de
Heráclito acabaram de ser citados pela primeira vez em todo o diálogo, e logo
ficará claro que é a eles que a discussão sobre a “realidade móvel” se referirá
daqui por diante. Pois Sócrates diz: “Tanto maior é o nosso dever, amigo Teodoro,
de reexaminá-la [essa realidade móvel] desde seus fundamentos, tal como eles
mesmos a formularam” (179d-e). Trata-se, portanto, com toda a nitidez, de voltar
a inspecionar o movimento das coisas da mesma maneira que os adeptos de
Heráclito fizeram.

Além disso, Teodoro segue afirmando que discutir doutrinas heraclíticas


(ou, como havia sido dito, homéricas) com aqueles homens de Éfeso que se
apresentam como experts nelas é impossível. Pois eles estão sempre em
movimento, coerentemente com seus próprios escritos, e não são capazes de
demorar no exame de um argumento ou questão, ou de esperar a vez de responder
ou perguntar. O nível de tranqüilidade deles é nenhum, e, quando lhes é feita
alguma pergunta, eles desferem sentenças pequenas e enigmáticas como se fossem
flechas. Quando alguém pede esclarecimentos sobre o sentido de uma pergunta
deles, uma outra pergunta com um sentido inteiramente novo e diferente já o
atingiu. Não é possível chegar a nenhuma conclusão com nenhum deles, do
mesmo modo que eles não chegam a qualquer conclusão entre si. Eles se
empenham ao máximo para que nada se estabilize nos seus discursos ou em suas
próprias almas, pelo receio de que se institua algo de estacionário, que é o que
mais combatem e buscam expulsar. Sem intervalos mais calmos, nos quais
comunicariam suas idéias aos discípulos, entre eles ninguém é discípulo de
ninguém. Todos brotam sozinhos, cada um achando que o vizinho não sabe nada
(179e-180b).
153

Ao descrever os adeptos de Heráclito desta maneira, Teodoro mostra que


deles ninguém nunca arrancará nada. Ao mostrar como é impossível examinar
qualquer coisa junto deles, Teodoro deixa claro que só é possível examiná-los
como problemas. E propõe que de fatos eles sejam examinados como problemas,
dizendo: “De toda essa gente, como disse, jamais alcançarás a menor resposta,
nem à força, nem de bom grado; precisamos apanhá-los e examiná-los como a
problemas” (180c). Teodoro está sugerindo, portanto, que se discutam justamente
as questões para as quais falta exame e inspeção: as idéias dos heraclíticos, e não
as doutrinas de Heráclito, tal como ele próprio as sustentava.

Sócrates lembra que o problema da “realidade móvel” já havia sido


legado pelos antigos, velado pela poesia: o pensamento deles era que Oceano e
Tétis, geradores de todas as demais coisas, são corrente d’água, e que nada é
imóvel. Os modernos dizem o mesmo abertamente, desacreditando que haja seres
parados e seres em movimento, e ensinando que tudo é movimento (pánta
kineîtaî). Sócrates então lembra daqueles que sustentaram exatamente a tese
contrária: “os Melissos e os Parmênides” que sustentaram que “tudo é um e se
mantém imóvel em si mesmo” (180e). Descrevendo a si próprio e a Teodoro
como homens que, sem perceber, foram cair entre os dois grupos, Sócrates sugere
começar o exame pelos que estão em fluxo permanente, para ver se sua doutrina
tem ou não um fundamento sério.

Sócrates começa o exame perguntando o que os heraclíticos querem dizer


quando afirmam que tudo se movimenta. Começa então a ser reconstruída a teoria
do fluxo dos heraclíticos. Primeiro é dito e aceito que há dois tipos de movimento:
translação, mudança de lugar ou movimento (phorá) e alteração (alloíosis). Os
heraclíticos diriam que todas as coisas se movem sempre e simultaneamente dos
dois modos. Eles precisam afirmar que as coisas têm de mudar de ambos os
modos, pois, se não o fizerem, as coisas estarão tanto em movimento (num
sentido) quanto em repouso (em outro), e não será mais correto dizer que tudo está
se movendo do que afirmar que tudo está em repouso (181e).

É feita então a afirmação que creio poder ser considerada a primeira, de


todo o diálogo, que implica nitidamente a defesa do fluxo extremo: “tudo se move
sempre com todos os movimentos” (pánta dè pâsan kínesin aeì kinveîtai) (181e).
154

Em seguida é dito e aceito que, de acordo com a teoria da sensação exposta antes,
e que se funda na explicação heraclítica da gênese das coisas pelo movimento, o
agente se torna branco, e o paciente se torna sentiente. Nem qualidade, nem
agente ou paciente existem em si mesmos em parte alguma. Mas, além disso,
essas coisas que devêm e se movem não poderiam somente passar de um lugar a
outro sem sofrer alteração, pois, se não houvesse alteração, poderíamos dizer de
que natureza elas são. Visto, então, que nem o “devir branca” de uma coisa escapa
ao fluxo, sofrendo também alteração, o resultado é que há fluxo até da brancura, e
uma mudança dela para outra cor. Nenhuma qualidade, portanto, poderá ser
apreendida como tal, de forma que não será possível falar corretamente de
nenhuma cor (182a-d).

De modo semelhante, não será possível falar de qualquer outra coisa que
nos escapar no próprio instante em que formos designá-la, visto não parar de fluir.
O mesmo valeria para as sensações de todo tipo: a visão e a audição, por exemplo,
jamais subsistiriam nesse estado de visão e audição, e, por isso, não haveria mais
razão para chamá-las de visão e audição do que de não-visão e não-audição. A
conseqüência disso tudo para a tese de que conhecimento é sensação se revela
então: se nenhuma sensação é mais sensação que não-sensação, nenhuma
sensação é mais conhecimento que não-conhecimento. De fato, então, não há mais
motivos para se afirmar que conhecimento é sensação do que há para se dizer que
conhecimento não é sensação (182d-e).

Não podemos, então, conciliar a tese de que conhecimento é sensação


com essa teoria do fluxo. Pois, se tudo está mudando, em resposta a toda e
qualquer questão é igualmente correto dizer “isto é assim” e dizer “isto não é
assim”, ou melhor, é igualmente certo afirmar “isto devém assim” e “isto não
devém assim”. Na verdade, em rigor, nem as palavras “assim” e “não assim”
deveriam ser usadas, pois qualquer uma delas já não seria movimento e implicaria
a ausência de movimento (183a-b). Nada se poderia dizer com razão e não haveria
em nossa linguagem expressões que pudessem traduzir sua hipótese. Neste ponto,
Sócrates e Teodoro concordam que nem concederam a Protágoras que o homem é
a medida de todas as coisas, nem aceitaram que conhecimento seja sensação, ao
menos em conexão com o princípio de que tudo se move (183b-c).
155

Vimos portanto que, somente na última ocasião em que a teoria do fluxo


universal é discutida no Teeteto, sua versão extremada entra em cena. Essa é a
versão segundo a qual “tudo se move sempre em todos os sentidos”. O texto do
diálogo indica claramente que a versão extremada da tese do fluxo está sendo
atribuída somente aos heraclíticos, e não a Heráclito. E apenas essa versão
extrema é criticada e refutada por Platão. Por isso não parece ser correto dizer que
Platão atribui a Heráclito, nesse diálogo, uma versão exagerada de sua própria
filosofia. Além disso, à luz das discussões do Teeteto, somente a concepção
extrema do fluxo ou devir é considerada insustentável, enquanto a concepção
moderada não é atacada. A preservação da doutrina moderada do devir, bem como
a crítica contundente à sua concepção extremada, parecem sugerir que a visão
moderada do fluxo e da mudança está sendo aceita, adotada, endossada por Platão
no Teeteto.
156

5.

Platão, os fragmentos do rio e a tese heraclítica do fluxo

5.1

O Teeteto e as tese atribuídas a Heráclito

Ao examinar, no terceiro capítulo deste trabalho, a primeira enunciação


da doutrina secreta no Teeteto (152d), sustentei que, ali, quatro teses
genuinamente heraclíticas estavam sendo mencionadas: a tese da unidade dos
opostos, a tese da retidão natural dos nomes, a tese do fogo como princípio
universal, e a tese do fluxo universal. Naquela seção, tratei de mostrar brevemente
como a tese da retidão natural dos nomes, de um lado, remonta aos escritos de
Heráclito e, de outro, é distorcida por Crátilo. Além disso, argumentei que, ao
vincular essa tese a Heráclito no contexto da exposição da doutrina secreta
(especialmente em associação com a tese de que “nenhuma coisa é una em si
mesma”), Platão não estava fazendo uma atribuição inapropriada, do ponto de
vista histórico, a Heráclito.

Também fiz, àquela altura, uma remissão ao primeiro capítulo desta tese,
onde ficou evidente a presença freqüente e significativa, nos fragmentos
heraclíticos, da doutrina do fogo como princípio universal. No caso do vínculo
estabelecido no Teeteto entre a tese do fogo e a doutrina secreta (e, por
conseguinte, a Heráclito), sustentei que Platão estava atribuindo a Heráclito mais
uma tese que efetivamente fazia parte da filosofia heraclítica. No terceiro capítulo,
157

entretanto, não tratei da presença da tese da unidade dos opostos nos escritos de
Heráclito, nem tampouco do problema da origem da tese heraclítica do fluxo
universal.

Que a tese da unidade dos opostos remonta de fato aos escritos


heraclíticos é uma opinião unânime entre os estudiosos de Heráclito. Ainda que os
diversos comentadores apresentem interpretações variadas e muitas vezes
discordantes dos fragmentos heraclíticos em que figura a doutrina da unidade dos
opostos, todos concordam que se trata de uma tese legítima e importantíssima de
Heráclito, atestada por uma enorme quantidade de fragmentos. De fato, se formos
listar os fragmentos heraclíticos que apresentam exemplos claros da tese da
unidade dos opostos, veremos que mais de 20 serão os enunciados arrolados.185
Portanto, mesmo que um ou outro desses fragmentos tenha sua autenticidade
contestada, isso não afeta a certeza de que essa tese faz parte da doutrina
heraclítica e de que a atribuição que Platão faz dela a Heráclito é historicamente
correta.

Porém, o caso da teoria do fluxo é inteiramente diferente. Como vimos


na introdução deste trabalho, muitos estudiosos modernos negam que Heráclito
tenha formulado uma doutrina do fluxo universal e crêem que foram Platão e
Aristóteles os propagadores da idéia de que Heráclito seria o autor dessa doutrina.
No terceiro capítulo, examinei o modo como Platão interpretou e usou a teoria do
fluxo na primeira parte do Teeteto, mas deixei em aberto a questão sobre se a
doutrina do fluxo universal tem ou não sua origem nos escritos de Heráclito.
Neste capítulo, então, investigarei se a tese do fluxo universal foi atribuída a
Heráclito com razão, verificando se a leitura platônica, no que diz respeito a essa
tese, remonta aos próprios escritos do Efésio. Buscarei mostrar que, se tudo indica
que Heráclito sustentou de fato uma doutrina do fluxo universal, sua defesa não
foi a de um fluxo extremado, e sim a de um fluxo moderado, com medida, ordem,
padrão.

185
Exemplos claros da presença da tese da unidade dos opostos em Heráclito: fragmentos 8, 10,
23, 48, 50, 51, 53, 54, 59, 60, 61, 62, 65, 67, 76, 80, 82, 83, 84a, 88, 103, 111, 126.
158

5.2

O suposto erro de Platão

Tanto quem aceita quanto quem recusa a existência de uma tese do fluxo
universal em Heráclito baseia seus argumentos sobretudo no exame dos célebres
fragmentos do rio. São três os fragmentos do rio (12, 49a e 91), e no caso de dois
deles (49a e 91) há mais de uma versão. O fragmento 12, citado por Ário Dídimo
e conservado por Eusébio (Preparação Evangélica, XV, 20, 2), diz: “Aos que
entram nos mesmos rios afluem outras e outras águas; e as almas exalam do
úmido” (potamoîsi toîsin autoîsin embaínousin hétera kaì hétera hýdata epirreî⋅
kaì psychaì dè apò tôn hygrôn anathymiôntai).186 O fragmento 49a aparece na
edição de Diels e Kranz na versão citada por um Heráclito conhecido como
“Heraclitus Homericus” (Alegorias, 24), mas também foi citado por Sêneca
(Epistulae Morales, 58, 23) numa outra versão. O fragmento 49a, tal como figura
em Diels e Kraz, diz: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não
somos” (potamoîs toîs autoîs embaínomén te kaì ouk embaínomen, eîmén te kaì
ouk eîmen).187 Já o fragmento 91 aparece na edição de Diels e Kranz na versão
citada por Plutarco (De E apud Delphos, 392b), mas também foi citado, em
versões um pouco diferentes, por Platão (Crátilo, 402a) e por Aristóteles
(Metafísica, 1010a 12). O fragmento 91, tal como figura em Diels e Kranz, diz:
“Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio” (potamoî ouk éstin embênai dìs
toî autoî).188

Há muita discussão e desacordo no que diz respeito a quantos dos


fragmentos do rio remontam ao próprio Heráclito. Alguns estudiosos acreditam
que os três fragmentos são autenticamente heraclíticos, alguns acreditam que
apenas dois são autênticos e outros ainda pensam que só um deles é um enunciado

186
Fragmento 12: potamoiÍsi toiÍsin au)toiÍsin e)mbai¿nousin eÀtera kaiì eÀtera uÀdata
e)pirreiÍ: kaiì yuxaiì de\ a)po\ tw½n u(grw½n a)naqumiw½ntai. Alexandre Costa traduziu o
termo psychaì, neste fragmento, por “vapores”. Alterei aqui a tradução para “almas”, pelo fato de
que a noção grega de alma abarca os sentidos de sopro ou vapor, e pode se referir a ambos, sem
perder necessariamente sua conhecida polifonia; o inverso, no entanto, não ocorre.
187
Fragmento 49a: potamoi=j toi=j au)toi=j e)mbai/nome/n te kai\ ou)k e)mbai/nomen,
ei=me/n te kai\ ou)k ei=men.
188
Fragmento 91: potam%½ ou)k eÃstin e)mbh=nai diìj t%½ au)t%½.
159

original.189 Vou mostrar, primeiro, como alguns autores alegam não haver, na
totalidade dos fragmentos heraclíticos autênticos, e por conseguinte na filosofia de
Heráclito, nada próximo de uma doutrina do fluxo universal. Em seguida vou
apresentar, de forma resumida, algumas das posições contrárias à autenticidade de
determinadas compreensões e reproduções da imagem heraclítica do rio.190
Finalmente, vou apresentar alguns argumentos em defesa da autenticidade do
fragmento 91, bem como um exame da interpretação platônica do pensamento de
Heráclito acerca do fluxo e da mudança.

Desde a Antiguidade, o fragmento 91, que diz que “não é possível entrar
duas vezes no mesmo rio”, é o mais célebre entre todos os ditos atribuídos a
Heráclito. Ainda assim, muitos críticos (entre os quais me referirei principalmente
a Kirk) negaram que Heráclito fosse o seu autor. Esses críticos argumentam de
maneiras diversas, mas coincidem na razão que consideram ser a mais forte para a
rejeição: de acordo com eles, o fragmento 91 implica a doutrina chamada por
Platão, por sua própria conta, de pánta choreî ou pánta reî, ou seja, a doutrina do
fluxo irrestrito e ininterrupto de todas as coisas, que é incompatível com a
concepção básica de Heráclito da identidade e da medida na mudança. Alguns
deles argumentam, então, que o fragmento 91 foi uma construção erroneamente
derivada do fragmento 12 ou dos fragmentos 12 e 49a, dependendo da
autenticidade por cada um atribuída a esses dois outros fragmentos do rio.

189
Por exemplo, F. Schleiermacher, I. Bywater, E. Zeller, W. Nestle, H. Diels, W. Kranz, G.
Calogero, R. Mondolfo, W. K. C. Guthrie, J. Bollack, H. Wismann, G. Colli e M. Conche, entre
outros, aceitam os três fragmentos. K. Reinhardt e T. M. Robinson aceitam os fragmentos 12 e
49a; G. Vlastos, 91 e 49a; C. H. Kahn e L. Tarán, 91 e 12; O. Gigon, G. S. Kirk e M. Marcovich,
somente o 12.
190
Nesta abordagem do debate sobre a autenticidade dos fragmentos do rio, usei muito os
seguintes textos: G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 366-384; G. S. Kirk,
J. E. Raven & M. Schofield, The Presocratic Philosophers (Cambridge, Cambridge University,
1984 [1957]), p. 193-197; C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 166-169 e
339 n. 431; Leonardo Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications”, Elenchos
(Bibliopolis, vol. XX, n. 1, 1999), p. 9-52; e Irley Franco, “A Realidade do Mundo Físico na
Filosofia de Platão”, O Que nos Faz Pensar (Departamento de Filosofia da Puc-Rio, n. 11, 1997),
p. 87-130.
160

Para Reinhardt, Kirk e Marcovich,191 foi Platão (cuja versão do


fragmento 91 é a mais antiga entre as três existentes) quem formulou essa
sentença, propagando-a pela primeira vez. Ela aparece no Crátilo (402a), onde é
dito: “Heráclito, eu creio, diz que tudo flui e nada permanece, e, comparando o
que é à corrente de um rio, conclui que não se pode entrar duas vezes no mesmo
rio”.192 Segundo esses críticos, a formulação platônica da imagem do rio
implicaria que o heraclítico Crátilo estava correto, pois cada coisa na natureza se
assemelharia ao rio, que nunca seria o mesmo em momentos sucessivos. Platão,
tanto no Crátilo quanto no Teeteto, mostraria que viu Heráclito e os heraclíticos
como os principais defensores da idéia de que todas as coisas estão em fluxo
constante, como rios. A imagem platônica do rio, então, teria sido criada para
enfatizar a absoluta continuidade da mudança, assim como a absoluta ausência de
estabilidade e identidade em cada coisa individual.

Aristóteles teria aceitado a interpretação platônica do fluxo heraclítico e,


baseando-se na sentença do Crátilo, teria formulado sua própria versão da
imagem do rio na Metafísica (1010a 13): “[Crátilo] censurava Heráclito por haver
dito que não é possível entrar duas vezes no mesmo rio, pois ele acreditava que
[não é possível entrar] nenhuma”. Além disso, Aristóteles (Física, 253b 9) teria
tornado ainda mais explícito o que já estaria implícito em Platão, ao dizer que
todas as coisas estão em movimento o tempo todo, ainda que isso escape à nossa
percepção. Para Kirk, essa leitura aristotélica seria implausível, pois seria
incongruente com o fato de Heráclito valorizar a percepção sensível, e com o fato
de a percepção sensível nos dizer que as coisas não estão mudando a todo instante.

Na interpretação de Kirk, Heráclito admitia que havia mudança no


mundo, mas não acreditava mais do que seus predecessores que tudo muda (e
Platão, por sua vez, teria mostrado saber bem disso quando, no Teeteto, atribuiu a
doutrina do fluxo a uma série de pensadores e poetas, e não somente a Heráclito).

191
Cf. K. Reinhardt, Parmenides und die Geschichte der griechischen Philosophie (Bonn, 1916),
p. 206-207 apud L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications” (op. cit.), p.
13; G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 370; M. Marcovich, Heraclitus
(Mérida, 1967), p. 213, apud L. Tarán (idem).
192
ΣΩ. – Λέγει που Ἡράκλειτος ὅτι “πάντα χωρεῖ καὶ οὐδὲν µένει,” καὶ ποταµοῦ ῥοῇ
ἀπεικάζων τὰ ὄντα λέγει ὡς “δὶς ἐς τὸν αὐτὸν ποταµὸν οὐκ ἂν ἐµβαίης.” (Crátilo, 402a).
161

Desse modo, não haveria por que afirmar que Heráclito elaborou algo como uma
doutrina do fluxo.193

Heráclito diria que a maior parte dos casos de mudança poderia ser
resolvida em mudanças ou “guerras” entre opostos. Ainda que nenhum dos
opostos pudesse “vencer a guerra” e estabelecer uma dominação permanente,
deveria haver pausas temporárias e localizadas no “campo de batalha”, bem como
imobilizações provisórias produzidas pelo equilíbrio das forças em oposição. Por
isso, Kirk afirma que Heráclito deve ter admitido que a estabilidade temporária
fosse encontrada no cosmo. Assim, embora todas as coisas devam mudar
ocasionalmente, elas são evidentemente estáveis em alguns momentos. Que os
fragmentos certamente genuínos de Heráclito sugiram que uma pedra ou uma
montanha, por exemplo, estão invariavelmente sofrendo mudanças é uma idéia
que Kirk nega e critica. Pois, para ele, Heráclito achava que as coisas mudavam,
até poderia achar que elas sofrem mudanças invisíveis, mas jamais concordaria
que essas mudanças são constantes e contínuas. Platão, portanto, poderia ter sido
enganado pelo exagero produzido pelos heraclíticos acerca da visão de Heráclito
sobre a mudança ocasional das coisas.

Nos fragmentos certamente genuínos, diz Kirk, há muitas evidências de


que Heráclito não apenas não negou a estabilidade nas coisas e no mundo, como,
ao contrário, quis sobretudo afirmar tal estabilidade. Heráclito teria dado ênfase ao
repouso na mudança, e não à mudança na aparente estabilidade. Ao contrário do
que ocorre com o fragmento 91, a forma do fragmento 12 seria heraclítica, pois ali
a menção “aos que entram nos mesmos rios” mostraria que não é o fluxo perpétuo
que deve ser enfatizado. A imagem do rio, não em sua feição platônica, e sim em
sua forma heraclítica, ilustraria, na verdade, a medida que deve ser inerente às
mudanças em larga escala, isto é, a regularidade do fluxo e da reposição das águas
que correm no rio, e sua ênfase estaria na preservação da identidade e do nome do
rio, a despeito da mudança de suas partes.194

193
Neste ponto, Kirk concorda inteiramente com K. Reinhardt, “Heraklits Lehre von Feuer”,
Hermes, 77, 1942, p. 18, apud G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 370.
194
Vale notar que Marcovich, se de um lado concorda com Reinhardt e Kirk que a ênfase
fragmento 12 não está no fluxo constante, de outro discorda deles, ao afirmar que a ênfase não está
tampouco na medida e estabilidade inerentes à mudança. Para ele, o fragmento 12 é só mais um
162

Mas Kirk não acha que Platão compreendeu inteiramente mal o


pensamento de Heráclito em geral (o que ficaria claro na boa leitura presente no
Sofista, 242d-e) ou mesmo a aplicação dos enunciados do rio. Ao crer que esses
enunciados não eram observações isoladas sobre o comportamento dos rios, e sim
uma ilustração ou exemplo que dizia respeito ao comportamento de muito mais
coisas, Platão estaria certo. Mas o que Heráclito queria ilustrar nos enunciados do
rio não era a mudança constante das coisas individuais, e sim a estabilidade do rio
(e de muitas outras coisas) como um todo, e a coincidência dessa estabilidade com
o fluxo das suas águas (ou partes). O grande problema da interpretação platônica,
portanto, seria enfatizar o elemento errado: o fluxo e a mudança.

Em suma, como podemos ver, Platão recebeu uma série de críticas e foi
acusado de ter cometido muitos erros por um grupo de comentadores modernos de
Heráclito: ele teria atribuído equivocadamente a Heráclito uma doutrina do fluxo;
teria exagerado a visão de Heráclito sobre a mudança, interpretando-a
erroneamente como uma defesa do fluxo ininterrupto; teria parafraseado e criado,
mas não citado, o dito “não se entra duas vezes no mesmo rio” e a designação
panta reî, imputando-as depois a Heráclito; teria cometido um erro de ênfase em
sua leitura da imagem do rio, ao destacar a mudança em lugar da estabilidade e da
medida.

5.3

O debate sobre a origem e o significado dos fragmentos do rio

Como vimos, Kirk, Reinhardt e Marcovich concordam tanto em não


considerar o fragmento 91 autêntico quanto em considerar o fragmento 12
genuíno. Comecemos então a tratar da discussão sobre a autenticidade e o
significado do fragmento 12, que, vale lembrar, diz: “Aos que entram nos mesmos
rios afluem outras e outras águas; e as almas exalam do úmido”. O texto que Diels
incluiu como fragmento 12 vem de Eusébio, que está citando Ário Dídimo. Ário,

exemplo de unidade dos opostos, o que ficaria evidente na oposição entre “mesmos” e “outras”.
Cf. M. Marcovich, Heraclitus (op. cit.), p. 213, apud L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments
and their Implications” (op. cit.), p. 33.
163

por sua vez, está dando ou uma citação ou um relato indireto de Cleantes, que
teria dito que Zenão descreveu a alma como uma exalação percipiente, o que
concordaria com a descrição dada por Heráclito, que Cleantes então cita. Segue o
fragmento 12 em seu contexto:

Ao tratar da alma, Cleantes, expondo as doutrinas de Zenão


para compará-lo com os demais filósofos da natureza, afirma que
Zenão diz que a alma é uma exalação perceptível, tal como Heráclito
[diz]. Pois [Heráclito], querendo mostrar que as almas, ao serem
exaladas, se tornam sempre novas, comparou-as aos rios, dizendo o
seguinte: “Aos que entram nos mesmos rios, afluem outras e outras
águas”, e “as almas exalam do úmido”. Zenão, então, tal como
Heráclito, mostra que a alma é uma exalação, e diz que ela é
perceptiva pela seguinte razão: porque sua parte principal é suscetível
tanto de ser modificada por realidades externas através dos órgãos dos
sentidos quanto de receber impressões. Essas de fato são propriedades
peculiares à alma.195

O contexto do fragmento 12 fala claramente de almas, e não de vapores.


E o que temos é uma citação ou uma paráfrase de certos enunciados de Heráclito
por Cleantes, que quis provar a partir deles que Heráclito tinha uma doutrina da
alma similar à de Zenão. Não há dúvida de que Cleantes quis oferecer uma citação
de Heráclito, mas não é fácil decidir até onde essa citação se estende. A grande
maioria dos estudiosos aceitou a primeira parte do texto (“aos que entram nos
mesmos rios afluem outras e outras águas”) como uma citação direta de Heráclito.
Aliás, este é o fragmento do rio cuja aceitação é a mais disseminada, sendo quase
unânime. Mas tem havido desacordo sobre a segunda parte (“e as almas exalam
do úmido”), e sobre se as duas partes vêm do mesmo contexto em Heráclito.

Cleantes começa interpretando o que ele vai citar, supondo que a


referência de Heráclito aos rios é uma metáfora para “almas”. À primeira vista
parece que Cleantes quis atribuir a Heráclito a concepção de alma como exalação

195
Eusébio, Preparação Evangélica, XV, 20, 2, apud L. Tarán, “Heraclitus: The River-
Fragments and their Implications” (op. cit.), p. 22.
164

perceptiva, vendo aí a semelhança com a doutrina de Zenão. Mas nas citações, ele
mostra que a similaridade consiste somente na concepção da alma como exalação.
Depois das citações, ele também restringe a similaridade entre Zenão e Heráclito à
exalação, e em seguida parece discutir o poder perceptivo da alma somente de
acordo com Zenão. Neste fragmento e em seu contexto, então, o que se encontra
com certeza é a noção de Cleantes de que a alma, para Heráclito, é uma exalação.

Mas, o que muitos perguntam é por que o fragmento do rio está sendo
citado também nesse contexto. Pois, na sentença dos rios nada é dito sobre almas,
nem há qualquer comparação implicada. E não há nenhuma conexão óbvia entre
rios e almas. Ainda assim, muitos comentadores de Heráclito acharam que as duas
partes vêm originalmente de um contexto psicológico, que esse contexto esclarece
a ligação entre elas, e que então a primeira deve ser interpretada num sentido
psicológico.196 Outros sugeriram acrescentar palavras à segunda sentença, para
tentar estabelecer uma ligação entre as duas.197 Finalmente, muitos pensaram, ou
que a última sentença (“e as almas exalam do úmido”) é uma citação livre, ou que
as duas sentenças são fragmentos separados que não têm nada a ver um com o
outro.198

Kirk, por exemplo, analisa o vocabulário e outros aspectos lingüísticos


desse fragmento, e prefere não aceitar a segunda parte da citação: nela, ao
contrário da primeira, não haveria nenhum jonicismo, e estranhamente apareceria
o verbo anathymiôntai, que nessa forma composta não teria figurado em nenhum
outro lugar antes de Aristóteles. Já as palavras da sentença do rio parecem ser, aos
seus olhos, suficientemente genuínas: os dativos plurais jônicos oîsi, o uso
consistente do n eufônico, a repetição arcaica de hétera, o ritmo e o fraseado da
sentença sugeririam que essas são palavras originais de Heráclito.

196
Este é o caso, por exemplo, de K. Reinhardt, Parmenides und die Geschichte der griechischen
Philosophie (op. cit.), apud L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications”
(op. cit.), p. 24.
197
Por exemplo, Capelle e Gomperz, apud G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op.
cit.), p. 369. Diels sugeriu uma solução parecida ao propor uma correção, e não um acréscimo (ele
afirmou que noerai poderia ser uma corrupção de heterai).
198
Por exemplo, Marcovich e Kirk pensam que a segunda sentença é uma paráfrase, e não uma
citação literal de Heráclito.
165

Os autores que rejeitam a segunda sentença ou que negam que as duas


sentenças faziam parte de um mesmo contexto em Heráclito concluem que o
contexto psicológico da citação, em Eusébio, não fornece informação confiável
sobre o contexto original da sentença do rio que compõe esse fragmento. Surge,
então a questão: qual é o contexto original do fragmento 12 no livro de Heráclito?
É o de sua doutrina da mudança tal como ela é apresentada, por exemplo, no
Crátilo (402a)? É o de sua doutrina da unidade dos opostos? É outro ainda?

Para Reihnardt, a sentença do rio no fragmento 12 é uma imagem com a


qual Heráclito ilustra sua doutrina do balanço e da constância na mudança.199 No
caso dos rios, ainda que as águas fluam ininterruptamente, os próprios rios
permanecem os mesmos, assim como a quantidade de águas no universo também
permanece a mesma. Reinhardt simplesmente admite que o fragmento 12 pertence
ao contexto geral do 31, em que massas cósmicas de fogo, água etc. estão sempre
se transformando umas nas outras, enquanto a totalidade dessas massas permanece
em equilíbrio.

Kirk aceita quase inteiramente a interpretação de Reinhardt, mas


argumenta a favor do papel do observador (dos que entram nos rios). Para ele, o
fragmento 12 (que se resume à sentença do rio) enfatiza as duas características
opostas dos rios: sua identidade e a mudança das águas que passam por um
observador. Todavia, ele crê que o fragmento não seria meramente um exemplo
da coincidência dos opostos, mas também, como vimos, de um tipo de identidade
que persiste através da mudança. E, alegando que nem toda mudança preserva
essa identidade, ele afirma que uma qualidade dos rios é relevante: é porque as
águas fluem regularmente e se repõem em quantidades balanceadas que a sua
identidade é preservada. Para Kirk, a repetição de “outras e outras” (hétera kaì
hétera) sugere fortemente a regularidade desse fluxo. Vale observar que muitas
foram as críticas dirigidas a essa leitura de Reinhardt e Kirk. Primeiro, não deveria
ter escapado a Heráclito a observação de que o fluxo das águas nos rios não é
sempre, nem na maioria das vezes, uniforme. Além disso, a repetição “outras e
outras” dificilmente teria o sentido de regularidade ou de uniformidade. Por

199
Cf. K. Reinhardt, Parmenides und die Geschichte der griechischen Philosophie (op. cit.), apud
L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications” (op. cit.), p. 30.
166

conseguinte, nada nesse fragmento estaria sugerindo o contexto geral dos


fragmentos 31 e 30 (de mudanças cósmicas com medida).200

Muitas outras são as interpretações da sentença do rio no fragmento 12, e


diversas são as opiniões sobre o contexto ao qual ela pertence na obra de
Heráclito.201 Entretanto, a quase totalidade dos editores e comentadores de
Heráclito concorda que essa sentença não apenas reflete mais ou menos
literalmente idéias heraclíticas, e sim constitui o único enunciado do rio cujas
palavras são sem dúvida de Heráclito. Mas o mesmo já não acontece com um
outro enunciado do rio, o fragmento 49a. Muito embora diversos intérpretes o
tenham aceitado, ele recebeu muitas objeções quanto à sua autenticidade.202

O fragmento 49a possui duas versões bastante diferentes. A versão de


Heráclito Homérico, como já vimos, é: “Nos mesmos rios, entramos e não
entramos, somos e não somos” (potamoîs toîs autoîs embaínomén te kaì ouk
embaínomen, eîmén te kaì ouk eîmen). A versão de Sêneca é: “Entramos e não
entramos duas vezes no mesmo rio” (In idem flumen bis descendimus et non
descendimus). Heráclito Homérico usa o plural “rios”, e Sêneca usa o singular.
Além disso, Sêneca não diz nada que corresponda ao “somos e não somos”.
Finalmente, Sêneca fala em “duas vezes”, e o autor grego não.

200
Cf. L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications” (op. cit.), p. 31-32.
201
Por exemplo, Tarán segue uma outra linha de leitura, sugerida por Cherniss, para quem o
sentido de embaínousin era significar literalmente um plural: mais de uma pessoa. O significado
do fragmento 12 seria, então: para várias pessoas que entram nos mesmos rios, águas diferentes
fluem. Quaisquer pessoas que entrassem em quaisquer rios teriam a mesma experiência: embora
estando nos mesmos rios, elas veriam que cada uma toca outras e outras águas. O contexto estaria
relacionado com os fragmentos 2 e 89: o cosmos é comum, mas a maioria das pessoas erra a
respeito das implicações de sua experiência, tratando seu próprio mundo como um mundo
separado e privado. Cf. L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications” (op.
cit.), p. 35.
202
O fragmento 49a é considerado autêntico por Bywater, Diels, Kranz, Zeller, Nestle, Snell,
Vlastos e Bollack-Wismann, entre outros. Foi rejeitado por Kirk e Marcovich, e também por Kahn
e Tarán. Cf. I. Bywater, Heracliti Ephesii Reliquiae (1877), apud C. H. Kahn, The Art and
Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 339, n. 431; H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente der
Vorsokratiker (op. cit.); E. Zeller e W. Nestle, Die Philosophie der Griechen I (6ª ed., 1920), apud
G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 373; B. Snell, “Die Sprache Heraklits”,
Hermes 61 (1926), apud C. H. Kahn (idem); G. Vlastos, “On Heraclitus”, American Journal of
Philology, LXXVI (1955), p. 21; J. Bollack e H. Wismann, Héraclite ou la Séparation (op. cit.);
G. S. Kirk (idem), p. 373; M. Marcovich, Heraclitus (op. cit.), p. 213, apud L. Tarán (idem), p. 13.
167

O fragmento grego vem de um escrito estóico do séc. I d.C., uma defesa


de Homero contra Platão e Epicuro que busca derivar as doutrinas platônicas,
aristotélicas e estóicas de Homero. Sêneca, por sua vez, está expondo a Lucílio, no
contexto de sua citação, os seis modos de existência. Ele identifica a quinta classe
como a das coisas que existem no sentido usual da palavra, como homem e
castelo. Imediatamente depois ele mantém que essa classe de coisas, incluindo nós
mesmos, está em fluxo.

Entre os comentadores que viram problemas nesse fragmento, muitos


argumentaram que ele não é nem original nem independente nas suas duas
versões, exatamente pelo fato de ambas parecerem ser fruto de uma derivação ou
mescla dos outros fragmentos do rio. Para começar, uma comparação da primeira
parte da versão grega de 49a (potamoîs toîs autoîs embaínomén) com o fragmento
12 (potamoîsi toîsin autoîsin embaínousin) mostra que é muito provável que o 49a
seja o mesmo fragmento (numa versão diferente) que o 12. Além disso, alega-se
que as citações de Heráclito Homérico em geral não são muito acuradas. Por sua
vez, a inclusão que Sêneca faz de bis (“duas vezes”) parece ser o resultado da
mistura com alguma versão do fragmento 91. E há também a questão do “somos e
não somos”, que ocorre na versão grega, mas não na latina.

Kirk não aceita o fragmento 49a alegando em primeiro lugar, contra a


versão de Heráclito Homérico, que é absurdo pensar que em qualquer tipo de
grego o predicado poderia ser inteiramente omitido depois de um eînai
copulativo.203 A frase (eîmén te kaì ouk eîmen) significaria então “existimos e não
existimos”, e como tal não deveria ser aceita como originária de Heráclito. Essa
era já uma objeção de Gigon,204 com quem Kirk também concorda em pontos
relativos à outra sentença do fragmento (“nos mesmos rios entramos e não
entramos”): se a frase eîmén te kaì ouk eîmen fosse rejeitada, “entramos e não
entramos” poderia se referir a uma mudança não em nós, e sim nos rios. Mas

203
Muitas críticas foram dirigidas às objeções formuladas por Kirk para rejeitar o fragmento 49a.
Para a crítica a essa sua afirmação de que, em grego, o predicado nunca poderia ser inteiramente
omitido depois de um eînai copulativo, lê-se com proveito o trabalho de C. H. Kahn, Sobre o
Verbo Ser e o Conceito de Ser (op. cit.), e o artigo de Irley Franco, “A Realidade do Mundo Físico
na Filosofia de Platão” (op. cit.), p. 97-99.
204
Cf. O. Gigon, Untersuchungen zu Heraklit (Leipzig, 1935), p. 106, apud G. S. Kirk, Heraclitus.
The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 373.
168

mesmo a mudança nos rios não seria o que Heráclito afirmaria. E muito menos
que em todo e qualquer momento os rios são os mesmos e não os mesmos, o que,
segundo Kirk, corresponderia à crença atribuída por Aristóteles a Crátilo, e não a
Heráclito. Quanto à versão de Sêneca, Kirk também a rejeita, por crer que ela é
semelhante demais ao fragmento 91, que ele considera ser uma paráfrase
originalmente platônica do 12.

As similaridades entre os fragmentos 12 e 49a levaram alguns a concluir


que ambos são autênticos e devem pertencer ao mesmo contexto, mas levaram
outros a recusar um deles. Com exceção de Vlastos, a maioria dos estudiosos que
pensam que esses fragmentos não podem ser ambos autênticos concluiu que 49a é
espúrio. Kirk, como vimos, recusa o fragmento 49a, e crê que a única versão
autenticamente heraclítica da imagem do rio é o fragmento 12. Essa versão,
segundo ele, enfatiza a identidade do rio, e não sua mudança, e é exatamente essa
ênfase fundamental o que se perde nas versões de Platão, Aristóteles e Plutarco,
ou seja, no que conhecemos como fragmento 91.

A passagem do Crátilo (402a) na qual aparece a versão platônica do


fragmento 91 diz: “Heráclito, eu creio, diz que tudo flui e nada permanece, e
comparando o que é à corrente de um rio, conclui que não se pode entrar duas
vezes no mesmo rio” (légei pou Herákleitos hóti pánta choreî kaì oudèn ménei,
kaì potamoû roeî apekádzon tà ónta légei hos dìs es tòn autòn potamòn ouk àn
embaíes). Muitos estudiosos entendem o légei pou inicial como se significasse
“em algum lugar”. Outros, entretanto, consideraram que este pou cumpre a função
de suavizar a asserção principal; ele seria equivalente à expressão “eu creio” ou a
qualquer outra expressão que desempenhasse o mesmo papel: o de sugerir que a
sentença seguinte não é uma citação verbatim. Nesse sentido, o que estaria sendo
indicado por Platão é que o enunciado “tudo flui e nada permanece” não deve ser
considerado uma citação literal de Heráclito.

Porém, depois de afirmar que Heráclito comparou o que é (tà ónta) à


corrente de um rio, Platão repete o verbo légei, dessa vez sem nenhum suavizador,
e em seguida apresenta a sentença “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”.
Para alguns, então, parece que Platão realmente quis que essas últimas palavras
169

fossem tomadas como uma citação direta de Heráclito.205 Para outros, toda a
passagem do Crátilo está sendo apresentada como se não fosse verbatim, e por
essa razão seria possível suspeitar imediatamente de sua autenticidade.206

Kirk, quando recusa a autenticidade da versão platônica do enunciado do


rio, não apresenta, no entanto, argumentos baseados na análise lingüística. Seu
ponto de partida são os argumentos contrários à atribuição, a Heráclito, da tese do
fluxo envolvida nesse enunciado. Pois, como, para ele, esse enunciado só pode ser
lido como a afirmação de que todas as coisas individuais mudam constantemente
como os rios, sem possuir nenhuma estabilidade, ele lhe parece absolutamente
incompatível com o pensamento de Heráclito sobre o fluxo. De acordo com Kirk,
então, a passagem do Crátilo que contém o enunciado do rio é uma clara paráfrase
do único fragmento genuíno do rio, o fragmento 12.

Platão, segundo Kirk, teria tomado o fragmento 12 como se dissesse que


tudo flui e nada permanece. Essa sua interpretação do fluxo também teria sido
elaborada no Teeteto (182a), onde a idéia de que “tudo se move sempre com todo
tipo de movimento” (pánta dè pâsan kínesin aeì kineîtai) é atribuída aos
heraclíticos. Tendo entendido mal a ênfase do fragmento 12, e sendo alguém que
não tem interesse na abordagem histórica exata de seus predecessores, Platão teria
feito o fragmento 12 levar à sua paráfrase (fragmento 91) e à fórmula panta reî.

Como vimos, a passagem da Metafísica (1010a 13) na qual aparece a


versão aristotélica do fragmento 91 diz: “[Crátilo] censurava Heráclito por haver
dito que não é possível entrar duas vezes no mesmo rio, pois ele acreditava que
[não é possível entrar] nenhuma” (Herakleítoi epetíma eipónti hóti dìs toî autoî
potamoî ouk éstin embênai autoì gàr oíeto oud’hápacs). Contra a autenticidade da
versão aristotélica do fragmento 91 Kirk argumenta, em primeiro lugar, que ela é
muito similar à de Platão. Ela difere somente pelo uso do dativo simples (toî autoî
potamoî) em vez de es, e de ouk éstin com o infinitivo em lugar do optativo

205
Cf., por exemplo, L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications” (op. cit.),
p. 48.
206
Kahn, por exemplo, defende que Platão não oferece uma citação das palavras exatas de
Heráclito. Mas ele afirma também que, mesmo que o enunciado do rio pareça ser mais uma
paráfrase do que uma citação, ele parece remontar de fato a Heráclito. Cf. C. H. Kahn, The Art and
Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 168.
170

potencial na segunda pessoa do singular (embaíes). Embora observe que essa


construção potencial é paralela à do fragmento 45, e que, tal como Vlastos
sustenta,207 é possível que a construção potencial e o dìs pertençam à forma
original do fragmento do rio, Kirk crê que é mais provável que tanto a versão
platônica quanto a aristotélica sejam paráfrases do fragmento 12. Aristóteles
estaria seguindo bem de perto a paráfrase de Platão, o que seria indicado por
Plutarco, que em diferentes lugares reproduz tanto a versão platônica quanto a
aristotélica, além de combiná-las com uma versão das palavras finais do
fragmento 12.

Ao observar que Aristóteles diz na Física (253b 9), se referindo aos


heraclíticos e presumivelmente a Heráclito, que a mudança contínua escapa à
nossa percepção, Kirk sustenta que o que Aristóteles está afirmando ali nada mais
é que o desenvolvimento lógico da interpretação platônica do fluxo e da imagem
do rio. Como Kirk crê que a afirmação de mudanças invisíveis por parte de
Heráclito é bastante implausível, para ele essa passagem da Física de Aristóteles
seria outro sinal da fraqueza da interpretação platônica, na qual Aristóteles estaria
se baseando.

Também a versão de Plutarco para a imagem do rio, que aparece como


fragmento 91 na edição de Diels e Kranz, recebe muitas objeções de Kirk quanto à
sua autenticidade. Esse fragmento aparece em seu contexto da seguinte maneira:

Toda natureza mortal, estando entre o vir-a-ser e o deixar de


ser, é como um fantasma, uma aparição nebulosa e incerta de si
mesma. (...) pois, segundo Heráclito, não é possível entrar duas vezes
no mesmo rio (potamoí gàr ouk éstin embênai dìs toî autô), ou tocar
duas vezes uma substância mortal numa condição fixa: mas, pela
intensidade e rapidez da mudança, ela dispersa e outra vez reúne
(skídnesi kaì pásin synágei), ou melhor, nem “outra vez” nem
“depois”, mas ao mesmo tempo ela reúne e dispersa (synístatai kaì
apoleípei), aproxima e afasta (próseisi kaì ápeisi); portanto, o seu
devir não termina em ser (...).

207
Cf. G. Vlastos, “On Heraclitus” (op. cit.), p. 338-ss.
171

Em seu exame dessa passagem de Plutarco, Kirk começa afirmando


categoricamente que é óbvio que a sentença do rio reproduz a versão aristotélica
da paráfrase platônica do fragmento do rio, e não as palavras originais de
Heráclito. De fato, a similaridade entre a versão aristotélica (dìs toî autoî potamoî
ouk éstin embênai) e a de Plutarco (potamoí gàr ouk éstin embênai dìs toî autô), é
muito grande. Por outro lado, para Kirk, essa passagem apresenta três pares de
verbos (skídnesi kaì synágei, synístatai kaì apoleípei, próseisi kaì ápeisi) que não
têm a maneira de Plutarco e cuja fonte deve ser Heráclito. Segundo ele, seria
razoável supor, tanto pela natureza dos próprios verbos, quanto pelo seu contexto,
que eles se referem ao comportamento das águas num rio. Que Plutarco faça com
que eles descrevam o comportamento de “toda substância mortal” não constituiria
nenhum impedimento, por estar claro que ele aceita o rio de Heráclito como uma
metáfora para toda a existência.

Kirk então entende que o fragmento 91 não consiste nem engloba o


enunciado do rio, e sim se constitui como uma seqüência de verbos contrastantes,
que sugeririam acúmulo e dispersão, provavelmente descrevendo o simultâneo
fluir das águas para perto e para longe de um ponto fixo qualquer no rio. Supondo
que esses verbos poderiam pertencer ao fragmento 12, Kirk finalmente sugere que
Plutarco estaria aqui acrescentando, à sua paráfrase da versão aristotélica do
enunciado do rio, uma paráfrase do fragmento 12.

Duas outras versões da imagem do rio aparecem em Plutarco, mas,


segundo Kirk, ambas parecem não ser citações literais de Heráclito e remetem, via
as paráfrases platônica e aristotélica, ao fragmento 12. Enquanto em De E apud
Delphos (392b) Plutarco dá o fragmento 91 na forma que encontramos na
Metafísica de Aristóteles, em De Sera Numinis Vindicta (15, 559c), onde se lê
potamòn (...) eis hón où phesi dìs embênai, ele mistura essa forma com o eis +
acusativo que encontramos no Crátilo. Já em Quaestiones Naturae (912a), onde
se lê potamoîs gár dìs toîs autoîs ouk àn embaíes (...) hétera gàr epirreî hýdata,
encontramos os plurais dativos potamoîs e toîs autoîs para “nos mesmos rios”,
que Plutarco toma do fragmento 12, enquanto ao mesmo tempo ele parece pegar
172

emprestado o ouk àn embaíes de Platão. Além disso, ele repete também o trecho
hétera gàr epirreî hýdata do fragmento 12.

O que podemos ver, então, é que, segundo a argumentação de Kirk


(corroborada em muitos pontos por Reinhardt, Marcovich e outros autores), o
fragmento 12 é o único enunciado do rio original e independente. Ele não visa a
afirmar ou enfatizar o fluxo e a mudança das águas do rio, e sim a estabilidade e
identidade do rio apesar desse fluxo. Todas as versões e variantes do fragmento
91, por sua vez, teriam sido construídas, em última instância, com base na
interpretação incorreta do fragmento 12 por Platão, e remontariam, portanto, antes
à fórmula platônica pánta reî do que ao próprio Heráclito.208

5.4

A hipótese da autenticidade e suas implicações

Para defender a hipótese da autenticidade do fragmento 91 e para buscar


fazer justiça à leitura platônica de Heráclito, creio ser bom começar propondo
duas questões: em primeiro lugar, será que Platão realmente atribuiu a Heráclito a
doutrina do fluxo ininterrupto e irrestrito de todas as coisas? E, em segundo
lugar, será que o fragmento 91, independentemente da versão e da interpretação
platônicas, implica uma doutrina extrema como essa?

Como vimos no capítulo anterior, Platão, no Teeteto, examinou


detidamente a doutrina do fluxo universal. Ao fazer isso, ele distinguiu Heráclito
de seus adeptos extremados e atribuiu a estes, e não ao Efésio, a versão radical
dessa doutrina. É razoável supor que, para Platão, Heráclito era o exemplo
paradigmático da doutrina do fluxo universal. Platão via que, se essa doutrina não
fosse limitada, mas, ao contrário, fosse levada ao extremo, ela se auto-refutaria.

208
Reinhardt e Marcovich concordam com Kirk não apenas em alguns pontos de sua
argumentação, mas também, especialmente, no conteúdo de sua conclusão: ambos também crêem
que o fragmento 91 é simplesmente uma interpretação livre do fragmento 12. Cf. K. Reinhardt,
Parmenides und die Geschichte der griechischen Philosophie (op. cit.), p. 207, apud Kahn, The
Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 168, e Marcovich, Heraclitus (op. cit.),p. 206, apud
Kahn (idem), p. 168.
173

Mas Platão não precisou nem criar essa radicalização da doutrina do fluxo, nem
atribuí-la a Heráclito, pois tal radicalização já havia sido levada a cabo pelos
heraclíticos. Nesse sentido, podemos afirmar que Platão fez uso dos ditos de
Heráclito com vistas a mostrar que a doutrina heraclítica, a não ser que limitada,
levaria a uma doutrina extrema, e extremamente problemática.

Outros diálogos, além do Teeteto, também podem ser mencionados para


mostrar que Platão não acreditava realmente que Heráclito era um partidário da
mudança universal extrema. Numa passagem do Sofista (242c-242e), é dito, com
relação aos predecessores de Platão, que alguns ensinaram que o ser é múltiplo,
enquanto outros ensinaram que o ser é uno. Depois deles, certas musas da Jônia e
da Sicília perceberam que era mais seguro combinar as duas explicações e dizer
que o ser é tanto múltiplo quanto uno. As musas jônicas (numa clara alusão a
Heráclito) pensaram de forma mais precisa que as musas sicilianas, pois elas não
ensinaram apenas a alternância de multiplicidade e unidade, e sim a
simultaneidade do múltiplo e do uno, da dispersão e da unificação. Nessa
passagem, Platão cita palavras de Heráclito, ao escrever: diapherómenon gàr aeì
symphéretai. Essa mesma frase é posta na boca de Erixímaco, no Banquete
(187a): diapherómenon autò autoî symphéresthai.209

Divergência e convergência, dispersão e unificação: essa abordagem


platônica de Heráclito mostra que o Efésio é compreendido por Platão como um
pensador das antíteses e como um defensor da identidade na diferença, da unidade
na multiplicidade, do repouso no movimento, da estabilidade na mudança. Para
Platão, a relação entre união e separação, convergência e divergência era vista por
Heráclito não como uma relação de incompatibilidade, alternância ou exclusão
recíproca, e sim como uma relação de unificação, simultaneidade e implicação

209
Essa antinomia do convergente-divergente se repete em Heráclito nos fragmentos 8, 10 e 51.
Fragmento 8: “O contrário é convergente e dos divergentes, a mais bela harmonia” (to\
a)nti¿coun sumfe/ron kaiì e)k tw½n diafero/ntwn kalli¿sthn a(rmoni¿an). Fragmento 10:
“Conjunções: completas e não-completas, convergente e divergente, consoante e dissonante, e de
todas as coisas um e de um todas as coisas” (sulla/yiej: oÀla kaiì ou)x oÀla, sumfero/menon
diafero/menon, sun#=don di#=don, kai\ e)k pa/ntwn eÁn kaiì e)c e(no\j pa/nta). Fragmento
51: “O divergente consigo mesmo concorda” (ou) cunia=sin o(/kwς diafero/menon e(wut%=
o(mologe/ei). Vale notar que essa passagem do Sofista foi incluída na listagem dos testemunhos
sobre Heráclito por Diels e Kranz (A 10).
174

mútua. O próprio Platão, então, dificilmente teria pensado que o fragmento 91


implicava necessariamente a doutrina do fluxo universal irrestrito.

Além dessas duas passagens, Kahn oferece outra, belíssima. Ao examinar


o fragmento 12, ele propõe que ali pode estar sendo indicado que tanto os rios
quanto os homens só permanecem os mesmos como um padrão ou uma estrutura
imposta a um fluxo incessante, no qual a identidade e a forma unitária são
mantidas, mas o material ou “recheio” é constantemente perdido e reposto.210 Ele
sugere, então, que Platão compreendeu e desenvolveu esse insight de Heráclito
numa passagem do Banquete (207d), que diz:

A natureza mortal procura, na medida do possível, ser eterna e


imortal. Mas, para atingir esse fim o único meio é a geração, com
deixar sempre um ser novo no lugar do velho. Pois é nisso que se diz
que cada animal vive e é o mesmo, assim como se diz que da infância
à velhice um homem é o mesmo. Ele é dito o mesmo a despeito do
fato de nunca conservar consigo o mesmo cabelo, a mesma carne, os
mesmos ossos, o mesmo sangue, pois ele os perde e não cessa de se
renovar; e não apenas no corpo, mas também na alma: os costumes, os
caracteres, as opiniões, os prazeres, as tristezas, os temores, nada disso
permanece o mesmo em ninguém, mas uns nascem e outros são
perdidos.211

Se tudo indica, então, que Platão não atribuiu a Heráclito um mobilismo


extremado, vejamos se há como defender a hipótese, contrária à proposta por

210
Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 167.
211
ἐνταῦθα γὰρ τὸν αὐτὸν ἐκείνῳ λόγον ἡ θνητὴ φύσις ζητεῖ κατὰ τὸ δυνατὸν ἀεί
τε εἶναι καὶ ἀθάνατος. δύναται δὲ ταύτῃ µόνον, τῇ γενέσει, ὅτι ἀεὶ καταλείπει
ἕτερον νέον ἀντὶ τοῦ παλαιοῦ, ἐπεὶ καὶ ἐν ᾧ ἓν ἕκαστον τῶν ζῴων ζῆν καλεῖται
καὶ εἶναι τὸ αὐτό—οἷον ἐκ παιδαρίου ὁ αὐτὸς λέγεται ἕως ἂν πρεσβύτης γένηται·
οὗτος µέντοι οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ ὅµως ὁ αὐτὸς καλεῖται, ἀλλὰ νέος
ἀεὶ γιγνόµενος, τὰ δὲ ἀπολλύς, καὶ κατὰ τὰς τρίχας καὶ σάρκα καὶ ὀστᾶ καὶ αἷµα
καὶ σύµπαν τὸ σῶµα. καὶ µὴ ὅτι κατὰ τὸ σῶµα, ἀλλὰ καὶ κατὰ τὴν ψυχὴν οἱ
τρόποι, τὰ ἤθη, δόξαι, ἐπιθυµίαι, ἡδοναί, λῦπαι, φόβοι, τούτων ἕκαστα οὐδέποτε
τὰ αὐτὰ πάρεστιν ἑκάστῳ, ἀλλὰ τὰ µὲν γίγνεται, τὰ δὲ ἀπόλλυται (Banquete, 207d).
175

Kirk, de que o fragmento 91, com seu enunciado “não se pode entrar duas vezes
no mesmo rio”, não implica uma doutrina do fluxo irrestrito. Em primeiro lugar,
não vejo razão para concordar com Kirk quando ele afirma que o fragmento 91
expressa clara e inevitavelmente a doutrina extrema do fluxo, pois este fragmento
me parece ser compatível com a doutrina segundo a qual cada coisa individual
muda e sofre transformações de acordo com certos padrões estáveis de mudança.
Afinal, o que haveria nele que o tornaria tão obviamente incompatível com uma
visão do fluxo com medida e padrão?

Concordo com Kahn quando ele diz que, ainda que o fragmento 91
pudesse levar a uma conclusão mais radical que o fragmento 12, os dois não
seriam incompatíveis, e sim poderiam ser concebidos como se figurassem juntos.
Talvez o fragmento 91 tenha sido desenhado para completar o 12: “visto que
novas águas estão sempre fluindo nos rios, não é efetivamente possível entrar duas
vezes no mesmo rio”. Ou, o que Kahn propõe como uma conexão mais plausível,
talvez o fragmento 91 fosse enunciado antes, com o 12 seguindo como sua
justificação: “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio; pois, aos que entram
em [o que se supõe serem os] mesmos rios, outras e outras águas afluem”.212

Além disso, há uma razão que me faz crer que o fragmento 91 não apenas
não implica a doutrina do fluxo universal extremo, como é incompatível com essa
doutrina. Pois o fragmento certamente implica que alguém pode entrar ao menos
uma vez num mesmo rio. E o que Aristóteles nos mostra é que esse é
precisamente o ponto que Crátilo, partidário da versão extremada da doutrina,
negou quando censurou Heráclito. Crátilo corrigiu o fragmento 91, justamente
porque ele era, aos seus olhos, moderado demais, e afirmou em seu lugar que é
impossível entrar sequer uma vez no mesmo rio.213 Se o fragmento 91 fosse um
enunciado tão mais radical do que o 12, a ponto de afirmar uma mudança
universal irrestrita, era de se esperar que nele se encontrasse uma rejeição clara e
completa da identidade, o que poderia ser condensado numa fala que enfatizasse
que só há diferença e mudança. O testemunho aristotélico sobre Crátilo mostra
que a crítica de Crátilo a Heráclito visava exatamente a fazer isso: afirmar

212
Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 169.
213
Aristóteles, Metafísica, 1010a 14-15.
176

unicamente a realidade da diferença, negando a realidade da identidade, que ainda


era expressa no dito do Efésio.

Aristóteles nos mostra com clareza que também não acreditou que
Heráclito tivesse levado a doutrina da mudança universal até a posição extrema
defendida por Crátilo e outros heraclíticos. Ele, como vimos, afirmou que “a
opinião mais extremada” é “a dos que afirmam que heraclitizam”, tal como
“Crátilo, que, finalmente, cria que não se devia dizer nada, limitando-se a mover o
dedo”.214

Vemos, então, que Platão e Aristóteles não acreditaram que Heráclito


fosse um mobilista extremado, e que o fragmento 91 não implica, por seu
conteúdo, a atribuição a Heráclito de uma doutrina extrema do fluxo. Cabe agora
argumentar explicitamente a favor da hipótese de que o fragmento 91, ainda que
não pareça ser uma citação verbatim de Heráclito, remonta aos escritos do Efésio
e deve ser considerado um fragmento autêntico e independente.

Vale observar que as análises, interpretações, argumentos e objeções de


Reinhardt, Kirk, Marcovich, Kahn, Tarán, ou de qualquer outro comentador
moderno de Heráclito, constituem explorações que nunca ultrapassam, e nem
poderiam, o domínio da conjectura. Todas as afirmações sobre a autenticidade dos
fragmentos polêmicos, cuja literalidade não é evidente e cujo caráter espúrio
também não é óbvio, constituem hipóteses e tentativas, e não demonstrações
definitivas. Alguns autores admitem mais explicitamente que outros que, nesse
terreno, não estão pretendendo demonstrar propriamente suas teses. Seguirei de
perto, na defesa da origem heraclítica do fragmento 91, argumentos propostos por
Kahn e Tarán, que reconhecem expressamente o caráter conjectural de suas
interpretações e afirmações.215

Vimos até agora que Crátilo, Platão e Aristóteles muito provavelmente


conheceram o livro de Heráclito. Crátilo, porque tudo indica que ele não foi
discípulo direto de Heráclito, e sim conheceu suas idéias por meio de seus
escritos. Platão, porque conheceu Crátilo, porque se quisesse teria acesso ao livro

214
Aristóteles, Metafísica, 1010a 10-13.
215
Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), e L. Tarán, “Heraclitus: The
River-Fragments and their Implications” (op. cit.).
177

de Heráclito, que circulava em Atenas na sua época, e porque muito dificilmente


deixaria de buscar conhecer a fonte das idéias de um pensador que tanto o
impressionara. Aristóteles, porque comenta na Retórica (1047b) a dificuldade de
pontuar os escritos do Efésio, coisa que não poderia saber se não houvesse lido o
seu livro.216

Quando Crátilo corrige o fragmento 91, atesta que ele já era conhecido,
no séc. V, como um dito de Heráclito. Platão, portanto, não poderia tê-lo criado,
visto que ele já existia e já circulava. E, se o livro de Heráclito era disponível
tanto para Platão quanto para Aristóteles, o fato de que ambos citam, ainda que
não literalmente, o fragmento 91 atesta ainda mais fortemente que se tratava de
um enunciado de Heráclito acessível e conhecido. Kahn observa que o fato de a
citação do fragmento 91 presente no Crátilo não ser verbatim não impede que o
enunciado remonte a Heráclito, nem implica que Platão estivesse equivocado em
sua interpretação e paráfrase. Além disso, como podemos ver, tanto Crátilo quanto
Aristóteles testemunham a favor de Platão no caso do fragmento 91, atestando que
ele é um dito genuíno e independente de Heráclito. Desse ponto de vista, a
suposição de Kirk e de outros autores, segundo a qual o fragmento 91 foi
inventado por Platão com base no fragmento 12, parece ser pouco plausível, além
de se revelar uma conjectura motivada principalmente por uma interpretação
equivocada das implicações desse fragmento e da leitura platônica de Heráclito.217

Platão sabia que, caso a tese da universalidade do fluxo e da mudança


fosse levada ao extremo, como o foi por Crátilo e outros, ela poderia gerar uma
negação absoluta da identidade e da estabilidade, levando a implicações absurdas.
Mas ele viu também que o próprio Heráclito não levou sua doutrina da

216
Tarán observa que, mesmo sem uma leitura direta do livro de Heráclito, Aristóteles poderia
conhecer, por meio de uma citação, um ou outro caso em que essa dificuldade de pontuação
acontece. Mas, de todo modo, ele não poderia dizer que se tratava de uma característica de todo o
escrito. Cf. L. Tarán, “Heraclitus: The River-Fragments and their Implications” (op. cit.), p. 39.
217
Como escreve Irley Franco, “no estado em que se encontram as informações que nos dão
acesso ao pensamento de Heráclito, isto é, na impossibilidade de uma leitura de fragmentos que
fazendo sentido não seja puramente conjectural, não podemos supor que, mais do que Platão, esses
comentadores tenham compreendido Heráclito, embora o próprio Heráclito não fosse muito
otimista com relação à capacidade de compreensão de sua audiência original, como deixa
transparecer em alguns de seus fragmentos”. Cf. I. Franco, “A Realidade do Mundo Físico em
Platão” (op. cit.), p. 100.
178

universalidade da mudança a esse extremo. Para sustentar essa visão de que a


doutrina do fluxo de Heráclito não é extremada, e sim inclui a idéia de que o
movimento e a mudança implicam a permanência e a identidade e vice-versa, na
medida em que há uma estrutura ou padrão estável de mudança, há evidências em
muitos fragmentos, e Platão, como vimos, muito provavelmente os conhecia.218
Platão, portanto, parece ter percebido que Heráclito enfatizou tanto a
universalidade da mudança quanto a identidade da estrutura e dos padrões que se
mantêm em meio ao fluxo e à mudança. Por isso, a essência da filosofia de
Heráclito podia ser descrita por ele como a afirmação da identidade na diferença,
da unidade na multiplicidade, da permanência na mudança, do repouso no
movimento.

218
No capítulo 1 desta tese, foram citados muitos fragmentos de Heráclito que tratam da
universalidade da mudança, e da estrutura, padrão, medida e identidade inerentes à mudança.
Segue uma listagem dos fragmentos que falam especialmente disso: fragmentos 1, 7, 10, 30, 31,
36, 50, 51, 53, 62, 76, 80, 84a, 88, 125, 126.
179

6.

Considerações finais

6.1

O percurso da pesquisa

Em lugar de simplesmente apresentar um resumo e uma articulação das


principais questões e conclusões expostas ao longo deste trabalho, preferi iniciar
estas palavras finais falando brevemente da trajetória que esta pesquisa percorreu
desde o projeto original, apresentado no exame de seleção para o curso de
doutorado, até sua forma final, a tese. A própria tese apresenta, é claro, todo um
percurso de pesquisa, de escolhas, de reflexão e de interpretação. Mas nela não
aparece muito do que precisou ser abandonado, acrescentado, descoberto e
modificado, e talvez algumas das decisões mais importantes – e dos acasos
também – que deram à tese a forma que ela possui e fizeram com que ela chegasse
aos resultados a que chegou estejam ligadas a isso que nela não é patente ou
evidente, embora seja fundamental.

Meu projeto original era estudar as relações entre o pensamento de


Heráclito e o ceticismo antigo. Algumas das razões do interesse nessa pesquisa
são que Heráclito é considerado, por importantes historiadores da filosofia antiga,
um dos precursores ou antecedentes da tradição cética. E não apenas os intérpretes
contemporâneos do ceticismo antigo relacionaram esta tradição com o
pensamento de Heráclito, mas também os próprios antigos filiaram-na, direta ou
indiretamente, ao pensamento heraclítico.
180

Por exemplo, Platão e Aristóteles – ainda que sejam, eles próprios, mais
antigos do que a tradição cética propriamente dita –, além de Sexto Empírico –
que busca sistematizar o ceticismo antigo –, quando mencionam e interpretam
Heráclito em suas obras, indicam haver parentesco e proximidade entre o
pensamento de Heráclito e o que viria a constituir a temática cética. Platão, no
Teeteto, associou a doutrina de Heráclito ao relativismo de Protágoras; além disso,
tanto no Teeteto quanto no Crátilo, mostrou que a tese heraclítica do fluxo e do
devir poderia ter como conseqüência a interdição do conhecimento e da
linguagem. Aristóteles, na Física e, principalmente, no Livro IV da Metafísica,
inclui Heráclito no rol dos filósofos que teriam negado o princípio de não-
contradição e, em sua defesa deste princípio, indica a existência de elementos
céticos em Heráclito, em outros pré-socráticos e nos sofistas. Por fim, na leitura
de Sexto Empírico, tanto Enesidemo quanto os seus seguidores teriam se
equivocado ao afirmar que a via cética conduziria à filosofia heraclítica, pois,
embora houvesse traços céticos em seu pensamento, Heráclito afirmaria o lógos
como critério de verdade e, neste sentido, seu pensamento teria um caráter
dogmático.

Em minha dissertação de mestrado, partindo de um exame da noção


heraclítica de lógos, da misantropia de Heráclito, de sua crítica insistente aos
ignorantes, de sua exortação constante para que os homens escutassem e
compreendessem o que é comum a todas as coisas, compreendessem que há uma
harmonia invisível mais forte que as conexões visíveis entre as coisas, fiz um
exame que chamei de “a questão do conhecimento em Heráclito”. Estudei os
fragmentos em que a questão do conhecimento foi tematizada explicitamente pelo
Efésio, e concluí que ele reconhece dois modos de se compreender a realidade,
dos quais um oferece o conhecimento efetivo do lógos e o outro não. Essa
distinção está no coração de sua concepção do conhecimento.

Terminei por sustentar, nesse trabalho, que não procede a imagem do


“Heráclito cético”, mas nenhuma análise detida e cuidadosa das fontes dessa
imagem foi desenvolvida na dissertação. Meu projeto de tese original, então,
previa um exame da recepção de Heráclito por Platão, Aristóteles e Sexto
Empírico. Comecei a pesquisa por Platão, e dele não consegui nem quis mais sair.
181

De início, busquei eleger alguns diálogos platônicos para neles me concentrar: os


diálogos em que há um exame extenso de Heráclito, de seu mobilismo e das
implicações desse mobilismo para o conhecimento e a linguagem; e os diálogos
em que há menção explícita ou ao menos muito clara a Heráclito, e onde não é o
mobilismo o ponto central, e sim a unidade dos opostos e a simultaneidade da
identidade e da diferença (algo sem o que o movimento pode parecer ininteligível;
algo com o que o movimento mostra ter lei, medida, padrão, e ser intelígivel). Os
diálogos escolhidos foram então o Teeteto, o Crátilo, o Sofista e o Banquete. E o
tema da tese se definiu e deu a ela o título que ela não deixou de ter: Aspectos da
recepção de Heráclito por Platão.

Iniciei a pesquisa pelo Teeteto, e dele também não consegui nem quis mais
sair. Ou melhor, relacionei o Teeteto muitas vezes com os demais diálogos
platônicos, mas sempre partindo dele, Teeteto, e de seu percurso de leitura. No
início de minha leitura desse diálogo e da literatura sobre ele, me dei conta de
duas coisas que exigiram decisões e tomadas de posição difíceis e demoradas:
uma delas foi que muitos intérpretes do Teeteto examinam a recepção de Heráclito
por Platão buscando antes de tudo determinar se Platão leu Heráclito
corretamente. Desde o primeiro momento, me pareceu que eu deveria evitar
inteiramente essa abordagem, pois, mesmo que me parecesse estranha a leitura
platônica de Heráclito, eu não conseguia ver legitimidade numa leitura de Platão
que viesse com um interpretação prévia e pretensamente impecável de Heráclito,
para, como um juiz, e o mais autorizado deles, julgar se Platão chegou lá e
entendeu Heráclito direito ou não. De tal maneira me pareceu problemática essa
abordagem, que decidi simplesmente tentar deixar de lado minha pesquisa de
mestrado; não recorrer nem a ela nem a nenhuma fonte externa a Platão, mas
buscar somente entender quem é o Heráclito que Platão desenha, em que
contextos, e na discussão de que questões e problemas.

Mas, felizmente, chegou um momento em que ficou claro que não fazia
sentido impedir a entrada de outras fontes, nem deixar de fora o trabalho que, no
mestrado, tinha me levado a esse interesse e a essa pesquisa: pois, de um lado, o
recurso a outras fontes e leituras de Heráclito não necessariamente precisa ser
feito com o intuito de julgar se Platão entendeu Heráclito corretamente ou não, e,
182

de outro, ele pode ser muito proveitoso se o objetivo for ver o que Platão
deliberadamente enfatizou e o que ele deixou de lado ou tratou mais brevemente
no pensamento de Heráclito, enfim, que imagem de Heráclito ele decidiu
transmitir, e com que propósito.

A segunda coisa que me tomou muito tempo e exigiu escolhas difíceis foi
a percepção de que o Teeteto, que usei como uma espécie de porta de entrada para
meu primeiro estudo de Platão em maior profundidade, suscita questões básicas,
amplas e dificílimas sobre a obra e a filosofia de Platão como um todo: os
comentadores do Teeteto, ao articularem este diálogo com o restante da obra
platônica, numa leitura de tipo transversal, mostram que ele é importantíssimo
para a reflexão, por exemplo, sobre os problemas que deram origem à teoria das
idéias de Platão e sobre o desenvolvimento da concepção platônica acerca do
status ontológico e epistêmico do devir e do mundo físico. E essas questões, além
de fascinantes, me pareceram durante algum tempo fundamentais para qualquer
exame do Teeteto, inclusive o meu, que de início não parecia requerer nada disso.
Mas elas extrapolavam muito o recorte desta tese, e exigiam toda uma outra
pesquisa, que não havia como ser feita, ou melhor, bem feita. Por isso, depois de
elas terem produzido uma espécie de desvio na pesquisa e de vertigem em mim,
decidi indicá-las, mostrar sua relevância e sua conexão com o texto do Teeteto e
com a temática da tese, mas deixá-las em aberto, retornando ao tema da tese
propriamente.

Já foi dito neste trabalho que mais de um objetivo pode dirigir uma
investigação sobre a leitura platônica das idéias heraclíticas, e de fato mais de um
propósito norteou a pesquisa apresentada nesta tese. O primeiro e mais importante
objetivo deste exame da recepção de Heráclito por Platão foi entender, a partir da
leitura do Teeteto, quais teses Platão atribuiu a Heráclito, quais imputou a seus
adeptos, e como examinou e criticou essas teses tal como elas apareceram a seus
olhos.

Freqüentemente se disseminou uma visão da leitura platônica de


Heráclito segundo a qual Platão transmite do Efésio a imagem de um mobilista
radical, cuja ontologia implicaria a impossiblidade do conhecimento e da
linguagem. Busquei verificar se essa visão não é problemática, examinando a
183

interpretação que Platão constrói dos discursos e idéias heraclíticas de que fala na
primeira parte do Teeteto. Platão estaria de fato atribuindo um mobilismo extremo
a Heráclito nesse diálogo? Ou será que sua exposição da tese heraclítica do fluxo,
no Teeteto, ao ser realizada em etapas que progressivamente vão apresentando
versões mais e mais radicais desse mobilismo, se refere apenas inicialmente a
Heráclito, para depois referir-se exclusivamente a seus seguidores extremados?
Também procurei verificar se a interpretação platônica remonta de fato às teses e
escritos originais de Heráclito. Mesmo considerando que Platão não foi um
historiador da filosofia, mostrou-se inevitável pensar se a transmissão que ele fez
do pensamento de Heráclito, além de filosoficamente relevante, é também
historicamente verídica; se, do ponto de vista histórico, essa transmissão é
multifacetada e rica, ou parcial e pontual. Será, por exemplo, que o Teeteto estaria
atribuindo a Heráclito somente a tese do fluxo universal, isolando assim um
aspecto de sua filosofia até o ponto de produzir uma imagem muito parcial e
distorcida de seu pensamento? Ou será que ali Platão está apresentando uma
imagem multidimensional de Heráclito, considerando de autoria do Efésio outras
teses de peso, como por exemplo a doutrina da unidade dos opostos?

O roteiro que desenhei para minha investigação traduziu-se no


ordenamento dos capítulos desta tese. Inicialmente, apresentei de maneira
resumida a pesquisa realizada em minha dissertação de mestrado, que me levou a
eleger o Teeteto como primeiro campo para a reflexão sobre a recepção de
Heráclito por Platão. Examinei os fragmentos em que Heráclito tematiza a questão
do conhecimento e passei em seguida à leitura do Teeteto, analisando a definição
de conhecimento aí formulada e as relações aí estabelecidas entre a definição de
conhecimento como sensação, a doutrina do homem-medida de Protágoras e a
teoria do fluxo heraclítica. Busquei então apresentar as seções do diálogo em que
as teses heraclíticas são expostas e criticadas, e sobretudo distinguir as passagens
em que Platão discute um mobilismo que atribui a Heráclito daquelas em que
critica um mobilismo radical que atribui aos adeptos deste. Examinei por fim a
literatura acadêmica pertinente à autenticidade e ao significado dos fragmentos
heraclíticos do rio, buscando analisar a interpretação platônica da teoria do fluxo
184

heraclítica, sobretudo tal como é exposta no fragmento 91 de Heráclito, cuja


versão mais antiga foi conservada por Platão.

6.2

A riqueza da leitura platônica de Heráclito

Iniciei a leitura do Teeteto partindo do estranhamento provocado pelo


fato de que, nesse diálogo, a interpretação dada à teoria do fluxo levou a filosofia
heraclítica a fornecer fundamentos ao relativismo de Protágoras e, ao menos
aparentemente, a implicar, no fim das contas, a impossibilidade do conhecimento
e da linguagem. Heráclito, em seus fragmentos, mostra que, ao contrário, ele mais
provavelmente se aliaria a Platão contra o relativismo de Protágoras e o
radicalismo dos auto-intitulados heraclíticos, e a favor da idéia de que o
conhecimento e a linguagem são possíveis. Pois o que Heráclito afirma, em
resumo, é que o conhecimento é possível, e somente é possível a respeito daquilo
que é “comum”, o lógos. O conhecimento não pode ser nem interditado, nem
formado à luz de condições individuais e privadas. Heráclito viu, na
“comunidade” do lógos, a condição do conhecimento, e, na parcialidade do
julgamento que só considera o testemunho isolado das sensações/opiniões, sem
integrá-las a um discernimento inteligente, a fonte do erro e da ignorância.

No entanto, no Teeteto, Platão encontrou motivos para identificar a


doutrina do fluxo de Heráclito com uma das bases do relativismo de Protágoras e
do sensualismo de Teeteto, isto é, de duas teses que afirmam que o conhecimento
é sempre privado, que não há nenhum padrão objetivo e comum que possa ser
usado para corrigir ou julgar os conhecimentos privados, e que, por essa razão, os
conhecimentos privados são sempre infalíveis e verdadeiros. Mas foi
precisamente no reconhecimento de que a sensação e o julgamento privado não
bastam para dar aos homens o conhecimento que insistiram tanto Heráclito quanto
Platão. A questão que se colocou então foi por que Platão não reconheceu essa
aliança com relação ao pensamento de Heráclito.

De início supus que uma resposta possível a essa questão seria que, no
Teeteto, não importava muito para Platão o fato de Heráclito poder ser seu aliado
185

contra o relativismo de Protágoras, pois o que interessava realmente a ele era que
um aspecto da filosofia heraclítica, a saber, o seu mobilismo, servia para
fundamentar o relativismo de Protágoras, podendo ser identificado como a sua
fonte, ou uma das suas fontes. E esse relativismo, somente depois de ser
construído sobre determinadas bases, poderia ser finalmente criticado e refutado,
o que era um dos objetivos de Platão nesse diálogo.

Além de confirmar agora essa hipótese, me parece também haver uma


outra razão para a ênfase dada, no Teeteto, à discussão da teoria do fluxo de
Heráclito, e não a outras de suas teorias. A razão é que o Teeteto realiza uma
distinção clara entre duas concepções do devir: uma que não admite qualquer
resquício de identidade e estabilidade, e outra que afirma a identidade, a ordem, a
estabilidade de padrões e estruturas na mudança. Era também objetivo de Platão
no Teeteto criticar e mostrar as graves conseqüências da versão extremada da
doutrina do fluxo, bem como mostrar a plausibilidade de sua versão moderada. E
nada melhor do que tratar do mobilismo em Heráclito e nos heraclíticos para
desenhar esta diferença.

Como busquei mostrar, mesmo que algumas passagens do Teeteto


pareçam atribuir a Heráclito uma versão exagerada do mobilismo, não é Heráclito
quem Platão ataca no Teeteto. Na crítica à doutrina do fluxo, este diálogo parece
se referir apenas aos seguidores de Heráclito, e parece atribuir somente a eles a
sua versão extremada. Platão relutou em atacar diretamente a doutrina de
Heráclito, dirigindo-se na verdade às distorções feitas pelos heraclíticos.

Considero também que as contribuições do Teeteto não são apenas


negativas: se seu propósito, de um lado, consiste em deixar as formas inteligíveis
de fora para mostrar que o conhecimento não é possível sem elas, de outro, parece
também consistir em distinguir de forma clara, talvez pela primeira vez na história
da filosofia, sensação e julgamento. Como busquei argumentar, ao restringir a
noção de aísthesis no Teeteto, distinguindo-a de dóxa, Platão parece estar
contribuindo positivamente para o fim do que ele próprio considera dois erros
graves: o erro, cometido pela filosofia, de confundir a sensação com o
pensamento, a crença, a opinião ou o julgamento, e o erro, cometido pela sofística,
de afirmar que as opiniões, as crenças e, pior, os conhecimentos que temos são
186

questão apenas de como as coisas, de modo sempre infalível e verdadeiro, nos


atingem, deixam em nós uma impressão, aparecem para nós.

Finalmente, uma última consideração a respeito da leitura platônica de


Heráclito no Teeteto: o pequeno trecho do diálogo em que a doutrina secreta é
introduzida conecta a doutrina do fluxo de Heráclito com três outras doutrinas do
Efésio, em lugar de apresentá-la isoladamente. Platão, no Teeteto, vincula as
doutrinas heraclíticas do fluxo, da orthotés natural dos nomes, da unidade dos
opostos e do fogo como princípio universal. Portanto, essa única passagem do
diálogo oferece evidências suficientes de que Platão, em sua obra, não isola a
doutrina heraclítica do fluxo, nem tampouco reduz a ela a filosofia de Heráclito, e
sim oferece uma imagem multidimensional e rica do pensamento heraclítico.
187

7.

Referências bibliográficas

7.1

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